Epílogo
Eram nove em ponto quando Quique desativou a cortina eletrónica da sua lojinha. Bocejou, sentindo-se esgotado. Na noite anterior, tinha ido com uns amigos a um multiócio e na discoteca engatou uma crate toda fabo. Tinham bebido alguns cocktails de oxitocina e beijaram-se e estiveram no roço durante um bom bocado. Fora agradável e prometia muito mais, porque tinham combinado voltar a ver-se no sábado. Mas ainda era quinta-feira e já estava todo roto. Sabia que era uma tontice abrir a estas horas. A clientela do seu negócio aparecia mais tarde. Antes das dez ou mesmo das onze nunca aparecia ninguém. Ora bem, a loja só abrira há quatro meses e Quique investira todos os seus gês, e muitos mais gês que não tinha, no negócio. Devia a sua vida inteira aos bancos e de maneira nenhuma podia descuidar-se. Estava a passar por muitos apertos, mas aquela louca aventura empresarial era o seu sonho. Por isso, investia todas as horas no business com um rigor exemplar. A nova Presidente Gonçalves tinha anunciado alterações às leis fiscais em benefício dos rendimentos mais baixos e ajudas específicas aos JEP como ele, Jovens Empresários Principiantes. Vamos lá ver se era verdade e se ele conseguia passar a ter um saldo positivo.
Voltou a bocejar enquanto observava, através da montra estreita, a abertura das lojas do centro comercial que havia do outro lado da rua. A tudoloja e o serviço de mensagens já estavam a funcionar. O McDonald’s, onde à hora do almoço Quique engoliria apressadamente um hambúrguer de sucedâneo de vaca, ainda estava fechado e às escuras. Sonolento, olhou para os omnipresentes arcos amarelos da marca. Que curioso! Pareceram-lhe, pela primeira vez, as grandes asas de um pássaro em voo. Nessa altura, viu-a. Uma figurinha ágil e nervosa. Óculos de sol, botas de sola grossa, uma túnica furta-cor e esvoaçante até aos joelhos. Preparava-se para atravessar a rua, como se viesse em direção a ele. Não. Sim. Não. Sim, sim, sim. Vinha para a loja. Uma cliente a estas horas. Deu dois passos para trás para que a mulher pudesse abrir a porta.
– Olá.
– Olá.
Já desconfiava, não sabia bem porquê, mas, assim que a recém-chegada tirou os óculos, Quique confirmou que era uma tecno-humana. Pupilas de lâmina e olhos cinzentos. A rep pousou a mochila no balcão e a seguir, com um único movimento, tirou a túnica e atirou-a ao chão. Ficou parada sobre as suas pernas perfeitas, desafiadora, só com um sutiã e umas culottes desportivas metalizadas. Pela leveza e refinamento do corpo devia ser uma rep de cálculo, pensou ele. O que era estranho, porque não costumava ter clientes desse tipo. E que também não costumavam ter, como esta mulher, a cabeça rapada.
– O que queres fazer? – perguntou Quique.
– Quero que me tatues uma linha em volta do corpo, a começar pelo crânio, descendo pela testa, pelo meio da pálpebra do olho esquerdo, pela face, pelo pescoço, pelo peito, pelo abdómen, pela perna esquerda e pelo pé. E depois quero que subas da mesma forma por trás até o risco se unir na cabeça – explicou a pequena androide, decidida.
Bolas, que olhar penetrante, que fogo e que fúria. Que rep tão estranha! Assustava, apesar de ser uma miúda. Era melhor esmerar-se no desenho, pensou o tatuador para consigo, e as linhas retas não eram fáceis. Ligou a pistola injetora e sentiu-se contente. Os desafios entusiasmavam-no porque adorava o seu trabalho.
– Agrada-me. É fabo. Vai ficar-te a matar. Vamos a isso.