Capítulo II

Obstáculos Extraeconômicos à Industrialização no Brasil22

1 – Introdução

O esforço realizado pelo Brasil, na área da industrialização, merece ser encarado com relativo entusiasmo e fundadas esperanças. Tendo­-se em vista a estrutura da economia brasileira e a forma de sua integração à economia internacional, esse esforço patenteia inegável êxito na luta pelo aumento da riqueza, da prosperidade e da emancipação econômica.

Contudo, parece chegado o momento em que se impõe uma alteração radical na estratégia seguida até o presente na organização e na orientação das atividades econômicas. É preciso que se aprofunde e se sistematize a análise das condições em que se operaram o surto industrial e a expansão das indústrias básicas, com o fito de pôr em evidência a natureza e os efeitos dos fatores que tendem a perturbar o desenvolvimento da industrialização no Brasil.

Esse tipo de conhecimento pôde ser neglicenciado, quase sem inconvenientes de ordem prática, nas fases por assim dizer pioneiras da implantação de indústrias no país. Várias condições altamente favoráveis, relacionadas com a disponibilidade de capitais e com o aumento positivo ou artificial da procura, permitiram uma exploração eficaz da improvisação, da experiência rotineira e do oportunismo mais ou menos audacioso. Erros graves encontravam pronta correção natural, deixando de refletir­-se ou prejudicando de modo brando a vitalidade das empresas. Várias circunstâncias concorrem para manter uma conjuntura decididamente propícia aos empresários, como seria normalmente de esperar numa economia em transição para as técnicas empresariais modernas. Mas, ao mesmo tempo, já se fazem sentir novas exigências de organização e de administração das empresas em bases especificamente capitalistas. O progresso na reintegração do sistema econômico, embora lento, tende a impor a observância crescente de normas e padrões de atuação econômica de caráter racional. Em consequência, o empresário brasileiro começa a enfrentar a necessidade de tomar consciência mais completa e objetiva da situação histórico­-social, bem como da natureza das forças econômicas que nela operam. Os erros de organização, de administração e de previsão começam a acarretar, com certa aceleração constante, efeitos que não podem ser compensados pelo crescimento rápido e desordenado das empresas. Doutro lado, estas estão exigindo o domínio efetivo das forças econômicas que caem no campo de consciência social dos homens, na economia capitalista, e podem ser manipuladas por eles, dentro de certos limites, por meio de técnicas de controle apropriadas.

Portanto, para tudo dizer com poucas palavras, a figura típica do empresário moderno começa a definir­-se como categoria histórica em nossa vida econômica. Isso acontece numa fase em que o espírito pioneiro do empreendedor pré­-capitalista deixa de ser criador e produtivo em face da complexidade dos problemas a serem resolvidos na esfera da prática. As exigências novas da situação histórico­-social impõem modificações que não afetam, apenas, formas isoladas de atuação ou de comportamento econômico. É o horizonte intelectual do empreendedor que precisa ser alterado, como requisito para a formação de uma mentalidade econômica compatível com o grau de racionalização dos modos de pensar, de sentir e de agir inerentes à economia capitalista.

Dessa perspectiva, é fácil perceber a ligação existente entre o conhecimento da situação, o comportamento prático dos homens e o grau de controle social por eles alcançado sobre as forças econômicas do meio social ambiente. Sem tomar consciência prévia das origens, da natureza e dos efeitos dessas forças, os homens são incapazes de submetê­-las a alguma forma de controle social, de evitar suas consequências nocivas e, particularmente, de aproveitar suas potencialidades construtivas. Aqui, é preciso ressaltar, de passagem, que a eficácia prática de conhecimentos dessa espécie aumenta na medida em que se consegue evidenciar quais são as condições e os fatores que interferem no chamado “curso normal” dos processos econômicos, perturbando de maneira determinável a qualidade de seus efeitos, seu ritmo de desenvolvimento, sua contribuição dinâmica para a integração do sistema econômico etc.

No presente trabalho, pretendemos, tão somente, focalizar alguns aspectos, mais ou menos conhecidos, das relações entre a estrutura da sociedade brasileira contemporânea e a industrialização. Escolhemos, deliberadamente, as relações que revelam os influxos sociais adversos ao incremento da industrialização. As razões impostas acima indicam por que fizemos tal escolha. No estado atual da economia brasileira, interessa­-nos, sobretudo, conhecer e intervir nas condições e fatores que possam ser definidos como “obstáculos ao desenvolvimento econômico”. Todavia, reconhecemos, também, que muitas dessas condições tiveram ou ainda exercem influências positivas, na conjuntura econômica brasileira. Ninguém poderia negar, por exemplo, a importância estrutural e dinâmica das facilidades encontradas pelos empresários na industrialização do Brasil. Parece­-nos mais premente, porém, conduzir a reflexão para a outra fonte de influxos que parecem explicar inconsistências e debilidades básicas do padrão brasileiro de desenvolvimento industrial.

É claro que nem todas as questões, que estão a exigir análise urgente, puderam ser examinadas. Limitamo­-nos a três temas mais gerais e importantes, que permitem verificar como condições e fatores extraeconômicos, relacionados com a estrutura e a dinâmica da sociedade brasileira, parecem interferir no processo de industrialização. Esses temas podem ser enunciados da seguinte maneira: a industrialização da sociedade brasileira; industrialização e subdesenvolvimento; os fatores negligenciados da industrialização. Eles serão discutidos na ordem exposta, com as limitações resultantes da própria extensão da análise.

2 – A industrialização na sociedade brasileira

Vista em relação às bases ecológicas, técnicas e sociais da vida humana no âmbito da moderna civilização ocidental, a industrialização representa um padrão natural de desenvolvimento. Isso significa: 1º) que ela não é apanágio de nenhuma nação em particular; 2º) que a sua emergência, bem como a sua expansão dependem de mecanismos econômicos, culturais e societários suscetíveis de expressão e de florescimento em quaisquer sociedades de tipo capitalista;23 3º) que a intensidade com que ela se manifesta é variável, em virtude do grau de diferenciação e de integração desses mecanismos, o qual é regulado pelas condições histórico­-sociais de existência alcançadas em tais sociedades.

