PARA ENTENDER as raízes da ciência, devemos olhar para trás, para as raízes da espécie humana. Só os homens são dotados da capacidade e do desejo de entender a si mesmos e o mundo. Essa é a característica fundamental que nos diferencia dos outros animais, e é por isso que estudamos ratos e cobaias, e não o contrário. O desejo de saber, de refletir e criar, exercido ao longo de milhares de milênios, nos forneceu as ferramentas para sobreviver, para construir um nicho ecológico único para nossa espécie. Usando mais o poder do nosso intelecto que do nosso físico, moldamos o meio ambiente segundo nossas necessidades, em vez de permitir que o ambiente nos moldasse ou nos derrotasse. Durante milhões de anos, a força e a criatividade de nossas mentes triunfaram sobre os obstáculos que desafiaram a força e a agilidade de nossos corpos.
Quando era mais novo, meu filho Nicolai gostava de capturar pequenos lagartos para manter como animais de estimação – algo possível de ser feito se você mora no sul da Califórnia. Percebemos que, quando nos aproximávamos, primeiro os animais ficavam imóveis, em seguida, quando estendíamos a mão, eles fugiam. Afinal descobrimos que, se emborcássemos uma caixa sobre o lagarto antes que ele saísse correndo, podíamos enfiar um pedaço de papelão embaixo para concluir a captura. Pessoalmente, se estou andando por uma rua deserta e escura e percebo alguma coisa suspeita, não me imobilizo; atravesso imediatamente para o outro lado. Assim, é fácil supor que, se eu visse dois predadores gigantes vindo em minha direção, com o olhar ávido e carregando uma caixa gigantesca, imaginaria o pior e sairia correndo de imediato. Lagartos, porém, não questionam a situação em que se encontram. Eles agem puramente por instinto. Sem dúvida esse instinto foi muito útil ao longo dos diversos milhões de anos que precederam Nicolai e a caixa, mas, nesse caso, não funcionou.
Os homens podem não ser a espécie mais bem desenvolvida fisicamente, mas temos a habilidade de complementar o instinto com a razão e – o mais importante para nossos propósitos – de fazer perguntas sobre nosso ambiente. Esses são os pré-requisitos do pensamento científico, e também as características cruciais da nossa espécie. E é assim que a nossa aventura começa: com o desenvolvimento do cérebro humano, com suas características exclusivas.
Nós nos chamamos de espécie “humana”, mas na verdade a palavra “humana” não se refere apenas a nós – Homo sapiens sapiens –, mas a todo um gênero chamado Homo. Esse gênero inclui outras espécies, como o Homo habilis e o Homo erectus, mas esses parentes já morreram há muito tempo. No torneio eliminatório chamado evolução, todas as outras espécies humanas se revelaram inadequadas. Apenas nós, pelo poder de nossas mentes, correspondemos (até agora) a todos os desafios da sobrevivência.
Não muito tempo atrás, o homem que na época era presidente do Irã teria afirmado que os judeus descendem de macacos e de porcos. É sempre animador quando um fundamentalista de qualquer religião admite acreditar na evolução, por isso chego a hesitar antes de fazer uma crítica. Mas na verdade os judeus – assim como todos os seres humanos – não descendem de macacos e porcos, mas de macacos e ratos, ou pelo menos de criaturas semelhantes a ratos.1 Chamado Protungulatum donnae na literatura científica, nossa tatara-tatara-tataravó – a progenitora de nossos ancestrais primatas e de todos os mamíferos como nós – parece ter sido uma gracinha, uma espécie com rabo peludo que não pesava mais de meio quilo.
Os cientistas acreditam que esses minúsculos animais corriam por seus hábitats por volta de 66 milhões de anos atrás, pouco depois que um asteroide de dez quilômetros de diâmetro se chocou contra a Terra. Essa catastrófica colisão levantou tantos detritos na atmosfera que isolou o planeta dos raios do Sol por um longo período – e gerou gases de efeito estufa que aumentaram muito as temperaturas quando a poeira baixou. O duplo golpe da escuridão seguida pelo calor matou cerca de 75% de todas as espécies de plantas e animais, mas para nós foi uma sorte, porque criou um nicho ecológico em que animais que dão à luz filhotes vivos conseguiram sobreviver e evoluir sem ser devorados por dinossauros vorazes e outros predadores. Ao longo dos 10 milhões de anos posteriores, com o surgimento e a extinção de novas espécies, um ramo da árvore genealógica Protungulatum evoluiu até dar origem aos nossos ancestrais símios e macacos, com novas ramificações produzindo nossos parentes vivos mais próximos, os chimpanzés e bonobos (chimpanzés-pigmeus), até chegar a você, leitor deste livro, e seus companheiros humanos.
