Antes de se dirigirem para os antigos matadouros, decidiram fazer um pequeno desvio e passar pela casa de Yiannis, para confirmar se estava tudo bem e para se retemperarem. Na cidade havia muito movimento de tropas, de modo que tiveram de se movimentar com cautela. Encontraram Yiannis, Gabi e Bartolo muito inquietos, mas sãos e salvos. O arquivista arranjara maneira de fazer duas lamparinas de azeite, por isso tinham alguma luz. As três mulheres beberam e comeram alguma coisa, explicando por alto a situação.
– Venham cá ver – chamou-as a pequena russa, apontando para o exterior.
Da varanda, viam-se duas zonas diferentes de clarões furta-cores no perfil urbano.
– O exército dos EUT está a lutar nos arredores de Madrid – informou Ángela, que voltara a ligar o portátil, certa de que o sinal passaria despercebido na cidade, entre os muitos telemóveis dos soldados golpistas.
– É uma grande notícia – disse Aznárez. – Como terão chegado até aqui?
– Abrindo caminho a partir dos limites da zona do apagão, por transporte aéreo ou teletransportados… – aventurou a rep. – Parece que as coisas não estão a correr muito bem a Lago…
– Na-na-nada bem… As notícias dizem que os EUT já retomaram o controlo de três quartos da Península…
Mas o EJI mantinha a sua ameaça de mais apagões e, sobretudo, continuava a decapitar reféns. Faltavam duas horas para a próxima execução. Husky acabou de engolir apressadamente as últimas colheradas do guisado de grão-de-bico e pôs-se de pé. Tinha a sensação de que a pista dos matadouros era importante.
– Vamo-nos embora.
– Es-es-espera um momento… – pediu Gayo, ocupada no portátil. Depois ergueu o rosto emocionado. – Já a tenho.
– O quê?
– A mensagem encriptada. A da pom-pom-pomba. Consegui. É isto – disse Gayo, mostrando-lhes o portátil.
No ecrã via-se o seguinte:
δа (t) ≡ δ (t – a)
– O que é isso?
– A fu-fu… a fu-fu-função delta… É uma função matemática que estuda fenómenos de intensidade tendente ao infinito e duração tendente a zero. Ou seja, valores em crista, explosões muito fugazes… – explicou Gayo.
– E para que nos serve?
– Nã-nã-não sei… Mas é muito bonita.
Bruna abanou a cabeça.
– Vamos, Aznárez.
Ángela agarrou no portátil e também se levantou.
– Tu não. Vai ser perigoso.
– Mas vocês não sabem nada sobre a função delta. Com certeza que terá algum significado. Com certeza que poderei dar uma ajuda – disse a mulher, muito segura de si e sem tropeçar nas palavras.
O pior é que tinha razão.
– Está bem. Vamos embora.
Quando saíram, cruzaram-se à porta com Emma. Parecia mais pálida e mais escanzelada do que nunca à luz trémula e fraca das lamparinas.
– Não devias sair, é perigoso – resmungou Bruna.
– Sei cuidar de mim, a sério. Tenham vocês cuidado. Há uma patrulha de soldados de Lago depois da esquina – indicou a menina.
– Emma! – gritou Gabi com verdadeira alegria.
E aproximou-se da amiga para a abraçar. Duas rosas de rubor apareceram na cara encovada da rapariga. Amavam-se. Ou seja, a selvagem Gabi era capaz de amar. Talvez Emma fosse mesmo o seu primeiro amor, pensou a rep. Tal ideia fê-la sentir uma emoção estranha, indefinível. No entanto, não era desagradável. Podia mesmo dizer-se que era consoladora. Um calor que desfazia crostas de gelo. A rep espantou-se consigo própria: a sério que a comovia a possível felicidade da terrível Gabi? Daquela fúria russa mordedora?
Bartolo agarrou-se às suas pernas, choramingando. Não queria que ela saísse. A rep agachou-se, soltou-lhe os dedinhos pretos e, pegando-o ao colo, entregou-o a Yiannis. As emoções enfraquecem, resmungou. Os afetos acorrentam, transformando-nos num bicho tão tonto como Bartolo. Ou numa pessoa tão dependente como Ángela. E depois pensou em Lizard. Doze noites apenas. Ou talvez nenhuma. Era possível que morresse dentro de algumas horas.
Chegaram aos arredores dos matadouros muito antes do que Bruna calculara. Na realidade, não ficava muito longe do centro, mas era uma zona muito degradada e destruída; ninguém a frequentava porque ali não havia nada, daí a rep não a conhecer. Gradualmente, iam desaparecendo os edifícios e começava um espaço morto com escombros e terrenos vazios, com casinhas de telhados afundados e janelas partidas. Era como uma terra de ninguém entre duas fronteiras em conflito.
– Ei… Há gente nas ruínas… – sussurrou Aznárez.
Era verdade. Avistava-se uma luzinha minúscula e a visão noturna da rep permitiu-lhe ver que, entre as sombras, se deslocavam e escondiam algumas sombras mais negras. Pensou no bando de espetros da estrada. Esta seria uma boa guarida para os bandidos. Mas não deviam ser eles ou tipos como eles, porque as deixaram passar sem fazerem nada. Pelo contrário, dir-se-ia que se escondiam. Deviam ser mendigos ou talvez traças, ilegais vindos de uma Zona Zero.
Desmontaram das bicicletas para atravessar uma larga área de vias-férreas. As travessas eram ainda de madeira e entre elas cresciam ervas altas. Há muito tempo que nenhum comboio devia passar por aquelas bandas. No lado oposto via-se o perfil esmagador dos matadouros e, por cima deles, o céu noturno iluminava-se com o resplendor da batalha, muito mais evidente ali. Ouvia-se mesmo um clamor surdo, proveniente dos combates vizinhos.
A zona das naves industriais dos matadouros estava apagada e em ruínas. Como o ponto assinalado pelas coordenadas ficava um pouco mais à frente, dirigiram-se para lá a pé, seguindo o muro velho e ulcerado do enorme conjunto de edifícios.
Husky começou imediatamente a sentir-se mal. Primeiro foi só uma espécie de inquietação, um maior nervosismo, um desconsolo. A angústia por Lizard, provavelmente. Depois, começou a sentir-se fraca. As pernas pesavam-lhe. Doía-lhe o estômago.
– Pa-pa-passa-se alguma coisa, Bruna? – perguntou Ángela, sempre tão atenta a ela.
– Não… nada… Estou bem.
