Relações Culturais entre o Brasil e a Europa30
O presente tema terá que sofrer, naturalmente, uma tríplice restrição. Seria melhor admitir, desde o princípio, que ele será desenvolvido por um brasileiro, que é sociólogo por profissão e socialista por convicções políticas. Além disso, teremos que lidar com uma realidade que se presta a múltiplas interpretações. Pois, o que é a “Europa”? E o que é a “América”? No fundo, existem várias “Europas” e diversas “Américas”, tanto cultural quanto historicamente. Pode-se fazer uma imagem da Europa em Buenos Aires, outra em São Paulo e outra marcadamente distinta em Nova York ou em Porto Rico; e mesmo nessas cidades não faltam condições étnicas, econômicas e culturais capazes de introduzir profundas variações no tratamento do tema. É por respeito à precisão geográfica que se diz “América” e “Europa” no singular, reunindo em cada palavra o passado e o presente, o tipicamente uniforme e o tipicamente variável.
Em nossa exposição, cumpriria apenas reter dois fatos mais relevantes. Em primeiro lugar, que as imagens da Europa se têm alterado, continuamente, no espaço e no tempo, em função das condições de entrosamento do Novo Mundo nas atividades econômicas e culturais dos países europeus. E, em segundo lugar, que a Europa e a América pós-colombiana se fundiram sempre, ainda que em grau variável, em um mesmo fluxo de existência humana. Assim as primeiras imagens da Europa foram elaboradas pelos povos nativos, que sofreram o impacto da “Conquista” e da “Colonização”. Elas não foram favoráveis, em todos os pontos, ao homem branco. Para exemplificarmos com a situação brasileira, o reconhecimento da supremacia dos colonizadores se fez acompanhar de críticas a certos valores, que contrastavam com a concepção do mundo dos nativos. Segundo relata Abbivelle, os Tupinambá explicavam a sua inferioridade ergológica e técnica em face dos europeus por meio de um descuido de seu ancestral mítico. “Apresentaram esses profetas ao nosso pai, do qual descendemos, duas espadas, uma de madeira e outra de ferro e lhe permitiram escolher. Ele achou que a espada de ferro era pesada demais e preferiu a de pau. Diante disso, o pai de que descendestes, mais arguto, tomou a de ferro. Desde então fomos miseráveis... etc.” (trecho da arenga do chefe Japi-açu in Abbeville, História da missão dos padres capuchinhos do Maranhão, p. 60-1). Léry, por sua vez, aponta a curiosidade de um velho tupinambá, que lhe perguntara: “Por que vindes vós outros, mairs e perós (franceses e portugueses), buscara lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra?”. A distância cultural e a avaliação negativa se evidenciam através do seguinte diálogo, que convém reproduzir na íntegra: “Respondi que tínhamos muito mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas que dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas plumas. Retrucou o velho imediatamente: ‘E porventura precisais de muito?’. Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados. ‘Ah!’, retrucou o selvagem, ‘tu me contas maravilhas’, acrescentando depois de bem compreender o que lhe dissera: ‘Mas esse homem tão rico de que me falas não morre’. Sim, disse eu, morre como os outros. Mas os selvagens são grandes conservadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: ‘E quando morre para quem fica o que deixa?’. Para seus filhos, se os têm, respondi; na falta destes, para os irmãos ou parentes mais próximos. ‘Na verdade’, continuou o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, ‘agora vejo que vós outros mairs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem. Não será a terra que vos nutria suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que, depois da nossa morte, a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados” (cf. Léry, Viagem à terra do Brasil, p. 154-55). Relatos como esse é que fizeram o sábio Montaigne afirmar, antes do aparecimento das ciências sociais, que “cada um chama bárbaro o que não é de seu uso”...
