Capítulo XII

Atitudes e Motivações Desfavoráveis ao Desenvolvimento76

Se nos fosse dado escolher o tema do presente trabalho, evitaríamos associar as atitudes e as motivações à discussão sociológica dos problemas de desenvolvimento. Os sociólogos progrediram muito pouco no estudo desses problemas, e ainda não dispomos de conhecimentos comprovados sobre a influência dinâmica dos fatores psicossociais nos processos de desenvolvimento social. No entanto, a importância científica e prática do assunto é tão grande que justifica os riscos de um debate baseado em implicações teóricas e em presunções de teor conjetural. Ainda que não seja recomendável discutir questões de caráter geral, vimo­-nos forçados a situar certos problemas, ligados à conceituação e ao estudo do desenvolvimento social na sociologia. Em seguida, dedicamos maior atenção aos dois temas básicos da presente contribuição: as relações entre atitudes, motivações e desenvolvimento social; os efeitos negativos de atitudes e motivações sobre o desenvolvimento social.

1 – O estudo da mudança social, do desenvolvimento social e da evolução social na sociologia

Os conceitos de mudança social, de desenvolvimento social e de evolução social encontraram largo uso desde o aparecimento da sociologia. A crítica ao organicismo e ao evolucionismo, porém, criou ambiente pouco favorável ao último conceito e às preocupações teóricas que ele estimulava. De outro lado, a crítica às implicações éticas, herdadas pela sociologia da filosofia social, foi desfavorável ao segundo conceito, aparentemente vinculado à noção de “progresso” e às preocupações que ela fomentava.

Em nossos dias, está­-se processando ampla revisão de críticas prematuras ou infundadas, que privaram a sociologia, a psicologia social, a antropologia etc. de conceitos, princípios e postulados de evidente valor heurístico e pragmático. Entre outras consequências, essa revisão vem reabilitando a importância do conceito de evolução social e das hipóteses que permitam assegurar o seu emprego positivo nas ciências sociais. Interesses econômicos e políticos, por sua vez, deram ao conceito de “desenvolvimento” (e aos problemas correspondentes) um lugar tão relevante, nos círculos leigos, que os cientistas sociais voltaram a preocupar­-se pelo assunto. Parece fora de dúvida que existem fundadas razões teóricas e práticas para justificar esta atitude. Para se estabelecer um novo entendimento fecundo, sobre essas coisas, é preciso, todavia, superar certas dificuldades básicas, que continuam a empobrecer o horizonte intelectual dos sociólogos e suas iniciativas, na investigação dos fenômenos de dinâmica social.

A primeira dificuldade a enfrentar relaciona­-se com o próprio conceito de “desenvolvimento”. Entre os cientistas sociais, só os psicólogos e os economistas conseguiram introduzir alguma clareza e uniformidade em seu uso corrente. Na sociologia, mantêm­-se certas confusões elementares, que se prendem ao emprego abusivo e confuso de conceitos como “mudança social” e “evolução social”. Em sentido lato, pode definir­-se, sociologicamente, desenvolvimento social como “multiplicação” das formas de interação numa determinada sociedade, acompanhando o desenvolvimento cultural”.77 Trata­-se de um conceito inclusivo, que compreende todos os fenômenos de mudança que ocorrem através da diferenciação estrutural e da reintegração funcional de sistemas sociais globais concretos, considerados em condições particulares de tempo e de espaço. Por isso, ele abrange os aspectos dinâmicos das alterações da estrutura, da organização e dos mecanismos de controle de dado sistema social em certo lapso de tempo.

A questão básica diz respeito ao modo de distinguir os conceitos de “desenvolvimento social”, “mudança social” e “evolução social”. A noção de mudança social é mais genérica, aplicando­-se a quaisquer espécies de alterações do sistema social, vistas independentemente de condições particulares de tempo e de espaço. A mudança social pode ser progressiva ou regressiva78 e, o que é essencial em nossa apreciação, de sua qualidade é que depende a caracterização do desenvolvimento social. Este se manifesta sempre que determinado sistema social sofra modificações relevantes para a realização do tipo social que lhe seja inerente ou para o qual tenda de forma irreversível. A noção de evolução social é ainda mais complexa. Ela se aplica aos processos de mudança progressiva, que sejam relevantes para a perpetuação ou a transformação dos tipos sociais propriamente ditos, para os quais tenda, de modo variável mas constante, em virtude de seus requisitos estruturais e funcionais, determinado conjunto de sistemas sociais globais. Isso quer dizer, em outras palavras, que os dois conceitos, de desenvolvimento social e de evolução social, descrevem os mesmos fenômenos em níveis diferentes da realidade social. O primeiro apanha os processos de mudança social progressiva no nível histórico, tal como eles transcorrem em dado sistema social em certo período de tempo. O segundo apreende os processos de mudança social progressiva no nível supra­-histórico, no qual se pode abstrair e analisar os fenômenos de formação, duração e sucessão dos tipos sociais.

A segunda dificuldade é de natureza metodológica. Os problemas que se colocam à análise sociológica variam de acordo com a perspectiva de que se encarem os fenômenos de dinâmica social. Grande parte da confusão, que se estabeleceu no uso dos conceitos de mudança social, de desenvolvimento social e de evolução social, provém da negligência de distinções metodológicas fundamentais.

Excetuando­-se os processos sociais recorrentes, com seus efeitos psicossociais ou socioculturais, os demais aspectos dinâmicos da vida social abrangem fenômenos da alteração da estrutura, organização e funcionamento do sistema social. A rigor, todo conhecimento positivo, a respeito deles, cabe no âmbito da teoria da mudança social. Contudo, nem todos os problemas de mudança possuem a mesma natureza. Há conveniência em distingui­-los com a precisão possível e, inclusive, em qualificá­-los apropriadamente, como acontece com os fenômenos de mudança descritos através dos conceitos de desenvolvimento social e de evolução social.

Há fenômenos de mudança social que podem ser vistos e analisados independentemente da construção e da interpretação de regularidades de sequência. Estão nessa categoria os fenômenos de alteração da estrutura e do funcionamento do sistema social: 1º) que podem ser representados como condições dinâmicas instáveis da vida social em geral ou do modelo típico­-ideal de dado sistema social; 2º) que podem ser observados em frações restristas do tempo físico, nas quais se deem determinadas interações entre indivíduos ou grupos de indivíduos (efeitos do número de agentes na qualidade das relações sociais; vinculações entre o tipo de contato, o caráter e o grau de estabilidade da interação social; os influxos sociais construtivos da competição, da cooperação, do conflito etc.). Os problemas desta natureza caem no campo da sociologia sistemática e, como muito bem ponderou Max Weber, o conhecimento deles não nos habilita a explicar as transformações da ordem social no tempo como um processo unívoco e contínuo.

Há fenômenos de mudança social que podem ser explicados mediante simples observação e interpretação dos efeitos da alteração do estado de certo sistema social concreto. O investigador parte de uma situação prévia, na qual a condição do equilíbrio do sistema social considerado pode ser atribuída a fatores de influência dinâmica conhecida, e atribui as modificações, caracterizadas por efeitos observáveis empiricamente, a fatores cujo valor funcional se tenha alterado ou (e) a fatores novos. A maioria dos modernos estudos sobre as condições e os efeitos da destribalização, da mecanização do campo, da urbanização, da industrialização, da desorganização da família, da diferenciação do comportamento sociopático etc., obedecem a semelhante procedimento básico. O que importa ressaltar é que, nesses estudos, o investigador se limita à determinação do significado dinâmico das alterações no âmbito do sistema social concreto considerado. Nesse campo, o sociólogo lida com os problemas de mudança social do ângulo da sociologia descritiva. Por isso, pode dispensar­-se de fazer indagações mais complexas, seja sobre a importância das alterações assinaladas para a realização do tipo social correspondente pelo sistema social considerado, seja sobre as questões que elas colocam ao estudo comparado de outros sistemas sociais análogos, que tendem para o mesmo tipo social.

O uso corrente do conceito de mudança social, para referir os problemas sociológicos implícitos nessas modalidades de explicação, justifica­-se plenamente. O mesmo não acontece nos casos em que os sociólogos se proponham, desta ou daquela maneira, as referidas questões negligenciadas nas investigações de sociologia descritiva. Quando o investigador se propõe saber qual é a importância dinâmica de dadas alterações para a realização do tipo social correspondente por determinado sistema social, ele está primariamente interessado no estudo dos tipos sociais através de suas manifestações particulares concretas. Os problemas de mudança social a serem enfrentados se colocam no plano da duração histórica, requerendo recursos metodológicos que permitam explicar processos sociais irreversíveis como algo determinado, unívoco e contínuo, através de uniformidades de sequência. É neste campo, da sociedade diferencial,79 que situamos os estudos sobre o desenvolvimento social, nos quais importa sobremaneira determinar a qualidade da mudança e seus influxos na reintegração do sistema social em dada direção.

Quando o investigador se preocupa especificamente com os tipos sociais, ele pode lidar, simultaneamente, com dados relativos aos diferentes sistemas sociais que tendem, de modo mais ou menos variável, para o mesmo tipo. Nesse caso, como nos sugere De la Division du Travail Social, são as identidades e as similaridades estruturais ou funcionais que contam em primeiro plano. Os problemas de mudança social que o sociólogo tem de resolver caem, aqui, no campo da sociologia comparada. São problemas pertinentes à análise filogenética e classificatória dos tipos sociais, que permitem explicar os fenômenos da evolução social no tempo supra­-histórico. A “lei da divisão do trabalho”, de Durkheim, ilustra bem esse ponto. A realização do tipo, pelos sistemas sociais globais, depende de requisitos estruturais e funcionais que se podem manifestar, dinamicamente, nas mais variadas condições de tempo e de espaço.

Os fenômenos de mudança social, encarados da perspectiva da sociologia diferencial e da sociologia comparada, têm sido lamentavelmente negligenciados pelos sociólogos modernos. Pode­-se dizer que a enorme expansão empírica das investigações sociológicas, após The polish peasant in Europe and America, se concentrou em áreas nas quais os problemas concernentes à mudança social progressiva, em relação à formação, à duração e à transformação dos tipos sociais, não chegaram a colocar­-se. Isso ocorreu em detrimento de duas coisas. Primeiro, da precisão das explanações. Mesmo as investigações mais cuidadosas deixam algo a desejar, pois do ponto de vista científico não basta saber o que ocorre na reintegração do sistema social de “Middletown”, de “Yankee City” ou de “Springdale”. Também é preciso saber como o que ocorre nessas comunidades se liga a fenômenos mais gerais, que permitem compreender melhor o seu passado e o seu presente, bem como entender melhor o seu futuro próximo ou remoto. Segundo, as mesmas lacunas vêm prejudicando, sensivelmente, a possibilidade de utilizar produtivamente os conhecimentos sociológicos na prática. A extensão da análise sociológica, na direção das duas espécies de problemas, teria importância definida presumível tanto para planos de reconstrução social quanto para planos de aproveitamento e controle racionais das forças sociais construtivas de dada ordem social. Ambas as razões, teórica e prática, aconselham que se dê maior atenção aos mencionados problemas na sociologia e segundo as orientações metodológicas que eles exigem.