Talvez lhe tivesse caído mal alguma das coisas que comera. Estavam a chegar à parte reconstruída, assinalada pela pomba. Aqui, o muro elevava-se até ao dobro da altura anterior e era de cimenplás reforçado, como os muros dos quartéis, com puas afiadas que lhe eriçavam o cimo. Um cartaz avisava que estavam eletrificadas, embora agora não funcionassem, claro. A rep apoiou-se à parede, enjoada.
– Tens a certeza de que te sentes bem? – preocupou-se Aznárez.
– Já disse que sim – respondeu, azeda.
– Ve-ve-vejam! – disse Ángela, excitada, consultando o portátil. – O exército dos EUT entrou no Palácio Presidencial… O general Tomás Lino suicidou-se… A Presidente Guang foi assassinada, mas resgataram com vida o primeiro-ministro Krakotek… A Terra apoderou-se da arma secreta do EJI, a máquina que causou o apagão! Ao que parece, é um acelerador de fluxo de plasma… O golpe de Estado foi praticamente derrotado, embora ainda não tenham encontrado os reféns do EJI…
As notícias deram alguma energia à maltratada Bruna. Inspirou profundamente e endireitou-se. Tinham chegado ao que parecia ser a porta do recinto, embora o aspeto fosse o do acesso a um bunker de alta segurança. Dois robocombats, um de cada lado do umbral, guardavam a entrada. Eram grandes, de tamanho familiar, e, mesmo desligados como estavam, amedrontavam.
– Como vamos entrar? Parece inexpugnável – disse a irmã de Lizard, apontando para o portão de aço maciço.
Bruna respirou fundo, porque se sentia asfixiar, e apoiou a mão na pesada folha de metal. Nessa altura, os robocombats ativaram-se e giraram os seus troncos piramidais na direção delas.
– Merda! – gritou Aznárez.
Uma descarga neuroléptica deixá-las-ia paralisadas e com certeza ativaria também o alarme. Se os robocombats funcionavam, lá dentro devia haver gente. Inimigos.
Um pequeno ecrã azul iluminou-se no aço da porta, exibindo sinais que Bruna não conseguia distinguir. Uma dor de cabeça incapacitante toldava-lhe a vista.
«Trinta segundos para a descarga… Vinte e nove… vinte e oito… vinte e sete…», começou a contar uma voz artificial.
Bruna não conseguia pensar nem reagir; Barri olhava para ela, apavorada. Tinham de fugir imediatamente. Uma descarga de robocombats tão colossais teria um grande impacto.
– Há-há-há… – gaguejou Ángela. – Eu-eu-eu…
«Dezanove… dezoito… dezassete…»
Gayo atirou-se sobre a porta e começou a carregar nalguns dos sinais do ecrã azul.
«Sete… seis… cinco…»
A voz parou. A janela azul apagou-se e o portão abriu-se sem qualquer ruído.
– Vamos! Vamos! – Barri teve de apressar a rep.
Entraram no recinto e a abertura voltou a fechar-se atrás delas em completo silêncio.
– É que havia letras gregas e muitos sinais matemáticos, de modo que pensei que era isso – disse Ángela de um fôlego. – Inseri a fórmula da função delta.
Bruna fez um esforço para se dominar. A enxaqueca estava a matá-la e ela sentia-se cada vez mais fraca. Tirou a espingarda das costas e deu-a a Aznárez. Não se sentia capaz de a usar.
– Leva-a tu…
Olhou em volta. Estavam num pequeno pátio, diante de uma enorme nave reconstruída. Era feita de pedra e tijolo, com remates pontiagudos, janelas de ferro forjado e vidros grossos, foscos e provavelmente blindados. Estava tudo às escuras, mas no fundo dos vidros espessos parecia palpitar um sopro de luz, como uma brasa.
Subiram o pequeno lanço de escadas e Bruna sentiu-se morrer em cada degrau. Que estava a acontecer-lhe? Todas as células do seu corpo se recusavam a entrar naquele edifício; era como se cada passo em frente a conduzisse à destruição e a uma dor imensa.
– O que tens? – inquietaram-se as outras.
– Não sei. Continuemos.
Tentaram a porta, mas estava fechada. Iluminou-se um intercomunicador:
– Nome, por favor.
Dobrada sobre si própria, Bruna disse:
– Jan Lago.
– Nome, por favor.
– Fer.
– Nome, por favor.
– Janhache.
– Nome, por favor.
Bruna desesperou-se. Gemeu. Sentia que estavam a serrar-lhe a cabeça. Voltou-se para Ángela.
– Quem… quem inventou essa fórmula?
– Paul Dirac – disse a mulher.
Aquela devia ser a senha porque, assim que Gayo proferiu o nome do matemático, a porta abriu-se com um clique. Entraram num vestíbulo altíssimo que desaparecia entre as sombras e onde se via um arco por onde saía um ligeiro brilho. Bruna tentou dirigir-se para lá, mas todo o seu organismo a impedia. Caiu de joelhos, vomitou, gritou. Aznárez agarrou-a por baixo dos braços e levantou-a, muito assustada:
– O que tens?
– Dói… – arquejou a rep.
Apoiada na irmã de Lizard, avançaram na direção do arco. Um terror indescritível fazia tremer todo o corpo de Bruna, que nunca experimentara nada semelhante. Chegaram ao umbral e puderam ver a vasta nave que se estendia diante delas; filas e filas de grandes tanques de aço e vidro pareciam flutuar na penumbra. Estavam cheios de um líquido ambarino e, dentro de cada tanque, havia um corpo nu em suspensão.
Um vómito violento voltou a dobrar Bruna. Encontravam-se numa unidade de gestação de tecno-humanos. Uma fábrica de reps. Era o inferno.
– Oh, Bruna…
A androide livrou-se dos braços de Aznárez e avançou, aos tombos, até ao primeiro tanque. A etiqueta indicava: «Mineração. Mulher. Vinte e três anos. Data de ativação, 13-04-2110. TriTon Corp.»
TriTon! A empresa de androides de Jan Lago. O mesmo fabricante que a fizera a ela. E a Clara. E a Merlín. Talvez ela também tivesse sido criada ali. Naquela mesma cisterna. Maldita fosse a função delta com que tinham aberto a porta… Essa fórmula que descrevia fenómenos de grande intensidade e duração ínfima, como o esvoaçar desesperado da brevíssima vida dos tecnos. Com um esforço agónico, Bruna ergueu a cabeça e contemplou o corpo. Teria preferido arrancar os próprios olhos. Tratava-se de uma jovem pequena e robusta, como todos os tecno-humanos mineiros. Mas tinha o corpo contorcido, as pálpebras entreabertas, o olhar vidrado, a boca repuxada numa expressão de dor que parecia um grito. As mãos tremiam-lhe convulsivamente no líquido espesso. Bruna observou os outros homens e mulheres, tecnos de expedição, de combate ou de cálculo prestes a amadurecerem, ou crianças de dois, seis, doze anos. Todos eles deformados, atormentados, doentes. Sofrendo.