Essas imagens iniciais foram se atenuando e se modificando com os tempos. Na verdade, os europeus se viam de um ângulo: carregavam consigo a dura tarefa de transplantar o cristianismo e a vida civilizada para as rudes plagas americanas. Os nativos e africanos, reduzidos à escravidão – e mais tarde também os brancos, que substituíram os pioneiros da dominação colonial – descreviam a mesma história de outra maneira... O que era heroico e grandioso, para uns, era nefando e detestável para os outros. Nem sempre a violência pode ser retribuída com a violência. Em nenhuma circunstância, porém, pode ela gerar a simpatia e a compreensão entre os homens. Contudo, em quase todas as regiões da América acabaram prevalecendo os europeus e os seus descendentes, identificados com os ideais de vida transplantados da Europa. Onde a paisagem se transformava, com as plantações, as novas povoações de constituição étnica e cultural heterogênea, os núcleos de mineração ou de criação, surgiram centros de vida humana alimentados por aspirações e ideais de existência social conformes aos padrões culturais de um ou de outro povo europeu colonizador. Formou-se, assim, uma profunda articulação entre o novo e o velho mundo, que o gradual desenvolvimento das cidades iria acentuar em quase todos os sentidos, do vestuário aos utensílios domésticos, às ideias políticas, aos sentimentos religiosos, às pretensões literárias.
Nesse processo, dois fenômenos assumiram uma expressão marcante. De um lado, a identificação constante dos marcos de “vida civilizada” com a influência cultural europeia. A evolução econômica e política dos países americanos se fez de modo a favorecer as tendências de assimilação dos valores culturais europeus. A colonização criou, de fato, situações e problemas sociais que precisaram ser resolvidos através das técnicas culturais incorporadas à herança civilizatória dos países colonizadores. Os agentes da colonização souberam aprender aqui e ali com os nativos. Beneficiaram-se, particularmente, com os conhecimentos que estes possuíam do meio natural circundante, de algumas técnicas adaptativas mais eficientes e de certas instituições sociais, que favoreciam seja a instalação dos brancos nas terras americanas, seja a acomodação e a dominação colonial dos povos nativos ou transplantados para cá, na condição de escravos. As técnicas de organização e de exploração das atividades econômicas, as técnicas administrativas e de organização estatal, as formas de dominação e de ordenação das relações sociais não só foram transferidas, sempre que possível, para o novo meio natural e humano, como acabaram desempenhando, dentro dele, funções comparáveis ou parecidas com as que preenchiam nas sociedades europeias. De outro lado, onde a miscigenação não se seguiu de uma integração social de caráter orgânico, separaram-se dois estilos de vida nítidos. Um, bem próximo do padrão cosmopolita europeu, como acontece nas médias e grandes cidades americanas do passado e do presente. Outro, bem próximo dos padrões de existência social de povos nativos, como ocorre, de forma extrema, em diversas regiões de países como o Paraguai e a Bolívia ou de modo mitigado com referência às populações caboclas brasileiras. Onde os dois estilos de vida coexistem, no mesmo espaço social, a sensibilidade contra a ordem vigente é acentuada no seio das populações brancas ou nas camadas dominantes, cujos componentes aspiram a uma existência antiprovinciana. A Europa se confunde com a própria “civilização” e passa a simbolizar a essência de todo refinamento de vida material ou moral. Onde a ordem social urbana progrediu com intensidade, isso não sucede. Mas respira-se, nesses centros, uma sutil nostalgia da Europa, muito forte nos círculos que possuem recursos para viajar ou manter alguma espécie de intercâmbio com países como a França, a Inglaterra, a Alemanha, Portugal ou Itália. Nessas condições, é possível assinalar, como um dos fatores da formação colonial europeia dos países americanos, a tendência para conservar e até para multiplicar as ligações e os contatos com os países europeus. Sob este aspecto, poder-se-ia afirmar que a Europa se prolonga na América e que nesta se constituiu um sentimento, muito sólido, de identificação emocional e espiritual com os antigos países colonizadores e com todo o sistema civilizatório que eles representam.