A terceira dificuldade é de magnitude moral. Ao tratar de problemas relacionados com o desenvolvimento social, o sociólogo não está livre do influxo e do fascínio de atitudes e avaliações extracientíficas. Isso não é, em si mesmo, muito grave. A gravidade de influências desse gênero deriva do teor das presunções, que acabam definindo as próprias diretrizes das investigações. Por motivos diferentes, os alvos de desenvolvimento social, valorizados tanto nos “países adiantados” (como a Inglaterra, a Alemanha, a França, os Estados Unidos etc.) quanto nos “países subdesenvolvidos” (da América, da Ásia, da Oceania ou da África), incentivam mudanças direta ou indiretamente subordinadas aos interesses e aos valores sociais das camadas dominantes na estrutura de poder. Medidas formuladas em nome dos “interesses da nação” raramente correspondem, de fato, às necessidades vitais da comunidade como um todo. No entanto, tais medidas contam, em média, com as pressões abertas ou dissimuladas da propaganda organizada. Além disso, quase sempre se beneficiam de alguma popularidade, em virtude das vantagens inegáveis, que podem assegurar a nações que lutam contra os problemas do após­-guerra ou do subdesenvolvimento econômico, político e social.

Em estudos de desenvolvimento social, é óbvio que essa questão possui importância transcendente. Um paralelo é suficiente para esclarecer a questão. Em suas análises, Durkheim toma, como ponto de referência para a caracterização do “estado normal” das sociedades modernas, os requisitos da ordem social capitalista.80 Outros especialistas, como Mannheim e Fromm, por sua vez, partem de caracteres e tendências que nascem do colapso e reconstrução dessa ordem social.81 Nessas circunstâncias, impõe­-se ao sociólogo indagar qual seria o procedimento mais produtivo e correto. Esta indagação às vezes é improfícua. Nos países subdesenvolvidos, em particular, o nacionalismo tolhe ou elimina ponderações dessa natureza. Mas, resta a pergunta, que nos parece crucial: o sociólogo deve aceitar, passivamente, a condição de apologista das “tendências de desenvolvimento” que, no fundo, asseguram vantagens certas apenas às camadas que se beneficiam diretamente da ordem social existente? O que interessa a tais camadas, em regra, não é tanto o “progresso social” como a continuidade de sua posição na estrutura de poder em transformação. Por isso, sua ideologia contém um elemento dinâmico invariável: a valorização das técnicas e dos métodos de desenvolvimento social congruentes com a ordem social estabelecida, às vezes de modo mitigado, por causa dos interesses e valores sociais em jogo. Sem identificar­-se com semelhantes ideologias, o sociólogo não pode admitir, de antemão, que seja pacífico e universalmente defensável o ideal de reproduzir, nas nações subdesenvolvidas do presente, o passado mais ou menos longínquo dos países adiantados da atualidade. A sociedade, ao contrário do que se supunha em relação à natureza, pode “dar saltos”. Portanto, a segunda alternativa pode ter pleno sentido, devendo os especialistas resguardar as possibilidades de opção autônoma.

Segundo pensamos, a saída do impasse pode ser obtida pela análise das próprias tendências de desenvolvimento social, constatáveis objetivamente. O sociólogo não pode impedir que certas camadas sociais capitalizem, durante certo tempo, os benefícios do desenvolvimento social – nem essa é sua função, propriamente entendida. Ele deve, somente, tomar cuidados especiais para não se tornar um ingênuo porta­-voz ou um agente dócil das ideologias das referidas camadas. Um ajustamento intelectual positivo consiste em relacionar as medidas apregoadas como “necessárias”, “urgentes” ou “ideais” com a situação de interesses das diversas camadas sociais, com os valores que orientam a sua atuação prática e com as necessidades da coletividade como um todo. Essa análise funcional só é inoperante quando a situação investigada requer uma opção dramática entre concepções do mundo em conflito. Então, não resta senão apelar para a ética de responsabilidade, inerente à condição do cientista. Essa ética oferece um conjunto de interesses e de valores que podem orientar o reaproveitamento dos resultados da análise funcional. A expansão orgânica da civilização baseada na ciência e na tecnologia científica requer, essencialmente, a universalização e o respeito pelos direitos fundamentais da pessoa humana, a democratização da educação e do poder, a divulgação e a consagração de modelos racionais de pensamento e de ação, a valorização e a propagação do planejamento em matérias de interesse público etc. Em cada situação concreta, é possível confrontar os resultados da análise funcional com a viabilidade oferecida a requisitos dessa espécie pelas alternativas em pugna na cena social. Além disso, as opções tomariam em conta, igualmente, as obrigações do sociólogo como “cidadão” e como “cientista”. Procurando assegurar­-se condições de autonomia intelectual, o sociólogo estaria concorrendo para refinar o alcance teórico e a eficácia prática de suas contribuições.

2 – Atitudes, motivações e desenvolvimento social

O enunciado de nosso tema nos coloca diante das polarizações negativas das conexões de atitudes e de valores sociais com o desenvolvimento social. Na verdade, existem outras polarizações, de caráter positivo ou neutro. Como não podemos abordar o tema central de modo completo, tomando em conta todas essas gradações, propomo­-nos examinar pelo menos os aspectos que permitem sugerir como, onde e por que o desenvolvimento social se tornou uma condição normal da vida, um fator de continuidade e de sobrevivência de uma civilização e um valor social básico.

O nosso ponto de vista geral leva­-nos a encarar as atitudes e as motivações sociais em termos de suas vinculações com a estrutura, o funcionamento e as tendências de diferenciação do sistema social. Mesmo quando elas se manifestam através de condutas individuais e de processos de interação social de indivíduos, tais condutas e processos constituem parte da estrutura, são reguladas pela organização e variam de acordo com as tendências de diferenciação do sistema social. Desse ponto de vista geral, é possível escrever as relações recíprocas de atitudes e valores sociais com o desenvolvimento social de uma perspectiva sincrônica e de uma perspectiva diacrônica. As contribuições da sociologia sistemática, nas quais diferentes estados da moderna sociedade de classes sociais são focalizados de forma típico­-ideal, revelam­-nos tais relações da primeira perspectiva. Por meio delas, ficamos sabendo alguma coisa a respeito das atitudes e motivações que se incluem entre os requisitos dinâmicos de uma ordem social, cujo padrão de equilíbrio depende do ritmo e da continuidade da mudança sociocultural. As contribuições da sociologia diferencial, nas quais a formação e as tendências de reintegração ou de desagregação da moderna sociedade de classes são focalizadas no plano histórico­-social, evidenciam aquelas relações da segunda perspectiva. Por meio delas, ficamos sabendo algo sobre a importância dinâmica de atitudes e motivações sociais para o desenvolvimento social, ou seja, como elas chegam a atuar, historicamente, como fatores sociais construtivos.

A manifestação, a exploração e o refinamento de energias e de aptidões criadoras do homem variam de acordo com o grau de diferenciação e o tipo de organização da porção social do meio em que ele vive. Essas duas condições graduam o fluxo do pensamento inventivo e determinam as direções nas quais ele encontrará aplicação inovadora na solução dos variados problemas impostos pelas situações de existência social. A vida social não repousa, apenas, na socialização das emoções e das capacidades perspectivas e cognitivas dos indivíduos. Ela também envolve a socialização das expressões mais sutis, complexas e variáveis dessas qualidades, nos comportamentos “voluntários”, “conscientes” e “inteligentes” do homem. Por isso, existe uma relação bem definida entre o grau de diferenciação e o tipo de organização do meio social e o conjunto de elementos da situação, que se elevam à esfera de consciência e de atuação mais ou menos deliberada dos agentes humanos.

Essa conexão pode ser comprovada, empiricamente, através das técnicas de controle, exploradas rotineiramente em diferentes fases de diferenciação e reintegração da ordem social da sociedade de classes. No “ponto zero” da formação e emergência dessa ordem social, como nos demostram principalmente as análises de Weber,82 houve uma autêntica revolução no horizonte cultural do homem médio. Essa revolução possui dois planos distintos, nem sempre devidamente reconhecidos. De um lado, surgiram tendências inconformistas na avaliação dos comportamentos rotineiros e tradicionais, das instituições e dos valores “sagrados” ou intangíveis, que conformavam o presente pelo passado e impediam a renovação econômica, cultural e social das condições de vida. De outro, está o surto de uma mentalidade prática, que levou o homem a refletir sobre os elementos e as forças do meio social ambiente segundo critérios utilitários de teor crescentemente racional. Vários aspectos da vida social são facilmente acessíveis à observação, podendo ser percebidos e explicados por diversas modalidades de conhecimento – do saber proporcionado pelas tradições, pela magia e pela religião ao saber produzido pela teologia ou pela filosofia. O que se poderia chamar de “conhecimentos de senso comum”, por volta da desagregação da sociedade feudal, era um conhecimento altamente complexo, que combinava as diversas formas de saber pré­-científicas a elementos racionais provenientes de interesses práticos.83 Em consequência, vários aspectos da ordem social existente foram elevados à esfera de consciência social e segundo intentos que merecem ser postos em relevo. A disposição inconformista, de caráter negativo e destrutivo, fundia­-se a intuitos mais complexos, de pautar a atuação social dos indivíduos e a organização das instituições por modelos que assegurassem, sobretudo, um mínimo de autonomia, de rendimento e de continuidade. Este segundo componente era, por sua vez, positivo e construtivo, estimulando o homem a propor­-se o papel de inventor na esfera da transformação da ordem social. Em lugar da ordem social maciçamente perfeita e estática das utopias medievais, forma­-se e difunde­-se, nas camadas sociais em que se recruta a burguesia emergente, um novo ideal de aperfeiçoamento gradativo e oportunista das condições sociais de vida. O aumento progressivo da eficácia das normas, das instituições e das técnicas de controle sociais constituía o critério básico desse aperfeiçoamento do meio social pelo próprio homem.

Portanto, abstraindo­-se outras questões, de importância secundária nesta discussão, já na fase de sua emergência, a ordem social da sociedade de classes pressupunha: 1º) a inclusão dos elementos estáticos e dinâmicos fundamentais da ordem social nas esferas de consciência social, o que produziu – antes do aparecimento da ciência e da tecnologia científica – substancial alteração na percepção e no conhecimento do meio social ambiente pelo homem; 2º) a formação de ideais de vida e de segurança social que criaram aspirações ativas de intervenção do homem na organização das condições de existência social, suscetíveis de alguma forma de controle deliberado; 3º) a escolha da eficácia (ou do rendimento prático efetivo) como critério de avaliação e de aperfeiçoamento gradual das normas, das instituições e das técnicas de controle sociais, o que conferia à experiência o caráter de principal fonte quer da produção do saber, quer da verificação da validade do seu conteúdo ou da consistência de suas aplicações. Esse requisitos não se alteraram com a expansão posterior da sociedade de classes. Ao contrário, como nos sugerem principalmente os resultados das análises de Tönnies e de Sombart,84 sua diferenciação progressiva ampliou a área dentro da qual se impunha o controle consciente e ativo de condições e fatores sociais do ambiente pelo homem. O que variou, por conseguinte, foi a maneira de atender, em escala social, as exigências intelectuais inerentes às três polarizações mencionadas.

Vista nessa fase, a ordem social da sociedade de classes evidencia plenamente os efeitos da revolução cultural nas relações do homem com seu meio social. Quanto à primeira polarização, podemos constatar duas coisas essenciais. Primeiro, a qualidade do conhecimento de senso comum, necessário ao ajustamento normal dos indivíduos às condições de vida numa ordem social capitalista, individualista e competitiva. Nela, de acordo com Tönnies, os indivíduos interagem “cada um por si e em estado de tensão em face dos demais”. Para agir eficazmente e “tirar proveito” das próprias ações, das relações com outros, da celebração de contratos etc., todo indivíduo precisaria ser apto para discernir interesses sociais mesclados à interação humana e para prever o grau de estabilidade ou de instabilidade de tais interesses durante certo período de tempo. Semelhante conhecimento construía­-se baseado no aproveitamento da experiência vicária (de outros) ou pessoal, graças às perspectivas abertas pela secularização das atitudes na compreensão do valor das convenções, dos móveis das ações e dos objetivos das instituições sociais que são imediatamente acessíveis à inteligência humana.85 Segundo, a espécie de conhecimentos que permitiam tomar consciência e lidar com os problemas mais complexos, relacionados com os mecanismos de alteração da ordem social e com os conflitos sociais ou seus produtos indesejáveis. Aqui, é preciso distinguir três modalidades de conhecimento: um, de natureza prática, voltado para a percepção e a explicação de processos sociais diretamente acessíveis à experiência; outro, de natureza teórica, dirigido para a percepção e a explicação dos aspectos mais profundos e aparentemente ininteligíveis dos processos sociais; por fim, o terceiro, de natureza técnica, especialmente importante nas áreas em que se tornou possível aproveitar, de modo sistemático, as energias humanas, de acordo com esquemas de programação prévia dos fatores da produção ou da administração.

