– Sem amor, não vale a pena viver.

Ángela disse estas palavras em voz alta, como o juiz que dita a sentença definitiva sobre o seu próprio destino.

E a seguir entregou-se à dor, com uma volúpia quase suicida.

À dor e à vergonha, qual dos dois o pior numa rejeição sentimental: a perda do projeto luminoso com o outro ou a tortura acrescida de sentirmos a nossa vergonhosa falta de encanto, a nossa inadequação e insignificância? Que o amado não nos quisesse transformava-se na maior humilhação imaginável. O desdém ou a indiferença do amado refletiam a indiferença e o desdém de todo o Universo. Ángela engoliu o fel do seu último fracasso e, uma vez mais, teve a certeza de que era incapaz de suscitar carinho. E de que o mundo voltaria a apontar para ela, trocista como sempre.

Uma lâmina de pesar.

Os pedaços do seu coração a caírem ao chão com um tinido de lata.

Não, não tinha conseguido que o seu amado a amasse. Nem sequer que a tivesse em conta. Prestara-se novamente ao ridículo e a angústia da sua própria ignomínia deixava-a com falta de ar. Não suportava pensar nisso e, no entanto, não o conseguia tirar da cabeça. O belo futuro que tinha imaginado junto do seu amado desmoronava-se agora com um fragor de avalancha. Ángela contemplou as paredes do quarto com assombro. Como era possível não estremecerem, não abrirem fendas diante de semelhante cataclismo? Abraçou-se, sentindo-se incapaz de seguir em frente. O que faria agora com os seus dias? Como suportaria a tristeza de existir? E como faria para não se desprezar?

– Sem amor, não vale a pena viver – repetiu, apoiando ambas as mãos no minúsculo lavatório a vapor e inclinando-se um pouco mais para o espelho. Olhou-se com desalento, lívida, taciturna. A testa larga e abaulada parecia ainda maior sob a luz vertical. Em cima, meia dúzia de cabelos ralos, de uma cor indefinida, deixavam entrever o couro cabeludo. Em baixo, um nariz pequeno, uma boca fina de mais e sempre tenazmente fechada, um queixo fugidio. Era feia. Já sabia. Era muito feia. Devia ter feito uma operação, era o que todos aconselhavam, e a ênfase, até a irritação com que o diziam, era já um insulto, como se os aborrecesse terem de olhar para ela. Não compreendiam que Ángela precisava de que a amassem a ela, a toda ela, verdadeira, e não aos retoques habilidosos que os cirurgiões plásticos pudessem fazer-lhe no rosto. Precisava de provar a si própria que era digna de ser amada.

«Ángela, toda a gente faz operações, é normal», tinha-lhe repetido vezes sem conta o seu primeiro terapeuta, um tipo novo que exibia uma cara bastante vulgar, a típica plástica básica e barata. «Mesmo depois da operação, continuarias a ser tu; simplesmente, chamarias menos a atenção.» Não, não, nem pensar. Enganara-se, nisso como em tantas outras coisas. Ela seria sempre aberrante, chocante. Era demasiado diferente. Tinham-no demonstrado vezes sem conta todas as pessoas com quem se cruzara desde a infância. Desde a mãe, tão bonita, a quem causara horror, aos colegas das instituições por onde fora passando, gente rejeitada e fodida que, no entanto, conseguia sempre pôr-se de acordo para a rejeitar e a foder a ela. Mesmo entre os monstros, era alvo de risota. Por isso, camuflar-se para quê? Tentara esconder-se durante toda a vida e não lhe servira de nada. A única coisa que verdadeiramente podia salvá-la era encontrar alguém que a amasse tal como era. Seria assim tão difícil de perceber? Pois se a primeira coisa que o próprio psicoguia quisera fazer fora mandá-la para o cirurgião plástico, tão inaceitável devia ela parecer-lhe!

Sim, era um borrão na escrita do mundo. Uma anomalia. E não teria conseguido suportar tanta solidão se não fosse o doce consolo dos números. Eram tão belos os números, tão fiáveis, tão ordenados, tão generosos na sua acessibilidade! Vivera com eles e triunfara com eles. Durante vários anos, trabalhara com os seus números fiéis, usando a Rede. E as pessoas, que não a conheciam fisicamente, admiravam-na. Fora assim que conseguira tornar-se independente, ter a sua própria casa… Nessa altura, apareceu Ricardo, o vizinho. Que olhava para ela sem revelar repugnância. Que olhava para ela como se a visse. Quando o conheceu, Ángela sentiu que tinha chegado a um lugar que sempre julgara inatingível. Pensou: Isto é o paraíso. Mas o vizinho deixou de ser doce e amável. Parecia até ter medo dela. E, depois, aquele problema com a polícia. Aquilo fora muito duro, brutal mesmo. Ricardo fora o seu primeiro fracasso. E também o início da sua demanda.

– Sem amor, não vale a pena viver – murmurou mais uma vez, com os lábios ressequidos e cheios de peles eriçadas. Estava há dois dias sem comer, sem dormir, quase sem beber. Grandes círculos arroxeados sombreavam-lhe os olhos. Dois dias sem tomar os medicamentos. Sentia-se febril e a vida era uma chaga, sofrimento puro. Mas a alternativa era pior. Aquela fria lisura terapêutica. Aquela calma artificial e embrutecedora que lhe metiam nas veias. A paz do cemitério. Forçá-la a não ser ela. Esvaziar-lhe a cabeça. Ao que os outros chamavam curar-se, ela chamava apagar-se.