Concepção artística do Protungulatum.
Hoje a maioria das pessoas se sente confortável com o fato de que nossa avó tinha uma cauda e comia insetos. Eu vou além da mera aceitação: sinto-me animado e fascinado por nossa ancestralidade e pela história da nossa sobrevivência e evolução cultural. Acho que nossos avós ancestrais serem ratos e macacos é um dos aspectos mais bacanas da natureza: no nosso incrível planeta, um rato de mais de 66 milhões de anos deu origem aos cientistas que estudam o rato, descobrindo assim suas próprias raízes. Nesse longo percurso, nós desenvolvemos a cultura, a história, a religião e a ciência, e substituímos os ninhos de gravetos dos antepassados por reluzentes arranha-céus de concreto e aço.
A velocidade desse desenvolvimento intelectual vem aumentando radicalmente. A natureza precisou de mais ou menos 60 milhões de anos para produzir o “macaco” de que todos os seres humanos descendem; o resto da nossa evolução física ocorreu em poucos milhões de anos; nossa evolução cultural não precisou de mais de 10 mil anos. Mais ou menos como explicam as palavras do psicólogo Julian Jaynes: “Toda a vida evoluiu até certo ponto, e em nós fez um ângulo reto e simplesmente explodiu em nova direção.”2
O cérebro dos animais evoluiu basicamente pela mais primitiva das razões: melhorar a capacidade de movimento. A capacidade de se locomover – para encontrar comida e abrigo, para escapar dos inimigos – é uma das características mais básicas dos animais. Observando a longa estrada da evolução de animais como nematoides, minhocas e moluscos, descobrimos que as primeiras funções cerebrais controlavam o movimento, excitando certos músculos na ordem apropriada. Mas o movimento de nada adianta sem a capacidade de perceber o ambiente, e por isso até animais simples dispõem de alguma aptidão para sentir o que está ao seu redor – células que reagem a determinados produtos químicos, por exemplo, ou a fótons de luz, enviando impulsos elétricos para os nervos que regem o controle do movimento. Quando o Protungulatum donnae apareceu, essas células químicas e fotossensíveis tinham evoluído para os sentidos do olfato e da visão, e o feixe de nervos que controlavam o movimento muscular transformou-se em cérebro.
Ninguém sabe exatamente como o cérebro dos nossos antepassados foi organizado em componentes funcionais, porém, até hoje, no cérebro humano moderno, mais da metade dos neurônios é dedicada ao controle motor e aos cinco sentidos. No entanto, essa parte do nosso cérebro, que nos diferencia dos animais “inferiores”, é relativamente pequena e demorou a chegar.
Uma das primeiras criaturas quase humanas perambulou pela Terra entre 3 e 4 milhões de anos atrás.3 Era desconhecida para nós até um dia quente de 1974, quando um antropólogo chamado Donald Johanson, do Instituto de Origens Humanas de Berkeley, tropeçou num minúsculo fragmento de osso de braço despontando do solo calcinado de um barranco ressecado no remoto norte da Etiópia. Johanson e um estudante logo desenterraram outros ossos da coxa e das costelas, vértebras e até parte de uma mandíbula. Ao todo, eles encontraram quase metade do esqueleto de uma fêmea. A pélvis era de uma mulher com o crânio pequeno, pernas curtas e braços longos e oscilantes. Não era alguém que você convidaria para um baile, mas acredita-se que essa senhora de 3,2 milhões de anos de idade seja um elo com o nosso passado, uma espécie de transição, talvez a ancestral da qual nosso gênero inteiro evoluiu.
Johanson nomeou a nova espécie de Australopithecus afarensis, que significa “macaco do sul de Afar”, sendo Afar a região da Etiópia onde ele fez sua descoberta. Johanson também nomeou os ossos do esqueleto; chamou-a Lucy, em referência à canção dos Beatles “Lucy in the sky with diamonds”, que estava tocando no rádio do acampamento enquanto Johanson e sua equipe comemoravam. Andy Warhol disse que todo mundo tem quinze minutos de fama; depois de milhões de anos, essa mulher finalmente teve seu momento. Ou, para ser mais exato, metade dela; a outra metade nunca foi encontrada.