A primeira modalidade de conhecimento revela­-se na esfera do político. Ela nos põe diante da forma mais complexa, assumida pelo conhecimento de senso comum em suas aplicações ao controle deliberado das forças sociais pelo homem. Na base dele, não só foram percebidos os fundamentos estáveis para a contínua ampliação das fronteiras da administração, segundo critérios racionais, como puderam ser identificadas e exploradas as polarizações sociais de interesses ocultos atrás das forças sociais em conflito irredutível na cena histórico­-social. A segunda modalidade de conhecimento diz respeito à aplicação do método científico ao estudo dos processos e dos problemas sociais. Apesar de seus intuitos meramente teóricos, ela teve importância prática definida, pois ampliou, consideravelmente, o alcance da percepção e da explicação dos processos de formação e desenvolvimento da ordem social existente. Os conhecimentos derivados desta fonte foram úteis, de modo imediato, em parte no plano do político, em parte na criação de expectativas voltadas para a domesticação, pelo homem, de condições e fatores sociais que operam irracionalmente na sociedade de classes. A terceira modalidade de conhecimento tem sido encarada como a principal agência de controle das forças sociais invertidas no funcionamento das empresas econômicas. Apesar das suas limitações, resultantes da concepção e manipulação dos fatores humanos da produção ou da administração como parte de “sistemas fechados” (operativamente definidos nos limites das empresas, particulares ou estatais), tal conhecimento permitiu larga exploração de modelos racionais de organização de instituições econômicas, políticas, educacionais recreativas, de assistência etc. Além disso, fomentou novos recursos do pensamento inventivo em assuntos societários, principalmente onde as relações entre meios e fins sociais puderam ser estabelecidas segundo critérios estáveis (como no planejamento urbano, em programas agrícolas etc.).86

As outras duas polarizações precisam ser encaradas à luz de semelhantes mecanismos de consciência social e do significado deles para o controle dos elementos da porção social do meio pelo homem. A ordem social da sociedade de classes repousa em um padrão de equilíbrio instável. Um mínimo de instabilidade e de mudança aparece em todos os níveis do comportamento humano socialmente organizado – das ações e das relações dos indivíduos, à estrutura e ao funcionamento das instituições ou à integração de sistemas sociais globais. Não existem alvos sociais fixos e universais nem meios institucionais rígidos e invariáveis, dadas certas condições de integração a ordem social (como na sociedade tribal, na sociedade campesina, na sociedade feudal etc.). As bases societárias da atuação dos indivíduos, do funcionamento das instituições ou de integração dos sistemas sociais precisam reajustar­-se, dinamicamente, quer a condições incontroláveis de alteração das situações materiais ou sociais de existência, quer à capacidade do homem de introduzir mudanças deliberadas na operação ou nos efeitos de determinados fatores sociais. Em consequência, os mecanismos de consciência social em questão se amoldam a um tipo de ordem social no qual a mudança faz parte do quadro rotineiro da existência humana e constitui uma peça fundamental para o equilíbrio ou a continuidade das condições normais de vida.

Apenas no plano simbólico os ideais de vida e de segurança social da sociedade de classes possuem universalidade e eternidade. Na vida social cotidiana, eles sofrem reelaborações interpretativas constantes e ocorrem flutuações contínuas em sua observância, literalmente vinculadas ao grau de domínio ativo alcançado pelo homem sobre as condições reais de existência. Bom exemplo disso são os princípios inerentes aos “Direitos Fundamentais do Homem”. À medida que o controle ativo sobre as forças sociais aumenta, diminuem ou desaparecem, paulatinamente, inconsistências associadas ao modo de entender, de praticar e de desfrutar, em escala social, os referidos princípios. Doutro lado, o mesmo exemplo permite situar o caráter assumido pelo uso do critério pragmatista de eficácia na avaliação dos móveis das ações e dos objetivos das instituições ou das associações. Ele é manipulado de forma ampla e plástica, de maneira a assegurar a consideração global de diferentes elementos de cada situação, como os interesses sociais, os valores sociais, a participação deles pelo homem etc. Por conseguinte, o critério pode ser explorado tanto na avaliação do “rendimento” de uma instituição como a empresa industrial quanto na de instituições como o Estado, a Escola, o Hospital etc. Isso faz com que a inovação cultural seja um processo complexo, relacionado com a alteração concomitante de todas as esferas da vida. Em segundo lugar, também faz com que o domínio alcançado pelo homem sobre as forças sociais do ambiente exprima­-se, simultaneamente, na transformação de padrões de comportamento, de organização das instituições ou de configuração da ordem social, envolvendo graus variáveis de universalização das garantias sociais, de supressão das fontes sociais de alienação da pessoa humana etc. Em terceiro lugar, pode ser facilmente manipulado por camadas com posições estratégicas na estrutura de poder das instituições ou das associações, o que lhes confere a possibilidade de graduar ou de reter o fluxo das inovações e seus efeitos diretos sobre a reconstrução da ordem social. No conjunto, porém, a mudança produzida pela capacidade do agente humano de lidar com as forças domesticadas do meio social é posta a serviço de ideais coletivos que valorizam o progresso material, social e moral do homem. A mudança converte­-se em verdadeira técnica social, inserida no pensamento inventivo como um recurso destinado a introduzir aperfeiçoamentos progressivos em todos os campos em que a atividade humana se desenrola de forma socialmente organizada.

A importância da análise sincrônica para os fins que nos interessam, reside no fato de apanhar os fenômenos de mudança social de uma perspectiva ontogenética.87 Como, na interação de indivíduos e grupos de indivíduos ou no funcionamento de instituições sociais e associações, a mudança social pode ser concebida e explorada, socialmente, como uma força sociocultural, controlável deliberadamente pelos agentes humanos? Quais são as condições psicossociais que regulam a utilização eficiente dessa força, em fins escolhidos pelos agentes humanos, na produção de alterações desejáveis da ordem social? Conduzindo a discussão para aos problemas específicos, a análise patenteia as seguintes evidências fundamentais: 1º) que as atitudes e as motivações “favoráveis” ao desenvolvimento social são aquelas que se vinculam a interesses ou a valores sociais imanentes à necessidade de alargar o alcance e de aumentar a eficiência do domínio ativo de elementos estáticos ou dinâmicos do meio social pelo homem; 2º) que essas atitudes e motivações não emergem ao acaso, pois se ligam, estrutural e logicamente,88 ao horizonte cultural dominante na ordem social da sociedade de classes, e se incorporam, dinamicamente, às condições psicossociais de organização do comportamento humano nesse tipo de sociedade; 3º) que a articulação dessas atitudes e motivações com necessidades sociais emergentes não exclui a interferência de fatores irracionais,89 mas envolve um mínimo de integração orgânica de diferentes condições, processos e efeitos atuantes na cena social (como se pode verificar pelas diversas modalidades de sincronização nas manifestações da urbanização, da industrialização, da democratização da cultura, da secularização dos modos de conceber o mundo etc., em várias comunidades europeias do século XIX e norte­-americanas do século XX).

A análise sincrônica revela qual é a natureza, a variedade e as funções dos mecanismos de consciência social e das técnicas sociais de controle na sociedade de classes. Cabe à análise diacrônica evidenciar quais são as influências dinâmicas mais profundas e persistentes dos referidos elementos na preservação e na alteração do padrão de equilíbrio dessa sociedade. Em uma ordem social na qual a distribuição desigual da renda, do poder e do prestígio é regulada por fatores estruturais e organizatórios, aqueles mecanismos e aquelas técnicas acabariam operando, fatalmente, como “fermentos sociais”. Privilégios e garantias sociais, compartilhados de forma desigual, não foram defendidos – nem o podiam ser – como regalias exclusivas de determinada camada social. Em consequência, as mencionadas modalidades de exploração do pensamento inventivo encontraram aplicações que transcenderam rapidamente: primeiro, os limites da racionalização do comportamento econômico; em seguida, as tendências ao conservantismo sociocultural, operantes em diferentes fases de reintegração da ordem social da sociedade de classes.

Os dois aspectos mais relevantes desse processo histórico­-social são bem conhecidos. De um lado, as formas de percepção e de explicação das condições sociais de existência permitiam elevar, à esfera de consciência social, os fatores e os efeitos da desigualdade econômica, social e política. De outro, a avaliação de ambos (os fatores e os efeitos da desigualdade econômica, social e política) segundo critérios pragmatistas e utilitários permitia elevar, à esfera de consciência social, inconsistências no funcionamento das instituições ou na integração da ordem social, suscetíveis de correção mediante inovações apropriadas. O impacto desse processo na mudança social dependeu da posição estratégica das camadas dominantes na estrutura de poder e da capacidade de as camadas dominadas tirarem proveito prático de disposições inconformistas “legítimas”. O que importa, em nossa discussão, são três pontos fundamentais: 1º) a instabilidade da sociedade de classes repousa nas incongruências existentes entre os fundamentos morais e a organização social da vida humana nela imperantes; 2º) a desigualdade econômica, social e política impede a percepção, a explicação e a avaliação homogêneas dessas incongruências, mas favorece a emergência de mecanismos de reintegração da ordem social, pelos quais as diferentes classes tentam manter ou alterar o status quo, através de movimentos sociais; 3º) as reações de classe social às incongruências obedecem a atitudes e motivações calçadas em seus próprios interesses na conjuntura histórico­-social, mas as influências dinâmicas delas resultantes, na reintegração da ordem social, tendem a refletir­-se positivamente no grau de entrosamento entre os fundamentos morais e a organização social da vida. Em conjunto, pois, à sociedade de classes é inerente um padrão de equilíbrio social instável. A continuidade da ordem social depende de mecanismos de mudança interna, que reajustem as partes do sistema social – estrutural, organizatória e moralmente – à capacidade conquistada pelas diferentes classes de participar (idealmente de modo equitativo) dos direitos e garantias sociais assegurados ao homem pela sociedade de classes.

Esses complexos problemas são ainda mal conhecidos e explicados pela sociologia, tanto empírica quanto teoricamente. Não obstante, alguns de seus aspectos atraíram a atenção de investigadores penetrantes e corajosos, como Marx e Engels, no passado, ou Mannheim e Freyer, em nossos dias. Em linhas gerais, a contribuição positiva desses autores pode ser formulada da seguinte maneira: bem ponderadas as coisas, não é a sociedade que se transforma; são os homens que transformam a sociedade em que vivem, atuando de forma socialmente organizada sobre suas condições materiais e morais de existência coletiva. Com isso, não pretendem afirmar que a sociedade seja mera expressão do “querer humano” e de “atividades humanas conscientes”, pois seus raciocínios partem do pressuposto e da constatação de que ambos são condicionados, em suas funções e em seus conteúdos, pelas situações sociais de existência. Apenas sublinham que a intervenção do homem no controle da porção social do ambiente faz­-se segundo exigências e possibilidades sociais, as quais não excluem diferentes combinações de atitudes e comportamentos variavelmente volitivos, conscientes e inteligentes, apesar de sua natureza social.

