5. Razão

EM 334 a.C., aos 22 anos de idade, Alexandre, rei do Estado grego da Macedônia, liderou um exército de experientes guerreiros-cidadãos pelo estreito de Dardanelos naquilo que foi o início de uma longa campanha para conquistar o vasto Império Persa. Por coincidência, tenho um filho de 22 anos que se chama Alexei – com a mesma raiz grega de Alexandre. Dizem que os meninos crescem mais depressa hoje, mas uma coisa que não consigo imaginar é meu Alexei liderando um exército de experientes guerreiros-cidadãos gregos para invadir a Mesopotâmia e enfrentar o Império Persa. Há vários relatos antigos de como o jovem rei macedônio obteve essa vitória, a maior parte envolvendo a ingestão de grandes quantidades de vinho. Mas Alexandre conseguiu, e sua longa marcha de conquistas o levou até o passo de Khyber e mais além. Quando ele morreu, aos 33 anos, tinha feito o suficiente em sua breve existência para que desde então passasse a ser chamado Alexandre o Grande.

Na época da invasão de Alexandre, o Oriente Próximo era pontilhado de cidades como Uruk, que existiam havia milhares de anos. Para dar uma ideia: se os Estados Unidos existissem há tanto tempo quanto Uruk, nós já estaríamos mais ou menos no seiscentésimo presidente.

Caminhar pelas ruas dessas cidades antigas conquistadas por Alexandre devia ser uma coisa deslumbrante, uma paisagem de imensos palácios, vastos jardins irrigados por canais próprios, grandes edifícios de pedra adornados de colunas encimadas por esculturas de grifos e touros. Aquelas eram sociedades complexas e vibrantes, não estavam em decadência. Mas sua cultura havia sido superada intelectualmente pelo mundo de fala grega que os conquistou, simbolizado por seu jovem rei – um homem que estudou com Aristóteles.

Com a conquista da Mesopotâmia por Alexandre, o sentimento de que todas as coisas gregas eram superiores logo se alastrou pelo Oriente Próximo.1 As crianças, sempre na vanguarda das mudanças culturais, aprenderam a língua grega, memorizaram poesias gregas e adotaram o esporte da luta livre. A arte grega tornou-se popular na Pérsia. Beroso, sacerdote da Babilônia, o fenício Sanconíaton e o judeu Flávio Josefo escreveram as histórias de seus povos mostrando as compatibilidades com os ideais gregos. Até os impostos foram helenizados – começaram a ser grafados no alfabeto grego, relativamente novo, e em papiros, não mais em tabuletas cuneiformes. Contudo, o aspecto mais importante da cultura grega que Alexandre disseminou não tinha nada a ver com artes ou administração, mas com o que ele havia aprendido em primeira mão com Aristóteles: uma abordagem nova e racional da luta para conhecer o nosso mundo, um magnífico ponto de inflexão na história das ideias humanas. O próprio Aristóteles já se baseava nas ideias de várias gerações de cientistas e filósofos que começaram a contestar antigas verdades sobre o Universo.

NOS PRIMEIROS ANOS da Grécia antiga, a compreensão dos gregos acerca da natureza não era muito diferente da dos mesopotâmicos. O clima inclemente podia ser explicado dizendo-se que Zeus estava com indigestão, e se os fazendeiros faziam má colheita, as pessoas achavam que os deuses estavam zangados. Não houve nenhum mito de criação afirmando que a Terra era uma gotícula do espirro de um deus alérgico, mas poderia haver, pois, nos milênios desde a invenção da escrita, a coletânea de registros de palavras humanas revela uma ensandecida profusão de histórias sobre como o mundo começou e quais forças o regiam. O que todas têm em comum é a descrição de um Universo turbulento, criado por um deus inescrutável a partir de uma espécie de vácuo informe. A própria palavra “caos” vem do termo grego para o nada que teria precedido a criação do Universo.

Se antes da criação era o caos, depois de criarem o mundo os deuses da mitologia grega não parecem ter se esforçado muito para trazer ordem às coisas. Relâmpagos, tempestades de vento, secas, enchentes, terremotos, vulcões, infestações, acidentes, doenças – tudo isso e muitas outras pragas aleatórias da natureza cobravam caro em vidas e saúde humanas. Egoístas, traiçoeiros e caprichosos, os deuses eram vistos como eternos causadores de calamidades, em consequência de seus acessos de fúria ou por puro descuido, como se eles fossem touros em lojas de porcelana e nós fôssemos a louça. Essa primitiva teoria do cosmo foi passada oralmente de geração em geração na Grécia, até afinal ser escrita por Homero e Hesíodo, por volta de 700 a.C., mais ou menos um século depois da disseminação da escrita pela cultura grega. Isso representou um avanço na cultura grega, moldando uma sabedoria aceita por gerações de pensadores.2

Para os que vivem na sociedade moderna, beneficiários de uma longa história de pensamento científico, é difícil entender como aqueles povos antigos viam a natureza dessa forma. A noção de estrutura e ordem na natureza nos parece tão óbvia como era para eles a ideia de que os deuses controlavam tudo. Hoje, nossas atividades diárias são mapeadas quantitativamente, assinaladas em horas e minutos. Nossas terras são delimitadas por latitude e longitude, nossos endereços são marcados por números e nomes de rua. Atualmente, se a bolsa de valores cai três pontos, um sabichão logo vem nos dar uma explicação, como a de que a queda foi resultado de novas preocupações com a inflação. Na verdade, pode dizer outro especialista, ela é atribuída a eventos ocorridos na China, e um terceiro aponta a incomum atividade de manchas solares. Certas ou erradas, espera-se que nossas explicações se baseiem nas noções de causa e efeito.

Exigimos ordem e causalidade do nosso mundo porque esses conceitos estão entranhados na nossa cultura, na nossa consciência. Ao contrário de nós, contudo, os antigos não tinham uma tradição matemática e científica, e por isso teria sido difícil entender ou aceitar a estrutura conceitual da ciência moderna – a ideia de previsões numéricas precisas, a noção de que a repetição de experimentos deve gerar resultados idênticos, o emprego do tempo como um parâmetro acompanhando os eventos que se desdobram. Para os antigos, a natureza parecia ser regida pelo aleatório e pelo tumulto, e acreditar em leis físicas de ordem seria tão estranho para eles quanto nos parecem suas histórias de deuses insanos e caprichosos. (Quem sabe como nossas queridas teorias irão ser avaliadas pelos historiadores que nos estudarem daqui a mil anos?)