Desse ângulo, a industrialização do Brasil não constitui um fato excepcional ou espantoso. Ao contrário, é um processo que se inclui na ordem das ocorrências normais da evolução social. Enquanto a sociedade brasileira não apresentou condições que permitissem semelhante desenvolvimento, as tentativas prematuras foram selecionadas negativamente. Deram origem a episódios curiosos, que ilustram o arrojo de certas personalidades e o fascínio que sobre nós sempre exerceram as realizações dos “povos civilizados”. No entanto, o problema não era de simples imitação. Comprar certas máquinas, instalá­-las no Brasil, importar com elas o elemento humano qualificado, dispor e inverter os recursos financeiros imprescindíveis, e tantas outras coisas, não equivaliam a tornar a empresa industrial possível no Brasil. Era preciso que a própria sociedade brasileira se transformasse, a ponto de converter a industrialização em algo socialmente viável, para que as tendências à imitação construtiva pudessem ser aproveitadas de modo produtivo. Por isso, a industrialização aparece como valor social, na cena histórica brasileira, por volta de 1850, na era e sob a égide de Mauá; mas, só se transforma em força social quase um século mais tarde! Nesse intervalo de tempo, muitas energias físicas e recursos materiais incalculáveis foram submetidos a uma devastação mais ou menos improdutiva, inspirada não raras vezes no afã de fazer do Brasil um “país civilizado”.24

As condições que iriam regular a emergência e o florescimento da industrialização na sociedade brasileira surgiram gradativamente, com certa continuidade mas segundo um ritmo muito lento e heterogêneo. Em termos sociológicos, as origens remotas do processo se encontram na desagregação da ordem social associada ao regime de castas, ao latifúndio e ao trabalho escravo. Foram os círculos sociais mais diretamente interessados na expansão da economia de mercado que se empenharam, simultaneamente, na luta contra o “antigo regime” e por inovações que facilitassem o advento da indústria. Esses círculos eram constituídos por elementos típicos da “cidade” – por pessoas que compartilhavam da concepção urbana do mundo, vendo criticamente os interesses e os valores dos senhores rurais brasileiros. Às vezes, essas pessoas estavam presas, por parentesco ou materialmente, à estrutura existente de poder; insurgiam­-se ainda assim contra ela por se identificarem moralmente com o cosmo urbano, no qual se representava o regime de trabalho escravo como a principal causa da estagnação econômica, intelectual e política do país.

A desagregação do antigo regime favoreceu o fluxo urbano. As cidades perderam o caráter de aglomerações dependentes dos núcleos rurais adjacentes e de mero cenário em que se enfrentavam os grandes interesses rurais em pugna. Elas cresceram e ofereceram, onde a prosperidade econômica secundou este processo, as bases para a diferenciação e a reintegração da economia de mercado interna. Nas fases que antecederam ou se seguiram, imediatamente, à desagregação da ordem de castas, escravocrata e senhorial, a urbanização foi, portanto, o elemento dinâmico que polarizou o desenvolvimento industrial. De um lado, ela contribuiu, poderosamente, para a cristalização e a divulgação de certas avaliações, que faziam da industrialização um valor central da nova concepção do mundo em formação. De outro lado, ela foi o primeiro agente da diferenciação da economia de mercado, operando­-se, através dela, a substituição inicial da produção artesanal pela produção manufatureira de bens de consumo. O desenvolvimento da cidade de São Paulo, entre os fins do século passado e o começo deste século, fundamenta empiricamente ambas as afirmações.

Se compararmos essas relações entre a urbanização e a industrialização com o que ocorreu em outros países, como a Inglaterra, a Alemanha ou os Estados Unidos, veremos que a situação brasileira nada apresenta de novo no que é essencial. Ela reproduz processos e tendências já estudados pelos especialistas estrangeiros. O aparecimento, o incremento e a diversificação da produção industrial acompanham certas condições da estrutura e da rede de influências da “comunidade urbana”. A industrialização aparece, nitidamente, como padrão natural de desenvolvimento do tipo de ordem social implantado no Brasil como um capítulo da expansão europeia nos trópicos.

Contudo, existem duas espécies de diferenças fundamentais, de grande importância para a análise sociológica. Primeiro, o que se pode chamar de “antigo regime”, no Brasil, é algo bem diverso do estado de coisas equivalente na Europa. A escravidão, nas Américas, introduziu um fator de regressão na integração do sistema social, transplantado pelos “colonizadores” da Europa. Qualquer que seja a importância que atribuamos a essa constatação, o fato é que o ponto de partida típico da industrialização deixou de ser o mesmo. Atendo­-nos à situação brasileira, o desenvolvimento urbano não só era recente, mas restrito, superficial e descontínuo; mal escondia os escombros da ordem rural de que emergira, sendo insuficiente para assegurar as bases de uma economia de mercado capaz de garantir certa vitalidade e integração orgânica às tendências de crescimento industrial. Segundo, o que nos parece ainda mais importante, a industrialização adquire, desde o início, o caráter de um processo socioeconômico culturalmente vinculado à assimilação de técnicas, instituições e valores sociais importados da Europa, ou, em menor escala, dos Estados Unidos. Essa condição deu origem a “saltos” decisivos na evolução histórica da civilização ocidental no Brasil, sendo o principal fator que explica como e por que não é maior a distância cultural existente entre a sociedade brasileira e os grandes centros produtores daquela civilização. No entanto, as condições econômicas e socioculturais internas não continham elementos que possibilitassem a transplantação literal das técnicas, instituições e valores, pertinentes aos modelos ideais de organização e de exploração econômicas da empresa industrial. Eles foram reproduzidos, mas na escala em que o permitia a situação histórico­-social brasileira. Ou seja, passando por processos de reinterpretação e de reintegração cultural que acarretaram, em regra: perda da eficácia instrumental das técnicas; empobrecimento do poder organizatório e dinâmico das instituições; e redução, em superfície e em profundidade, dos influxos morais dos valores no comportamento humano, nos diferentes níveis da empresa industrial.