Do ângulo que nos interessa aqui, as contribuições de Marx90 são as primeiras que discutem os problemas de desenvolvimento social como fenômenos histórico­-sociológicos. Em raciocínios dessa ordem é que se fundam a escolha da Inglaterra como o país moderno que poderia ilustrar o grau de desenvolvimento extremo, alcançado pelo capitalismo na Europa do século XIX; e a convicção de que outros países, como a França, a Alemanha, os Estados Unidos etc., acabariam passando, mais cedo ou mais tarde, por transformações histórico­-sociais que se haviam operado ou estavam em processo na sociedade inglesa. Não obstante, as suas preocupações pelo assunto são de cunho metodológico.91 Só ocasionalmente tentou abstrair e interpretar os fatores que explicam por que o desenvolvimento social assume padrões diferentes em países que tendem, de modo variável mas constantes, para o mesmo tipo social. O que apresenta enorme interesse entre os resultados de sua investigação é a teoria do conflito como fator de mudança histórico­-social na sociedade de classes.

Muitos cientistas sociais, de Kropotkin92 a Ginsberg,93 acentuam que a cooperação é o principal fator do desenvolvimento social e mesmo da evolução social. Seus argumentos são inquestionáveis e verdadeiros em dois pontos. Primeiro, no que diz respeito à cooperação como requisito de qualquer atividade grupal socialmente organizada;94 segundo, são os progressos na área de cooperação que contam, positivamente, ao longo do desenvolvimento dos sistemas sociais globais e a evolução dos tipos sociais, pois são eles que traduzem o aumento do grau de controle conseguido pelo homem sobre as condições materiais, sociais e morais de vida. A importância atribuída por Marx à cooperação no âmbito da empresa econômica, das relações de produção e dos movimentos sociais, revela que ele não ignorava tais coisas. Sua caracterização da estrutura econômica da sociedade de classes permitiu­-lhe fazer duas descobertas relevantes. Uma, que a extensão pacífica da cooperação podia­-se processar, normalmente, na área da tecnologia e da racionalização do trabalho.95 Contudo, as mudanças ocorridas nessa esfera são descritas por ele como elementos da estrutura da economia capitalista e, portanto, como fatores dinâmicos da estabilidade do sistema social correspondente. Outra, que a utilização do conflito como força social constitui uma expressão dinâmica da rede de controles sociais das coletividades humanas. Em outras palavras, o conflito só se manifesta como força diruptiva e desagregadora em situações histórico­-culturais nas quais ele não possa ser regulado socialmente. Onde ele se manifesta ordenadamente, o conflito se inclui entre os fatores dinâmicos da ordem social e pode operar construtivamente, tanto na diferenciação da estrutura social quanto na reintegração do sistema organizatório da sociedade. Em casos dessa natureza, do conflito podem depender, inclusive, mudanças de caráter socialmente progressivo na área da cooperação.

A questão consistiria em saber se a sociedade de classes cai nessa alternativa e como isso se dá. Se o conflito não operasse de modo regular na sociedade de classes, os benefícios do aumento do poder de controle social do homem sobre as condições materiais e morais de existência seriam permanentemente monopolizados pelos membros da classe social dominantes. Aqui, há três pontos a ressaltar, todos explorados por Marx. O conflito social não é uma força especificamente construtiva, como acontece com a invenção ou com a cooperação. Mas ele produz resultados construtivos, por incentivar e mesmo produzir as tendências à democratização do saber, das garantias sociais e do poder na sociedade de classes. Em segundo lugar, o uso do conflito em fins sociais construtivos é algo eminentemente estratégico. O principal resultado positivo do conflito consiste em que ele permite introduzir critérios racionais de ajustamento nas áreas onde for utilizado com êxito. Portanto, a existência do conflito é acompanhada de alternativa da diminuição das situações em que ele se faz necessário. Essa evidência foi comprovada por outros investigadores, como Mannheim e alimenta a esperança de que se reduzirão, na sociedade de classes planificada, as situações que impõem o conflito como saída normal. Por fim, se o conflito é uma força social explorável estrategicamente, ele faz parte dos elementos mais ou menos conscientes do comportamento coletivo. Cada camada social tentará aproveitá­-lo seja para defender, seja para alterar, vantajosamente, sua posição na estrutura da sociedade de classes. As influências dinâmicas, favoráveis às tendências de perpetuação do status quo, far­-se­-ão sentir através das instituições controladas ideológica e praticamente pela camada dominante. As suas influências dinâmicas, favoráveis à alteração do status quo, se farão sentir através das formas mais espontâneas do comportamento coletivo e de instituições que possam patrocinar, de maneira parcial ou total, interesses e valores sociais das camadas subordinadas.

Este último aspecto é de particular interesse em nossa discussão. As atividades dos indivíduos, dos grupos e das instituições sociais, de importância dinâmica para a conservação ou a alteração do status quo na sociedade de classes, polarizam­-se em torno de atitudes e motivações que relacionam os interesses e os valores sociais de cada classe ao significado patente e aos efeitos presumíveis antecipadamente das tendências à mudança social progressiva. As classes sociais dominantes procuram amparar essas tendências na medida em que elas favoreçam ou não interfiram com seus interesses e valores sociais. Isso quer dizer, em outras palavras, que há ampla margem de atuação construtiva para os representantes dessas camadas sociais nos períodos da formação e de expansão da sociedade de classes. As classes sociais subordinadas apegam­-se e fomentam as mesmas tendências segundo móveis sociais mais amplos e íntegros, que chegam a estimular até a emergência de atitudes radicais de defesa do desenvolvimento social. Embora nem sempre compreendam, no seu devido alcance, as inovações que redundem em ampliação das técnicas sociais de controle, revelam especial acuidade às aplicações delas que beneficiem a coletividade como um todo. Em consequência, a margem de atuação social construtiva dos seus componentes eleva­-se, crescentemente, a partir das fases em que o capitalismo se torna uma condição negativa à expansão da sociedade de classes, limitando ou impedindo a planificação econômica, a democratização do poder e a universalização de uma ética racional igualitária.

As interpretações sociológicas de Marx não permitem conhecer, positivamente, os fatores e os efeitos do desenvolvimento social desigual dos vários sistemas sociais que tendem para o mesmo tipo de sociedade de classes. Mas oferecem uma descrição geral do próprio processo de desenvolvimento social, tal como se desenrola no plano histórico nesses sistemas sociais. Ele não é um processo, por assim dizer, mecânico ou automático de realização de dadas condições ideais de organização da sociedade; as condições ideais de organização da sociedade elevam­-se à esfera da consciência social e do querer coletivo das classes sociais em presença, tornando­-se operativas através de interesses e de valores sociais que graduam a importância delas para cada classe. O que conta decisivamente, portanto, são as bases estruturais e dinâmicas do comportamento coletivo. As atitudes e as motivações, que orientam as preferências dos indivíduos em face do desenvolvimento social e de suas consequências reconhecíveis de maneira imediata, prendem­-se a mecanismos coletivos de percepção, de explicação e de intervenção na realidade. Por isso tais atitudes e motivações são altamente instáveis e móveis. Ainda que suas funções na integração do comportamento coletivo permaneçam constantes, as suas influências dinâmicas concretas são variáveis, em virtude de traduzirem estados de equilíbrio nas relações das classes sociais que se alteram de acordo com a conjuntura histórico­-social considerada.

Dessas interpretações decorre, claramente, um conceito de desenvolvimento social como “categoria histórica”. Ele traduz, literalmente, a forma histórica pela qual os homens lutam, socialmente, pelo destino do mundo em que vivem, com os ideais correspondentes de organização da vida humana e de domínio ativo crescente sobre os fatores de desequilíbrio da sociedade de classes. Daí resulta o sentido objetivo peculiar desse processo, que se apresenta, de modo variável mas universal, como um valor social, tanto no comportamento dos indivíduos quanto nos movimentos sociais.

As contribuições de Freyer de Mannheim96 ligam­-se a outro contexto histórico, no qual o desenvolvimento social é visto em termos de requisitos estruturais e funcionais da própria mudança social progressiva. Encarada como processo histórico­-social, esta exige certas condições dinâmicas fundamentais, referentes à organização da personalidade, da sociedade e da cultura, bem como ao grau de integração orgânica deles entre si, ao longo de cadeias de alterações provocadas e coordenadas pelas condições externas de existência social. As análises desses autores evidenciam que o padrão de equilíbrio da sociedade de classes, no presente, é demasiado complexo para ser reajustado às exigências da situação histórico­-social mediante a simples operação dos mecanismos de controle social.

Três argumentos principais permitem compreender as transformações ocorridas. Primeiro, várias circunstâncias fizeram com que o conflito social perdesse parte considerável de sua eficácia, como mecanismo automático de ajustamento social. Certas técnicas de formulação e exploração das divergências acabaram se divulgando e generalizando, como aconteceu com a análise ideológica, de desmascaramento dos antagonistas. Além disso, surgiram novas técnicas sociais de controle, especialmente na área da propaganda e da coerção policial. A manipulação e a conformação da vontade, de indivíduos ou de grupos de indivíduos, por meio externos, alcançaram eficácia desconhecida no passado, facilitando a correção de várias modalidades de condutas inconformistas e de movimentos sociais radicais. Segundo, graças a essas alterações na esfera das técnicas sociais de controle, aumentaram as vantagens de personalidades e de camadas ou de grupos sociais, localizados em posições estratégicas na estrutura de poder. Abriram­-se perspectivas de coerção psíquica e institucional que asseguraram a emergência de novas formas autoritárias de mando, de arregimentação em massa e de conciliação imposta de divergências sociais. Tanto nos países “democráticos” quanto nos países “totalitários”, essas perspectivas foram amplamente aproveitadas pelas classes sociais dominantes na defesa da estabilidade da ordem social vigente. Terceiro, o ritmo da mudança social durante a chamada “segunda revolução industrial” foi muito rápido, operando­-se um sério desajustamento entre o horizonte cultural do homem moderno e as exigências da situação histórico­-social. Numa época em que era preciso reeducar o homem segundo técnicas educacionais mais complexas e eficientes e reaparelhar os movimentos sociais com novos recursos técnicos, a educação permaneceu relativamente estagnada e os movimentos sociais ficaram perigosamente divorciados dos conhecimentos e das técnicas de controle fornecidos pela ciência. Em consequência, as camadas sociais subordinadas – as classes médias, em particular – deixaram de corresponder às funções dinamizadoras que lhes cabiam na cena social. Atuando de modo confuso, conformista e irracional (em vista dos interesses e dos valores sociais a que se deveriam apegar racionalmente), deixaram de defender com autonomia, energia e tenacidade as tendências mais profundas de democratização da riqueza, do poder e da cultura.97

É claro que essas condições não aboliram o conflito social nem eliminaram sua necessidade, como fermento da mudança social progressiva na sociedade de classes. Apenas tornaram­-no mais complicado, de exploração mais difícil e perigosa. O importante, no caso, consiste em que a função social construtiva do conflito social, onde foi suprimida, deformada ou restringida, não encontrou substituto equivalente eficaz. A alternativa foi, em regra, fornecida pelo conformismo dirigido ou pela arregimentação autoritária, ambos associados à intensificação das forças de estagnação sociocultural. Semelhante consequência representa uma condição negativa, para uma civilização cuja continuidade, enriquecimento e sobrevivência depende de um padrão básico de equilíbrio interno instável.