É surpreendente quanto os antropólogos podem deduzir a partir da metade de um esqueleto. Os grandes dentes de Lucy, com mandíbulas adaptadas para trituração, sugerem uma dieta vegetariana consistindo em raízes duras, sementes e frutas com cascas grossas.4 A estrutura do esqueleto indica que tinha uma barriga enorme, necessária para manter um intestino de grande extensão, a fim de digerir a quantidade de matéria vegetal de que ela precisava para sobreviver. O mais importante é que a estrutura de sua coluna vertebral e os joelhos indicam que ela andava mais ou menos na posição vertical, e o osso de um membro de sua espécie que Johanson e colegas descobriram lá perto, em 2011, revela um pé humanoide, com arcos adequados para caminhar, e não para se agarrar em galhos de árvores.5 A espécie de Lucy tinha evoluído de uma vida em cima das árvores para a vida no chão, possibilitando que seus integrantes vagassem pela ecologia mista de floresta e pastagem e explorassem novas fontes de alimentos originários do solo, como raízes e tubérculos ricos em proteínas. Aquele era o estilo de vida que muitos acreditam ter gerado todo o gênero Homo.
Pense só em morar numa casa e sua mãe na casa ao lado, e a mãe dela na casa ao lado da dela, e assim por diante. Nossa herança humana não é assim tão linear, mas, complexidades à parte, é interessante se imaginar dirigindo por essa rua, recuando no tempo, passando por várias gerações de antepassados. Se você fizesse isso, teria de dirigir quase 6 mil quilômetros para chegar à casa de Lucy,6 uma “mulher” peluda de 1,20 metro de altura e 32 quilos que pareceria mais um chimpanzé que um parente seu. Mais ou menos no meio do caminho, você passaria pela casa de um antepassado a 100 mil gerações de distância de Lucy, a primeira espécie mais semelhante às pessoas atuais – no esqueleto e, teorizam os cientistas, na mente – a ser classificada no gênero Homo.7 Os cientistas chamaram essa espécie humana, de 2 milhões de anos atrás, de Homo habilis, ou “homem habilidoso”.
O Homo habilis vivia nas imensas savanas da África num momento em que as florestas começavam a diminuir, em decorrência da mudança climática. Essas planícies gramíneas não eram um ambiente fácil, pois serviam de hábitat para grande número de terríveis predadores. Os menos perigosos competiam pelo jantar; os mais perigosos queriam jantar o Homo habilis. Uma maneira que o homem habilidoso encontrou para sobreviver foi a inteligência, pois tinha o cérebro maior, do tamanho de uma pequena toranja. Numa escala de salada de frutas, o peso do cérebro era menor que o do nosso melão, mas o dobro da laranja de Lucy.a
Ao comparar espécies diferentes, sabemos por experiência que em geral há uma correlação aproximada entre a capacidade intelectual e o peso médio do cérebro em relação ao tamanho do corpo. Assim, a partir do tamanho do cérebro, podemos concluir que o homem habilidoso representou uma melhoria intelectual em relação a Lucy e sua espécie. Felizmente, podemos medir o tamanho e a forma do cérebro de seres humanos e outros primatas mesmo que sua espécie já esteja extinta há muito tempo, pois os cérebros se encaixam nos crânios. Em essência, isso significa que, quando encontramos o crânio de um primata, temos o molde do cérebro que ele abrigava.
Para não parecer que estou defendendo o tamanho do chapéu como referência para testes de inteligência, devo acrescentar o aviso legal de que, quando os cientistas mencionam medir a inteligência comparando o tamanho do cérebro, eles estão falando apenas de comparações entre os tamanhos médios do cérebro de diferentes espécies. O tamanho do cérebro varia bastante entre indivíduos da mesma espécie, todavia, nesse caso, o tamanho do cérebro não está diretamente relacionado à inteligência.8 Por exemplo, o cérebro dos seres humanos modernos pesa cerca de três quilos em média. Mas o cérebro do poeta inglês Lord Byron pesava cerca de cinco quilos, enquanto o do escritor francês e vencedor do Prêmio Nobel Anatole France pesava um pouco mais de dois quilos, e o cérebro de Einstein pesava 2,7 quilos. Ainda há o caso de um homem chamado Daniel Lyons, que morreu em 1907, aos 41 anos. Daniel tinha peso e inteligência normais, porém, quando o cérebro foi pesado na autópsia, viu-se que o ponteiro da balança parou em meros 680 gramas. Moral da história: para uma espécie, a arquitetura do cérebro – a natureza das conexões entre neurônios e grupos de neurônios – é muito mais importante que seu tamanho.