A primeira diferença tem sido mais ou menos reconhecida. Ela precisava ser lembrada, em nossa discussão, porque esclarece o hiato existente entre a emergência da indústria e a sua transformação em fator social construtivo. Tomando­-se como ponto de referência uma cidade como São Paulo, há um lapso de quase meio século entre as primeiras manifestações da industrialização e a atuação dela como uma força social propriamente dita. Foi principalmente em consequência dos efeitos das duas deflagrações mundiais na expansão da economia interna de mercado e de medidas de política econômica, tomadas depois de 1930, que a industrialização passou a exercer influências marcantes no padrão de organização ecológica e nas funções regionais ou nacionais da economia da cidade. Então, em vez de contar como produto dinâmico da urbanização e da especialização econômica de uma comunidade urbana – com efeitos reativos circunscritos na diferenciação e na integração de sua estrutura – a industrialização se inclui entre os fatores permanentes da expansão das funções urbanas e metropolitanas da cidade. Hiatos desse tipo são evidentes no desenvolvimento industrial de países europeus e no norte dos Estados Unidos. Mais aqui eles abrangem lapsos de tempo bem maiores e, principalmente, não se associam a um padrão semelhante de interação da economia com a sociedade.

Portanto, é legítimo presumir que o ritmo revelado pela industrialização no Brasil foi afetado, negativamente, pelas condições sociais de existência, imperantes na sociedade brasileira, pelo menos durante o primeiro grande surto industrial. Essas condições não foram de molde a favorecer, decididamente, sequer as tendências à industrialização amparadas pelas transformações de estrutura da sociedade brasileira. As perspectivas de que essa situação se alterará, numa direção mais próxima do que transcorreu na Europa ou nos Estados Unidos, são alimentadas por processos recentes. Eles dão margem à convicção de que, afinal, os influxos da industrialização começam a fomentar condições societárias mais propícias à empresa industrial e às suas funções na vida moderna. Isso não nos obriga, porém, a modificar o raciocínio anterior nem a conclusão que ele fundamenta, de que a industrialização sofreu uma elaboração social no Brasil altamente favorável à contenção das influências que ela poderia exercer, construtivamente, no ajustamento do meio social às exigências da empresa industrial.

A segunda diferença tem sido espantosamente negligenciada, como se o teor racional dos elementos imitados estabelecesse mínimos inevitáveis e satisfatórios de eficácia. Ora, isso não é verdadeiro. O rendimento das técnicas, das instituições e dos valores, na economia como em qualquer outra esfera da vida social, depende do agente humano e das condições em que ele atua socialmente. O fato de a economia brasileira estar inserida no sistema capitalista, mesmo através dos “produtos coloniais”, garante a presunção de que os incentivos (ou pelo menos certos incentivos) ao comportamento racional não estavam ausentes em nossa economia pré­-industrial. Doutro lado, boa parte da expansão industrial fez­-se através da importação simultânea de técnicas, de instituições e de valores com o elemento humano exigido pela situação nova. Isso ocorria em dois casos especiais: a) quando se tratava de atividades produtivas especializadas mais ou menos complexas; b) quando empresas estrangeiras estendiam ao Brasil sua rede de operações. Os dois processos tiveram (e ainda têm) a sua importância no desenvolvimento da industrialização. Contudo, é certo que os elementos racionais, inerentes à economia capitalista pré­-industrial, são suficientes à formação do empresário industrial? É verdadeiro que o elemento humano qualificado sempre trazia consigo os conhecimentos fundamentais de sua especialidade? É exato que as empresas estrangeiras conseguiriam reconstruir suas filiais no Brasil segundo os mesmos modelos de organização, de administração e de supervisão mantidos nos países de origem? Essas e outras perguntas encontram a mesma resposta: onde aconteceu o melhor, a improvisação nunca ficou totalmente excluída e várias condições específicas da sociedade brasileira permitiram ampla interferência de fatores irracionais na estrutura da empresa industrial. O antigo fazendeiro poderia revelar tino administrativo, capacidade de mando e audácia empreendedora; raramente, porém, não misturaria os negócios da empresa com assuntos privados da família. O técnico estrangeiro podia possuir grande competência, disciplina de trabalho e imaginação criadora; raramente, porém, teria possibilidade de assegurar condições técnicas e humanas indispensáveis à eficiência do seu trabalho ou furtar­-se à ambição de propor­-se carreiras mais rendosas, para as quais também não estaria preparado. A empresa estrangeira podia estar, inclusive, animada de intentos altruísticos; raramente, porém, conseguiria prescindir das injunções pessoais, jurídicas e econômicas que “abrasileiram”, estrutural e funcionalmente, mesmo as firmas alienígenas mais rígidas. A moral da história é simples. A racionalização da empresa industrial não pode ser levada além dos limites em que os modelos racionais de pensamento e de ação são exploráveis com eficácia no comportamento cotidiano.