– Que… têm? – balbuciou Bruna.
E então compreendeu. A nave estava às escuras. A única luz era a de uns pequenos discos incandescentes que havia no chão, as luzes do sistema de segurança, que devia ter a mesma fonte de alimentação do intercomunicador e dos robocombats. O resto da unidade estava desligado. As cisternas de gestação tinham deixado de funcionar com o apagão. Os replicantes estavam a morrer.
O coração de Bruna partiu-se, ou, pelo menos, doeu-lhe tanto como se estivesse a partir-se. E dessa dor saiu um grito e uma fúria que a pôs de pé e lhe deu forças para avançar pela nave aos tropeções, por entre os pobres corpos torturados, por entre crianças espasmódicas e jovens perfeitos a agonizar. Todos tão infinitamente sós nas suas bolhas cruéis de líquido amniótico. As luzes de segurança davam um fulgor de brasa à penumbra e um brilho de facas ao metal.
Seguida por Aznárez e por Ángela, Husky chegou ao outro lado da nave e encontrou uma porta. Tentou abri-la. A mão tremia-lhe tanto que não conseguiu. A irmã de Lizard rodou a maçaneta, que girou sem problemas. Entraram numa sala de controlo, cheia de ecrãs e outros aparelhos, todos apagados. Atravessaram o local e dirigiram-se para a saída ao fundo. Bruna atravessou-a e sentiu-se um pouco melhor; à medida que se afastava da nave de gestação, a sensação de sofrimento e de morte iminente ia ficando menos aguda. Estavam agora num pequeno vestíbulo, com uma escada antiga em caracol, de ferro forjado. Também havia um elevador, mas não funcionava. Subiram as escadas, Bruna degrau a degrau, ainda a arrastar o corpo. Um corredor comprido e apagado dava para uma porta aberta ao longe, de onde saía uma torrente de luz elétrica e o ruído de música. Bruna fez um sinal a Aznárez para que esta lhe devolvesse a espingarda, o que ela fez. A rep já se sentia mais ou menos recuperada. Percorreram silenciosamente o corredor até àquele foco hipnótico de luz, enquanto a música de violinos se tornava cada vez mais audível. Era bonita, pensou Bruna. Melancólica. Por vezes angustiante. Chegadas ao umbral, espreitaram com cautela. Era um grande aposento quadrado, a meio caminho entre uma sala de reuniões e uma unidade de reanimação intensiva hospitalar. Numa extremidade, uma mesa grande de madeira nobre, com ar sólido e antigo, e, à volta, doze cadeiras a condizer. Estantes escuras, repletas de livros de papel, cobriam a parede e no teto cintilava um lustre de cristal como os dos filmes de época. Yiannis teria adorado aquela decoração.
O outro lado da sala parecia uma sala de operações. Níquel e polímeros de um branco deslumbrante criavam um espaço médico e higiénico. No centro estava uma grande máquina de onde saía um emaranhado de tubos e fios; na parte dianteira do aparelho, metido numa espécie de bolsa rígida e semitransparente, que o mantinha de pé, estava um homem. Ou o que restava de um homem, porque quase tudo o que Bruna apreendeu ao primeiro olhar parecia metálico. Apenas o rosto era humano. O rosto de Jan Lago.
– Ah, entrem, entrem… Estava à vossa espera. Não se escondam atrás da porta… Não acredito que tenham medo de um pobre velho entrevado… Não é bonita, esta valsa triste de Sibelius que está a tocar? – perguntou o magnata.
Sem deixar de lhe apontar a arma, Bruna esticou o pescoço e examinou o local. Ao fundo, numa grande gaiola, viam-se meia dúzia de pombas biónicas, que batiam as asas e arrulhavam. Ali era o seu ninho, sem dúvida, como Gayo calculara. A não ser pelo alvoroço das aves, estava tudo tranquilo. Não estava mais ninguém na sala.
– Parece que está só… – grunhiu a rep.
Aznárez deve ter encarado a frase como uma autorização para avançar, porque entrou na sala de forma decidida.
– Não, nãooo! – gritou Bruna, que acabara de ver a armadilha.
Mas já era tarde de mais. Junto à ombreira, no interior, estava a pirâmide truncada de um robocombat. Era um modelo de uso privado, de tamanho pequeno, mas suficiente para intercetar um indivíduo. O robocombat lançou o seu choque neuroléptico e derrubou o corpanzil da irmã de Lizard. Bruna disparou imediatamente os dois canos da sua espingarda: o primeiro contra o robocombat, conseguindo fazer-lhe um belo orifício, e o segundo contra a pistola de plasma que Lago acabara de sacar. A pistola de plasma voou até ao outro lado do aposento. Sem deixar de apontar para o milionário, porque ele não tinha maneira de saber que ela não dispunha de munições, a rep agachou-se para inspecionar o estado de Barri. Tinha os olhos revirados, mas o coração continuava a funcionar. Devagar, mas com vigor.
– Oh, Husky, podes parar de fazer alarde da arma. Essas espingardas têm de ser recarregadas depois de cada tiro. Ou lhe metes mais cartuchos ou não passa de um bocado inútil de ferro – troçou Lago, escarninho.
Evidentemente, que estúpida, pensou Bruna, irritada consigo própria. Em duas passadas, seguida por Gayo, que se colava a ela como uma sombra, a rep chegou até à pistola de plasma e apanhou-a. Parecia estar a funcionar.
– No entanto, esta já dispara – disse, aproximando-se lentamente do magnata e mantendo-o na mira. – Como sabes o meu nome?
– Como é possível não o saber? Foste a Cosmos e ao Mosca e deste cabo da nossa paciência.
Bruna apontou para o corpo de Aznárez:
– Quanto tempo ficará assim?
– Hum… Uns quarenta minutos, talvez menos. É corpulenta.
– Onde estão os reféns?
– Não sei.
Bruna disparou o plasma e rebentou-lhe meia orelha. O impacto fez saltar o revestimento biodérmico, deixando a descoberto as entranhas de titânio.
– Ui! Isso quase doeu – exclamou Lago com uma calma irónica. – A sério que não sei. Se soubesse, dizia-te. Receio ter sido completamente derrotado. Não te espanta não teres encontrado ninguém até chegares aqui? É o que tem de negativo um exército mercenário. Adoram dinheiro, mas gostam mais da vida do que de dinheiro e, quando as coisas dão para o torto, deixam-nos pendurados. Os fanáticos, pelo contrário, são maravilhosamente fiéis aos seus ideais. É a única coisa simpática neles.