O cérebro de Lucy era somente pouco maior que o de um chimpanzé. Mais importante, o formato do crânio indica que o aumento do poder do cérebro estava concentrado em regiões que lidam com o processamento sensorial, enquanto os lobos frontal, temporal e parietal – regiões do cérebro onde se situam o raciocínio abstrato e a linguagem – permanecem relativamente subdesenvolvidos. Lucy foi um passo em direção ao gênero Homo, mas ainda não tinha chegado lá. Isso mudou com o homem habilidoso.
Assim como Lucy, o homem habilidoso ficou de pé, liberando as mãos para carregar coisas.9 Contudo, ao contrário de Lucy, ele usou essa liberdade para fazer experiências com o ambiente. E assim, mais ou menos 2 milhões de anos atrás, apareceu um Homo habilis Einstein, ou uma madame Curie, ou – talvez o mais provável – surgiram diversos gênios antigos trabalhando de forma independente um do outro, e eles fizeram as primeiras descobertas importantes para a humanidade: se você quebrar uma pedra com outra em ângulo agudo, pode desgastar a pedra até obter uma lasca pontuda, uma faca de lâmina afiada. Aprender a bater uma pedra na outra não parece o início de uma revolução social e cultural. Produzir uma pedra lascada perde em importância quando comparada à invenção da lâmpada e da internet. Mas esse foi nosso primeiro passo infantil, aquele que nos levou ao conhecimento e à transformação da natureza para melhorar nossa existência, mostrando que podíamos contar com o poder do nosso cérebro para compensar e superar a fragilidade do nosso corpo.
Homo habilis.
Para uma criatura que nunca viu uma ferramenta de qualquer tipo, uma espécie de dente artificial tamanho jumbo que pode ser usado para cortar e aparar é uma invenção revolucionária, e isso ajudou a mudar completamente a maneira como os seres humanos viviam. Lucy e sua espécie eram vegetarianas; estudos microscópicos do desgaste dos dentes do Homo habilis e dos ossos descarnados encontrados perto de seus esqueletos indicam que os homens habilidosos usaram as novas facas de pedra para adicionar carne à sua dieta. 10
O vegetarianismo expunha Lucy e sua espécie à escassez sazonal de alimentos vegetais. Ter uma dieta mista ajudou o Homo habilis a superar essa escassez. Como a carne é uma forma de nutriente mais concentrada que a matéria vegetal, os carnívoros precisavam de quantidade menor de comida que os vegetarianos. Por outro lado, você não precisa perseguir e matar um pé de brócolis, mas a aquisição de matéria animal pode ser muito difícil sem as armas letais que faltavam ao homem habilidoso. Por essa razão, ele obtinha a maior parte de sua carne das carcaças deixadas para trás por predadores como os tigres-dentes-de-sabre, com poderosas patas dianteiras e presas afiadas, que matavam animais muito maiores do que poderiam consumir. No entanto, mesmo a busca desse alimento pode ser difícil se você tiver de competir com outras espécies, como era o caso dos homens habilidosos.
Nessa batalha para conseguir alimento, as pedras afiadas do homem habilidoso conseguiam retirar carne dos ossos mais rápida e facilmente, equilibrando um pouco o jogo com animais que tinham ferramentas naturais equivalentes.11 Quando apareceram, esses implementos se tornaram muito populares e passaram a ser a ferramenta humana preferida por quase 2 milhões de anos. Na verdade, foram as pedras dispersas encontradas ao lado de fósseis do Homo habilis que inspiraram o nome conferido a essa espécie por Louis Leakey e seus colegas no início dos anos 1960. Desde então, cutelos de pedra foram encontrados de forma tão abundante em locais de escavações que muitas vezes é preciso andar com cuidado para não pisar num deles.