As conclusões de Freyer situam um elemento positivo para a alteração dessa situação. Fazendo da Sociologia (e de outras ciências afins) uma técnica de consciência social, o homem poderia promover uma nova revolução em seu horizonte cultural, reassegurando­-se uma percepção e um conhecimento realistas das complexas condições histórico­-sociais do presente. Tanto os indivíduos quanto os movimentos sociais poderiam identificar melhor a natureza dos interesses e dos valores sociais, inerentes à sua vinculação com a estrutura e com a “dialética” da sociedade de classes. Isso ainda não seria a “Política”, pois esta começa onde terminam os elementos teóricos que esclarecem dada situação histórico­-social e fundamentam as opções socialmente inevitáveis. Mas seria algo muito importante para torná­-la possível no plano mais construtivo, em que ela se desenrola como processo pelo qual o homem procura estender o seu controle deliberado sobre as condições e as forças sociais instáveis do meio ambiente.

Portanto, à luz de certas interpretações, que possuem evidente teor prospectivo, por se basearam na análise de tendências sociais emergentes, o conflito poderá adquirir, com o tempo, funções análogas às que desempenhou no passado. A crise contemporânea, na medida em que ela se revela através da perplexidade do homem moderno diante dos graves problemas sociais do presente, seria superada pela gradual absorção das técnicas e das concepções científicas pela educação e pela rotina social. Em cada situação, os membros de dada classe social poderiam estabelecer, com segurança, os alvos e os efeitos da mudança social progressiva favoráveis a seus interesses sociais e compatíveis com seus valores sociais. Em outras palavras, poderiam colocar­-se em condições de valorizar positivamente o desenvolvimento social, agora sob o marco da “atuação política” e, por conseguinte, da exploração racional do planejamento.

Isso nos põe diante de outro problema essencial. A partir de certa fase de diferenciação e de integração da sociedade de classes, o homem defronta­-se com a necessidade de alterar sua estratégia de intervenção na realidade. Nos períodos de formação e de reintegração da sociedade de classes, estudados por Marx, o elemento racional inerente à mudança social espontânea oferecia base apropriada para o controle eficiente das forças sociais domesticadas pelo homem. No presente, isso já não ocorre, porque a rede de intervenção se estendeu e ampliou em todas as direções. Não só se precisa de conhecimentos prévios mais sólidos e profundos sobre a situação, como se torna indispensável saber, de antemão, quais são as mudanças que se pretendem provocar e como desencadeá­-las, tendo­-se em vista as condições favoráveis ou desfavoráveis da intervenção. Isto significa que o aumento do controle ativo do homem sobre as condições e as forças do ambiente social exigem novos esquemas intelectuais, nos quais a exploração do elemento racional se subordina a mudanças que são provocadas deliberadamente e segundo planos preestabelecidos. Esse é o problema com que se defronta Mannheim, também na área de explicação sociológica prospectiva.

Para os fins de nossa discussão, basta­-nos reter duas conclusões básicas de Mannheim. A primeira diz respeito à crise que a sociedade de classes está atravessando. Suas análises sugerem, através de exemplos tomados simultaneamente de países capitalistas e socialistas, que certos benefícios e garantias sociais de nossa civilização – do nível material de vida aos direitos fundamentais da pessoa humana e à valorização da democratização da riqueza, da cultura, do poder ou do prestígio – correm, no presente, sérios riscos de colapso. O importante é que não se pode pensar em preservá­-los seja pela manutenção do status quo, seja pela alteração do status quo associada à defesa das antigas técnicas sociais de controle das forças do meio social pelo homem. As próprias técnicas sociais de controle é que precisam ser alteradas, como condição para ajustar o horizonte cultural do homem às exigências de situação – ou seja, à percepção, ao conhecimento e à manipulação racionais dos problemas sociais produzidos pela reintegração da sociedade de classes. O recurso crescente à planificação exemplifica que semelhante substituição se acha em processo. No entanto, em nenhum país chegou a acarretar, até o presente, a formação de um novo padrão de equilíbrio social, que corresponda plenamente aos requisitos dinâmicos e às funções construtivas da mudança social provocada ou dirigida na reintegração da sociedade de classes.

A segunda conclusão levanta as implicações e as consequências mais amplas da difusão e do emprego de técnicas sociais de controle racional no mundo moderno. Onde o planejamento pode ser introduzido e explorado construtivamente, os assuntos humanos são encarados e resolvidos mediante critérios que procuram abolir tanto os acertos ocasionais quanto os ajustamentos baseados em soluções estabelecidas por via do antagonismo e dos conflitos sociais. Isso não quer dizer que as áreas de conflito possam desaparecer totalmente, através da planificação, ou que esta só possa propagar­-se em um mundo no qual não existam conflitos. É patente, inclusive, que sua expansão se prende a uma teia de conflitos; vários setores da sociedade de classes temem os efeitos de formação de uma ordem social planificada sobre sua situação de interesses, combatendo­-a tenazmente, por todos os meios possíveis. A ideia que está em jogo é outra: a planificação envolve um estilo específico de tratamento e controle prático das condições e fatores do ambiente social. Onde ela se introduz com êxito, os arranjos construtivos podem ser obtidos através de elementos e de forças controláveis, independentemente do recurso sistemático ao conflito. Por isso, ela não só acarreta maior consciência da natureza, dos alvos, dos meios e dos efeitos da mudança social progressiva. A planificação confere caráter positivo e maior eficácia às tentativas de utilização deliberada da mudança social. A luta do homem pelo domínio de condições e fatores instáveis do meio social deixa de ser cega ou parcialmente inteligente, iluminando­-se, em todas as suas fases, por intenções e manipulações calcadas em conhecimentos objetivos técnicos ou científicos.

Este segundo ponto merece ser retido em nossa discussão. Ele indica que as alterações, em processo na sociedade de classes, tendem a oferecer maior relevo à utilização da mudança cultural provocada ou dirigida. Doutro lado, fica claro que essa tendência insere a qualidade da mudança no âmbito da consciência social e das técnicas sociais de controle racional. Neste nível, é óbvio que as atitudes e as motivações favoráveis (ou desfavoráveis) ao desenvolvimento social adquirem outro sentido. Onde elas puderem suscitar medidas práticas, definem precisamente o que se visa através de determinados projetos de intervenção deliberada na realidade social. Em outras palavras, a “reação societária” ao desenvolvimento assume um caráter específico. As condições e os fatores que criam desequilíbrios palpáveis no funcionamento dos sistemas sociais globais, prejudicando evidentemente sua capacidade normal de “progresso social”, são apontados como indesejáveis, expostos a avaliações inconformistas e, se possível, submetidos a tratamentos corretivos.

Em suma, na situação presente, a ordem social da sociedade de classes oferece novos incentivos e oportunidades ao uso deliberado da mudança social progressiva pelo homem. Entre a época estudada por Marx e a época atual, ocorreram transformações que alteraram, profundamente, a natureza das técnicas sociais de controle e o modo de empregá­-las na organização das atividades humanas. Em muitas áreas, a reação espontânea do comportamento coletivo aos problemas sociais deixou de ser uma forma satisfatória de estender o domínio do homem sobre as condições e as forças sociais do ambiente. Em outras, o agravamento dos problemas sociais ou as condições de reintegração da ordem social exigem soluções novas, amplamente baseadas em técnicas sociais de controle racional. A consequência geral consiste em que atitudes e motivações de conteúdo estritamente racional deveriam ter decidida predominância numa era em que a mudança social espontânea tende a ser substituída, em várias esferas da vida, pela mudança cultural provocada e dirigida. Tal condição não se realiza, no entanto, quase universalmente. E é improvável que isso venha a acontecer independentemente de duas coisas: a) maior expansão da ciência no mundo moderno, que permita entrosar organicamente o “progresso material” ao “progresso moral” do homem; b) eliminação das inconsistências existentes entre os critérios de estratificação social e os fundamentos morais da vida humana na sociedade de classes.

3 – Efeitos negativos de atitudes e motivações sobre o desenvolvimento social

A discussão do tema, na parte precedente deste trabalho, comporta algumas conclusões fundamentais. Primeiro, o desenvolvimento social é um processo que afeta a estrutura e a organização do sistema social. Em termos de sua manifestação na sociedade de classes, ele tem sido observado, descrito e interpretado sociologicamente através das condições, dos fatores e dos efeitos histórico­-sociais da diferenciação e da reintegração da ordem social em países como a Inglaterra, a Alemanha, a França, a Itália, os Estados Unidos etc. Segundo, a regularidade, e mesmo, a “normalidade” do desenvolvimento social, dependem, diretamente, de condições e fatores psicossociais, que operam tanto no plano perceptivo e cognitivo quanto no plano voluntário e inteligente de organização do comportamento humano. Esses fatores se articulam às condições materiais e morais de existência social na sociedade de classes, orientando a capacidade de atuação racional dos indivíduos ou dos grupos sociais por interesses ou valores sociais de que eles participam regularmente, através da situação de classes. Terceiro, o que se poderia entender como “atitudes e motivações favoráveis ao desenvolvimento” são atitudes que se incluem entre os fatores psicossociais que exercem funções construtivas na diferenciação e na reintegração da ordem social na sociedade de classes. Em sentido estrito, elas operam positivamente na medida em que correspondem às impulsões coletivas de preservação ou de alteração do status quo, inerentes à interação das classes sociais e ao padrão de equilíbrio social instável dela resultante. Quarto, tais atitudes e motivações favoráveis ao desenvolvimento variam, quanto à natureza, ao conteúdo e à forma de manifestação nas ações ou relações de indivíduos e no comportamento coletivo, de uma época histórica para outra. Por isso, seus requisitos dinâmicos, estruturais e organizatórios não são os mesmos nas fases de formação, de expansão e de crise da sociedade de classes. A importância dinâmica relativa do elemento racional aumentou de forma ascendente e contínua, enquanto diminuiu, em proporções inversas, a possibilidade de combiná­-lo frutiferamente a condições e a fatores irracionais. Quinto, parece evidente que não existem atitudes e motivações em si mesmas “desfavoráveis ao desenvolvimento”. Em dado estado de diferenciação e de integração da ordem social, atitudes e motivações poderão se tornar neutras ou adversas ao desenvolvimento social, se lhe faltarem os requisitos dinâmicos (estruturais e organizatórios), que são indispensáveis à sua manifestação normal na sociedade de classes. Essa alternativa ocorreu, concretamente, de várias maneiras, nas três fases mencionadas. Em regra, porém, ela tem conduzido ao solapamento das tendências à mudança social progressiva, graças às influências conservantistas ou particularistas que as classes dominantes podem desencadear, amparando­-se em suas posições estratégicas na estrutura de poder.

Estas conclusões oferecem bom ponto de partida para a análise dos efeitos negativos de atitudes e motivações sobre o desenvolvimento social. Em particular, elas indicam que é preciso considerar tais efeitos à luz de duas condições básicas. De um lado, do estado em que se acham os diferentes sistemas sociais globais que tendem, de modo constante, para o padrão de integração da sociedade de classes. De outro, do impacto que a situação histórico­-social interna pode exercer, em cada sistema social global, na forma de manifestação e no grau de influência dos fatores psicossociais. Os fenômenos que se passam nessa esfera são regulados em última instância, por processos macrossociais, pelos quais se produzem a diferenciação e a reintegração da ordem social. Daí a necessidade de ligá­-los, na descrição sociológica, aos mecanismos sociais de organização e de mudança da sociedade de classes.