Por que a natureza teria uma ordem? Por que deve ser previsível, explicável em termos de conceitos que podem ser descobertos pelo intelecto humano? Albert Einstein, um homem que não se surpreendeu ao descobrir que o continuum espaço-tempo poderia ser retorcido como uma rosquinha, declarava-se estarrecido diante do simples fato de a natureza ter uma ordem. Ele disse que “se deve esperar um mundo caótico, que não pode ser de forma alguma compreendido pela mente”.3 Mas também escreveu, contrariando suas expectativas, que “a coisa mais incompreensível sobre o Universo é o fato de ele ser compreensível”.4

O gado não entende as forças que o mantêm no chão, nem os corvos sabem qualquer coisa sobre a aerodinâmica. Com essa afirmação, Einstein expressou uma observação importantíssima e especificamente humana: existe uma ordem que rege o mundo, e as regras que guiam a ordem da natureza não precisam ser explicadas por mitos. Elas são cognoscíveis, e os homens são as únicas criaturas da Terra a ter capacidade de decifrar a matriz da natureza. Essa lição tem implicações profundas porque, se decifrarmos os desígnios do Universo, podemos usar esse conhecimento para compreender o nosso lugar nele e tentar manipular a natureza para criar produtos e tecnologias que tornem nossa vida melhor.

Essa nova abordagem racional da natureza se originou durante o século VI a.C., com um grupo de pensadores revolucionários que viveu na grande Grécia, nas praias do Egeu, na grande baía do Mediterrâneo que separa as atuais Grécia e Turquia. Centenas de anos antes de Aristóteles, na época em que Buda implantava uma nova tradição filosófica na Índia e Confúcio na China, esses primeiros filósofos gregos tiveram a paradigmática revelação de que o Universo era algo ordenado, não aleatório – era um cosmo, não o caos. Nunca é demais enfatizar a profundidade dessa mudança ou o grau com que vem moldando a consciência humana desde então.

A região que deu origem a esses pensadores radicais era uma terra mágica de plantações de uvas, pomares de figos e oliveiras, com cidades prósperas e cosmopolitas.5 Essas cidades situavam-se na foz de rios e golfos que desaguavam no mar, no final de estradas que corriam para o interior. Segundo Heródoto, aquele era um paraíso onde “o ar e o clima eram os mais lindos de todo o mundo”. A região chamava-se Jônia.

Os gregos fundaram muitas cidades-Estado onde hoje está o território da Grécia e o sul da Itália, mas elas eram meras províncias – o centro da civilização grega ficava na Jônia turca, a poucas centenas de quilômetros de Göbekli Tepe e Çatalhöyük. E a vanguarda do iluminismo grego encontrava-se na cidade de Mileto, localizada nas praias do golfo de Latmos, que dava acesso aos mares Egeu e Mediterrâneo.6

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De acordo com Heródoto, na virada do primeiro milênio a.C., Mileto era um modesto assentamento habitado pelos cários, povo de descendência minoica. Então, por volta de 1000 a.C., soldados de Atenas e arredores invadiram a região. Cerca de 600 a.C., a nova Mileto tinha se tornado uma espécie de Nova York da Antiguidade, atraindo refugiados pobres e trabalhadores em busca de uma vida melhor.

Ao longo de alguns séculos, a população de Mileto chegou a 100 mil habitantes, e a cidade se transformou num centro de muito luxo e riqueza, tornando-se a mais próspera das cidades jônicas, na verdade a mais rica de todo o mundo grego. No Egeu, os pescadores de Mileto obtinham percas, tainhas vermelhas e mexilhões. Do solo rico, os agricultores colhiam milho e figos – a única fruta então conhecida que os gregos sabiam como conservar por algum tempo –, enquanto os pomares forneciam azeitonas para comer e extrair azeite – a manteiga da antiga Grécia –, sabão e combustível. Ademais, o acesso ao mar fazia de Mileto um importante centro de comércio. Mercadorias como linho, madeira, ferro e prata eram trazidas de dezenas de colônias estabelecidas pelos cidadãos de Mileto, que se estendiam até o Egito, enquanto seus habilidosos artesãos criavam cerâmica, móveis e lãs para exportação.

Mas Mileto não era apenas uma encruzilhada para o intercâmbio de mercadorias; era também um lugar para trocar ideias. Na cidade, pessoas de dezenas de culturas diversificadas encontravam-se para conversar. Os miletopolitas também viajavam muito, expondo-se a muitas linguagens e culturas diferentes. Assim, enquanto os habitantes discutiam o preço do peixe salgado, tradições encontravam outras tradições, superstições confrontavam outras superstições, propiciando uma abertura para novas maneiras de pensar e fomentando uma cultura da inovação – em particular, a sempre importante disposição de questionar a sabedoria convencional. Mais ainda, a riqueza de Mileto criou o lazer, e com o lazer veio a liberdade para dedicar tempo à reflexão sobre as questões da nossa existência. Assim, nessa confluência de tantas circunstâncias favoráveis, Mileto se tornou um paraíso sofisticado e cosmopolita, um centro de aprendizado, configurando um cadinho perfeito, com todos os fatores necessários para uma revolução do pensamento.

Nesse ambiente, em Mileto, e depois em grande parte da Jônia, surgiu um grupo de pensadores que começou a questionar as explicações religiosas e mitológicas da natureza que vinham sendo transmitidas há milhares de anos. Foram os Copérnico e Galileu de seu tempo, os pioneiros formuladores da filosofia e da ciência.

O primeiro desses estudiosos, segundo Aristóteles, foi um homem chamado Tales, nascido por volta de 624 a.C. Consta que muitos filósofos gregos viveram na pobreza. Realmente, se os tempos de antigamente eram como os de hoje, mesmo um filósofo famoso teria tido uma vida mais próspera se arranjasse um emprego de vendedor de azeitonas na beira da estrada. Diz a tradição, todavia, que Tales foi uma exceção, um mercador astuto e abastado que não teve problemas para financiar seu tempo dedicado a pensar e refletir. Consta que, certa vez, ele ganhou uma fortuna açambarcando o mercado de prensas de azeitonas e depois cobrando preços exorbitantes pelo azeite, como a Opep de um homem só. Contam também que estava muito envolvido na política da cidade e que era amigo íntimo do ditador Trasíbulo.