FOI UMA LONGA JORNADA desde as pedras afiadas até os transplantes de fígado, mas, como reflete o uso de ferramentas, a mente do Homo habilis já tinha avançado além da capacidade de qualquer um dos nossos parentes primatas então existentes. Por exemplo, mesmo depois de anos treinados por pesquisadores de primatas, os bonobos não conseguem se tornar competentes no uso de uma ferramenta de pedra simples do tipo empregado pelo Homo habilis.12 Recentes estudos de imagens do cérebro sugerem que essa capacidade de projetar, planejar e usar ferramentas surgiu a partir do desenvolvimento evolutivo de uma rede especializada em “uso de ferramentas”,13 no lado esquerdo do cérebro. Infelizmente, há casos raros em que os seres humanos com danos nessa rede não se saem melhor que os bonobos:14 eles conseguem identificar ferramentas, mas, como eu, antes do café, não atinam como empregar dispositivos simples como um pente ou uma escova de dentes.
Apesar da melhoria do poder cognitivo, essa espécie de homem – o Homo habilis – de mais de 2 milhões de anos de idade é apenas uma sombra do homem moderno: tem cérebro ainda relativamente pequeno e também é fisicamente pequeno, com braços longos e expressão facial apreciada somente por um veterinário. No entanto, depois de seu surgimento, não demorou muito – na escala de tempo geológica – até a aparição de diversas outras espécies de Homo. A mais importante – a que a maioria dos especialistas concorda ter sido o ancestral direto da nossa própria espécie – foi o Homo erectus, ou “homem ereto”, que se originou na África, cerca de 1,8 milhão de anos atrás.15 Restos de esqueletos mostram o homem ereto como uma espécie bem mais assemelhada às atuais que o homem habilidoso, e não apenas mais ereto, como também maior e mais alto – quase 1,5 metro de estatura –, com membros longos e crânio muito maior, o que permitiu a expansão dos lobos frontal, temporal e parietal do cérebro.
Esse novo crânio maior teve implicações no processo de nascimento. Um problema com que os fabricantes de automóveis não precisam lidar quando reformulam um de seus modelos é como encaixar o novo Honda na linha de montagem dos mais antigos. Mas a natureza tem de lidar com essas coisas. Assim, no caso do Homo erectus, o novo desenho da cabeça provocou alguns problemas. As fêmeas do Homo erectus deviam ser maiores que suas predecessoras para dar à luz seus bebês de cabeça e cérebro maiores. Por conseguinte, enquanto a fêmea do Homo habilis era somente 60% maior que sua contraparte masculina, a fêmea do Homo erectus pesava em média 85% mais que seu companheiro.
Os novos cérebros valeram a pena, pois o homem ereto assinalou outra mudança abrupta e magnífica na evolução humana. Eles passaram a ver o mundo e a abordar seus desafios de forma diferente da de seus antecessores. Em particular, foram os primeiros humanos a imaginar novas formas criativas e de planejamento para a produção de complexas ferramentas de pedra e madeira – machados, facas e cutelos cuidadosamente trabalhados, exigindo outras ferramentas para sua confecção. Hoje creditamos ao nosso cérebro a capacidade de criar ciência, tecnologia, arte e literatura, mas a capacidade do nosso cérebro para conceber ferramentas complexas foi muito mais importante para a nossa espécie, concedendo-nos uma vantagem que ajudou na nossa sobrevivência.
Com suas ferramentas avançadas, o homem ereto podia caçar, e não apenas rapinar, aumentando a disponibilidade de carne na dieta. Se as receitas de vitela nos livros modernos começassem dizendo “Cace e abata um bezerro”, a maioria das pessoas se ateria às receitas de livros como As delícias da berinjela. Todavia, na história da evolução humana, a maior capacitação para a caça foi um grande salto adiante, possibilitando maior consumo de proteínas e menor dependência de grandes quantidades de alimentos vegetais necessários para a sobrevivência. O homem ereto deve ter sido também a primeira espécie a aprender que o atrito de materiais cria calor e a descobrir que o calor cria fogo. Com o fogo, o homem ereto pôde fazer o que nenhum outro animal conseguia: manter-se aquecido em climas que seriam frios demais para suportar a vida.