Husky observou-o minuciosamente. Todo o corpo de Lago parecia artificial. A cara, muito operada para lhe rejuvenescer os traços, parecia uma careta de carne colada a um crânio metálico de onde saía um punhado enorme de fios que se ligavam à máquina. O tronco e as pernas estavam cobertos por uma espécie de pijama azul sem mangas, mas tanto os pés como o pescoço e os braços pareciam ser de aço. Apoiava os cotovelos numa espécie de mesa transparente que tinha à frente, um pouco como as bandejas de hospital. A mão direita, que ela tinha atingido com o plasma, estava danificada, com os dedos pendentes de cabos retorcidos. Lago, que seguira o olhar da rep, acariciou com melancolia os dedos rebentados.
– Não vou dizer que não o tenha merecido por puxar da pistola, mas é uma pena ver estragada esta obra de arte. O meu corpo é uma maravilha – observou.
Obviamente, o magnata poderia ter optado por próteses biodérmicas invisíveis, mas gabava-se da tecnologia que tinha.
– Com que então, és um ciborrad. Obviamente ilegal. Tens demasiados implantes. Estás muito acima do que é permitido nos EUT.
– Sou ilegal? Um ser ilegal? E és tu quem diz isso, Bruna? Uma tecno? Com certeza que quiseste morrer quando entraste na unidade de gestação, vomitaste e sentiste-te doente… Isso fomos nós que te pusemos na cabeça, Bruna. Para que não te aproximasses das fábricas. Não te surpreende nunca te teres interrogado sobre o lugar onde te fizeram? Isso, essa falta de curiosidade, também foi implantado por nós. Eu sou ilegal? Sou artificial? E tu? Tu és orgânica, de facto, mas foste tão manipulada, tão alterada pelos engenheiros genéticos que por isso vos chamamos androides… Enfim, por isso e porque assim as pessoas têm mais dificuldade em ver-vos como humanos. Mas, de qualquer forma, tu e eu somos paralelos, criaturas do mesmo tipo, Bruna… Somos semideuses e melhorámos a espécie. Bom, sobretudo eu, sinceramente, porque vocês têm essa chatice do TTT… Os tecnos são um ensaio que não correu bem.
A detetive olhou para ele, horrorizada. O que o homem dizia repugnava-a, mas não conseguia deixar de o ouvir, presa às palavras como uma traça atraída pela luz. Era verdade. Era uma verdade espantosa e chocante: nunca se tinha interrogado, em toda a sua curta existência, sobre as unidades de gestação.
– Olha para a minha mão, que beleza! – continuava o homem. – Em vez da minha carne mortal, esse tecido muscular que adoece e nos mata, que se enruga e se mancha e enfraquece e cai e se corrompe e se fere e dói e se deforma… Em vez dessa minha carne miserável, que apodreceu há um século, estas linhas puras, perduráveis e perfeitas…
Lago rodava a sua mão intacta no ar, deixando-a ser vista de diversas perspetivas. Era um magnífico mecanismo de aço e titânio, com peças delicadas e cabos rutilantes de liga de ródio. A prótese inteira brilhava à luz elétrica, decorada com incrustações de ouro e diamantes. Por isso Jan Lago nunca aparecia pessoalmente. Nas gravações, usava luvas, lenços ao pescoço e perucas para esconder o crânio niquelado. Husky abanou a cabeça e empunhou a pistola com mais força.
– Onde estão os reféns? – repetiu num tom ameaçador.
– Não sei! Já te disse. Isso são assuntos do EJI.
– Mas tu disseste que sabias que eu estive em Cosmos e no Mosca… e sabias porque são cúmplices e trabalham em conjunto.
– Claro que sim! Não o nego. Mas a única coisa de que aquelas cabeças fundidas do EJI se encarregaram foi do assunto dos reféns. Tão repugnante! Nós tratámos de tudo o resto: o GAFPA, o Grande Acelerador de Fluxo de Plasma Apontável, ou seja, a máquina do apagão, é uma tecnologia cósmica. Nunca nos passaria pela cabeça confiá-la aos loucos do EJI. O guarda-chuva disruptor, que permite proteger certas zonas do efeito do apagão, como, por exemplo, este mesmo espaço, é uma invenção minha. Pelos mesmos motivos de falta de confiança, também não o entregámos aos Ins; por isso, comunicamos com eles através das pombas biónicas. Belas, não achas?
– A máquina do apagão caiu nas mãos do exército dos EUT – disse a rep.
– Sim, já soube. Já disse que sei que fui derrotado.
Bruna fora-se aproximando enquanto falava e estava agora ao lado de Jan Lago. Ergueu a pistola de plasma e arrancou-lhe a ponta do nariz. O magnata guinchou e um pequeno orifício ensanguentado apareceu na extremidade do apêndice nasal. Aquilo sim, era dele. Carne que doía, que ficava ferida e se deformava.
– Onde estão os reféns?
– Não sei! O que vais fazer, matar-me? Vais ficar sem saber tantas coisas interessantes que podia contar-te?
Bruna franziu a testa, refletindo.
– O-o-o… O exército dos EUT está a acabar com os últimos focos de resistência no campus universitário de Pradolongo… Fica a poucos quilómetros daqui. Ainda não encontraram os reféns mas, ao que parece, esperam fazê-lo em breve – avisou Ángela, lendo no portátil.
Um campus universitário… Poderia ser um bom esconderijo para os prisioneiros dos jovens Ins.
– Vamos ter agora mesmo com o exército dos EUT – disse a rep.
– Não posso! Não posso separar-me desta máquina. É o meu suporte de vida. Se me desligar, morrerei imediatamente – disse Jan Lago.
– Não acredito.
Mas a verdade é que acreditava. Lago parecia depender completamente dos cabos e, além da cabeça e dos braços, o corpo não tinha qualquer movimento.
– E vais fazê-lo? Vais arrancar-me da máquina e matar-me? Vais ficar sem saber tudo o que te poderia contar? Além disso, o que vais fazer com ela?
Aznárez continuava imóvel. Bruna poderia deixá-la ali, mas isso seria abandoná-la numa situação de impotência total. A rep suspirou.
– Ángela, podes mandar uma mensagem ao exército? Explica-lhes quem somos, avisa-os de que temos Jan Lago e onde estamos. E dá-lhes os códigos de entrada.
– Po-posso tentar entrar nas comunicações deles…
– Fá-lo.