Por aqui se vê que existem inconsistências no seio do sistema industrial brasileiro, que se explicam através da própria condição humana. O homem é expressão de seu meio social e mesmo quando o ultrapassa corresponde a algum incentivo de origem ou de consequência sociais. As limitações humanas da economia industrial brasileira são quase todas redutíveis a condições ou a fatores que cercam, socialmente, as atividades econômicas. Por isso, as fatalidades que pesam sobre elas são de caráter impessoal e relativo – o que permite dizer que elas são “estruturadas”. Esse fato, que aparentemente justifica apreciações otimistas, torna as coisas bem mais difíceis. A correção das fontes de erro, no plano ou em escala individual, revela­-se quase inócua. Para alterar­-se a situação, responsável por tais inconsistências, seria preciso dar maior expansão à influência do elemento racional no comportamento humano. Na Europa, por exemplo, isso se processou espontaneamente; o horizonte intelectual do homem foi extensamente modificado pela secularização de atitudes e pela racionalização dos modos de conceber o mundo, processos que antecediam ou se desenrolavam conjuntamente com a industrialização. No Brasil, o progresso na esfera da cultura às vezes precede, inapelavelmente, o progresso simétrico do homem e da sociedade. Trata­-se de uma consequência paradoxal da assimilação de técnicas, instituições e valores por via de difusão e de imitação. Esse fenômeno é patente no caso que estamos examinando. A transplantação da empresa industrial está associada a efeitos da secularização da cultura e da racionalização dos modos de conceber o mundo, que levaram o urbanista brasileiro a valorizar socialmente a industrialização e a incluí­-la na esfera axiológica de seu patrimônio cultural. Esses efeitos, não obstante, mostram­-se insuficientes e incongruentes, a ponto de impedir até um aproveitamento mais extenso, rendoso ou profundo dos elementos culturais importados. Na verdade, as coisas não poderiam passar­-se de outro modo. A grande revolução social brasileira, que está atrás de ambos os processos, se vem arrastando lenta e descontinuamente, pela desagregação da sociedade patrimonialista e da formação da sociedade de classes. Em consequência, interesses e valores da nova ordem social nem sempre se impuseram claramente, inclusive para os líderes das camadas dominantes, e muitas vezes ainda hoje são toscamente conciliados com interesses e valores da ordem social desaparecida ou em colapso.25

Apesar das limitações insanáveis da presente discussão, dela podemos tirar duas ilações. Em primeiro lugar, a industrialização brasileira aparece como um produto natural do desenvolvimento da sociedade de massas no Brasil. Mas, por isso mesmo, não chega a contar, senão tardiamente, com condições societárias essenciais à sua manifestação como um processo social organicamente integrado, contínuo e atuante na diferenciação da vida socialmente organizada. Em segundo lugar, ela seria impraticável se o aparecimento de certas necessidades internas não se associasse à assimilação de técnicas, instituições e valores econômicos, que permitiam satisfazer aquelas necessidades mediante a introdução e a expansão da empresa industrial na sociedade brasileira. No entanto, tal associação se fez de modo a preservar inconsistências estruturais no comportamento dos agentes econômicos, no funcionamento da empresa industrial isolada e na integração do sistema industrial como um todo. Isso mostra quanto comportamentos e processos econômicos podem ser afetados, em sua motivação, em seu desenrolar e em seus efeitos, pelas condições sociais em que se realizam. Naquilo em que o assunto pode interessar­-nos aqui, demonstra­-nos que “obstáculos” de natureza psicossocial e sociocultural interferiam e tendem a interferir, extensa e profundamente, na emergência da industrialização na sociedade brasileira.

É provável que o termo “obstáculo” seja mal escolhido, pois essa interferência possui caráter tipicamente adaptativo: graças a ela, a industrialização assumiu uma configuração compatível seja com a estrutura, seja com as transformações em processo da sociedade brasileira. O emprego do termo se justifica, todavia, quando se cotejam a emergência e os efeitos da industrialização no Brasil com fenômenos análogos em países europeus, economicamente adiantados, ou nos Estados Unidos. Semelhante comparação sugere que os efeitos da industrialização dependem das condições histórico­-sociais em que ela se realiza. Doutro lado, ressalta que a ausência de certas tendências ou de determinados efeitos (que produzem alterações em cadeia na organização da sociedade) pode ser suposta como obstáculo natural à realização do padrão de desenvolvimento pressuposto pela industrialização. Nesse sentido, as ilações que tiramos sobre a manifestação do fenômeno na sociedade brasileira são defensáveis e pertinentes.

3 – Industrialização e subdesenvolvimento

Os resultados da discussão precedente põem em evidência algo essencial. Em dadas situações histórico­-sociais, a ausência de condições societárias, requeridas pelos processos que produzem e orientam a mudança social, acaba anulando ou restringindo, severamente, as influências construtivas dos fatores dinâmicos da vida social. Isso é patente em relação aos influxos da industrialização na sociedade brasileira atual. Ela não consegue desencadear sequer as alterações que são indispensáveis à própria estabilidade do sistema industrial e de suas tendências de crescimento.

Essa consideração dá alento à hipótese de que os fatores de desenvolvimento são calibrados em função das constelações histórico­-sociais em que se integram e nas quais operam, dinamicamente, como forças sociais construtivas. O poder potencial que eles possuem, como foco de mudança social, pode ser diminuído ou aumentado, de acordo com o padrão de equilíbrio instável, inerente às referidas constelações histórico­-sociais. Trata­-se de uma hipótese deveras importante, do ponto de vista pragmático, porque sugere ser inócuo pensar em desenvolvimento em termos de manipulação de fatores dinâmicos isolados. Precisa­-se ter em mente, sobretudo, se a forma de integração desses fatores a dadas constelações histórico­-sociais permite ou não aproveitar, regularmente, suas potencialidades dinâmicas conhecidas. Até o presente, tem­-se encarado a industrialização, em si mesma, como um fator independente de desenvolvimento da sociedade brasileira. Os economistas contribuíram para mostrar que essa avaliação é incorreta, pois o ritmo e o alcance de seus efeitos econômicos inovadores se subordinam a influências reguladas pela estrutura e pela dinâmica do sistema econômico. Do mesmo modo, o sociólogo acredita que as potencialidades da industrialização são selecionadas, incentivadas ou destruídas através de influências devidas à estrutura e à dinâmica do sistema social. Parece fora de dúvida, mesmo, que, em certas instâncias, o condicionamento social é responsável por influxos da industrialização que são negativos para o desenvolvimento da sociedade brasileira. São exemplos dessa ordem as ocorrências nas quais as soluções encontradas para os nossos problemas industriais servem de impedimento à renovação do parque industrial brasileiro ou de certas indústrias em particular. Em tais casos, a industrialização opera, visivelmente, como veículo de defesa do status quo, o que equivale a dizer, das condições de subdesenvolvimento que ele encarna.