A explicação dessa tendência é relativamente simples. Ela se encontra nas próprias condições que cercaram a formação dos Estados independentes nas diversas regiões da América. Praticamente, as populações voltadas para a influência intelectual europeia são constituídas por descendentes das antigas estirpes dos pioneiros colonizadores ou das famílias recentemente imigradas da Europa. Os seus interesses sociais, na economia ou na política, levam-nos a desejar a importação e a implantação de hábitos europeus nas comunidades americanas. Merece especial relevo a circunstância de que os movimentos de independência nacional se processaram de modo e excluir a atividade contínua e profunda de tensões coloniais dirigidas contra a Europa. A eclosão de atitudes xenófobas se restringiu, em quase todos os países americanos, aos períodos imediatos à luta pela emancipação nacional. Logo depois, as conveniências e os interesses sociais das camadas dominantes exigiram a valorização dos ancestrais e, por conseguinte, das próprias virtudes dos chamados povos civilizadores. Em sociedades etnicamente heterogêneas, nas quais a descendência e o parentesco possuem uma importância muito grande como fonte de prestígio social, isso era inevitável. Os problemas econômicos, administrativos e políticos agiam no mesmo sentido, pois sua natureza complicada impunha a importação de técnicas culturais já exploradas, com aparente sucesso, nas sociedades europeias. Em consequência, não se formaram, com base nos movimentos xenófobos ou nacionalistas, atitudes de ambivalência para com a herança cultural e a influência civilizatória da Europa. As manifestações de ressentimento, que se evidenciam em determinados países americanos, contra o inglês, o espanhol, o português ou o francês, principalmente nas esferas da etiqueta e dos padrões de vida intelectual, não possuem um conteúdo antieuropeu. Ao contrário, elas nascem da assimilação e da supervalorização de certos padrões tipicamente europeus, que não encontram uma correspondência adequada nas relações dos europeus com os americanos do sul, do centro ou do norte. De modo que, em vez de conduzirem a atitudes de rejeição em face da tradição europeia, acabam produzindo o inverso: uma fidelidade muito maior dos segundos às normas e às expectativas de comportamento estabelecidas por aquela tradição.
A conclusão que se pode tirar, dessa rápida análise, consiste em que os povos americanos se representam como rebentos novos e prolongamentos autênticos da civilização europeia. Um escritor brasileiro definiu com penetração e lucidez essa situação cultural: “Nós, brasileiros – o mesmo pode-se dizer dos outros povos americanos – pertencemos à América pelo sedimento novo, flutante, do nosso espírito, e à Europa, por suas camadas estratificadas. [...] O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação é europeia” (Joaquim Nabuco, Minha formação, p. 40). Na Europa, a América tanto poderá ver as raízes de uma parte de seu passado étnico e cultural mais longínquos quanto um esboço do seu próprio futuro em gestação. Tudo depende da maneira de encarar as coisas. Algo, porém, é certo: o processo civilizatório, que se iniciou na Europa, encontra nos povos americanos condições favoráveis à plena expansão e florescimento.
Isso nos leva a certos temas, de gravidade, aos quais não seria lícito escapar. O primeiro deles poderia ser formulado da seguinte maneira: a chamada civilização ocidental possui requisitos suficientes para justificar as inclinações dos países novos da América pelas formas culturais europeias? Vivemos uma fase da história em que o julgamento dessa civilização está atingindo os extremos mais duros e mais crus. A experiência colonial levou povos inteiros, na Ásia, na África e na Oceania, a elaborar avaliações completamente negativas ou então a defender atitudes ambivalentes em face dos valores culturais europeus. Líderes como Ghandi e Nehru assinalam a pobreza da civilização ocidental, no plano ético-religioso; chefes como Kenyata chegam à convicção de que somente a violência subministra um corretivo às ambições econômicas dos europeus, incapazes de transferir mores de sua cultura ao tratamento e à compreensão dos povos coloniais; os resultados das investigações etnológicas comprovam que, em qualquer região do mundo, é possível encontrar sociedades dotadas de certos elementos e complexos culturais sob muitos aspectos mais complicados, eficientes e estáveis que os seus similares europeus. Em contraste, deparamos na América um quadro diferente. Mesmo pessoas com treinamento sociológico e empenhadas na luta pelo progresso político-social de seus países defendem o ponto de vista de que “nosso ideal continua sendo – como o foi para nossos heróis civis – a europeização das condições de nosso desenvolvimento coletivo” (Raul Orgaz, Sociología argentina, p. 122). Em que repousa essa lealdade para com os valores culturais europeus?