Bruna aproximou-se novamente da irmã de Lizard e tocou-lhe. Temperatura corporal aceitável, ritmo cardíaco melhor, embora continuasse sem sentidos. Deixou-a no chão numa posição mais confortável; depois, pegou numa das cadeiras que rodeavam a mesa de madeira, pô-la diante da máquina de Lago e sentou-se.
– Mataram o teu filho. Como pudeste aliar-te a eles?
– O Janhache? Pobre tolo. Usei-o para provocar um confronto e funcionou muito bem. Não era bem meu filho: tinha os meus genes, mas nunca tive com ele uma relação paterno-filial. O mesmo posso dizer em relação aos meus outros vinte rebentos. Nunca vi ou tive contacto com nenhum deles ou com as mães. Todos eles foram o resultado de fecundação artificial. Como vês, não posso afastar-me desta máquina… e precisava de pessoas fiáveis para pôr à frente das minhas empresas. Pensei que a minha contribuição genética ajudaria a que fossem mais inteligentes… A verdade é que nisso me enganei bastante. Poucos entre eles podem ser definidos como brilhantes e o Janhache não o era, garanto-te. Ainda assim, por terem os meus genes e se julgarem meus filhos, os grandes parvos encararam tudo isto como o seu contributo para o meu legado e esforçaram-se muito mais. O ser humano é romântico por natureza.
– Mas os teus filhos mais velhos têm cerca de sessenta anos… Há quanto tempo estás preso à máquina? Que idade tens?
Lago sorriu, maquiavélico.
– Mais do que imaginas, Bruna. Eu não sou Jan Lago. Sou o meu pai, Dom Lago… O homem que descobriu a cura do Alzheimer. Um cientista eminente. Um génio na obscuridade, se permites que me gabe um pouco… Tão genial que também descobriu a chave para alguma imortalidade. Nasci em 1921 e tenho cento e oitenta e nove anos. No entanto, algumas leis absurdas impediam-me de fazer o necessário para prolongar a minha vida, como por exemplo desenvolver esta máquina. Então, para que a minha longevidade pudesse passar despercebida, fingi que tinha morrido e inventei este pretenso filho, Jan Lago. Todos os Jans posteriores são puras ferramentas da minha vontade, como vês.
Cento e oitenta e nove anos! A existência somada de dezanove tecnos. Recordou os seus companheiros que agonizavam no andar de baixo e voltou a sentir náuseas.
– Maldito assassino… Os reps estão a morrer por falta de energia. Porque é que também não os protegeste do apagão?
– E chamava a atenção de todos os engenheiros, dos trabalhadores da unidade, dos fornecedores…? Tanta gente se teria apercebido. Não, não! Teria sido demasiado óbvio. Sinto muito, mas tive de o fazer. E tenho verdadeira pena, porque representa uma perda económica significativa. Vocês saem-me muito caros.
Bruna sentiu uma tentação enorme de lhe dar um tiro no meio da cara. Na ferida circular na ponta do nariz, um alvo de sangue.
– Além disso, mergulhaste a Península Ibérica num caos total; a vida demorará meses a normalizar, deve haver, com certeza, muitas vítimas… – acrescentou com rancor.
– Oh, não. Tudo se pode arranjar em vinte e quatro horas. As nossas empresas estão preparadas para fornecer, reparar e substituir todos os componentes elétricos e eletrónicos danificados. Além disso, trará benefícios económicos: o dinheiro vai fluir, a sociedade enriquecerá. A magia do mercado, sabes…
Aquele sujeito não merecia viver. Não merecia. A rep apertou a coronha da pistola de plasma.
– Já lhes chegou a men-men-mensagem – disse Ángela. – Não sei se acreditaram, mas acho que virão.
Husky sacudiu a cabeça e os ombros, tentando libertar um pouco a tensão. Um objetivo difícil de atingir, porque o relógio continuava a avançar. Já devia passar das onze da noite, a hora da execução.
– Ángela, podes verificar se os Ins mataram outro refém?
– Já estava a fazê-lo… Não há nada para já, embora já sejam vinte e três e vinte.
Que estranho. Eram sempre pontuais. Ao lado do magnata, sobre uma longa prateleira de vidro, viam-se vários animais metálicos articulados e construídos em tamanho natural: um pardal, uma lagartixa, uma aranha gorda, um ratinho. Ao centro, protegido por uma campânula, estava o corvo de Juanelo. Bruna reconheceu-o imediatamente, porque era igual ao do desenho. Com penas pretas verdadeiras, já sem grande brilho, e metade do corpo e da cabeça em metal e madeira. Parecia delicado e antigo.
– O autómato de Juanelo.
Surpreendido, Lago abriu os seus olhos pequenos e penetrantes:
– Muito bem, Husky, surpreendes-me! Os autómatos interessam-te? Este é, efetivamente, o pássaro original do grande Turriano. Foi construído no século dezasseis e ainda funciona. Se lhe dermos corda, anda para um lado e para o outro, move as asas, a cabeça, o bico, os olhos. É portentoso. Até grasna! Mas não é o único que existe no mundo. Há outros trinta e dois iguais.
– Os trinitários… Nesse caso, é verdade que a ordem existe…
Lago assentiu com uma expressão satisfeita:
– Exato. A Trinity. O clube mais poderoso do mundo.
– E está ativo desde o século dezasseis?
– Digamos que não somos recém-chegados. Ao longo do tempo, houve muitas empresas da Ordem… Se pensares em todas aquelas cujo nome fazia alguma referência às aves ou em cujo logótipo constasse um pássaro ou as asas de um pássaro, provavelmente eram nossas.
De facto, as sobrancelhas artificiais do magnata, que pareciam desenhadas a tinta da China, faziam lembrar uma gaivota em voo.
Bruna inquietou-se:
– Porque estás a contar-me tudo isto? Estás a dar-me muitas informações que poderias perfeitamente guardar para ti.
Lago suspirou.