Tales usou sua riqueza para viajar. No Egito, achou que, embora os egípcios fossem especialistas em construir pirâmides, faltava-lhes visão para medir a altura das construções. Como vimos, no entanto, eles tinham desenvolvido um novo conjunto de regras matemáticas a fim de determinar a área de lotes de terra para propósitos de taxação. Tales adaptou essas técnicas egípcias de geometria para calcular a altura das pirâmides – e também mostrou como, usando essas técnicas, era possível conhecer a distância dos navios no mar. Isso o tornou uma celebridade e tanto no antigo Egito.

Quando voltou para a Grécia, Tales levou consigo a matemática egípcia, traduzindo-a para seu idioma nativo. No entanto, nas mãos de Tales, a geometria deixou de ser apenas um instrumento para medir e calcular, e transformou-se num conjunto de teoremas encadeados por uma dedução lógica. Tales foi o primeiro a demonstrar verdades matemáticas, em vez de simplesmente enunciar como fatos conclusões que pareciam funcionar.7 O grande geômetra Euclides incluiria depois os teoremas de Tales em seu texto Elementos. Contudo, por mais impressionante que tenham sido as sacadas matemáticas de Tales, sua verdadeira fama resultou de sua abordagem e suas explicações de fenômenos do mundo físico.

Na visão de Tales, a natureza não era coisa de mitologia. Ela funcionava de acordo com princípios da ciência que podiam ser usados para explicar e prever todos os fenômenos até então atribuídos à intervenção dos deuses. Dizem que ele foi a primeira pessoa a entender a causa dos eclipses e o primeiro grego a propor que o brilho da Lua era reflexo da luz do Sol.

Mesmo quando se equivocava, Tales era notável na originalidade de seu pensamento e de suas ideias. Considere a explicação que deu para os terremotos. No tempo de Tales, acreditava-se que os sismos ocorriam quando o deus Poseidon se irritava e golpeava o mundo com seu tridente. Mas Tales propôs o que deve ter parecido uma estranha concepção: os terremotos nada tinham a ver com os deuses. Nunca ouvi meus amigos sismólogos do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech, na sigla em inglês) dar essa explicação, mas Tales acreditava que o mundo era um hemisfério flutuando numa porção de água infinita, e que os terremotos aconteciam quando a água se agitava ao seu redor. De todo modo, a análise dele é revolucionária em suas implicações, pois tentava explicar os terremotos como consequência de um processo natural, empregando argumentos lógicos e empíricos para apoiar sua ideia. Talvez o mais importante de tudo isso tenha sido formular a questão de por que os terremotos acontecem.

Em 1903, o poeta Rainer Maria Rilke deu um conselho a um aluno que vale tanto para a ciência quanto para a poesia: “Tenha paciência com tudo que for insolúvel no seu coração e tente amar as perguntas – e a viver as perguntas.”8 O aspecto mais fundamental da ciência (e quase sempre também dos negócios) é a capacidade de fazer as perguntas certas – e Tales praticamente inventou a ideia de fazer perguntas científicas. Para onde quer que olhasse, inclusive para o céu, ele via fenômenos que imploravam para ser explicados, e sua intuição o levou a ponderar sobre fenômenos que acabariam jogando luz sobre o funcionamento básico da natureza. As perguntas não eram somente sobre terremotos, mas também sobre o formato da Terra, as datas dos solstícios e a relação entre Terra, Sol e Lua – as mesmas indagações que, 2 mil anos depois, levariam Isaac Newton à sua grande descoberta da gravidade e das leis do movimento.

Em reconhecimento à radical ruptura com o passado proposta por Tales, Aristóteles se referia a ele e aos pensadores jônicos posteriores como os primeiros physikoi, ou físicos – o grupo ao qual tenho orgulho de pertencer e ao qual Aristóteles se julgava pertencer. A expressão vem da palavra grega physis, que significa “natureza”, termo que Aristóteles escolheu para definir os que buscavam explicações naturais para os fenômenos, ao contrário dos theologoi, ou “teólogos”, que buscavam explicações sobrenaturais.

No entanto, Aristóteles tinha bem menos admiração por outro grupo radical: os que usavam a matemática como modelo da natureza. O crédito por essa inovação vai para um pensador da geração seguinte à de Tales, que não viveu muito longe dele, na ilha de Samos, no mar Egeu.

ALGUNS DE NÓS PASSAMOS as horas no trabalho tentando entender como o Universo funciona. Outros não dominam a álgebra. Nos tempos de Tales, os membros do primeiro grupo pertenciam também ao segundo, pois já vimos que a álgebra que conhecemos hoje – e a maior parte da matemática – ainda não havia sido inventada.

Para os cientistas atuais, compreender a natureza sem as equações seria como tentar entender os sentimentos de um cônjuge que só diz “Tudo bem”. A matemática é a linguagem da ciência, é a forma como se comunica uma ideia teórica. Os cientistas nem sempre foram bons no uso da linguagem para desvelar pensamentos pessoais íntimos, mas são adeptos de comunicar as teorias pela matemática. A linguagem da matemática possibilita à ciência se aprofundar em teorias com visão e previsão mais amplas que a linguagem comum, pois ela tem regras embutidas de raciocínio e lógica que aumentam seu significado, permitindo às vezes desdobramentos inesperados.

Os poetas descrevem suas observações pela linguagem; os físicos fazem isso com a matemática. Quando um poeta conclui um poema, seu trabalho está pronto. Mas quando os físicos estabelecem um “poema” matemático, este é só o começo. Ao aplicar as regras e os teoremas da matemática, o físico precisa depois persuadir esse poema a revelar novas lições da natureza que o próprio autor jamais teria imaginado. As equações não só dão forma às ideias, elas oferecem as consequências dessas ideias a qualquer um que tenha a capacidade e a persistência para extraí-las. Isso é o que a linguagem da matemática consegue: ela facilita a expressão de princípios físicos, esclarece as relações entre eles e guia o raciocínio humano em meio a essas relações.