Já procuramos sugerir, acima, que é na própria educação dos descendentes dos antigos colonizadores, em razões práticas e na continuidade cultural que existe entre os povos da América e da Europa. Mas há outra razão, de maior importância, que precisa ser tomada em conta. Na história cultural do gênero humano, a civilização ocidental ocupa uma posição singular. Sem escolhermos gradações valorativas, estamos em condições de afirmar que nenhuma outra civilização conseguiu expandir-se em tantas direções e de uma forma tão complexa. Doutro lado, é única quanto ao relevo que confere à pessoa, como centro de gravitação da vida humana, seja nas impulsões individualistas de liberdade espiritual social, seja nas aspirações coletivas de organização das fontes de segurança econômica, social e política. Apesar das limitações de sua análise histórica e do etnocentrismo germânico-cristão de sua fórmula, Hegel descortinou com genialidade esse fato, ao atribuir aos povos europeus a formação da consciência de que o homem enquanto homem é livre. Em síntese, as técnicas culturais e os valores sociais incorporados ao sistema civilizatório supranacional europeu oferecem, por si mesmos, uma justificação para aquela lealdade, que é afetiva nos seus fundamentos, mas que não deixa de ser racional nos seus fins.
A transferência das técnicas e valores europeus encontra obstáculos sociais e culturais nos países americanos. Mas esses obstáculos não possuem força suficiente para obnubilar a significação e a importância das soluções descobertas na Europa para a maioria dos problemas que afetam a existência em sociedade. Os móveis que inspiravam os grandes movimentos e processos históricos europeus – da revolução político-econômica burguesa à elaboração de uma concepção racional do mundo, com seus correlativos culturais: explicação científica e a secularização das atividades artísticas e filosóficas – estão presentes nas tentativas de europeização da América. Por isso, compreende-se melhor, nos países americanos, os conteúdos e os limites morais da civilização europeia. Essa civilização industrial e científica, talvez por causa mesmo do grau de racionalização e de secularização alcançado por suas manifestações de vida intelectual e prática, não é avessa à dimensão ética do humano. Muito ao contrário, debate-se em crises profundas e contínuas, cujo sentido não é outro senão o de que a moralidade se insere dentro dela, no terreno da ação – não no da especulação teórica, do dogma ou do mito. E, além disso, de uma ação que não se desenrola em um plano único – o religioso, por exemplo – mas que se desenvolve em todos os níveis de vida cultural e social. O aperfeiçoamento a que dentro dela se aspira não é contemplativo, mas ativo. Exprime-se nos movimentos sociais – raramente na inquietação puramente individual – e quando é conquistado beneficia, diretamente, ao maior número, refletindo-se na constituição da sociedade como um todo.
O segundo tema diz respeito à propalada situação de crise em que se encontram os países europeus. De vários modos, autores como Spengler, Jaspers, Ortega y Gasset e tantos outros tentam demonstrar que esses países estão, quando menos, em vias de encerrar um ciclo civilizatório, caracterizável histórica e culturalmente. Ora, uma civilização em crise não seria uma civilização incapaz de solver os problemas humanos, que se agitam em seu seio? A questão, porém, não se nos apresenta dessa maneira. O exame das causas e dos efeitos do que se convencionou chamar de crise da civilização ocidental não caberia nos limites do presente trabalho. Gostaríamos de salientar, apenas, alguns tópicos, que permitem esclarecer como encaramos a posição da Europa nas atuais circunstâncias. Em parte, o diagnóstico pessimista de muitos intelectuais modernos se prende a alterações da ordem social vigente nos países europeus, as quais a maioria deles não conseguiu interpretar corretamente. É penosa a tarefa de acompanhar as indecisões e inseguranças de um espírito tão bem dotado, como o de Jaspers, por exemplo, nos meandros que ele próprio cria para se explicar processos histórico-sociais, que não possuem a natureza suposta nas interpretações que desenvolveu. Podemos, no entanto, deixar tais questões de lado, pois elas incidem em outro domínio: como os europeus veem a Europa... Outros intérpretes, principalmente economistas e sociólogos, chegam a resultados comparáveis, por outros meios. Parece-lhes que a Expansão do mundo ocidental é um capítulo da história da Europa, encerrado quanto a alguns países ou em vias de liquidação quanto a outros. Isso não é inverídico, do ponto de vista geográfico. Doutro lado, também é verdadeiro que a hegemonia econômica e política tende a escapar, de forma crescente, aos países europeus. Mas reduz-se a isso a dinâmica interna de um sistema civilizatório?