Encarando­-se a questão deste prisma, todos os países, cujo sistema social se organize segundo os padrões estruturais e funcionais da sociedade de classes, enfrentam problemas sociais na área do desenvolvimento social. E, em todos eles, conta entre tais problemas a maneira pela qual as atitudes e as motivações interferem negativamente no desenvolvimento social retardando­-o, tumultuando­-o ou tornando­-o mais oneroso para as coletividades. Em termos teóricos, os efeitos negativos da influência desses fatores psicossociais no ritmo, na continuidade e nas consequências socialmente construtivas do desenvolvimento constituem fenômenos de demora cultural. As diferenças relevantes entre os vários países “adiantados” e “subdesenvolvidos”, a esse respeito, relacionam­-se com as polarizações dinâmicas das atitudes e das motivações socialmente inconsistentes.98

Nos “países adiantados”, as atitudes e motivações tendem a ser dinamicamente inadequadas em virtude de não se ajustarem, de modo orgânico, às exigências da situação histórico­-social. Imobilizadas por interesses profundos das camadas dominantes ou por valores conspícuos mas obsoletos, restringem a capacidade de atuação racional dos homens, limitam o rendimento ou refreiam a renovação das instituições e impedem os avanços necessários na direção da ordem social planificada. Nos “países subdesenvolvidos”, as atitudes e motivações tendem a ser inadequadas, quando respondem às exigências da situação histórico­-social, por transcenderem à capacidade de atuação racional socialmente organizada do homem, de funcionamento normal das instituições e às vezes, até, de crescimento equilibrado das bases ecológicas, demográficas e econômicas da vida social. Assimiladas por via da imitação de “povos adiantados”, produzem, simultaneamente, progresso social e desorganização social, o que as coloca entre os fatores dinâmicos do subaproveitamento crônico das vantagens asseguradas pelas mudanças socioculturais bem­-sucedidas.99

Por isso, haveria pouco interesse em fazer um tombamento analítico das atitudes e motivações aparentemente “desfavoráveis” ao desenvolvimento. O que importa, para a interpretação sociológica, é a espécie de influência que elas chegam a exercer sobre o comportamento social – de indivíduos, de grupos ou de coletividades inteiras. Duas ilustrações simples seriam suficientes para esclarecer a questão. Quando os franceses defendem seus interesses coloniais na Argélia,100 é claro que se apegam a comportamentos abertamente ligados a atitudes e a motivações, inconsistentes com os princípios da democracia, com a segurança internacional. Sob muitos aspectos, envolvem­-se num dilema de natureza econômica, política e social da mesma natureza que os dilemas racial e educacional, estudados pelos sociólogos nos Estados Unidos.101 Inconsistências dessa magnitude geram e se mantêm graças a atitudes e a motivações francamente desfavoráveis ao desenvolvimento social, pois acarretam perturbações que afetam a organização e a diferenciação da sociedade de classe. No entanto, essas atitudes e motivações atuam positivamente: a) de modo direto, na defesa aberta e consciente da posição da França na estrutura internacional de poder; b) de modo indireto, na constituição e na dinamização de uma contraideologia, pela qual as populações nativas da Argélia desmascaram a dominação colonial e legitimam, moralmente, o uso da violência organizada contra ela.

Outra ilustração pode ser tomada da estrutura econômica da sociedade brasileira. É sabido que margens demasiado amplas de lucro constituem condições negativas à racionalização do comportamento econômico na empresa capitalista. Elas criam uma situação de interesses que concentram a atenção do empresário na defesa do status quo, para garantir vantagens que tendem a ser convertidas em “privilégios”; e estimulam a valorização de uma mentalidade e de técnicas de organização econômicas que transformam o empresário em símile humano da ave de rapina. As atitudes e motivações vinculadas à situação de interesses e aos valores sociais em questão caem na categoria dos dilemas econômico­-sociais dos “países subdesenvolvidos”, interferindo em dois níveis: a) da organização racional da empresa capitalista, variavelmente moldada em padrões pré ou anticapitalistas de vida econômica; b) no agravamento da distribuição desigual da renda, com suas consequências negativas inevitáveis seja para a expansão interna de uma economia de mercado, seja para a formação de condições essenciais à democratização da riqueza, da cultura e do poder. Todavia, nas circunstâncias em que emergem e se mantêm, as mesmas atitudes e motivações inspiram decisões práticas compatíveis com o crescimento econômico em condições extremamente adversas à empresa capitalista. Entre outras coisas, orientam a ação econômica no sentido de transpor os efeitos devastadores da inflação secular sobre a vitalidade das empresas e de dar continuidade ao processo de capitalização. Portanto, elas também preenchem funções sociais construtivas, de enorme significação para povos que fizeram do “desenvolvimento econômico” um alvo coletivo.

Os dois exemplos demonstram que as mesmas atitudes e motivações podem produzir, simultaneamente, consequências negativas e positivas. Para discutir, sistematicamente, os diferentes problemas que se colocam à análise, seria preciso dispor de estudos exaustivos sobre as diversas conexões positivas, negativas ou neutras, existentes entre atitudes, motivações e desenvolvimento social. Em vista da falta de conhecimentos positivos sobre tal assunto, pelo menos do ângulo que nos interessa aqui, restringimos nossa atenção a dois temas básicos. O primeiro diz respeito à própria explicação sociológica das atitudes e das motivações que podem ser qualificadas como “desfavoráveis” ao desenvolvimento social, com referência à sociedade de classes. O segundo leva­-nos a cuidar das implicações práticas de semelhante explicação.

Quanto ao primeiro tema, é preciso convir que o sociólogo se defronta, no caso, com uma situação empírica deveras complexa. O que se sabe sobre a formação e a transformação da sociedade de classes na Europa e em outras regiões afetadas de uma forma ou de outra pela “expansão da civilização ocidental”102 – permite distinguir quatro possibilidades básicas: 1) a dos países nos quais a sociedade de classes encontrou condições propícias de expansão, aparentemente perturbadas, diminuídas ou ameaçadas no presente, como parece ser o caso dos “países adiantados” da Europa; 2) a dos países em que a formação e a transformação da sociedade de classes faz parte de um processo interno de desenvolvimento, mas nos quais ambos os processos se manifestaram tardiamente, como acontece com os “países subdesenvolvidos” da Europa; 3) a dos países que nasceram da implantação do “estilo ocidental de vida” na América, na África, na Ásia e na Oceania; 4) a dos países nos quais o advento da sociedade de classes prende­-se à reação cultural às influências do “estilo ocidental de vida”, como ocorre com o Japão, a Índia ou a China. Apesar das similaridades existentes entre os países englobados nas mesmas categorias, entre eles também se evidenciam dessemelhanças básicas. Em particular, os processos macrossociais, que regulam a formação e a expansão da sociedade de classes, desenrolaram­-se em condições extremamente variáveis. Inclusive o grau de sincronização desses processos e dos seus efeitos sociais construtivos – o que se pode perceber comparando a manifestação e os produtos da acumulação capitalista, da secularização de atitudes, da racionalização dos modos de conceber o mundo ou de agir, da democratização da cultura, da individualização, da urbanização, da industrialização, da dominação burocrática etc. – tem sido variável mesmo em relação aos países que parecem ter contado com “condições ideais” para o desenvolvimento da sociedade de classes.

Essa gama de variações precisa ser levada em consideração. De um lado, ela sugere que o regime de classes sociais possui grande plasticidade. Embora sua formação seja o produto da “evolução da civilização ocidental”, ele pode ser amplamente propagado pela “expansão” ou pela “difusão” dessa civilização. De outro, porque ela própria indica que certos componentes nucleares da sociedade de classes, entre eles, os de natureza psicossocial, são suscetíveis de reelaboração através de heranças socioculturais distintas. Eles vingaram a partir da inclusão seja na estrutura da comunidade campesina ou da pequena comunidade urbana, seja na organização da sociedade feudal ou da sociedade de castas. Em todas elas operaram como “fermentos sociais”, precipitando a desintegração da ordem social existente e a emergência de novos estilos de vida social. Atitudes e motivações estão, naturalmente, entre esses ingredientes. A exaltação dos incentivos proporcionados pelo trabalho ou pelo lucro, a justificação moral do entesouramento e da apropriação capitalista, a valorização de concepções secularizadas ou racionais do comportamento humano e da organização das instituições, a legitimação da ação ou das relações baseadas em interesses, a aceitação da figura social do indivíduo como foco dos direitos do homem e das garantias sociais, a busca de segurança individual e social através de controles impessoais e formais etc. encontraram ressonância nos mais diversos sistemas socioculturais.

Limitando­-nos aos aspectos que nos compete ressaltar, isso demonstra que devemos considerar as atitudes e as motivações “desfavoráveis” ao desenvolvimento social, através de conjuntos não uniformes e instáveis de variáveis psicossociais e socioculturais. Daí resultam complicações que não podem ser subestimadas. Em particular, onde a “ocidentalização” prepara o caminho para a sociedade de classes ou onde a formação desta sociedade se defronta com condições adversas, existem perspectivas para decisões alternativas. Os sistemas socioculturais que sofrem os impactos têm possibilidades próprias de desenvolvimento interno. No entanto, as atitudes e as motivações que redundam em sua defesa acabam se tornando fatores de conservantismo cultural. Na medida em que se opõem às tendências à formação de padrões mais complexos e eficientes de organização social, tais atitudes e motivações se incluem entre os fatores psicossociais “desfavoráveis” ao desenvolvimento social.

A complicação assinalada é, ao mesmo tempo, “estrutural” e “dinâmica”. Ela é estrutural porque envolve atitudes e motivações vinculadas a padrões mutuamente exclusivos de desenvolvimento social. Ela é dinâmica porque pressupõe o influxo concomitante de padrões exclusivos de desenvolvimento social na configuração do ritmo da mudança social progressiva.

Quanto ao primeiro aspecto, é óbvio que se impõe uma distinção preliminar. De um lado, se acham atitudes e motivações herdadas da ordem social preexistente, mais ou menos ativas, repetidas ou persistentes, em função da vitalidade assegurada aos interesses e aos valores tradicionais pelas novas convicções de vida social. De outro lado, estão as atitudes e motivações requeridas pela emergência e expansão gradual da sociedade de classes. Independentemente das suas origens, ambas as espécies de atitudes e motivações podem se tornar “desfavoráveis” ao desenvolvimento social. As primeiras são, com frequência, francamente incomparáveis com o padrão de desenvolvimento da sociedade de classes. Às vezes elas comportam avanços nesta direção. A introdução de técnicas de organização da empresa capitalista ou de instituições políticas democráticas, por exemplo, nos países subdesenvolvidos que se localizam na órbita da civilização ocidental ou que passam por processos de ocidentalização, prende­-se historicamente a iniciativas de círculos senhoriais e aristocráticos. Mas isso sempre se deu sob o intento transparente de acomodar as inovações, de diferentes maneiras, às formas preexistentes de dominação econômica, política ou religiosa. As segundas nascem dos requisitos psicossociais de ordenação da sociedade de classes. Dadas as condições de sua elaboração pelo contexto sociocultural, podem converter­-se em elementos mais ou menos adversos ao desenvolvimento da ordem social correspondente. O influxo do nacionalismo oferece boa exemplificação do fenômeno. Em países submetidos à dominação colonial, direta ou indireta, os interesses nacionais fomentam a luta pela autonomia política, pela prosperidade econômica e pelo progresso social. Contudo, eles têm sido amplamente explorados para justificar comportamentos egoísticos das camadas dominantes, prejudiciais ao “desenvolvimento nacional”, e têm impedido a cooperação dos “países subdesenvolvidos” em projetos de interesse comum, contribuindo indiretamente para aumentar seu isolamento e dependência diante das grandes potências.