No começo do século VI a.C., porém, ninguém sabia disso. A espécie humana ainda não fazia ideia de que a matemática podia nos ajudar a entender como a natureza funciona. Pitágoras (c.570-c.490 a.C.) – fundador da matemática grega, inventor do termo “filosofia”, flagelo dos estudantes do ensino médio do mundo todo, que são obrigados a parar de mandar mensagens para aprender o significado de a2 + b2 = c2 – é tido como o primeiro que nos ajudou a usar a matemática como linguagem das ideias científicas.

Na Antiguidade, o nome Pitágoras não somente estava associado à genialidade, como também transmitia uma aura mágica e religiosa.9 Ele era visto como um Einstein que não fosse só cientista, mas também papa. A partir do relato de muitos escritores que vieram depois dele temos um bocado de informação sobre a vida de Pitágoras, diversas biografias suas. No entanto, durante os primeiros séculos depois de Cristo, as histórias se tornaram inconfiáveis, maculadas por motivos religiosos e políticos que faziam os narradores distorcerem as ideias e aumentarem o papel do pensador na história.

Uma coisa que parece ser verdade é que Pitágoras foi criado em Samos, do outro lado da baía de Mileto. Todos os seus biógrafos na Antiguidade também concordam que, em algum momento entre os dezoito e vinte anos de idade, Pitágoras fez uma visita a Tales, então já muito velho e perto de morrer. Ciente de que seu brilho anterior já esmaecia consideravelmente, Tales parece ter se desculpado por seu estado mental debilitado. Fosse qual fosse o tom das lições de Tales, Pitágoras saiu impressionado. Muitos anos depois, às vezes ele era visto em casa entoando canções de louvor ao ex-mestre.

Assim como Tales, Pitágoras viajou muito, provavelmente ao Egito, Babilônia e Fenícia. Saiu de Samos aos quarenta anos, considerando insuportável a vida sob o tirano da ilha, Polícrates, e foi parar em Crotona, cidade situada no sul da atual Itália, para onde atraiu grande número de seguidores. Consta que foi lá que teve sua epifania sobre a ordem matemática no mundo físico.

Ninguém sabe como a linguagem foi inventada, embora eu sempre tenha imaginado um homem das cavernas dando uma topada e soltando um gemido espontâneo: “Au!” Alguém deve ter escutado e pensado: “Que jeito novo de expressar sentimentos”. E logo todo mundo estava falando. A origem da matemática como linguagem da ciência também é envolta em mistério, mas nesse caso pelo menos temos uma lenda que fala a respeito.

Segundo a lenda, um dia, ao passar caminhando pela oficina de um ferreiro, Pitágoras ouviu o som da marreta e discerniu um padrão nos tons produzidos por diferentes marretas batendo no ferro. Ele entrou correndo na forja e começou a experimentar as marretas, observando que as diferenças de tom não dependiam da força empregada pelo homem que martelava nem do formato da marreta, mas do tamanho da marreta, ou seja, de seu peso.

Pitágoras voltou para casa e continuou suas experiências, não mais com marretas, mas com cordas de diferentes comprimentos e tensões. Como qualquer jovem grego, ele tinha estudado música, principalmente flauta e lira. Os instrumentos musicais dos gregos da época eram produto de palpites, de experiências e intuição. Contudo, em seu experimento, Pitágoras parecia ter descoberto uma lei matemática que regia os instrumentos de corda e que podia ser utilizada para definir uma relação precisa entre o comprimento das cordas e o tom produzido.

Hoje enunciamos essa relação pitagórica dizendo que a frequência do tom é inversamente proporcional ao comprimento da corda. Vamos supor, por exemplo, que uma corda produza certa nota quando tocada. Se prendermos a corda no meio, entre as extremidades, ela produzirá uma nota uma oitava mais alta – isto é, com o dobro da frequência. Se a prendermos em um quarto do comprimento, o tom sobe outra oitava, para quatro vezes a frequência original.

Será que Pitágoras descobriu mesmo essa relação? Ninguém sabe até que ponto as lendas sobre ele são verdadeiras. Por exemplo, é provável que não tenha demonstrado o “teorema de Pitágoras” que tanto atormenta estudantes do ensino médio – acredita-se que um de seus seguidores foi o primeiro a demonstrar o teorema, mas que a fórmula já era conhecida havia séculos. De qualquer forma, a verdadeira contribuição de Pitágoras não foi ter deduzido qualquer lei específica, mas ter promovido a noção de cosmo estruturado de acordo com relações numéricas. Sua influência não se deve à descoberta das relações matemáticas da natureza, mas ao fato de tê-las celebrizado. Como explica o estudioso da cultura clássica Carl Huffman, Pitágoras foi importante “pela honra que conferiu ao número e por tê-lo tirado do domínio do comércio e mostrado a correspondência entre o comportamento do número e o comportamento das coisas”.10

Onde Tales disse que a natureza segue regras ordenadas, Pitágoras foi além, afirmando que a natureza segue regras matemáticas. Ele apregoava que a lei matemática é a verdade fundamental sobre o Universo. Para Pitágoras, o número era a essência da realidade.

As ideias de Pitágoras exerceram grande influência sobre pensadores gregos posteriores – mais especificamente Platão – e sobre cientistas e filósofos de toda a Europa. De todos os gregos defensores da razão, de todos os estudiosos gregos que acreditavam que o Universo podia ser compreendido por meio de análises racionais, de longe, o mais influente para o futuro desenvolvimento da ciência não foi Tales, que inventou esse método, nem Pitágoras, que envolveu a matemática nesse método, mas um aluno de Platão que mais tarde se tornou o tutor de Alexandre o Grande: Aristóteles.

NASCIDO EM ESTAGIRA, cidade do nordeste da Grécia, Aristóteles (384-322 a.C.) era filho de um homem que foi médico do avô de Alexandre, o rei Amintas. Ele ficou órfão muito cedo, e aos dezessete anos foi mandado a Atenas para estudar na academia de Platão. Depois de Platão, a palavra “academia” passou a significar um local de aprendizado, mas naquela época era simplesmente o nome de um jardim público na periferia de Atenas que abrigava um bosque de árvores onde Platão e seus alunos gostavam de se reunir. Aristóteles passou ali vinte anos.