Não podemos examinar, infelizmente, esse complexo problema. Mas podemos ventilar alguns de seus aspectos mais importantes. Eles dizem respeito, segundo pensamos, às condições histórico­-sociais que regulam e graduam as manifestações da industrialização em nosso país. A análise reterá, de outro ângulo, as conclusões anteriores. Contudo, oferecerá uma perspectiva nova, ensinando que o padrão assumido pela industrialização em uma sociedade subdesenvolvida, como a nossa, é determinado por elementos e fatores que tendem a alterar­-se, progressivamente, no decorrer dos próximos anos. Os elementos e fatores em questão são instáveis, combinando­-se segundo condições em constante tendência de reintegração. Daí ser presumível que a progressiva expansão do sistema de classes sociais no Brasil produza uma progressiva eliminação das condições e efeitos do subdesenvolvimento. Na medida em que isso ocorrer, a industrialização brasileira assumirá, naturalmente, padrões mais complexos, orgânicos e integrados de desenvolvimento. Em síntese, a análise sociológica define as relações entre a industrialização e o subdesenvolvimento em termos relativos, de acordo com as evidências fornecidas pelos próprios fenômenos analisados. O Brasil não está fadado, de maneira alguma, à condição de país subdesenvolvido e de nação subindustrializada. Parece, mesmo, que não seria legítimo aplicar esse raciocínio a nenhum povo atual; e que, sob muitos aspectos, a alteração da presente situação brasileira se fará com maior rapidez do que se pensa.

O primeiro ponto, que merece ser abordado aqui, relaciona­-se como o fato central de que o subdesenvolvimento não é uma condição negativa universal para a industrialização. Uma sociedade subdesenvolvida, que possua certa base demográfica, capacidade de importação e utilização de tecnologia científica, disponha de matérias­-primas básicas, certo número de núcleos urbanizados suscetíveis de expansão metropolitana, tendências coerentes de diferenciação e reintegração das classes sociais etc., conta com vários elementos favoráveis à industrialização. Com frequência, esses elementos propiciam, inclusive, uma exploração intensa de indústrias de bens de consumo, às vezes de forma econômica bem vantajosa. As condições negativas do subdesenvolvimento aparecem num nível mais complexo: quando se tenta converter um “país subdesenvolvido” em “sociedade industrial” propriamente dita, com a formação de um sistema industrial organicamente diferenciado e relativamente autossuficiente. Mas, mesmo aqui, várias condições de vida de um “país subdesenvolvido”. Entre elas, cumpre mencionar a reserva de trabalho, as margens de lucro do empresário e, a mais importante de todas, as disposições subjetivas que fazem da industrialização um valor social de caráter moral.

Precisamos insistir neste aspecto, porque é deveras importante. Uma sociedade subdesenvolvida, que chega a incluir a industrialização em seu sistema de valores, atribuindo­-lhe o caráter de mores, é uma sociedade na qual o subdesenvolvimento se eleva à esfera de consciência social como condição socialmente indesejável. No Brasil, essa polarização da consciência social é antiga. Já no período das lutas pela independência e dos movimentos abolicionistas, ela aparece na ideologia das camadas dominantes. Contudo, ela só adquire poder prático depois da desagregação da ordem social escravocrata e senhorial e dos primeiros êxitos na transplantação da empresa industrial para São Paulo. Ambas as ocorrências tornaram patentes, no seio da sociedade brasileira, duas coisas correlacionadas: 1º) o antigo regime só foi abalado, estruturalmente, onde se conseguiu substituir, de fato, o estilo de vida tradicional por novas formas sociais de existência; 2º) o “progresso” pôde ser alcançado na sociedade brasileira, por vias conhecidas, através das experiências históricas de outros povos. Antes, a industrialização era uma reivindicação utópica, que aparecia esporadicamente nos espíritos esclarecidos das camadas dominantes. A partir da primeira década de nosso século, ela se incluiu na situação de interesses de círculos ativos das camadas dominantes e do proletariado em gestão passando a alimentar uma ideologia, que cresceu rapidamente e se difundiu em toda a sociedade brasileira. O fato de essa ideologia ser aceita, inclusive por pessoas ou grupos que poderiam combatê­-la, se explica pelas duas consequências mencionadas. O mito de São Paulo, da sua riqueza e do seu progresso trazia consigo a evidência histórica de que o Brasil podia tornar­-se um “país civilizado” e que a industrialização seria o caminho seguro para atingir esse fim.

Esse estado de espírito explica os imensos sacrifícios que se vêm fazendo no Brasil, pela industrialização. Trata­-se de um processo psicossocial que não ocorreria: 1º) senão em um país subdesenvolvido; 2º) no qual amplos setores da população se dispusessem a conquistar o “progresso” social e econômico a qualquer preço, ou seja, a tomar consciência e a lutar contra o subdesenvolvimento. Esse ponto precisa ficar bem estabelecido, se quisermos explicar atitudes e comportamentos que não nascem da inércia social. Quando uma pessoa adquire, por preço que considera elevado, uma tomada elétrica (ou outro produto qualquer, como sapatos, parafusos, tecidos etc.) e descobre que ela é feita com material de má qualidade – experiência que se completa, tristemente, pouco tempo depois, com a necessidade de substituir a peça por outra nova – está sabendo que fez um mau negócio. Porém aceita de boa mente o lado desvantajoso da transação. Não se rebela contra as medidas protecionistas, que permitem o florescimento desse estado de coisas. Por quê? É que nesse, e em muitos casos da mesma natureza, a perda eventual no presente importa menos que o fato de possuirmos uma indústria e de termos a perspectiva de melhorar essa indústria, a ponto de produzirmos, no futuro, artigos de boa qualidade a bons preços. Esse é o busílis da questão. As medidas governamentais, de teor protecionista, foram favorecidas por condições artificiais. Mas a aceitação pacífica de tais medidas e de sua perpetuação indefinida, pela quase totalidade da população que se insere em nossa economia de mercado, prende­-se a esse mecanismo psicossocial elementar e fundamental. Transações e processos econômicos inscrevem­-se, assim, em uma complexa teia de avaliações mais ou menos conscientes, que definem a importância deles acima dos alvos econômicos imediatos dos empreendedores. Por isso, acabam sendo associados, explicitamente, à segurança do país, ao desenvolvimento nacional e à conquista de melhores estados de bem­-estar social.

