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NUNCA VI FRANCIS CRICK com um humor contido. Talvez na companhia de outra pessoa ele fosse assim, mas nunca tive razão para julgá-lo. Não tinha nada a ver com sua fama atual. Hoje em dia, muito se fala sobre ele, habitualmente com reverência, e algum dia ele poderá ser encaixado na mesma categoria de Rutherford ou Bohr. Mas isso não era verdade quando, no outono de 1951, eu vim para o Laboratório Cavendish da Universidade de Cambridge para me juntar a um pequeno grupo de físicos e químicos que trabalhavam nas estruturas tridimensionais das proteínas. Naquela época, ele tinha 35 anos e era quase completamente desconhecido. Apesar de alguns de seus colegas mais próximos perceberem o valor de sua mente ágil e penetrante, e de procurarem seus conselhos com frequência, ele, muitas vezes, não era querido, e a maioria das pessoas achava que falava demais.

O líder da unidade à qual Francis pertencia era Max Perutz, um químico nascido na Áustria, que veio para a Inglaterra em 1936. Ele colecionava dados de difração de raios X de cristais de hemoglobina havia mais de dez anos e estava começando a chegar a algum lugar. Contava com a ajuda de sir Lawrence Bragg, o diretor do Cavendish. Por quase quarenta anos, Bragg, vencedor do Prêmio Nobel e um dos descobridores da cristalografia, observava que métodos de difração de raios X elucidavam estruturas de dificuldade crescente. Quanto mais complexa a molécula, mais feliz Bragg ficava quando um novo método permitia sua elucidação.1 Dessa forma, nos anos imediatamente posteriores ao pós-guerra, Francis estava vidrado na possibilidade de elucidar as estruturas das proteínas, as mais complicadas de todas as moléculas. Frequentemente, quando os deveres administrativos permitiam, ele visitava o escritório de Perutz para discutir os dados recém-descobertos sobre raios X. Depois, voltava para casa para ver se conseguia interpretá-los.

Em algum lugar entre o teórico Bragg e o experimental Perutz estava Francis, que fazia experimentos ocasionais, mas, com maior frequência, submergia nas teorias, tentando determinar estruturas de proteínas. Muitas vezes, se deparava com algo novo, ficava muito entusiasmado e falava disso em seguida para qualquer um que pudesse ouvi-lo. Um dia depois, normalmente, percebia que a teoria não funcionava e voltava para seus experimentos, até que o tédio gerasse uma nova investida contra a teoria.

Havia um componente dramático relacionado a essas ideias. Todas elas contribuíam muito para animar a atmosfera do laboratório, onde os experimentos levavam geralmente vários meses, até alguns anos. Isso se deu, em parte, por causa do volume da voz de Crick: ele falava mais alto e rápido do que qualquer outra pessoa e, quando ria, era fácil localizá-lo dentro do Cavendish. Quase todos gostávamos desses momentos maníacos, em especial quando tínhamos tempo de ouvi-lo com atenção e dizer-lhe sem rodeios quando perdíamos o curso de sua argumentação. Mas havia uma exceção notável. As conversas com Crick aborreciam sir Lawrence Bragg com frequência, e o som da sua voz costumava bastar para fazer com que Bragg mudasse para uma sala mais protegida. Apenas de vez em quando ele vinha para o chá no Cavendish, porque isso significava suportar o vozeirão de Crick. Mas nem assim Bragg estava totalmente a salvo. Em duas ocasiões, o corredor do lado de fora de seu escritório inundou de água que jorrava de um laboratório onde Crick trabalhava. Francis, com seu interesse na teoria, não apertara o suficiente os tubos de borracha ao redor da bomba de sucção.

Na época da minha chegada, as teorias de Francis haviam se espalhado para além dos limites da cristalografia de proteínas. Qualquer coisa importante o atraía, e ele visitava outros laboratórios com frequência para ver os novos experimentos que haviam sido realizados. Apesar de geralmente ser educado e ter consideração com colegas que não percebiam o real significado de seus últimos experimentos, nunca escondeu esse fato deles. Quase de imediato sugeria uma bateria de novos experimentos que poderiam confirmar sua interpretação. Além disso, não conseguia evitar dizer na sequência, para todos que pudessem ouvi-lo, como sua ideia nova e inteligente poderia fazer com que a ciência avançasse.

Como resultado, havia um medo não declarado, ainda que real, de Crick, em especial entre seus contemporâneos que ainda precisavam estabelecer uma reputação. O modo ágil como ele apreendia os fatos e tentava reduzi-los a padrões coerentes fazia com que seus amigos muitas vezes ficassem com frio na barriga, receando que em um futuro próximo ele fosse bem-sucedido e expusesse ao mundo suas mentes confusas – escondidas do público pelas maneiras respeitáveis e pelo discuso polido dos colegas de Cambridge.

Apesar de ter direito a uma refeição por semana no Caius College, ele ainda não era bolsista de nenhuma faculdade. Isso fora em parte escolha sua. Claramente não queria ser sobrecarregado pela supervisão desnecessária de tutelados não graduados. Outro fator era sua risada, contra a qual muitos professores poderiam se rebelar se sujeitados à sua explosão trepidante mais do que uma vez por semana. Estou certo de que isso chateava Francis de vez em quando, embora obviamente ele soubesse que a vida na High Table é dominada por homens pedantes de meia-idade, incapazes tanto de impressioná-lo como de lhe ensinar qualquer coisa que valesse a pena.2 Havia sempre o King’s College, ostensivamente não conformista e capaz de absorvê-lo sem que houvesse perda da individualidade de ambos. Mas, apesar do grande esforço de seus amigos, que sabiam que ele era uma ótima companhia para o jantar, eles nunca foram capazes de esconder o fato de que uma observação casual diante de um copo de sherry poderia abrir uma brecha para que Francis entrasse em suas vidas.


1 Para uma explicação mais clara da técnica de difração de raios X, veja John Kendrew, The Thread of Life: An Introduction to Molecular Biology (1966), p.14.

2 A High Table é uma mesa exclusiva, muitas vezes em plataforma elevada, para professores, estudantes de pós-graduação e convidados nos refeitórios de algumas universidades. (N.T.)