Com a morte de Platão, em 347 a.C., Aristóteles saiu da Academia e em poucos anos se tornou tutor de Alexandre. Não está claro por que o rei Felipe II o escolheu para ser tutor do filho, pois o filósofo ainda não havia construído sua reputação. Mas, para Aristóteles, ser tutor do provável herdeiro do rei da Macedônia devia parecer boa ideia. Ele era muito bem pago e obteve outros benefícios quando Alexandre partiu para conquistar a Pérsia e boa parte do resto do mundo. Quando Alexandre assumiu o trono, Aristóteles, então com quase cinquenta anos, voltou a Atenas, onde durante treze anos produziu a maior parte da obra pela qual é conhecido. Nunca mais ele voltou a ver Alexandre.

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Aristóteles retratado ao lado de Platão (esquerda) em afresco de Rafael.

O tipo de ciência ensinado por Aristóteles provavelmente não era o mesmo que ele aprendera com Platão. Aristóteles era um aluno de destaque na Academia, mas nunca se sentiu confortável com a ênfase que Platão dava à matemática. Seu talento estava mais na observação detalhada da natureza, não em leis abstratas – muito diferente tanto da ciência de Platão quanto da ciência praticada hoje.

Quando eu cursava o ensino médio, adorava minhas aulas de química e física. Vendo quanto eu era apaixonado por isso, meu pai às vezes me pedia que eu lhe explicasse essas ciências. Vindo de uma pobre família judaica que só conseguiu mandá-lo para a escola religiosa local, sua educação se baseava mais em teorias do sabá que em teorias científicas, e como ele nunca passou do sétimo ano, aquele trabalho era sob medida para mim.

Comecei nossa exploração dizendo que a física é principalmente o estudo de uma coisa: a mudança. Meu pai ponderou por um momento, antes de resmungar: “Você não sabe nada de mudança. Você é jovem demais, nunca passou por isso.” Protestei dizendo que já tinha passado por mudanças, mas ele replicou com uma daquelas expressões em iídiche que podem soar profundas ou idiotas, dependendo do seu nível de tolerância por velhas expressões iídiches. “Há mudanças”, enunciou, “e há mudanças.”

Descartei o aforismo dele do jeito que só os adolescentes sabem fazer. Em física, falei, não há mudança e mudança – só existe MUDANÇA. Aliás, pode-se dizer que a principal contribuição de Isaac Newton para a criação da física tal como a conhecemos foi a invenção de uma abordagem matemática unificada que podia ser usada para descrever toda mudança, de qualquer natureza. Mas uma espécie de protofísica – a física de Aristóteles – originou-se em Atenas no século IV a.C., 2 mil anos antes de Newton. Como tinha raízes muito mais intuitivas, com uma abordagem menos matemática da compreensão do mundo, achei que ela seria mais acessível para o meu pai. Assim, na esperança de encontrar ali algo que tornasse mais fácil lhe explicar as coisas, comecei a ler sobre o conceito de mudança de Aristóteles. Depois de muito esforço, percebi que, embora Aristóteles falasse grego e nunca tivesse pronunciado uma palavra em iídiche, ele essencialmente acreditava no seguinte: “Há mudanças e há mudanças.”

Na versão do meu pai, a segunda invocação da palavra “mudança” soava funesta, pois carregava o significado do tipo de mudança violenta que ele tinha vivenciado durante a invasão dos nazistas. Essa distinção entre mudança normal ou natural, de um lado, e mudança violenta, de outro, é a mesma que Aristóteles fazia: ele acreditava que todas as transformações observadas na natureza podiam ser classificadas como naturais ou violentas.

Na visão de mundo de Aristóteles, mudança natural era a que se originava dentro do próprio objeto.11 Em outras palavras, a causa da mudança natural é intrínseca à natureza ou composição do objeto. Por exemplo, vamos considerar o tipo de mudança que chamamos de movimento – a mudança de posição. Aristóteles acreditava que todas as coisas são feitas de várias combinações dos quatro elementos fundamentais – terra, ar, fogo e água –, cada um com sua tendência inata de se mover. As pedras caem na terra e a chuva cai nos oceanos, segundo Aristóteles, porque a terra e o mar são os locais de repouso naturais dessas substâncias. Fazer uma pedra voar para o alto exige intervenção externa, mas quando a pedra cai ela está seguindo sua tendência inata e executando um movimento “natural”.

Na física moderna, não se exige uma causa para explicar por que um objeto permanece em repouso ou em movimento uniforme com velocidade e direção constantes. Da mesma forma, na física de Aristóteles, não era necessário explicar por que os objetos executam movimentos naturais – por que coisas feitas de terra e água caem ou por que o ar e o fogo sobem. Essa análise reflete o que vemos no mundo ao redor – no qual bolhas sobem da água, labaredas parecem subir pelo ar, objetos maciços caem do céu, os mares jazem na terra e a atmosfera paira sobre tudo isso.

Para Aristóteles, o movimento era apenas um dos muitos processos naturais, como crescimento, decadência e fermentação, todos regidos pelos mesmos princípios. Ele via a mudança natural, em todas as suas várias formas – a queima de um tronco, o envelhecimento de uma pessoa, o voo de um pássaro, a queda de um fruto de uma árvore –, como a realização de um potencial inerente. A mudança natural, no sistema de Aristóteles, é o que nos impele pela vida diária. É o tipo de mudança que não causa nenhuma surpresa, que tendemos a aceitar como algo dado.

Mas às vezes o curso natural dos eventos é perturbado, e o movimento, ou mudança, é imposto por alguma coisa externa. É o que acontece quando uma pedra é lançada para o ar, quando uma vinha é arrancada da terra ou se mata um frango para comer, ou quando você perde o emprego ou fascistas invadem um continente. Esses são os tipos de mudança que Aristóteles chama de “violentas”.

Na mudança violenta, segundo Aristóteles, um objeto muda ou se move numa direção que viola sua natureza. Aristóteles queria entender a causa desse tipo de mudança, e escolheu um termo para isso: ele o chamou de “força”.