Considero reconfortante saber que, embora só faça minhas caçadas no balcão do açougue e minha ideia de uso de ferramentas seja chamar um carpinteiro, sou descendente de tipos que foram muito hábeis nessas práticas – mesmo que tivessem testas salientes e dentes capazes de roer um osso. Mais importante ainda, essas novas conquistas da mente habilitaram o Homo erectus a se ramificar da África para a Europa e a Ásia e a persistir como espécie por bem mais de 1 milhão de anos.
AO MESMO TEMPO que esses avanços na nossa inteligência nos permitiram empreender caçadas mais complexas e produzir ferramentas afiadas, eles também criaram novas necessidades prementes, pois encurralar e caçar um animal maior e mais veloz na savana é façanha que funciona melhor com uma equipe de caçadores. Assim, muito antes de formarmos seleções de basquete e times de futebol, houve uma pressão evolutiva para que nosso gênero desenvolvesse inteligência social e capacidade de planejamento suficientes, a fim de se reunir em bandos para perseguir antílopes e gazelas. O novo estilo de vida do homem ereto favoreceu a sobrevivência dos que conseguiam se comunicar e planejar melhor. Vemos aqui, mais uma vez, a origem da natureza humana moderna em suas raízes na savana da África.
Em algum momento perto do fim do reinado do homem ereto, talvez meio milhão de anos atrás, ele evoluiu para uma nova forma, o Homo sapiens, dotado de maior potência cerebral. Aqueles primeiros ou “arcaicos” Homo sapiens ainda não eram seres que reconheceríamos como os seres humanos atuais. Eles tinham corpos mais robustos e crânios maiores e mais pesados, mas o cérebro ainda não era tão grande como os nossos. Anatomicamente, os homens modernos são classificados como subespécie do Homo sapiens que provavelmente só se ramifica a partir dele por volta de 200000 a.C.
Nós quase não conseguimos chegar lá. Uma surpreendente análise recente de DNA feita por antropólogos geneticistas indica que, por volta de 140 mil anos atrás, um evento catastrófico – provavelmente relacionado a alterações climáticas – dizimou as fileiras de humanos modernos, todos vivendo na África. Durante esse período, a população total das nossas subespécies despencou para apenas algumas centenas – transformando-nos no que hoje chamaríamos de “espécies ameaçadas”, como o gorila-dasmontanhas ou a baleia-azul. Isaac Newton, Albert Einstein e os outros de quem você já ouviu falar, mais os bilhões que vivem no mundo hoje, são todos descendentes daquelas reles centenas sobreviventes.16
Essa quase extinção talvez tenha sido uma indicação de que as novas subespécies, com o cérebro maior, ainda não eram inteligentes o bastante para progredir a longo prazo. Mas aí fomos submetidos a outra transformação, que nos deu novos e surpreendentes poderes mentais. Ela não parece ser consequência de uma mudança na nossa anatomia física, nem mesmo na anatomia do nosso cérebro, mas de uma reformulação da maneira como o cérebro funciona. Seja o que for que tenha acontecido, essa metamorfose permitiu à nossa espécie produzir cientistas, artistas, teólogos e pessoas que pensam mais ou menos como pensamos.
Os antropólogos referem-se a essa última transformação mental como desenvolvimento do “comportamento humano moderno”. Quando falam em “comportamento moderno” eles não estão se referindo a fazer compras ou tomar bebidas inebriantes assistindo a competições esportivas, mas do exercício de pensamento simbólico complexo, o tipo de atividade mental que acabaria desenvolvendo a cultura humana atual. Há alguma controvérsia sobre quando isso aconteceu, mas a data mais aceita situa essa transição por volta de 40000 a.C.17
Hoje chamamos nossa subespécie de Homo sapiens sapiens, ou “homem sábio sábio”. (Isso é que dá escolher um nome para a própria espécie.) Mas todas essas mudanças que resultaram nos nossos grandes cérebros não saíram barato. Do ponto de vista do consumo de energia, o cérebro humano moderno é o segundo órgão mais dispendioso do corpo, depois do coração.18
Em vez de nos dotar de cérebros com altos custos operacionais, a natureza poderia nos ter concedido músculos mais poderosos, que, em comparação com o cérebro, consomem apenas um décimo de calorias por unidade de massa. No entanto, a natureza preferiu não tornar nossa espécie a mais apta fisicamente.19 Os seres humanos não são particularmente fortes nem os mais ágeis. Nossos parentes mais próximos, os chimpanzés e bonobos, abriram caminho até o nicho ecológico que ocupam com uma capacidade de tração de mais de cem quilos e dentes fortes e afiados para quebrar cascas de nozes com facilidade.
