UM FRUTO DOS ANOS DIFÍCEIS
Ângela Lúcia chegou escassos minutos depois de o Ministro se despedir. O calor não parece exercer sobre ela o mínimo dano. Entrou lavada e composta, as tranças esparzindo luz, um fresco brilho de romã na pele bronzeada. Enfim, uma festa:
«Incomodo?»
Não havia na pergunta, no sorriso com que a acompanhou, nenhum sinal de que a incomodasse incomodar. Dir-se-ia antes um desafio. O meu amigo beijou-a na face, a medo. Um único beijo.
«Nunca incomodas...»
A mulher abraçou-o.
«És tão querido!»
Mais tarde, já noite fechada, Félix desabafou:
«Um destes dias perco a cabeça e beijo-a na boca.» Queria prender-lhe os braços e encostá-la a uma parede, como se ela fosse uma das meninas que vez por outra traz aqui para casa. Seria difícil. A fragilidade de Ângela Lúcia é – ia jurar – puro ardil. Esta tarde trocou de papéis, passando de pomba a serpente, num abrir e fechar de olhos:
«O teu avô, aquele ali, o do retrato, é muito parecido com o Frederick Douglass.»
Félix olhou-a derrotado:
«Ah, reconheceste-o? O que queres?, chama-se a isto deformação profissional. Crio enredos por ofício. Efabulo tanto, ao longo do dia, e com tal entusiasmo, que por vezes chego à noite perdido no labirinto das minhas próprias fantasias. Sim, é Frederick Douglass, comprei esse retrato numa feira de rua, em Nova Iorque. Mas quem trouxe para aqui o cadeirão onde agora estás sentada foi de facto um dos meus bisavôs, ou melhor, o avô do meu pai adoptivo. Excluindo o retrato, a história que te contei é autêntica. Enfim, pelo menos tanto quanto me recorde. Sei que tenho por vezes recordações falsas – todos temos, não é assim?, os psicólogos estudaram isso –, mas penso que essa é verídica.»
«Acredito. Em contrapartida o teu amigo, o senhor José Buchmann, esse é completamente falso, certo?, inventaste-o tu...»
Félix negou com veemência. Que não, pópilas!, que se fosse outra pessoa a dizer-lhe aquilo ele até poderia ficar ofendido, mesmo muito ofendido, embora, pensando melhor, tal presunção devesse ser tomada por um elogio, pois só a própria realidade seria capaz de inventar uma figura tão inverosímil quanto José Buchmann:
«Eu, sempre que ouço falar em algo realmente impossível acredito logo. José Buchmann é impossível, não achas?, achamos os dois, então deve ser autêntico.»
Ângela Lúcia aprecia os paradoxos. Riu-se. Félix aproveitou para escapar:
«Por falar em histórias de famílias, sabes que nunca me falaste da tua? Não sei quase nada acerca de ti...»
Ela encolheu os ombros. Seria possível resumir toda a sua biografia, disse, em apenas cinco linhas. Nasceu em Luanda. Cresceu em Luanda. Um dia decidiu sair do país e viajar. Viajou muito, sempre fotografando, e finalmente regressou. Gostaria de continuar a viajar e a fotografar. Era o que sabia fazer. Não havia na sua vida nada de interessante, excepto as vidas interessantes de duas ou três pessoas que encontrara no caminho. Félix insistiu. Era filha única, ela, ou, pelo contrário, crescera cercada de irmãos? E os pais, o que faziam? Ângela teve um gesto de enfado. Levantou-se. Voltou a sentar-se. Fora filha única durante quatro anos. Depois vieram duas irmãs e um irmão. O pai era arquitecto, a mãe aeromoça. O pai não era alcoólico, nem sequer bebia álcool, e não, jamais a molestara sexualmente. Os pais amavam-se; todos os domingos ele oferecia flores à mulher; todos os domingos ela retribuía as flores com um poema. Mesmo nos anos mais difíceis – ela nascera em setenta e sete, era um fruto dos anos difíceis –, nunca lhes faltara nada. Vivera uma infância simples e feliz. Ou seja, a vida dela não daria um romance, muito menos um romance moderno. Não é possível escrever um romance, nos dias que correm, nem sequer um conto, no qual a principal personagem feminina não tenha sido viola da por um pai alcoólico. O seu único talento em criança, continuou, era desenhar arco-íris. Passou a infância a desenhar arco-íris. Um dia, quando fez doze anos, o pai ofereceu-lhe uma máquina fotográfica, um aparelho rudimentar, em plástico, e ela deixou de desenhar arco-íris. Passou a fotografar arco-íris. Suspirou:
«Até hoje.»
Félix conheceu Ângela Lúcia na inauguração de uma mostra de pintura. Creio – mas isto é mera suposição – que se apaixonou por ela assim que trocaram as primeiras palavras, porque a vida inteira o preparara para se entregar à primeira mulher que, vendo-o, não recuasse horrorizada. Quando digo recuar, entendam-me, não é, para ser tomado de forma literal. Ao serem apresentadas a Félix Ventura há mulheres que recuam realmente, dão um curto passo atrás, ao mesmo tempo que lhe estendem a mão. A maior parte, porém, recua em espírito, isto é, estendem-lhe a mão (ou o rosto), dizem, «muito prazer», e a seguir desviam os olhos e lançam algum comentário frouxo sobre o estado do tempo. Ângela Lúcia estendeu-lhe o rosto, ele beijou-a, ela beijou-o, e depois disse:
«É a primeira vez que beijo um albino.»
Quando Félix lhe explicou em que se ocupava – «Sou genealogista» –, que é o que ele diz sempre que se apresenta a estranhos, logo ela se interessou:
«A sério?! É o primeiro genealogista que eu conheço.»
Saíram juntos da exposição e foram continuar a conversa no terraço de um bar, sob as estrelas, defronte às águas negras da baía. Nesse noite, contou-me Félix, só ele falou. Ângela Lúcia possui um talento raro: é capaz de manter acesa uma conversa sem quase participar nela. Depois o meu amigo regressou a casa e disse-me:
«Conheci uma mulher extraordinária. Ah, meu caro, faltam-me as palavras certas para a definir – tudo nela é luz!»
Achei um exagero. Onde há luz, há sombras.