A exemplo de seu conceito de mudança natural, a doutrina de Aristóteles sobre a mudança violenta corresponde bem ao que observamos na natureza – a matéria sólida, por exemplo, cai por conta própria, mas mantê-la em movimento em qualquer outra direção, como para cima ou para os lados, exige força, ou esforço.

A análise da mudança foi notável porque, embora Aristóteles visse os mesmos fenômenos ambientais que outros grandes pensadores de sua época, ao contrário dos demais, ele arregaçou as mangas e realizou observações sobre a mudança em detalhes enciclopédicos e sem precedentes – mudanças tanto na vida das pessoas quanto na natureza. Na tentativa de descobrir o que todos esses diferentes tipos de mudança têm em comum, ele estudou as causas de acidentes; a dinâmica da política; o movimento de bois carregando cargas pesadas; o crescimento de embriões de galinhas; a erupção de vulcões; as alterações do delta do rio Nilo; a natureza da luz do Sol; a ascensão do calor; o movimento dos planetas; a evaporação da água; a digestão de alimento pelos animais com múltiplos estômagos; a maneira como as coisas derretem e queimam. Dissecou animais de várias espécies, às vezes bem além do prazo de validade. Se alguém reclamasse do mau cheiro ele simplesmente dava risada.

Aristóteles chamou sua tentativa de criar um relato sistemático de mudança de Physics – associando-se assim ao legado de Tales. Sua física tinha um enorme escopo, abrangendo tanto objetos vivos quanto inanimados e fenômenos do céu e da terra. Hoje as diferentes categorias de mudança que ele estudou são temas de várias disciplinas científicas: física, astronomia, climatologia, biologia, embriologia, sociologia, e assim por diante. Aliás, Aristóteles era um escritor profícuo – uma verdadeira Wikipédia de um homem só. Suas contribuições incluem alguns dos estudos mais abrangentes já empreendidos por alguém que não tenha sido diagnosticado como superativo. No balanço geral, ele produziu – de acordo com registros antigos – 170 obras acadêmicas, sendo que cerca de um terço foi preservado até hoje: Meteorologia; Metafísica; Ética; Política; Retórica; Poética; Sobre os céus; Sobre a geração e a corrupção; Sobre a alma; Sobre a memória; Sobre o sono e a vigília; Sobre os sonhos; Sobre a profecia; Sobre a longevidade e brevidade da vida; Sobre as partes dos animais; e por aí vai.

Enquanto seu ex-pupilo Alexandre continuava conquistando a Ásia, Aristóteles voltou a Atenas e fundou uma escola chamada Liceu. Ali, durante caminhadas no passeio público ou andando por um jardim, ele ensinava a seus alunos o que havia aprendido ao longo dos anos.a Porém, ainda que tenha sido grande professor e brilhante e profícuo observador da natureza, a abordagem de Aristóteles do conhecimento era muito diferente do método que hoje denominamos ciência.

SEGUNDO O FILÓSOFO Bertrand Russell, Aristóteles foi “o primeiro a escrever como um professor, … um professor profissional, não um profeta inspirado”.12 Russell disse que Aristóteles é um Platão “diluído pelo senso comum”. Realmente, Aristóteles dava grande valor a essa característica. No entanto, analisando as ideias de Aristóteles em perspectiva, e sabendo o que sabemos agora, podemos argumentar que é exatamente na sua devoção pelas ideias convencionais que encontramos uma das maiores diferenças entre o método atual da ciência e o dele – e uma das maiores deficiências da física aristotélica. Pois embora o senso comum não deva ser ignorado, às vezes é necessário um “senso incomum”.

Em ciência, para fazer progressos, é normal ter de desafiar o que o historiador Daniel Boorstin chama de “tirania do senso comum”.13 Trata-se de senso comum, por exemplo, o fato de você empurrar um objeto e ele deslizar, desacelerar e parar. Contudo, para perceber as leis do movimento subjacentes, é preciso olhar além do óbvio, como fez Newton, e vislumbrar como um objeto se moveria num mundo teoricamente sem atrito. Da mesma forma, para entender o mecanismo final do atrito, é preciso enxergar através da fachada do mundo material para “ver” como os objetos podem ser feitos de átomos indivisíveis, conceito proposto por Leucipo e Demócrito um século antes, mas que Aristóteles não aceitava.

Aristóteles mostrava também grande deferência pela opinião comum, pelas instituições e ideias de sua época. Ele escreveu: “O que todos acreditam é verdade.” E aos que duvidavam, ele dizia: “Quem destruir esta fé terá dificuldade em encontrar outra mais crível.”14 Um exemplo vívido da confiança de Aristóteles na sabedoria convencional – e da forma como distorcia sua visão – é sua torturante argumentação de que a escravidão, que ele e a maioria de seus concidadãos aceitavam, é inerente à natureza do mundo físico. Utilizando um tipo de argumento estranhamente semelhante a seus textos sobre física, Aristóteles afirma que, “em todas as coisas que formam o todo composto e que são feitas de suas partes, … vem à luz uma diferença entre os elementos governante e súdito. Essa dualidade existe nas criaturas vivas, mas não só nelas; origina-se na constituição do Universo”.15 Por causa dessa dualidade, argumentava Aristóteles, alguns homens são livres por natureza, outros são escravos por natureza.

Hoje, os cientistas e outros inovadores costumam ser retratados como esquisitos e anticonvencionais. Acredito que haja alguma verdade nesse estereótipo. Um professor de física que conheci escolhia o que ia almoçar todos os dias nas ofertas do balcão de condimentos da cafeteria. A maionese providenciava a gordura, o ketchup era o legume, e as bolachas, o carboidrato. Outro amigo adorava frios, mas detestava pão, e tinha discussões no restaurante para pedir de almoço uma pilha de salame, que comia com garfo e faca, como se fosse um filé.

O pensamento convencional não é uma boa atitude para os cientistas – ou para qualquer um que queira inovar –, e às vezes cobra seu preço na forma como as pessoas os encaram. Mas, como veremos ainda muitas vezes, a ciência é o inimigo natural das ideias preconcebidas e da autoridade, até a autoridade do próprio establishment científico. Rompimentos revolucionários exigem necessariamente ir contra o que todos acreditam ser a verdade, substituir velhas ideias por ideias novas e viáveis. Aliás, se existe uma barreira ao progresso que se destaca na história da ciência e do pensamento humano em geral, esta é a indevida fidelidade às ideias do passado – e do presente. Por isso, se eu estivesse selecionando um candidato para um cargo criativo, tomaria cuidado com o excesso de senso comum, situaria os aloprados na coluna positiva e manteria o balcão de condimentos bem fornido.