Pensamos que não. Segundo supomos, a chamada expansão do mundo ocidental não é um mero episódio geográfico nem uma simples aventura colonial. O deslocamento de pessoas, de técnicas culturais e de valores sociais que ela pressupõe está ainda em pleno processo. E os efeitos desse processo não possuem um termo estático definível. O que se pode dizer, com relativa segurança, é que ela alterou as fronteiras culturais da Europa e deu origem a focos novos de elaboração original da civilização ocidental. Muitas inovações e invenções, essenciais para a persistência e o enriquecimento dessa civilização, não surgem mais somente nos países europeus. Mas nos países que se formaram graças à expansão da Europa Ocidental, como os Estados Unidos, o Canadá ou a Austrália, e em países que passaram por intensa ocidentalização, como a Rússia, a China, o Japão, a Índia etc. Sob este aspecto, portanto, pode-se admitir perfeitamente que a expansão do mundo ocidental, como um processo civilizatório, nem sempre encontra barreiras nos processos econômicos e políticos que estão modificando o sistema de acomodações coloniais e de relações internacionais, produzido pelo capitalismo comercial e industrial.
Além disso, é preciso considerar a questão de outro ângulo. Será que as alterações que se operaram nos ajustamentos coloniais e internacionais põem fim à atividade criadora original dos países europeus como núcleos civilizadores? Pouco são os elementos que permitem responder a essa pergunta no presente. Eles sugerem, ainda assim, que para os dinamismos inerentes ao tipo de civilização nascido dos impulsos industriais, da aplicação dos conhecimentos científicos e da universalização das garantias sociais é essencial a concorrência entre vários centros de produção criadora de inovações culturais, capazes de exercer estímulos e influências civilizatórias definidos. Sob este prisma, a posição da Europa tende a se preservar, embora os sucessos econômicos e políticos restrinjam, naturalmente, sua esfera de ação. A hegemonia anterior repousava em condições que podem, agora, ser reconhecidas como anormais, com referência a esse tipo de civilização.
Por fim, dois fatores internos contribuem para manter a atividade e o ritmo dos dinamismos que asseguram a expansão e a integração do sistema civilizatório europeu. De um lado, sabe-se que os efeitos da elaboração da concepção científica do mundo estão longe de ter atingido seus limites previsíveis. Eles progrediram muito nas esferas de relação do homem com as forças naturais e quase nada no que concerne à consciência racional e à capacidade de controle deliberado das forças psicossociais. As condições criadas pela transformação do sistema de acomodações coloniais e de relações internacionais são de molde a produzir novas necessidades prementes a favorecer a tendência a extensão das técnicas científicas de explicação e de controle a todas as situações em que isso for possível. De outro, como salienta Kroeber, a civilização europeia é multinacional. Os pontos culminantes e as elevações mais altas das manifestações da civilização variam e se compensam de uma nação para outra, como se existisse “uma configuração polifônica para a civilização supernacional como um todo” (cf. Configurations of culture growth, p. 841). Se essa caracterização for considerada legítima – como nós a supomos – a imagem corrente do declínio da civilização ocidental terá que sofrer várias retificações. Uma delas, talvez, a mais importante, se refere às consequências de adversidades que afetam os países europeus em escala variável e somente em certos setores vitais, não todos. Parece que ambos os fatores fundamentam, em conjunto, a convicção de que a modificação das condições em que se manifestavam as influências civilizatórias da Europa é insuficiente para provocar a paralisação da atividade criadora, que vinha enriquecendo o sistema civilizatório europeu.