Isso não impede, porém, nem poderia impedir, que sacrifícios dessa ordem redundassem em devastações muitas vezes improdutivas de riqueza. Em todas as situações de mudanças rápidas, surgem indivíduos ou grupos de indivíduos que exploram, calculadamente, propósitos altruísticos com fins particularistas. Doutro lado, ainda que sem intenções inconfessáveis, grupos inteiros de indivíduos tendem a encarar como legítima a perpetuação de certas vantagens. Os dois fenômenos são visíveis, na cena brasileira, mostrando, aqui e ali, como industriais modernos e seus prepostos procuram tirar vantagens, lícitas ou ilícitas, de uma ideologia que se tornou socialmente inatacável. Por fim, é impraticável conduzir, ordenadamente, processos que se desenrolam de modo tumultuoso e ao sabor de interesses particulares de pessoas ou de grupos. Boa parcela dos sacrifícios presentes pela industrialização perde­-se, inevitável e inocuamente, no decorrer do processo. Tais facetas do desenvolvimento da industrialização na sociedade brasileira precisam ser encaradas com objetividade – ou seja, acima da fricção dos interesses sociais que se chocam continuamente. O Brasil está empenhado em uma tarefa gigantesca, para a qual sua população não estava completamente preparada. E quisermos saber onde se localizam as fontes dos erros ou das lacunas, precisamos ter a dupla coragem de evitar julgamentos comprometidos por interesses estritos e de reconhecer os fatos inexoráveis. Isso nos leva ao segundo ponto da nossa discussão, que acentuará por que nem sempre uma sociedade subdesenvolvida consegue realizar as mudanças mais profundamente desejadas em escala coletiva.

Os sociólogos descobriram que a mudança rápida, no mundo moderno, criou sérios dramas biológicos, psíquicos e sociais para o homem. A civilização alterou­-se tão depressa, que o organismo humano, a personalidade humana e a capacidade humana de atuação social organizada sofreram comoções profundas, transparentes em diferentes tipos de desajustamentos. Como se afirma, em algumas dezenas de anos, a nossa herança social se modificou mais extensa e profundamente que no decorrer de todo o período anterior da existência conhecida do homem na terra, o que expôs sua personalidade a mudanças que são dramáticas, tanto por sua rapidez quanto por sua intensidade. Esse raciocínio contém implicações ainda mais ponderáveis, quando aplicado ao Brasil. O homem brasileiro entrou na era da máquina ao mesmo tempo que esta foi descoberta, sem participar intelectualmente dos processos que tornaram possíveis a sua invenção e a sua utilização. Em outras palavras, o homem brasileiro partilha da civilização mecânica na área que poderia ser designada como sendo a área dos efeitos reflexos da mecanização. Se na Inglaterra, na França, na Alemanha e nos Estados Unidos a máquina provocou desajustamentos relacionados com o ritmo de mudança da natureza humana, em um país como o Brasil ela teria de associar­-se a desajustamentos ainda mais graves. A razão disso está na forma abrupta de introdução da máquina e na falta de experiência socializadora prévia. O homem teve pouco tempo para ajustar­-se às situações novas, passando do carro de boi e da lamparina para o automóvel e a eletricidade – sem falar na energia atômica – em um abrir e fechar de olhos. A análise sociológica de fatos dessa espécie demonstra que técnicas, instituições e valores sociais foram importados e explorados praticamente, em escala coletiva, antes de adquirir o homem noções definidas sobre o significado e a utilidade delas. Mas não ocorreu somente isso. Às vezes, as transferências se consumaram antes mesmo de termos possibilidades concretas de redefinição psicossocial dos elementos importados. Isso se deu, especialmente, com técnicas, instituições e valores, cuja compreensão requer certo progresso prévio na esfera do pensamento secularizado e racional. A assimilação de invenções culturais recentes se processou, portanto, com um ritmo acentuadamente mais acelerado que o do desenvolvimento do horizonte intelectual do homem brasileiro.

Essa condição constitui o patamar básico, no qual se alicerçou a introdução e a expansão da empresa industrial no Brasil. Os problemas surgem e desgastam, ingratamente, as energias humanas, sem que possam ser enfrentados com sucesso apreciável. Não porque o homem seja incapaz de enfrentá­-los ou resolvê­-los, como já se pensou, por ser “mestiço” e “inferior”. Todavia, sempre o seu horizonte intelectual permaneceu acanhado, estreito e impotente diante de um destino histórico­-social captado por transplantação. Uma imagem tosca esclarecerá melhor o assunto. Um homem que está mal preparado para enfrentar e resolver problemas práticos do tipo daqueles que poderiam surgir em São Paulo por volta de 1920 vê­-se compelido a defrontar­-se com problemas similares aos que se produzem, atualmente, em Chicago, Londres ou Nova York.

A máquina traz consigo esses dilemas. A sua transplantação exige algo que transcende ao nível da inteligência do homem: exige mudanças da natureza humana e elas só se produzem com certa lentidão, por serem condicionadas pela organização do ambiente social e pelo emprego que nele se faz das técnicas de socialização ou de educação do homem. O que se poderia pensar, do modo mais lisonjeiro para nós, é que estamos a meio caminho nesse processo. A máquina está presente no cenário de nossas atividades. As forças que ela introduz em todas as esferas da existência humana, porém, ainda não foram reconhecidas, domesticadas e submetidas a controle propriamente social. A nossa mente, a nossa cultura e a nossa sociedade continuam. Em graus variáveis, fiéis a modelos pré­-urbanos, pré­-industriais e pré­-mecânicos de organização da vida. Daí decorre, na esfera da prática, relações deformadas entre meios e fins. Mesmo quando os fins são bem percebidos e existem meios para atingi­-los, a organização das atividades humanas não motiva, regular e impessoalmente, o comportamento dos indivíduos nessa direção.