No lugar de uma impressionante massa muscular, os seres humanos têm crânios de grande porte, tornando-os usuários ineficientes de alimentos energéticos – o cérebro, que responde por apenas 2% do peso corporal, consome cerca de 20% da ingestão de calorias. Assim, enquanto outros animais preferiram sobreviver na dureza da selva ou na savana, nós achamos melhor sentar numa cafeteria e bebericar um cappuccino. Essa atitude, porém, não deve ser subestimada, pois enquanto estamos na cafeteria nós pensamos e questionamos.
Em 1918, o psicólogo alemão Wolfgang Köhler publicou um livro destinado a se tornar um clássico, intitulado A mentalidade dos macacos. Trata-se de um relato de experiências que ele realizou com chimpanzés em Tenerife, nas ilhas Canárias, enquanto era diretor da Academia Prussiana de Ciências. Köhler estava interessado em entender a maneira como os chimpanzés resolvem problemas, como a forma de alcançar um alimento colocado fora de seu alcance. As experiências revelaram muito sobre as características mentais que compartilhamos com outros primatas. Contudo, ao comparar o comportamento dos chimpanzés com o nosso, o livro de Köhler também diz muito sobre os talentos humanos que ajudam a compensar nossas deficiências físicas.
Um dos experimentos de Köhler foi especialmente revelador. Ele pregou uma banana no teto e observou que os chimpanzés conseguem aprender a empilhar caixas e subir nelas para pegar a fruta, porém, pareciam não ter conhecimento das forças envolvidas. Por exemplo, às vezes eles tentavam empilhar uma caixa virada de quina, e também não pensavam em remover pedras no chão que ameaçavam a estabilidade das caixas.20
Numa versão atualizada do experimento, ensinou-se a chimpanzés e crianças humanas, entre três e cinco anos, a empilhar blocos em forma de L para obter uma recompensa. Depois, os blocos em L foram furtivamente substituídos por blocos com lastros, que tombavam quando chimpanzés e crianças tentavam empilhá-los. Os chimpanzés persistiram por algum tempo, empregando tentativa e erro em buscas fracassadas de ganhar a recompensa, mas não pararam para examinar os blocos. As crianças humanas também fracassaram na revisão da tarefa (que não era realmente possível), mas não desistiram da empreitada. Continuaram a examinar os blocos, tentando determinar qual o problema.21 Desde tenra idade, os seres humanos buscam respostas e uma compreensão teórica do nosso ambiente. Nós formulamos a pergunta “Por quê?”.
Qualquer um com alguma experiência com crianças pequenas sabe da paixão que elas sentem pela pergunta “Por quê?”. Nos anos 1920, o psicólogo Frank Lorimer oficializou esse fato. Ele observou um menino de quatro anos durante quatro dias e anotou todos os porquês perguntados pela criança nesse período.22 Foram formuladas quarenta perguntas do tipo: Por que o regador tem duas alças? Por que temos sobrancelhas?, e a minha favorita: Mãe, por que você não tem barba? Crianças humanas de qualquer parte do mundo fazem suas primeiras perguntas em idade precoce, quando ainda mal balbuciam algumas palavras e antes de conhecer a linguagem gramatical. O ato de questionar é tão importante para nossa espécie que temos um indicador universal para isso: todas as línguas, sejam tonais ou atonais, empregam entonação ascendente similar para perguntas.23 Certas tradições religiosas veem o questionamento como a mais alta forma de percepção, e talvez a capacidade de fazer as perguntas certas seja o maior talento de que se pode desfrutar na ciência e na indústria. Os chimpanzés e bonobos, por sua vez, podem aprender a utilizar sinais rudimentares para se comunicar com seus treinadores e até para responder a perguntas, mas eles nunca fazem indagações. Eles são muito fortes fisicamente, mas não são pensadores.
SE NÓS SERES HUMANOS nascemos com uma motivação para compreender o meio ambiente, também parece que nascemos com uma intuição a respeito de como funcionam as leis da física – ou pelo menos a adquirimos em idade muito precoce. Parece que entendemos naturalmente que todos os eventos são causados por outros eventos, e dispomos de uma intuição rudimentar para leis que só foram descobertas por Isaac Newton depois de milênios de esforço.