Ainda que os conhecimentos disponíveis não alimentem grandes conclusões gerais, duas ilações provisórias parecem legítimas. A emergência e a manifestação de atitudes e motivações incompatíveis com o regime de classes tende a decrescer em função da rapidez com que se constitua uma ordem social integralmente fundada naquele regime. À medida que esta condição se realiza, também é patente que as inconsistências das atitudes e motivações tendem a depender, crescentemente, das próprias incongruências da sociedade de classes. Seria impossível fundamentar empiricamente ambas as ilações, nos limites da presente discussão. A título de referência, apenas, poderíamos lembrar evidências comprobatórias, tomadas da passagem da sociedade de castas para a sociedade de classes nos Estados Unidos. Um sistema de castas altamente diferenciado e integrado fez com que o sul dos Estados Unidos oferecesse sérias resistências morais à implantação de ordem social inerente ao regime de classes. Ali perduraram interesses, concepções e valores sociais que mantiveram até o presente formas de dominação e estilos de vida mais ou menos incompatíveis com o padrão de desenvolvimento da sociedade de classes. No norte, por sua vez, o ritmo da mudança social progressiva foi mais rápido. Surgiram condições mais favoráveis à manifestação contínua dos processos macrossociais, que aceleram a formação e a expansão do sistema de classes. Lá se objetivaram as expressões mais agudas de defesa do “estilo competitivo de vida” de oposição sistemática à planificação social.

Quanto ao segundo aspecto, é claro que existem diferenças marcantes entre os dois extremos, representados pela coexistência de dois padrões antagônicos e exclusivos de desenvolvimento social e pela predominância final do padrão de desenvolvimento inerente à sociedade de classes. O que importa assinalar é que a presença simultânea dos dois tipos de atitudes e motivações, em fases histórico­-sociais em que ambas atuam como fatores psicossociais, possui consequências dinâmicas próprias. As atitudes e motivações, incompatíveis com a ordem social emergente, não interferem de modo isolado no processo histórico­-social. Elas solapam a emergência e a manifestação dos requisitos psicodinâmicos de funcionamento da nova ordem social. Isso pode ser facilmente comprovado através da associação do patrimonialismo e da burocracia na fase de implantação de sociedade de classes, inclusive no Brasil. O resultado de semelhante associação consiste num produto híbrido, em que atitudes racionais correspondem a motivações irracionais ou vice­-versa. No plano mais amplo dos mecanismos de reconstrução da sociedade como um todo, acontece algo similar. Constitui­-se num padrão híbrido de desenvolvimento social, mantido pela confluência de atitudes e motivações contraditórias, que contribui para retardar o ritmo da mudança social progressiva e para aumentar o período de desintegração transitória da vida social organizada. Isso faz com que o “progresso social” se transforme numa forma de devastação de recursos e num sorvedouro de energias.

Esse padrão híbrido de desenvolvimento, onde a constituição da sociedade de classes encontra condições favoráveis, está fadado à superação e à substituição por um padrão homogêneo de desenvolvimento social. Mas ele pode perdurar durante períodos mais ou menos longos, como o atestam a história social dos países subdesenvolvidos da Europa, das regiões subdesenvolvidas dos Estados Unidos e dos países subdesenvolvidos da América, da África, da Ásia e da Oceania. Onde o desenvolvimento intenso acaba se convertendo em alvo coletivo, os desequilíbrios daí resultantes são agravados pela tendência à importação prematura ou antecipada de técnicas, instituições e valores sociais. Ela promove inquestionavelmente, vários “progressos”, desejados ardentemene por todos os países “pobres” ou “atrasados” do mundo. Mas produzem efeitos reativos imperceptíveis, que desgastam as possibilidades de desenvolvimento social. Nessa área, as atitudes e as motivações mais consistentes estimulam a valorização de ideais de conforto, de segurança e de emprego do ócio que fomentam a dissipação dos recursos, aumentam a improdutividade e aceleram a elevação rápida do nível médio de vida. Só os países que puderam associar esses alvos coletivos à planificação social conseguiram êxito marcante na aceleração do desenvolvimento social. É que, nessas condições, puderam eliminar os efeitos inconsistentes e negativos da mudança cultural antecipada.

Todavia, a formação de um padrão íntegro de desenvolvimento social não elimina a interferência de atitudes e motivações socialmente inadequadas. Ao contrário, os resultados das investigações psicológicas, econômicas e sociológicas salientam que é nessa esfera que se encontram as principais causas do malogro do homem na reconstrução da sociedade de classes. Através das modernas técnicas de propaganda e das oportunidades de manipulação das instituições, as camadas dominantes conseguiram criar e difundir um estado de espírito que converte, largamente, os requisitos psicodinâmicos da ordem social existente em fatores de conformismo e de estabilidade sociocultural. Mesmo as reações inconformistas de teor construtivo são sufocadas ou restringidas, como se poderia exemplificar através das barreiras opostas à democratização da cultura, à expansão da educação baseada na ciência e à exploração da planificação social em assuntos de interesse coletivo. Nenhum tipo de sociedade confere ao homem poder para controlar, racionalmente, todas as condições e fatores irracionais conhecidos do ambiente social. O drama peculiar da sociedade de classes, onde ela se apresenta mais desenvolvida, consiste na falta de entrosamento entre as bases perspectivas e cognitivas da vida e os conhecimentos técnicos ou científicos “especializados”. Estes já comportam uma nova revolução do horizonte cultural, de profundas consequências para um domínio racional sem precedentes das forças materiais ou morais do meio social pelo homem. Contudo, ela não se produz, em grande parte porque atitudes e motivações irracionais valorizam a preservação de critérios obsoletos de comportamento, de organização das instituições sociais e de intervenção na realidade.

Do ângulo em que nos colocamos, em suma, aparecem como “desfavoráveis” ao desenvolvimento social as atitudes e as motivações: 1º) que não proporcionem, estrutural e dinamicamente, os ajustamentos requeridos pelas situações histórico­-sociais emergentes; 2º) ou que não assegurem suficiente plasticidade à renovação contínua e à substituição progressiva dos ajustamentos cuja eficácia social tenha declinado ou desaparecido. Na vida cotidiana, tanto a primeira condição quanto as alternativas da segunda condição ocorrem combinadamente. Em qualquer das hipóteses, elas se refletem no conteúdo e na configuração do horizonte cultural do homem, inibindo ou anulando sua capacidade de usar, coletivamente, o comportamento inteligente em fins sociais construtivos.

O segundo tema, referente às implicações práticas da explicação sociológica das atitudes e motivações “desfavoráveis” ao desenvolvimento social, mal pode ser mencionado aqui. A discussão foi demasiado ligeira e superficial, para comportar reflexões pragmáticas de certo alcance. No entanto, algumas coisas parecem evidentes, sendo oportuno pelo menos enumerá­-las.

A primeira implicação relevante diz respeito à importância atribuída pelo conhecimento de senso comum aos conteúdos das atitudes e motivações. Nossa análise sugere que há certo exagero nessa tendência. Os conteúdos das atitudes e motivações possuem significação “operacional”, mas eles são insuficientes para determinar o que acontecerá, em dada situação histórico­-social, em certos ajustamentos. Se isso não fosse verdadeiro, a expansão da sociedade de classes no mundo moderno teria sido mais homogênea e os influxos negativos psicossociais e socioculturais pelo menos produziriam efeitos similares.

A segunda implicação relaciona­-se com a determinação da influência dinâmica das atitudes e motivações sobre o desenvolvimento social. O impacto do contexto sociocultural parece merecer mais atenção que os argumentos fundados na racionalidade ou irracionalidade dos conteúdos das atitudes e motivações. Pelo menos, é patente que os efeitos negativos dela sobre o desenvolvimento social não se explicam de forma exclusivamente intelectualista. Deve­-se considerar, de um lado, a elaboração dos conteúdos das atitudes e motivações pelo contexto sociocultural; de outro, a qualidade da influência resultante sobre o comportamento social. O que vem acontecendo com a implantação de instituições políticas democráticas na América Latina, no Brasil inclusive, ilustra ambos os pontos. Portanto, seria aconselhável dar maior relevo a reflexões práticas que levassem em conta as perspectivas de reduzir e, se possível, evitar os malogros devidos às condições de manifestação de atitudes e das motivações.

Por fim, a terceira implicação afeta o cerne do nosso trabalho. Neste plano, lidar em conjunto com os conteúdos das atitudes e motivações, as elaborações sofridas por elas nos contextos socioculturais e a qualidade das influências que elas assim adquirem parece constituir um requisito de qualquer manipulação prática. Os efeitos negativos das atitudes e motivações, “desfavoráveis” ao desenvolvimento social, não são nem fortuitos nem inoperantes. Eles são regulares e repercutem claramente nos padrões de configuração da ordem social na sociedade de classes. Por isso, é preciso apanhá­-las, nas manipulações práticas, nas fases em que elas se manifestam como fatores psicossociais propriamente ditos. Tal resultado pode ser conseguido mediante o conhecimento de como a qualidade das influências negativas das atitudes e motivações pode ser alterada ou eliminada, através de arranjos nas condições reguladoras da elaboração dos conteúdos delas pelo contexto sociocultural.

Neste nível, a questão não é, apenas, substituir umas atitudes e motivações por outras, como se pensa vulgarmente. Trata­-se de obter controle sobre efeitos negativos, sobre concreções de atitudes e motivações, estrutural e dinamicamente integradas à vida social normal. Em síntese, trata­-se de intervir deliberadamente em fatores psicossociais, que operam com regularidade, interferindo na configuração do padrão e na determinação do ritmo do desenvolvimento social. Pragmaticamente, portanto, o essencial seria a eliminação de interferências de componentes psicossociais do comportamento humano na dinâmica da vida social organizada. Essa espécie de controle tem enorme importância na sociedade de classes. Ela representa um dos polos em torno dos quais vem girando o aumento do poder ativo do homem sobre as condições e os fatores do ambiente social – a domesticação e a racionalização dos comportamentos do próprio agente humano. Além disso, o que se poderia chamar de capacidade de desenvolvimento de um país moderno, em nossos dias, compreende, entre outras coisas, o sucesso por ele alcançado no controle de semelhantes interferências. Daí o significado especial que a última implicação prática adquire. Ela nos põe diante das perspectivas mais promissoras de ampliação do campo de intervenção racional do homem neste setor, com base em conhecimentos ou em técnicas sociais de origem científica.

Em conjunto, as três implicações mencionadas sugerem que não se pode intervir racionalmente nas atitudes e motivações “desfavoráveis” ao desenvolvimento social mediante as técnicas sociais de controle tradicionais. Tais atitudes e motivações se ligam a emoções, a interesses e a valores sociais que afetam áreas profundas do comportamento e prendem­-se a mecanismos sociais que não se alteram facilmente. As próprias flutuações nas emoções, nos interesses e nos valores sociais com frequência se refletem de várias maneiras seja na perpetuação delas, seja no agravamento de seus efeitos socialmente negativos. É verdade que existe, em alguns países, a convicção de que se poderia alterá­-las ou eliminá­-las através da propaganda focalizada. Ainda que o uso adequado da propaganda seja um instrumento de eficiência reconhecida, é duvidoso que ela contribua, positivamente, para provocar as mudanças do horizonte cultural do homem, que se fazem necessárias. As modificações que se impõem requerem a conjunção, em sentido amplo e construtivo, da reeducação à reconstrução social. Por isso, seria preciso pensar em planos ao mesmo tempo mais ambiciosos e seguros, que ponham maior ênfase no aproveitamento sistemático das contribuições teóricas e práticas, que os cientistas sociais já se achem em condições de prestar.

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76 Comunicação apresentada ao Seminário sobre Resistências à Mudança: Fatores que Dificultam ou Impedem o Desenvolvimento, realizado pelo Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais, da Unesco, em 22/10/1959. Publicado inicialmente como introdução a Mudanças sociais no Brasil.

77 E. Willems, Dicionário de Sociologia (Porto Alegre, Editora Globo, 1950), p. 42; sobre a teoria do desenvolvimento social, cf., especialmente, Morris Ginsberg, Essays in sociology and social philosophy (Londres, William Heinemann, 1956), vol. II, p. 29 e ss. L. Silberman, Analysis of society, Londres, William Hodge and Co. Ltd., 1951, cap. VIII.