OUTRO IMPORTANTE CONFLITO entre o método de Aristóteles e o da ciência posterior era o de ser qualitativo, não quantitativo. Hoje a física é uma ciência da quantidade, mesmo em sua versão simples para o ensino médio. Estudantes das versões mais elementares da física aprendem que um carro se movendo a noventa quilômetros por hora percorre 25 centímetros por segundo. Aprendem que, se você deixar cair uma maçã, a velocidade vai aumentar em 35 quilômetros por hora a cada segundo que ela cair. Fazem cálculos para conhecer a força exercida na coluna pelo assento quando a gente se joga sobre uma cadeira, que pode chegar a mais de quinhentos quilos – durante uma fração de segundo. A física de Aristóteles não tinha nada disso. Ao contrário, ele se queixava em voz alta dos filósofos que tentavam transformar a filosofia “em matemática”.16

Qualquer tentativa de transformar a filosofia natural em busca quantitativa, nos tempos de Aristóteles, era limitada pelo estado do conhecimento na Grécia antiga. Aristóteles não dispunha de cronômetro, de relógio com ponteiro de segundos, nem conseguia pensar em termos de eventos com uma duração precisa. Os campos da álgebra e da aritmética necessários para manipular esses dados tampouco estavam mais avançados que na época de Tales. Como vimos, os sinais de mais, de menos e de igual ainda não haviam sido inventados, assim como nosso sistema numérico ou conceitos como “quilômetros por hora”. No entanto, os estudiosos dos séculos XIII e posteriores fizeram progressos na física quantitativa com instrumentos e uma matemática não muito mais avançados. Por isso, essas não eram as únicas barreiras para uma ciência das equações, mensurações e previsões numéricas. Mais importante foi o fato de que Aristóteles não estava interessado em descrições quantitativas, nem os demais.

Mesmo quando estudava o movimento, a análise de Aristóteles era apenas qualitativa. Por exemplo, ele tinha somente uma vaga compreensão de velocidade – “algumas coisas vão mais longe que outras em quantidade de tempo semelhante”. Isso hoje nos parece aquelas mensagens que encontramos nos biscoitos da sorte, porém, na época de Aristóteles, era o ponto mais exato em que as coisas podiam chegar. Com uma noção qualitativa da velocidade, só se poderia ter uma ideia difusa de aceleração, que é a mudança de velocidade ou direção (estudada no início do ensino médio). Em vista dessas profundas diferenças, se alguém voltasse na máquina do tempo e desse a Aristóteles um texto sobre a física de Newton, para ele isso significaria o mesmo que um livro de receitas de massas assadas em forno de micro-ondas. Aristóteles não conseguiria entender o que Newton queria dizer por força e aceleração, nem sequer teria dado importância a isso.

O que interessava a Aristóteles em suas minuciosas observações era que o movimento ou qualquer outro tipo de mudança parecia acontecer obedecendo a algum fim. Ele não entendia o movimento, por exemplo, como algo a ser medido, mas como fenômeno cujo propósito pudesse ser discernido. Um cavalo puxa uma carroça para percorrer uma rua; uma cabra anda para encontrar alimento; um rato corre para não ser comido; um coelhinho cruza com a coelhinha para fazer mais coelhinhos.

Aristóteles via um propósito em tudo que observava. Acreditava que o Universo era um grande ecossistema projetado para funcionar de modo harmonioso. A chuva cai porque as plantas precisam de água para crescer. As plantas crescem para que os animais possam se alimentar delas. Sementes de uva se desenvolvem em parreiras e ovos se transformam em galinhas para realizar o potencial existente dentro desses ovos e dessas sementes. Claro que, para qualquer um criado com as visões metafísicas da ciência moderna, buscar propósito nas leis da natureza é um exercício de futilidade. Não obstante, desde tempos imemoriais, as pessoas sempre tiveram um entendimento do mundo a partir de projeções de suas próprias experiências. Por isso, na antiga Grécia, era muito mais natural analisar o propósito dos eventos no mundo físico que tentar explicá-los com leis matemáticas desenvolvidas por Pitágoras e seus seguidores.

Aqui vemos mais uma vez a importância na ciência das perguntas específicas que escolhemos fazer. Pois mesmo que tivesse aderido à noção de Pitágoras, de que a natureza segue leis quantitativas, Aristóteles não teria entendido o problema, pois estava menos interessado nas especificidades quantitativas das leis que na questão de por que os objetos obedecem a essas leis. O que compele a corda de um instrumento musical, ou uma pedra que cai, a se comportar com regularidade numérica? Essas eram as questões que estimulavam Aristóteles, e é aqui que percebemos a grande desconexão entre sua filosofia e a maneira como a ciência é conduzida nos dias atuais – pois a ciência de hoje não reconhece o que Aristóteles interpretava como propósito na natureza.

Essa característica da análise de Aristóteles – sua busca de um propósito – teve enorme influência no pensamento humano posterior. Tornou-o benquisto por muitos filósofos cristãos ao longo dos séculos, mas impediu o progresso científico por quase 2 mil anos, pois era totalmente incompatível com os robustos princípios da ciência que orientam nossas pesquisas atuais. Quando 2 bilhões de bolas colidem, as leis estabelecidas por Newton – sem grandes propósitos subjacentes – determinam o que acontece a seguir.

A ciência surgiu a partir do fundamental desejo humano de conhecer e encontrar sentido no nosso mundo, por isso, não surpreende que a ânsia de propósito que motivou Aristóteles continue a reverberar até hoje entre muita gente. A ideia de que “tudo acontece por uma razão” pode consolar os que procuram entender um desastre natural ou alguma outra tragédia. Para essas pessoas, a insistência dos cientistas em que o Universo não é guiado por qualquer sentido de propósito pode fazer a disciplina científica parecer fria e desalmada.