– Já te disse que estou derrotado… e os trinitários não apreciam a derrota. Receio que me expulsem. Portanto, é-me indiferente revelar estas minudências. Mas falemos dos autómatos, que são um assunto muito mais interessante. Reparaste nos outros? No pardal, na tarântula, no ratinho, na salamandra? Eu próprio os construí; cada um tem centenas de peças e todos eles possuem uma mobilidade extraordinária… Ah, os autómatos são um dos grandes sonhos da humanidade… Desde o princípio dos tempos que desejamos transformar-nos em deuses criadores e dotar de vida o que é inanimado… Sabias que já havia autómatos no antigo Egito? Estátuas das divindades que mexiam os braços e deitavam fogo pelos olhos. E na Idade Média estiveram na moda as cabeças falantes… Foi muito famosa a cabeça falante de mulher que Santo Alberto Magno teve no século treze e que São Tomás de Aquino achava ser um instrumento do demónio. Enfim, sabes bem que sempre houve gente cega pelos preconceitos. Mas o meu autómato preferido é a filha de Descartes… Um século depois de Juanelo, o filósofo René Descartes, que, a propósito, também era rosa-cruz, teve uma filha, Francine, que ele adorava e que morreu de escarlatina aos cinco anos. Descartes mergulhou numa depressão profunda e mandou construir um autómato exatamente igual à sua menina. Tinha uma cara belíssima de porcelana, falava e movia-se. O filósofo manteve a sua existência em segredo, mas convivia com ela; falava-lhe, cantava-lhe, sentava-a a comer com ele. Até viajava com ela, bem guardada num baú primoroso. Um dia, ia de barco para a Suécia, a pedido da rainha, quando, a meio de uma tempestade, os marinheiros supersticiosos abriram o baú e ficaram horrorizados ao descobrirem uma boneca que parecia viva. O capitão decidiu que era obra do diabo e atirou-a borda fora. Diz a lenda que, a seguir, Descartes atirou o capitão ao mar. Duvido muito. É verdade que o famoso dualismo cartesiano dividia o ser humano em mente e corpo. A mente, que era a alma, era espiritual e eterna; o corpo, pelo contrário, era uma simples máquina perecível. Ao construir a sua «Francine», se calhar Descartes estava a tentar reproduzir a máquina para que a alma da filha voltasse a habitá-la. Já vês como são importantes, transcendentes, essenciais, os anseios que conduzem aos autómatos, à robótica e a esta culminação perfeita da fusão entre humanos e máquinas que somos nós, os seres biónicos. Para depois virem os burocratas do Ministério da Transumanidade ditar as suas leis idiotas…
Lago fora empolando o tom de voz e inflamando as suas palavras, que faziam lembrar as suas declarações nos ecrãs públicos.
– Pensaste realmente que podias ganhar? – perguntou a rep.
Por instantes, Lago ficou desconcertado diante da mudança súbita de assunto.
– Bom, não me limitei a pensar. Estivemos quase…
– Mas como poderia funcionar uma aliança dos trinitários com os Ins? É uma aberração.
– Os terroristas foram só um instrumento. Foram mais uma arma. O plano era dividirmos a Terra com Cosmos, voltar a ter um mundo com políticas definidas e inimigos tradicionais. O EJI era coisa dos cósmicos, que mais tarde se encarregariam de os neutralizar.
– São crianças, quase crianças…
– São peões necessários de um plano maior. A verdadeira aberração são os Estados Unidos da Terra e as suas hipocrisias igualitárias, as suas legislações restritivas da liberdade individual, a sua cobardia política diante da pressão das massas… Pois se até permitem que o Tribunal Constitucional declare ilegal a taxa de ar! Sem as nossas indústrias, sem o nosso esforço tecnológico e empresarial, sem os nossos parques-pulmão, não haveria oxigénio para respirar! Será que não temos o direito de cobrar por isso?
– Em primeiro lugar, foram as vossas indústrias que contaminaram e continuam a contaminar o ar – lembrou Bruna, como se fizesse eco das palavras de Yiannis. Era o que dava passar demasiado tempo com o arquivista. A amizade era uma espécie de contágio.
O rosto do milionário crispou-se numa careta de profundo desprezo.
– Não me vou pôr a discutir alta política com uma rep. Era só o que me faltava. A propósito, sabes como vos criámos?
Um dedo de gelo percorreu a coluna vertebral de Husky.
– É-me indiferente.
– Já sabes que são clones que amadurecem aceleradamente e que, em catorze meses, atingem os vinte e cinco anos de idade… Mas talvez não saibas que as vossas células-mãe se fabricam a partir das células epiteliais de um humano. Todos vocês provêm de um homem ou de uma mulher reais. E sabes que mais? Guardamos os arquivos… Posso ver a quem pertencia o bocadinho de pele que te deu vida…
– Não quero saber! – quase gritou Bruna.
Mas viu o magnata manipular o seu telemóvel e não o impediu. Porquê, porquê?
– Ah, sim, claro… Lembro-me dela – exclamou Lago, sardónico. – Aqui estão os dados. Tu provéns do material genético de uma escritora e jornalista de há cem anos… Rosa Montero. Hoje está completamente esquecida, mas foi mais ou menos conhecida no seu tempo. Fez-me uma entrevista quando eu estava a investigar a cura do Alzheimer… e prestou-se a doar células epiteliais, julgando que serviriam para lutar contra essa doença, ah, ah, ah… Era muito crédula, a pobre idiota. Suponho que ficaria horrorizada se soubesse que serviram para dar vida a replicantes. Embora de facto não devesse queixar-se, porque essa também é uma forma de atingir a posteridade. És um clone de Rosa Montero, Husky. Embora estejas tão manipulada, tão potenciada e tão alterada pelos engenheiros genéticos que, na realidade, não te deve restar quase nada dela.
Rosa Montero. Uma humana que se chamou Rosa Montero, repetiu mentalmente a rep, atordoada. Tão absorta que não prestou atenção ao ruído atrás de si.
– Eram mais do que horas de chegarem! Já não sabia do que continuar a falar – exclamou Dom Lago.
Husky levantou-se de um salto, empunhando a pistola. No umbral, estavam Yiannis, Gabi e Emma. Atrás deles, também com armas de plasma nas mãos, Fer, o homem da crina de cavalo, e um rapaz de uns dezoito anos, todo vestido de preto, sem dúvida outro terrorista. O rapaz apontava para a cabeça de Gabi e o barman tinha o cano da pistola encostado à nuca do arquivista.
– Já te disse que os fanáticos são maravilhosamente fiáveis. Eles nunca nos abandonam – riu-se o magnata. – Pousa a arma no chão, Husky.
– Sinto muito, Bruna. Apanharam-nos em casa de surpresa e… – disse Yiannis, contrito.
– Cala-te! – gritou Fer, empurrando a cabeça do arquivista com o cano da arma. A rep hesitou. Era bastante provável que conseguisse rebentar a cabeça de Fer ou do rapaz de preto antes de eles dispararem, mas ainda assim o sobrevivente teria tempo para executar o seu refém.
– Pousa a pistola no chão ou acabamos com eles. A começar pelo velho. Ou pelas miúdas. Qual delas preferes que matemos primeiro? Pode ser um jogo interessante – disse Lago.
Husky inclinou-se e pousou a pistola de plasma aos pés.