Com o risco de sermos mal­-entendidos, qualificamos de funcional o desajustamento existente entre a capacidade de atuação organizada do homem e as exigências da situação histórico­-social em que ele se vê colocado. O arcabouço da sociedade e os fins psicossociais das ações impõem, por conta dos modelos de organização societária reproduzidos, ajustamentos que dificilmente são realizados de modo completo e eficiente, devido ao atraso relativo que afeta o conteúdo e a integração do horizonte intelectual do agente humano. Os motivos, aspirações e incentivos, que orientam o comportamento dos indivíduos, são bastante fortes para impeli­-los a se identificarem com os referidos modelos de organização societária; mas são insuficientes para polarizar suas atitudes e ajustamentos em torno dos valores e das necessidades psicossociais ou socioculturais que aqueles modelos liberam e fomentam de forma recorrente. Por aí se vê que se trata de um desajustamento inverso do que ocorre nas sociedades nas quais a civilização industrial se desenvolveu de maneira mais homogênea. Nelas, o horizonte intelectual do homem pôde ser continuamente reajustado às exigências da situação histórico­-social, pelo menos em relação a motivos, aspirações e incentivos básicos nessa civilização. O progresso contínuo na secularização de atitudes e na racionalização dos modos de agir ou de conceber o mundo favoreceram a interação do homem com a máquina e a solução dos problemas decorrentes. As dificuldades de ajustamento, nessas sociedades, dizem respeito ao nível de integração do comportamento coletivo: os motivos, aspirações e incentivos, equacionados como imperativos morais no horizonte intelectual do homem, fazem pressão no sentido de alterar a própria ordem social. São, portanto, desajustamentos que se convertem em forças dinâmicas de mudança social. Semelhante comparação mostra por que a espécie de desajustamento, que nos preocupa aqui, é funcional: ele pode ser corrigido mediante experiências socializadoras, suscetíveis de integrar o comportamento dos indivíduos aos requisitos da ordem social existente. Precisamos atentar para o fato de que esta é, literalmente, uma ordem social em formação, na qual os padrões e os valores sociais da civilização industrial estão em plena emergência. As tensões e os conflitos sociais já desencadeiam efeitos socialmente construtivos quando compelem os indivíduos a compreender e a utilizar melhor as técnicas, as instituições e os valores que fazem parte de seu patrimônio civilizatório.

São muitas e variadas as evidências que dão fundamento empírico às explanações apresentadas. Nos limites da presente discussão, julgamos oportuno apontar, apenas, as que possuem alguma significação geral evidente, no contexto da evolução industrial da sociedade brasileira.

No âmbito da empresa industrial, erguem­-se, naturalmente, as questões específicas de maior interesse imediato. Tais questões são, ainda, mal conhecidas. Não obstante, o que se sabe delas, por meio do conhecimento de senso comum, é suficiente para os fins de nossa exposição. As motivações subjacentes ao modo de lidar com o trabalho, por exemplo, são inconsistentes em face dos requisitos racionais da empresa capitalista. O trabalhador ainda é visto, pelo empresário industrial, através de categorias que tinham eficácia ou justificação aparente na época da escravidão e da transição para o trabalho livre. Qualquer atitude expressa ou ações do operário, que parecem colidir com os interesses da empresa, dão origem a avaliações agonísticas, no fundo das quais o trabalhador se vê potencialmente representado como uma espécie de inimigo natural da ordem pública e do progresso social.

Doutro lado, o operário revela certa resistência às expectativas de produzir segundo ideais de realização racionalmente compensadores. O artesanato não chegou a expandir­-se, organizadamente, em muitas cidades brasileiras que conheceram rápida evolução industrial. Além disso, na organização da empresa industrial deu­-se pouca ou nenhuma atenção aos problemas humanos do trabalhador. Este avalia o trabalho, em consequência, em planos ínfimos, tendo em vista as parcas compensações financeiras que ele oferece, ignorando tenazmente a importância que ele tem como fator de progresso econômico e social. Daí resultam avaliações e comportamentos que, na aparência, justificariam as reações dos empresários (por exemplo: a ideia de que “trabalhar é pra trouxa”, de que “quem tira proveito mesmo é o patrão” etc., ou depredações de instalações sanitárias, de refeitórios e mesmo de equipamento). Caberia ao empresário encontrar recurso que permitisse entender tais manifestações de ressentimento e promover sua eliminação progressiva por meios respeitáveis. Contudo, isso não se dá ou ocorre em ritmo demasiado lento, porque o sistema de administração e de controle das empresas também é obsoleto e antiquado. Ele se alicerça, estrutural e funcionalmente, em padrões de mando e de obediência predominantemente herdados da sociedade patrimonialista. A “grande empresa”, na realidade, só existe entre nós na aparência. As técnicas sociais de controle, em particular, são elementares e não têm nenhuma eficiência na identificação e neutralização dos fatores irracionais, que prejudicam, irremediavelmente, a organização, o rendimento e o caráter econômico da empresa industrial.

Mas, além desses dois planos, o do trabalho e o do sistema de controles e de administração, surgem outras deficiências, não menos importantes, da empresa industrial. A mais saliente e negativa consiste no afã do ganho. A retribuição do trabalho ou do capital é um elemento dinâmico básico na empresa capitalista. O nosso dilema está em que esse elemento opera irracionalmente na empresa industrial brasileira. Com frequência, candidatos sem qualificações precisas pretendem ocupações com alta remuneração. O empreendedor, por sua vez, procura garantir­-se níveis máximos e espoliativos de lucro. Ambas as tendências além de exprimirem influxos naturais da inflação secular, traduzem uma incompreensão fundamental dos mecanismos dos preços em uma economia capitalista. A manifestação delas pode ser considerada um fenômeno normal; o mesmo não se pode dizer da ausência de disposições no sentido de superá­-las, com o fito de obter, deliberadamente, maior equilíbrio no desenvolvimento da economia industrial no Brasil. Além disso, há aspectos do comportamento do empresário, que precisam ser considerados, porque estimulam a influência de fatores irracionais da vida econômica brasileira.