Mas há outra maneira de ver as coisas, maneira que aprendi com meu pai. Sempre que surgia a questão do propósito, meu pai nunca se referia a algo que tivesse acontecido a ele, mas a um incidente específico que minha mãe tinha vivido antes de os dois se conhecerem, quando ela tinha dezessete anos. Quando os nazistas ocuparam a cidade em que ela morava, um deles, por alguma razão que minha mãe nunca descobriu, mandou algumas dezenas de judeus, minha mãe entre eles, se ajoelharem enfileirados na neve. Depois começou a andar de uma ponta à outra, parando de vez em quando para atirar na cabeça de algum cativo. Se aquilo era parte do grande projeto de Deus ou da natureza, meu pai não queria ter nada a ver com esse Deus. Para pessoas como meu pai, não existe consolo em pensar que nossas vidas, por mais trágicas ou triunfantes que sejam, são resultado das mesmas leis indiferentes que criam as estrelas e que, bem ou mal, são um presente, um milagre que de alguma forma floresce dessas estéreis equações que regem o mundo.

EMBORA AS IDEIAS de Aristóteles tenham dominado o pensamento acerca do mundo natural até a época de Newton, ao longo dos anos houve inúmeros observadores que lançaram dúvidas sobre suas teorias. Vamos, por exemplo, considerar a ideia de que os objetos que não executam um movimento natural só se moverão quando uma força atuar sobre eles. O próprio Aristóteles percebeu que isso sugeria uma questão: o que impulsiona uma flecha, uma lança, ou qualquer outro projétil depois do ímpeto inicial? Sua explicação era que, pelo fato de a natureza “abominar” o vácuo, partículas de ar se agitavam atrás do projétil depois do ímpeto inicial e o empurravam adiante. Os japoneses parecem ter adaptado com sucesso essa ideia para espremer passageiros nos vagões do metrô de Tóquio, mas nem o próprio Aristóteles se entusiasmou muito com sua teoria. Essa fragilidade ficou ainda mais óbvia no século XIV, quando a proliferação de canhões tornou absurda a ideia de partículas de ar se agitando atrás das pesadas balas de canhão e impelindo-as adiante.

É importante observar que os soldados que disparavam aqueles canhões não queriam nem saber se eram partículas de ar ou ninfas invisíveis que impeliam as balas. Eles queriam saber a trajetória que levaria até a cabeça dos inimigos. Essa desconexão ilustra o verdadeiro abismo que separava Aristóteles dos que mais tarde se definiriam como cientistas: questões como a trajetória de um projétil – sua velocidade e posição em vários instantes – não faziam sentido para Aristóteles. No entanto, quando queremos aplicar as leis da física para fazer previsões, essas questões tornam-se cruciais. Por isso, as ciências que acabaram substituindo a física de Aristóteles, e que tornariam possível, entre outras coisas, calcular a trajetória de uma bala de canhão, tinham em vista os detalhes quantitativos dos processos dinâmicos do mundo – forças mensuráveis, velocidades e taxas de aceleração –, não o propósito ou as razões filosóficas desses processos.

Aristóteles sabia que sua física não era perfeita. Ele escreveu:

Meu passo é o primeiro, e portanto pequeno, apesar de elaborado com muito pensamento e duro labor. Deve ser visto como um primeiro passo e julgado com indulgência. Vocês, meus leitores ou ouvintes de minhas palestras, se pensarem que fiz o tanto que se pode esperar, com justiça, de um ponto inicial, … reconhecerão o que realizei e perdoarão o que deixei para outros realizarem.17

Aqui Aristóteles está expressando um sentimento que partilhava com muitos gênios posteriores da física. Nós pensamos neles, nos Newton e nos Einstein, como grandes sabichões autoconfiantes, até arrogantes a respeito de seus conhecimentos. Mas, como veremos, assim como Aristóteles, eles estavam confusos a respeito de um monte de coisas, e sabiam disso, assim como Aristóteles.

ARISTÓTELES MORREU em 322 a.C., aos 62 anos, aparentemente de uma doença estomacal. Um ano antes, ele tinha fugido de Atenas quando o governo pró-Macedônia foi deposto, depois da morte de seu ex-aluno Alexandre. Apesar de ter passado vinte anos na Academia de Platão, Aristóteles sempre se sentiu um estranho em Atenas. Sobre essa cidade, ele escreveu: “As mesmas coisas não são apropriadas para um estranho e para um cidadão; é difícil ficar aqui.”18 Com a morte de Alexandre, contudo, a questão de ficar ou não se tornou crítica, pois havia um perigoso movimento dirigido contra qualquer pessoa associada à Macedônia, e Aristóteles estava ciente de que a execução de Sócrates, por motivos políticos, estabelecera o precedente de que um copo de cicuta é uma poderosa réplica contra qualquer argumento filosófico. Sempre profundo em seus pensamentos, Aristóteles preferiu fugir a correr o risco de se tornar mártir. Apresentou inúmeras razões para sua decisão – evitar que os atenienses mais uma vez pecassem “contra a filosofia” –, mas essa opção, bem como a abordagem de Aristóteles da vida em geral, sempre foi muito prática.19

Com sua morte, as ideias de Aristóteles foram transmitidas pelas gerações de alunos do Liceu e por outros que escreveram comentários sobre seus trabalhos. Suas teorias se apagaram, assim como as formas gregas de aprendizado, durante a Idade das Trevas, mas voltaram a se destacar na Alta Idade Média, entre os filósofos árabes, com os quais os estudiosos ocidentais aprenderam muito, depois. Com algumas modificações, o pensamento de Aristóteles acabou se tornando a filosofia oficial da Igreja católica romana. E assim, pelos dezenove séculos seguintes, estudar a natureza significava estudar Aristóteles.

Vimos que nossa espécie desenvolveu um cérebro para fazer perguntas e a propensão a respondê-las, bem como as ferramentas – a escrita, a matemática e a noção de leis – para começar a respondê-las. Com os gregos, ao aprendermos o uso da razão para analisar o cosmo, chegamos às praias de um glorioso novo mundo da ciência. Mas este foi apenas o começo de uma aventura exploratória ainda mais grandiosa que viria a seguir.


a Depois, os alunos eram untados com óleo. Sempre achei que oferecer uma opção dessas seria um jeito fácil de aumentar minha popularidade com os estudantes, mas infelizmente teria o efeito contrário na administração da universidade.