78 Há, ainda, outra alternativa: a mudança pode ser irrelevante para a transformação do sistema social na direção de dado tipo social ou pode ser descrita sem nenhuma referência a esse fato.

79 Sobre a maneira pela qual o autor entende os diferentes campos da sociologia, mencionados neste trabalho, confronte “Sociologia” (artigo transcrito da Enciclopédia Delta), Cadeira de Sociologia I da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1957, p. 9­-17.

80 Cf., especialmente, Leçons de sociologie. Physique de moeurs et du droit (Paris, Presses Universitaires de France, 1950), Durkheim salienta que, nas fases de transição, o “único tipo social que se encontra realizado no presente e dado nos fatos é o do passado, não estando portanto em relação com as novas condições de existência” (cf. Les règles de la méthode sociologique, 10. ed., Paris, Presses Universitaires de France, 1947, p. 60). Todavia, não aplica essa regra na observação e interpretação dos fenômenos nas sociedades modernas, como o atestam as ideias expostas na Leçons e suas conhecidas reações aos efeitos anômicos da divisão do trabalho no presente.

81 Cf. Karl Mannheim, Libertad y planificación social (trad. de R. Landa, México, Fondo de Cultura Económica, 1942) e Freedom, power, and democratic planning (Nova York, Oxford University Press, 1950); Erich Fromm, The Sane Society (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1956); e The fear of freedom (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1942).

82 Max Weber, cf. especialmente: História económica general (trad. M. S. Sarto, México, Fondo de Cultura Económica, 1942), cap. IV; The protestant ethic and the spirit of capitalism (trad. T. Parsons, com introdução de R. H. Tawney, Londres, George Allen & Unwin, 1930). Cf. também: R. H. Tawney, Religion and the rise of capitalism (Londres, Penguin Books, 1938); idem, The acquisitive society (Londres, G. Bell & Sons, 1948); T. Parsons, The structure of social action (Glencoe, Illinois, The Free Press, 1949), parte III; idem, Essays in sociological theory pure and applied (Glencoe, Illinois, The Free Press, 1949), cap. V; H. Gerth e C. Wright Mills, introdução a From Max Weber: essays in sociology (Nova York, Oxford University Press, 1946). Em nossa discussão, aproveitamos largamente a contribuição dos sociólogos alemães sobre os processos de consciência social e suas influências nos processos macrossociais. Uma análise dessas contribuições pode ser encontrada em K. Mannheim, “Towards the sociology of the mind; an introduction”, in K. Mannheim, Essays on Sociology of Culture (Londres, Routlelge & Kegan Paul, 1956), p. 15­-89. A respeito das bases perceptivas e cognitivas do comportamento social inteligente, cf. especialmente S. Asch, Social psychology (Nova York, Prentice Hall, 1952), passim; sobre os demais aspectos das bases psico e sociodinâmicas do comportamento coletivo, cf., especialmente: K. Mannheim, Ideologia e utopia (trad. E. Willems, introdução de L. Wirth, Porto Alegre, Editora Globo, 1950); idem, Libertad y planificación social, op. cit., especialmente partes I, IV e V; H. Blumer, “Collective Behavior”, in R. E. Park, An outline of the principles of sociology (Nova York, Barnes & Noble, 1939), parte IV: H. Cantril, The psychology of social movements (Nova York, John Wiley & Sons, 1941), parte I; H. Gerth e C. Wright Mills, Character and social structure (Nova York, Harcourt, Brace & Co., 1953), especialmente cap. V, no qual se encontra importante ampliação da teoria da motivação de M. Weber, e parte IV.

83 Segundo Max Scheler (Sociología del saber, trad. J. Gaos, Buenos Aires, Revista de Ocidente Argentina, 1947, p. 99­-164), essa combinação inclusive explicaria o aparecimento da ciência. As análises de Weber demonstram que o processo em questão é anterior à emergência da concepção burguesa do mundo (cf. indicações da nota anterior).

84 Incluímos duas fases distintas do desenvolvimento da sociedade de classes na mesma caracterização por causa das limitações de espaço. As caracterizações de Tönnies correspondem à fase de expansão da sociedade de classes, vinculada à Revolução Industrial e aos seus efeitos histórico­-sociais; as de Sombart abarcam outras fases, além dessa, e inclusive a era do “apogeu do capitalismo” (cuja delimitação histórica é inaceitável e precisa ser amplamente corrigida com os modernos estudos de sociologia industrial, do trabalho, da burocratização etc.). As referências seguintes são apenas as essenciais: F. Tönnies, Communauté et société (trad. J. Leif, Paris, Presses Universitaires de France, 1944); idem, Princípios de sociologia (trad. V. Llorens, México, Fondo de Cultura Económica, 1942, especialmente, Livro Quinto) e Desarrolo de la questión social (trad. M Reventós, 2. ed., Barcelona, Editorial Labor, 1933); W. Sombart, Il Borghese (trad. H. Fust, Milão, Longanesi, 1950); idem, El apogeo del capitalismo (trad. J. U. Guerrero e V. Caridad, México, Fondo de Cultura Económica, 1946, 2 vols.); idem, artigo “Capitalism”, in Encyclopaedia of Social Sciences, vol. III, p. 195­-208. Cf. ainda Max Weber, Economía y sociedad (trad. J. M. Echavarria, J. R. Parella, E. G. Maynez e S. F. Mora, México, Fondo de Cultura Económica, 1944), principalmente as condições e os efeitos da racionalização e da burocracia; Graham Wallas, The great society (Nova York, Macmillan, 1936); R. E. Park, Human Comunities (Glencoe, Illinois, The Free Press, 1952), capítulos 1, 10, 11, 14 e 15; E. Mayo, The social problems of an industrial civilization (Londres, Routledge & Kegan Paul, Nova York, Macmillan, 1947); A. V. Gouldner, Patterns of industrial bureaucracy (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1955).

85 Trata­-se, naturalmente, dos elementos pertinentes à função manifesta das convenções, das ações e das instituições sociais.

86 Sobre a importância desses conhecimentos como “técnica social”, cf. K. Mannheim, Libertad y planificación social, op. cit., parte V, o qual fornece ampla bibliografia. A respeito dos demais aspectos do emprego do pensamento racional no planejamento ou das funções sociais deste, cf. esp.: W. Keilhau, Principles of private and public plannig: a study in economic sociology (Londres, George Allen and Unwin, 1951); M. P. Fogarty, Economic control (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1955); E. A. Gutkind, Revolution of environment (Londres, Kegan Paul, Trench, Trubner, 1946); A. Hillman, Community organization and planning (Nova York, Macmillan, 1950); Louis Wirth, Community, life and social policy (Chicago, The University of Chicago Press, 1956).

87 Sobre a natureza e as implicações da “análise ontogenética” na sociologia, cf. F. Znaniecki, The method of sociology (Nova York, Farrar & Rinehart, 1934), cap. IV. Quanto à interpretação dos fenômenos sociais sincrônica e diacronicamente, cf. A. R. Radcliffe­-Brown, Method in social anthropology (Chicago, The University of Chicago Press, 1959), especialmente parte II, passim.

88 Cf. especialmente G. Bateson, Naven (Stanford, Stanford University Press, 1958), p. 23­-34.

89 Um deles, a influência de círculos privilegiados na mudança social progressiva, foi mencionado no texto. Mas existem outros, como a resistência às inovações nas diversas camadas sociais, o mau uso das inovações, o ritmo da mudança etc., que, infelizmente, não podem ser abordados aqui.

90 K. Marx, cf. especialmente: Contribuição à crítica da economia política (trad. e introdução de F. Fernandes, São Paulo, Editora Flama, 1946); El capital (trad. M. Pedroso, México, Ediciones Fuente Cultural, s. d., 5 vols.); La guerre civile en France (Paris, Éditions Sociales, 1946; Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte (Paris, Éditions Sociales, 1945); Miséria da filosofia (trad. M. Macedo, São Paulo, Editora Flama, 1946); em colaboração com F. Engels, The German ideology (editado com um introdução de F. Pascal, Nova York, International Publishers, 1939); La sagrada família (trad. C. Liacho, Buenos Aires, Editorial Claridad, 1938). F. Engels, Socialism: utopian and scientific (trad. E. Aveling, Londres, George Allem & Unwim, 1950). Cf., ainda, V. Venable, Human nature: the marxian view (Londres, Dennis Dobson, 1946); R. Schlesinger, Marx. His time and ours (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1950); e o aproveitamento extraortodoxo das concepções de Marx e Tönnies por H. Freyer, La sociología, ciencia de la realidad (trad. F. Ayala, Editoral Losada, Buenos Aires, 1944), especialmente o cap. III.

91 Cf., a respeito da significação das preocupações metodológicas de Marx, F. Fernandes, Os fundamentos empíricos da explicação sociológica (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1959), p. 103­-27.

92 P. Kropotkin, Mutual aid: a factor of evolution (Londres, Penguin Books, 1939).

93 M. Ginsberg, Essays in sociology and social philosophy, op. cit., passim.

94 Deste ângulo, mesmo o conflito depende de formas cooperativas de interação social.

95 O que se patenteia na sua análise da mais­-valia e dos fundamentos da mais­-valia relativa.

96 Hans Freyer, La sociología, ciencia de la realidad, op. cit.; idem, Introdución a la sociologia (trad. de F. G. Vicen, Madri, Ediciones Nueva Época, 1945), especialmente cap. IV. Karl Mannheim, Ideologia e utopia, op. cit.; Libertad y planificación social, op. cit.; Freedom, power, and democratic planning, op. cit.; Essays on the sociology of culture, op. cit.; Diagnóstico de nuestro tiempo (trad. de J. M. Echavarria, México, Fondo de Cultura Económica, 1944); Essays on sociology and social psychology (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1953), partes III e IV; Essays on the sociology of knowledge (Londres & Kegan Paul, 1952), passim.

97 Sobre os dois últimos aspectos, cf. especialmente: C. Wright Mills, White Collar. The american middle class (Oxford, Oxford University Press, 1956); e The power elite (Nova York, Oxford University, Press, 1956). Sobre o conflito e suas funções sociais construtivas, cf. especialmente L. A. Coser, The functions of social conflict (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1956).

98 Na discussão subsequente, não foram consideradas, de modo sistemático, as evidências relativas à Rússia e à China. Já que não seria possível fazer uma análise mais completa e profunda, o autor tentou evitar referências que não poderiam ser elaboradas de modo satisfatório. Ambos os países suscitam problemas essenciais em relação à possibilidade de lutar contra o “subdesenvolvimento” através de técnicas radicais de mudança planificada e dirigida.

99 Alguns aspectos desse processo foram analisados pelo autor no cap. II, p. 60 e ss., “Obstáculos extraeconômicos à industrialização no Brasil”.

100 O mesmo se poderia afirmar dos interesses coloniais de outros países europeus. A importância da particularização reside, apenas, no fato de contrastar idealmente os fundamentos “objetivos” e as justificações “morais” dos comportamentos em questão.

101 Sobre o “dilema racial”, cf. especialmente G. Myrdal, com a colaboração de R. Sterner e A. Rose, An american dilemma, The negro problem and modern democracy (Nova York, Harper & Brothers Publishers, 1944, 2 vols.); sobre o dilema educacional, cf. especialmente, A. B. Hollingshead, Elmtown’s Youth, the impact of social classes on adolescentes (Nova York, John Wiley & Sons, 1949). Em ambas as obras, encontram­-se indicações bibliográficas sobre o assunto.

102 Cf., especialmente, Gunnar Myrdal, An international economy. Problems and prospects (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1956), onde se encontram uma bibliografia sobre o assunto e a enumeração das monografias preparadas sob os auspícios de departamentos especializados da Unesco.