No Laboratório de Cognição Infantil da Universidade de Illinois, os cientistas passaram os últimos trinta anos estudando a intuição física dos bebês reunindo mães e filhos num pequeno palco ou mesa e observando como as crianças reagem aos eventos encenados. A questão científica em pauta é: em relação ao mundo físico, o que essas crianças sabem e quando ficaram sabendo? Eles descobriram que, mesmo na infância, a posse de certa intuição relativa ao funcionamento da física é um aspecto essencial do que significa ser uma pessoa.
Numa série de estudos, crianças de seis meses eram posicionadas diante de uma pista horizontal ligada a uma rampa.24 Na parte inferior da rampa, os pesquisadores colocaram um brinquedo em forma de inseto sobre rodas. No topo da rampa havia um cilindro. Quando o cilindro era solto, as crianças observavam animadas enquanto ele descia rolando e se chocava com o inseto, lançando-o a alguns centímetros do final da rampa. Depois veio a parte que deixava os pesquisadores animados: se eles reproduzissem a configuração com um cilindro de tamanho diferente no topo da rampa, as crianças conseguiriam prever que, depois da colisão, o bicho seria lançado a uma distância proporcional ao tamanho do cilindro?
A primeira pergunta que me veio à mente quando soube desse experimento foi: como se pode saber o que uma criança está prevendo? Pessoalmente, eu tenho dificuldade para entender o que meus filhos estão pensando, e olha que estão todos na adolescência ou têm mais de vinte anos e já sabem falar. Será que eu entendia alguma coisa quando eles ainda babavam, limitados a sorrisos e caretas? Na verdade, quando a gente fica muito tempo perto dos bebês, é fácil relacionar alguns pensamentos às suas expressões faciais, mas é difícil confirmar cientificamente se essa intuição está correta. Quando você vê a expressão de um bebê contraída como uma ameixa seca, será por fortes cólicas intestinais ou desânimo porque o rádio acabou de anunciar que o mercado de ações caiu quinhentos pontos? Sei que minha própria expressão seria a mesma em ambos os casos, e com os bebês o olhar é tudo o que temos para observar. Quando se trata de determinar o que um bebê está prevendo, no entanto, os psicólogos bolaram um esquema para isso. Eles mostram uma cadeia de eventos ao bebê e registram o tempo que ele fica olhando para a cena. Se os eventos não se desdobram da maneira esperada, o bebê mantém o olhar; quanto mais surpreendente a ocorrência, mais tempo ele ficará olhando.
Assim, no experimento da rampa, os psicólogos deram um jeito para que metade das crianças assistisse à segunda colisão, em que o cilindro era maior que antes, enquanto a outra metade observava uma segunda colisão em que o cilindro era menor. Só que, nos dois casos, os pesquisadores espertinhos arrumaram uma maneira de o inseto ser lançado mais longe que na primeira colisão – bem mais longe, aliás, até o final da pista. As crianças que assistiram ao cilindro maior lançar o bicho mais longe não tiveram nenhuma reação excepcional aos eventos. Mas as crianças que viram o inseto ser lançado mais longe ao ser atingido por um cilindro menor ficaram olhando para o bicho por período prolongado, dando a impressão de que estariam coçando a cabeça se soubessem como fazer isso.
Saber que o impacto maior lançaria um bicho mais longe que o impacto menor não chega a fazer de ninguém um Isaac Newton. Mas o experimento ilustra que os seres humanos parecem ter certo entendimento sensível sobre o mundo físico, um sofisticado sentimento intuitivo em relação ao ambiente que complementa nossa curiosidade natural e é muito mais desenvolvido nos seres humanos do que em outras espécies.
Nossa espécie vem evoluindo e progredindo há milhões de anos, desenvolvendo um cérebro mais poderoso, esforçando-se como indivíduos para aprender sobre o mundo. O desenvolvimento da mente humana moderna foi um processo necessário para entender a natureza, mas não o suficiente. Por isso, o próximo capítulo do nosso relato é a história de como começamos a fazer perguntas sobre nosso ambiente e juntamos nossos intelectos para respondê-las. Trata-se da história do desenvolvimento da cultura humana.
a Para os que preferem a exatidão a frutas, devo acrescentar que o cérebro do homem habilidoso tinha a metade do tamanho do nosso.