Ángela era capaz de visualizar a sua própria mente. Via-a como uma imensa construção geométrica, um poliedro com milhares de faces de cores fulgurantes, que girava a toda a velocidade na escuridão do seu crânio. E em cada ângulo havia um número, um sinal, uma fórmula; por isso era tão boa a matemática, porque a única coisa que tinha de fazer era contemplar a sua mente com os olhos interiores e as soluções iluminavam-se por si sós. Todas as combinações numéricas possíveis estavam ali, bastava saber olhar. Ángela sabia que nem toda a gente dispunha de um poliedro faiscante na cabeça, e poder contar com essa beleza secreta era, sem dúvida, um refúgio e um consolo. Mas havia algo ainda mais importante para ela: uma energia capaz de mobilizar tudo isso, a força que Ricardo tinha posto em marcha, e esse fogo sagrado era o amor. Por isso, Ángela não queria que a mudassem. Porque ela sabia que era feia, muito feia, mas que o seu amor era belo. O que ela tinha de melhor, o que a definia, era a sua paixão, que os terapeutas consideravam excessiva, obsessiva e desenfreada. Mas porventura o verdadeiro amor não deve roçar sempre o extremo, o sublime, o absoluto? O coração de Ángela era um lago de afeto profundo e luminoso que ameaçava transbordar. Tinha uma torrente de carinho para dar e ninguém o aceitava. Que desperdício… Morreria sem conseguir entregar a alguém o fruto de amor puro e oculto que trazia no peito? A amargura revolvia-lhe o estômago como um veneno. Sim, mais outro fracasso. Ángela tinha oferecido àquele homem cruel o tesouro delicado do seu coração e ele rejeitara-o. Ah, que humilhação insuportável. A dor dilacerava-a.

Gritou.

Gritou sem parar, com toda a força dos seus pulmões, gritou como se estivessem a decapitá-la. Só fechou a boca quando ficou sem fôlego. E depois assustou-se. Era meia-noite e estava num microapartamento de doze metros quadrados que tinha alugado num edifício em colmeia. Era um lugar deplorável, de construção barata, e dezenas, senão centenas, de vizinhos estavam com certeza ao alcance auditivo da sua gritaria; era possível que algum deles se queixasse ou mesmo chamasse a polícia. Ángela acrescentou uma pitada de terror ao seu sofrimento. Estúpida, que estúpida! Ficou imóvel, à espera de alguma reação. Ouviu o tiquetaque dos minutos sem que nada acontecesse. Engoliu em seco, acalmando-se um pouco. A vantagem dos edifícios em colmeia das zonas marginais da cidade era, regra geral, ninguém querer meter-se em sarilhos. Mesmo assim, tinha de ser mais prudente.

Suspirou e abriu a mochila desportiva preta que continha todos os seus pertences neste mundo. Afastou os maços de gaias que tinha ido buscar ao seu esconderijo de emergência, no depósito da estação de elétricos, e tirou as coisas que tinha comprado na tudoloja da esquina. Agarrou num dos objetos e fê-lo girar entre os dedos. Era um x-ato básico, daqueles que os miúdos usavam para os trabalhos da escola, mas serviria.

Levantou a manga esquerda da camisa e voltou a olhar-se ao espelho. Ali, no antebraço, estava a tatuagem com o nome dele. Com o amado e odiado nome dele, com os caracteres tão cravados na sua pele como no seu coração, dez letras fatídicas que se viam ao contrário no reflexo. Um símbolo da entrega de Ángela, do seu amor fiável e perdurável, transformado agora numa estridente, insuportável evocação do seu último fracasso.

Fez deslizar a lâmina e aproximou o gume do início da tatuagem. Sem tremer. Afundou o x-ato um pouco na carne e parou; um fiozinho de sangue correu alegremente pelo braço abaixo. Pressionou a lâmina e começou a cortar, com o pulso firme e de dentes cerrados. Sem soltar um gemido. Apreciando o alívio momentâneo de ser dona da sua dor. No silêncio, ouvia-se o rasgar da carne e o sangue era agora um exagero. Cortou e voltou a cortar com desvelado mimo, tentando não errar. Não era nada fácil, dado que não dispunha de outra mão para esticar a pele. Demorou vários minutos a soltar a derme e a conseguir tirar a peça inteira. No lavatório, pousou o despojo e o x-ato, lavando a ferida com um jorro de vapor. Depois pegou no spray coagulante e no adesivo desinfetante e regenerador que também tinha comprado na tudoloja e fez um curativo apressado. Já com o braço ligado, agarrou delicadamente no farrapo de pele e estendeu-o sobre a porcelana falsa do pequeno lavatório. Observou-o com olhar crítico e sentiu-se muito satisfeita, pois no retângulo de pele e tecido lia-se com clareza o nome do seu amado. Podia ter usado uma lâmina a laser, que faria um corte mais preciso, mais fácil e mais rápido, além de cauterizar a ferida instantaneamente; mas teria sido muito menos… autêntico. Aparou o rebordo com o x-ato, para eliminar os farrapos, e em seguida lavou o retalho com delicadeza até o deixar bem limpo de sangue. Depois de o secar meticulosamente, embrulhou-o em papel de seda vermelho e meteu-o numa caixinha de cartão, também vermelha, que prendeu com um laço primoroso de cetim roxo. Carregou no telemóvel e pediu um robô mensageiro expresso. Agora só faltava enviar-lhe o presente. Ángela levantou a cabeça e olhou-se ao espelho. Tinha as faces molhadas de lágrimas e sorria.