– Muito bem. Agora afasta-te alguns passos e põe as mãos na cabeça… E essa pessoinha desagradável e feia que trouxeste contigo que deixe o portátil e se ponha ao teu lado.
Bruna obedeceu, pondo a mão direita sobre a cabeça rapada e erguendo o braço esquerdo, de onde pendia o antebraço. Uma Gayo cabisbaixa e trémula juntou-se-lhe.
– Rep estúpida… Fizeste-me um buraco no nariz. Embora talvez fique interessante se lhe puser uma ponta de platina … E tudo por causa do raio dos reféns. Enfim, vamos fazer um pouco de magia – disse o magnata. E manipulou o seu telemóvel.
Ao fundo da sala, um painel de madeira sintética correu totalmente com um assobio suave, revelando um habitáculo retangular e sem janelas. A luz era branca e fria; as paredes, de um metal mate. Sentados no chão, apoiados à parede e com as mãos amarradas atrás das costas, estavam as doze vítimas do EJI ainda com vida. Não se via mais ninguém, ou mais nada, no cubículo, exceto um portátil pousado num atril, aquele que utilizavam para as transmissões, evidentemente. Rapidamente, Bruna procurou Lizard e os seus olhares enlaçaram-se. O inspetor estava muito magro, debilitado, com a barba crescida e sinais de golpes na cara. Acariciaram-se com os olhos e mergulharam um no outro, como só o tinham feito anteriormente no êxtase do sexo. Morrer com ele, pelo menos. Morrer junto dele seria um consolo.
Mas porquê morrer? Era preciso salvarem-se, era preciso saírem dali. Com esforço, desprendeu o seu olhar do de Paul e regressou à realidade.
– Pensámos terminar com um epílogo espetacular: a execução de todos os reféns. Seremos derrotados militarmente, mas não vos daremos a vitória moral. Acusar-se-á sempre os EUT de não terem sabido resgatar os prisioneiros – considerou Lago.
Ouviram-se alguns gemidos e lamentos provenientes das vítimas. Poucos, no entanto. Deviam estar emocionalmente esgotados, pensou a rep.
– Vocês as duas, vão ter com os reféns e ajoelhem-se junto deles – ordenou o homem-cavalo a Bruna e Ángela.
As duas obedeceram, colocando-se de joelhos numa das extremidades da fila. Lizard estava à direita da rep, a uma distância de três pessoas. A androide reparou que os prisioneiros estavam acorrentados à parede. O rapaz de preto aproximou-se delas e, pondo a pistola à cintura, prendeu os pulsos de Gayo atrás das costas com uma tira metálica de segurança. Depois, aproximou-se da detetive.
– Põe as mãos atrás – grunhiu.
– Tu próprio vais ter de pegar na minha mão esquerda – disse-lhe Husky.
Nesse momento, ouviu-se um gemido forte, quase um grito. Era a irmã de Lizard, que se agitava no chão, recuperando aos poucos os sentidos.
O barman deu um salto, voltou a cabeça para ver e rodou a pistola, disposto, sem dúvida, a disparar. O momento cristalizou-se; milésimos de segundo cujas possibilidades vertiginosas a rep era capaz de visualizar devido ao seu treino e à sua calma gelada. Todos os movimentos tinham de ser precisos, exatos. Atirou bruscamente o corpo para trás, esmagando o terrorista contra a parede e, com a mão que acabara de levar às costas, agarrou na pistola de plasma e disparou, sem a tirar da cintura do rapaz, fazendo-lhe voar os genitais. Puxou depois pela arma, apontando-a para Fer, que, atordoado, tomava consciência do que estava a acontecer, e abriu-lhe um buraco na testa. No chão, dobrado sobre si próprio, o rapaz de preto uivava de dor.
– Finalmente! – exclamou Yiannis, enquanto Emma se apressava a apanhar a pistola que o cadáver do barman ainda segurava.
– Ajuda-me a soltá-los – pediu Husky, que pousara a pistola de plasma no chão enquanto revistava os bolsos do Ins ferido e soluçante, à procura da chave magnética para abrir as fechaduras. – Aqui está – disse, levantando-a no ar.
Nesse momento, um tiro destruiu-lhe metade da mão direita. A rep deu um grito e a chave caiu ao chão. Voltou-se com um salto: a pequena Emma apontava para ela.
– Tu?
Yiannis e Gabi olhavam para a miúda, pasmados.
– Sou do EJI. Sempre fui. Sou a comandante Vingança. É o meu nome de guerra.
Bruna estremeceu porque a ferida lhe doía horrivelmente. O polegar, o médio e o indicador tinham desaparecido, juntamente com metade da palma. Pelo menos não sangrava, porque o plasma negro cauterizava. Mas estava incapacitada. Agora não lhe restavam mãos funcionais.
– Gabi… – disse Bruna, olhando para a pequena russa.
– Ela não sabia que pertenço ao EJI. Mas partilha a cem por cento as minhas crenças e os meus ideais. Porque nós as duas conhecemos bem o horror deste vosso mundo de que se sentem tão orgulhosos – explicou a falsa Emma.
– Por todos os demónios, Vingança, deixa-te de palavreado e dá um tiro nessa rep de uma vez por todas! – exclamou o magnata, irritado. – Já viste que é perigosa, não percas mais tempo.
– Cala-te, Lago. Inutilizei-a. Não pode defender-se. E quero que me oiça. Quero que saiba porque faço isto. Sim, sou uma traça. Nasci na Zona Zero de São Pedro de Atacama, no antigo Chile, um lugar envenenado pelas fábricas de hiperpolímeros, que ali se instalaram por causa do boro. Neste mundo de predadores, é triste termos um bem primário sem dispormos de poder suficiente para o defender. Roubam-nos, escravizam-nos, matam-nos. Como aconteceu durante a crise do Congo, quando os robôs exterminaram toda a população só porque o país tinha a maior reserva de columbite-tantalite da Terra.
– Isto é inacreditável! A sério que vais perder tempo a dar-lhe uma lição sobre injustiças históricas? O exército dos EUT está a chegar! Vocês, fanáticos, não têm dois dedos de testa! – rugiu o milionário.
– E tu também não os terás, Lago, se continuares a interromper-me, porque te rebentarei essa cabeça biónica asquerosa – disse Emma calmamente. – No deserto de Atacama, passadas as fábricas pestilentas e encostada à fronteira da zona seguinte, há uma faixa de terra onde não há nada. É aí que se amontoam, em acampamentos repugnantes, dezenas de milhares de pessoas que tentam fugir do matadouro. Foi lá que vivi os meus primeiros anos. À intempérie e sem outra companhia além da minha irmã mais velha. Não há ordem, não há ajuda, não há lei. Bandos de neosselvagens aterrorizam e matam. Um desses bandos levou a minha irmã e nunca mais a vi. Na altura, ela tinha catorze anos e eu, sete. Por isso faço isto. Por isso fazemos isto. E a Gabi viveu a mesma realidade, embora nunca vos tenha contado.