O terceiro tema compreende os aspectos mais recentes e instáveis da dinâmica cultural descrita. A Europa terá recursos e meios para se ajustar, construtiva e organicamente, ao novo mundo cultural, que nasceu de suas influências remotas ou recentes, mas que se afirma sobre a ruína de sua hegemonia econômica e política? A resposta a essa pergunta também não encontra base sólida. Os sucessos do passado demontram que o sistema civilizatório europeu possui grande plasticidade e põe em movimento os mais complexos e sutis recursos da imaginação humana. O que agora se impõe é algo delicado. Trata-se de uma mudança de atitudes demasiado radical para os que sempre agiram e se consideraram os representantes da civilização. Aceitar que as nações nascidas dos empreendimentos colonais ou dos capitais e técnicas europeus são focos de elaboração original da mesma civilização que impera na Europa equivale a admitir o fim da influência civilizatória exclusiva, monolítica e unilateral dos países europeus. Contudo, isso parece estar ocorrendo. Os ingleses, especialmente, revelam-se grandes mestres, nesse jogo de paciência e de jovialidade amadurecida, no intercâmbio com as nações novas ou com as velhas civilizações revitalizadas pelo Ocidente. As ciências humanas, por sua vez, estão contribuindo para facilitar esse processo de reajustamento. Mesmo em zonas nas quais a fricção ainda não se tornou aguda, surgem atitudes de compreensão e de respeito, que antigamente se restringiam aos epigramas do Bom selvagem. Tome-se, como exemplo, a seguinte afirmação de Leenhardt, que tem por objeto nativos de Nova Caledônia: “Pois se ela [a sociedade canaca] tem conservado tanto do seu passado em seus próprios progressos, é porque possui em si elementos muitos antigos, mas essenciais ao homem. Percebem-se entre eles um trabalho de aculturação para estabelecer um intercâmbio normal entre sua sociedade e a nossa; uma outra aculturação, em sentido inverso, é necessária de nossa parte, se nós quisermos entrar em contato com sua mentalidade, e descobrirem em sua riqueza primeira os valores que nós acreditávamos prescritos” (Gens de la grande terre, p. 8).
Essa aculturação em sentido inverso afigura-se-nos essencial para o destino da Europa e da civilização que ela representa, com seus novos rebentos. Somente ela poderá produzir a modificação de atitudes que permitirá o início de uma nova espécie de influência construtiva e moderadora das nações europeias. Entre os dois proselitismos gigantescos, que extremam o mundo moderno, o dos russos e o dos norte-americanos – inspirados, igualmente, em valores de origem europeia, mas dotados de forças de expansão extraeuropeia – é necessário que se elevem fatores ativos de equilíbrio cultural e de preservação dos ideais ocidentais de liberdade e de respeito à pessoa humana, únicas fontes possíveis de justificação moral da democracia e do socialismo. Isso significa que, mesmo nas condições mais adversas, a sorte da civilização ocidental terá que se decidir na Europa: e que os países latino-americanos jamais poderão se desinteressar de suas antigas metrópoles e do papel que as nações europeias ocupam no tabuleiro da política mundial. Por outro lado, sucessos recentes da política continental americana, em particular o que acaba de acontecer com um regime legitimamente constituído na Guatemala, comprovam que será difícil a evolução política autônoma dos países latino-americanos, sem um concurso corajoso, compreensivo e estimulante dos países europeus.
De acordo com as opiniões sustentadas neste trabalho são amplas e profundas as ligações da América com a Europa. Delas resultam duas afirmações de ordem geral: 1º) a América se projeta afetiva e espiritualmente na Europa por várias razões, de natureza étnica, cultural, econômica e política; 2º) não são só as afinidades eletivas e o passado histórico que garantem essa projeção; há interesses, alguns regionais, outros universais, que nos levam a uma identificação estreita com o destino da Europa. Na realidade, é tão essencial para nós quanto para os europeus, que as novas bases de estabilidade da civilização ocidental possam assegurar vias ainda mais profundas de aproveitamento da experiência histórica e dos recursos intelectuais das veneráveis nações europeias. Em suma, vemos a Europa à luz da necessidade e do esplendor da ação civilizadora, que fez dela o autêntico milagre dos tempos modernos.
30 Comunicação redigida para o Congresso Internacional de Escritores, realizado em São Paulo de 9 a 15 de agosto de 1954, do qual o autor foi um dos relatores oficiais. Foi publicado, sob o título: “Como a América vê a Europa”, em português, francês e inglês, e transcrito em Congresso Internacional de Escritores e Encontros Intelectuais, São Paulo, Sociedade Paulista de Escritores e Editora Anhembi, 1957 (p. 194-232, com os debates provocados pela comunicação).