Durante um brevíssimo instante, Bruna imaginou o atroz bando de espetros que tinham encontrado na estrada a apoderar-se de uma menina de catorze anos. Estremeceu.
– Enganaram-te, Emma, ou como quer que te chames. Manipularam-vos. Não sei o que vos prometeram, mas é mentira. Como pudeste aliar-te a pessoas como Lago, aos capitalistas mais selvagens, aos verdadeiros responsáveis por esse horror? – perguntou a custo, porque a mão latejava-lhe tão dolorosamente que tinha de se esforçar para não gemer.
– Um passo adiante, dois passos atrás, já dizia Lenine. É necessário explorar as contradições do sistema. Nós somos aliados de Cosmos, com quem partilhamos ideais muito semelhantes. Ficaríamos com o controlo de metade da Terra.
– Cosmos também não pretendia dar-vos nada; pergunta a Lago. Usaram-vos como carne para canhão…
A rapariga abanou a cabeça:
– Eu sei o que sei. E sei que não temos outro remédio senão matar para não morrer. Pela Gabi, por amor a Gabi, ordenei que deixassem o Lizard para o fim porque, se ganhássemos, ter-lhe-ia perdoado a vida. E, pela mesma razão, também não queria ter de te executar, mas não me dás outra opção. Compreendes, não é verdade, Gabi? – acrescentou, olhando para a amiga. – Sangue por sangue.
A russa tinha o rosto lívido, desfigurado. Assentiu lentamente e murmurou:
– Sangue por sangue.
Emma voltou a olhar para Husky, respirou fundo, esticou o braço com a pistola e disparou. Como se fosse um sinal, de repente tudo se pôs em movimento. Ángela, ainda com as mãos amarradas atrás das costas, atirou-se na direção do cano da arma e, desviando a sua trajetória, recebeu o impacto destinado a Husky, caindo ao chão com um buraco no peito. Aproveitando a confusão momentânea, Gabi atirou-se a Emma e cravou os dentes no braço armado da amiga, que gritou e soltou a pistola. Yiannis apanhou-a, trémulo, enquanto a miúda russa espetava dois bofetões na pequena terrorista e se sentava em cima dela, imobilizando-a.
– Porque fizeste isto, porque fizeste isto?! – gritava Gabi, com a voz estrangulada pela raiva e pelas lágrimas.
– Traidora, miserável, como podes trair os teus…? – gemeu a falsa Emma.
– E tu, como te pode passar pela cabeça matar a minha família? – bramou a pequena selvagem.
Bruna ajoelhou-se junto da agónica Ángela. Bolhas sanguinolentas saíam-lhe da boca e, quando tentava respirar, ouvia-se um gorgolejar arrepiante.
– Ángela! Ángela! – gemeu Husky.
Os olhos pequenos e separados de Gayo olhavam para ela, enlevados. Com aquela adoração que anteriormente deixara a rep tão nervosa. Com aquele amor pelo qual dera a sua vida para salvar a de Bruna. Tentou falar, mas não conseguiu. Os seus lábios ensanguentados formaram uma palavra, sem som, que Bruna conseguiu reconhecer e que a impressionou. Uma palavra que lhe explodiu na cabeça e a levou a acariciar, consternada, a face da mulher com o canto da sua mão ferida. Doía. Ángela sorriu e o fervilhar do seu peito calou-se. Estava morta. E a rep nem sequer fora capaz de lhe dizer nada.
Pôs-se de pé, comovida. Yiannis e Gabi tinham levado Emma para o cubículo dos reféns e estavam a tentar prendê-la com a fita metálica que o terrorista ia pôr na rep.
– Cuidado, Bruna! – gritou Lizard.
A detetive voltou-se com um salto. Lago tinha-se soltado da máquina. A espécie de estojo transparente em que o seu corpo estava metido era agora um exoesqueleto capaz de se mover e de o transportar. O emaranhado de tubos que lhe saía da cabeça terminava numa caixinha preta que levava ao pendurão. A parede onde estavam os autómatos abriu-se em duas, revelando uma passagem por onde o magnata fugia. No outro lado do umbral, enquanto a parede voltava a fechar-se, o homem biónico sorriu:
– Acreditaste na história de não conseguir mover-me… És tão fácil de enganar como a tua mãe.
A abertura desapareceu e a parede voltou a parecer intacta. Bruna aproximou-se, tentando descobrir como abri-la. Mas como poderia fazê-lo se não tinha mãos? Nesse preciso instante, sentiu uma dor muito aguda no tornozelo. E teve a certeza de que alguma coisa corria pessimamente. Olhou para baixo: a tarântula mecanizada de Lago acabava de picá-la, mesmo por cima da bota. Deu um pontapé no engenho, que rolou com um ruído de lata, e depois perseguiu-o e começou a pisá-lo com vontade. Era um bicho tenaz, as patas articuladas agitavam-se, a carapaça de aço resistia. Finalmente, ouviu-se um estalido e metade do tórax afundou-se. Pequenas peças metálicas soltaram-se, as patas perderam a força e pararam. Husky respirava agitadamente, e não era só do exercício. Alguma coisa não estava bem dentro de si. Sentiu frio, calor. Véus de bruma cobriram-lhe os olhos. Atordoada, cambaleou até Lizard, que continuava acorrentado. Yiannis e Gabi tinham prendido Emma e o Ins ferido e tentavam descobrir como libertar os reféns. A rep deixou-se cair no regaço de Lizard e apoiou a cabeça no peito dele.
– Minha Bruna, o que tens?
Paul cheirava a sujidade, a suor, a dor. No entanto, por baixo dessas exalações atrozes sentia-se o cheiro da sua carne, esse aroma familiar a madeira do seu amado, do seu amante, que a envolvia numa pequena bolha protetora. Viu-se, num tempo distante, sentada nos joelhos de Lizard. Era como voltar a casa.
– O que te está a acontecer, Bruna?
Nem Paul podia abraçá-la nem ela podia usar os seus braços. Estavam ambos feridos, esgotados, amparados um no outro. Bruna levantou a cabeça, sentindo-se morrer, e murmurou:
– Que desastre…
Depois sorriu para Lizard e acrescentou:
– Mas salvei-te.
E desmaiou.