O observador atento pode notar três tendências caraterísticas em seu comportamento, que se relacionam, definidamente, com condições sociais do ambiente. Primeiro, a propensão a reduzir o alcance das reinversões na própria empresa. Esse comportamento introduz um ponto morto no processo de desenvolvimento da empresa em regime capitalista. Segundo supomos, a inflação secular não o explica de maneira cabal. A extensa mobilidade social e a mudança social muito rápida introduzem elementos de insegurança, quanto à crença na continuidade do progresso econômico brasileiro, e contribuem para reduzir as identificações de lealdade para com os interesses da coletividade como um todo. O empresário, que tende a definir sua renda como compensação natural de sua capacidade de realização, age, assim, egoisticamente porque ele próprio não se impõe certos padrões ideais de comportamento. Como os controles sociais reativos, baseados nas manifestações da opinião pública ou na operação das instituições do meio social ambiente, não o compelem a modificar tais ajustamentos, eles tendem a repetir­-se, indefinidamente, com prejuízo do crescimento das empresas industriais e do desenvolvimento da industrialização. Outra tendência é visível na propensão do empreendedor industrial a inverter parcelas elevadas em gastos suntuários (aquisição de residências luxuosas, de carros modernos, manutenção de padrões altos de vida etc.). Os comportamentos relacionados com essa tendência também são improdutivos, no que tange à diferenciação e evolução da empresa no processo capitalista. Em última instância, eles se explicam como efeitos de processos sociais: às vezes, se associam à mobilidade vertical (o industrial, procedente de famílias modestas, precisa afirmar­-se ostentando sua riqueza e seu poder); outras vezes, aos complexos mecanismos que ameaçaram as antigas camadas dominantes de perda de prestígio e de poder (caso frequente entre industriais pertencentes a famílias antigas, que se viram ameaçadas de pauperização ou de classificação em posições das classes médias, e que conseguiram ascender econômica e socialmente de novo; nesse caso, os comportamentos dos descendentes das antigas famílias brasileiras em nada se distinguem dos comportamentos de imigrantes ou descendentes de imigrantes enriquecidos). Por fim, é preciso não ignorar a tendência mais sutil, associada ao desinteresse relativo dos empreendedores por uma autêntica política de aceleração da industrialização no país. Há argumentos que atribuem essa tendência à escassez de capitais e ao caráter improdutivo de certas reinversões. Contudo, esses argumentos também não explicam tudo. Os empresários – e entre eles os empreendedores industriais – formam os grandes beneficiários da onda de prosperidade econômica, trazida pela industrialização. Por isso, é natural que tenham desenvolvido interesses fortes na preservação do status quo. O futuro econômico é incerto, em um país como o Brasil. As vantagens econômicas do presente, ao contrário, parecem sólidas e perpetuáveis. Em consequência, os interesses sociais desse setor das camadas dominantes entram em choque com os valores que alimentam sua ideologia. Em vez de propugnarem uma política severa de industrialização, fazem pressões no governo que chegam a redundar em fonte de paralisação e de estagnação do desenvolvimento industrial. Isso explica por que, nas afiliações políticas desses setores, prepondera a utilização disfarçada do nacionalismo econômico como instrumento de interesses econômicos particularistas.

Em conjunto, pois, a empresa industrial é minada por vários fatores irracionais, que solapam sua integração orgânica, seu rendimento e crescimento, e as influências que ela poderia desencadear na transformação do meio social. Mas este, por sua vez, restringe de várias formas as possibilidades de expansão da empresa industrial. Isso é particularmente visível em três níveis distintos: naquele em que a diferenciação e a integração do sistema econômico depende, de maneira direta, dos padrões de organização da sociedade; no das relações da vida econômica com as instituições políticas; e, por fim, nas conexões da vida econômica com elementos ou processos socioculturais que constituem os alicerces invisíveis de todo o progresso econômico.

No primeiro nível, é possível verificar como algumas conexões entre o sistema econômico e a organização da sociedade brasileira se refletem no processo de industrialização. Há vários pontos a considerar aqui. Sobre todos, releva o que diz respeito aos fatores que graduam, exteriormente, nossa economia de mercado. É sabido que, em vista da base demográfica e da extensão territorial do país, o mercado brasileiro abrange uma população relativamente pequena, de limitada capacidade aquisitiva e de hábitos de consumo pouco diferenciados. Esses fatos econômicos só encontram explicação nos padrões histórico­-sociais de formação e de diferenciação da sociedade brasileira. No plano em que eles nos interessam, parece óbvio que seus influxos sobre a industrialização são “retardativos”. Eles não podem ser alterados sem processos que produzam modificações na distribuição da riqueza e nos níveis de vida. Mas modificações dessa ordem dependem, por sua vez, de transformações mais ou menos profundas na estrutura e na organização da sociedade brasileira. No fundo, portanto, o ritmo e as debilidades da industrialização no Brasil prendem­-se a fatores sociais, que não podem ser alterados de maneira simples nem com a rapidez desejável. Sob vários aspectos, isso justifica a convicção de que o futuro da industrialização na sociedade brasileira depende, em maior grau, da continuidade das mudanças sociais que se estão processando no presente, que de certas medidas puramente econômicas ou financeiras, defendidas com tenacidade pelos industriais.

Além desse ponto, de importância facilmente reconhecível, seria preciso considerar: as tendências societárias à regulamentação dos processos econômicos e as relações entre o campo e a cidade, no plano em que elas interessam à industrialização. A primeira questão ainda é mal conhecida entre nós. Os resultados das investigações de história econômica sugerem, porém, que a sociedade brasileira sempre se caracterizou pela inexistência de mecanismos societários eficientes de controle e ordenação dos processos econômicos. Em consequência, os ciclos econômicos lembram antes curiosas formas de exploração devastadora e de utilização destrutiva dos recursos econômicos, que etapas interdependentes de crescimento econômico contínuo. A maneira pela qual a industrialização se processou em São Paulo não exclui vários dos caracteres negativos dos ciclos econômicos anteriores. Não se pode presumir, sequer, se esses caracteres terão os seus efeitos nocivos diminuídos ou neutralizados, pois até agora nem a empresa privada nem o poder público se preocuparam com eles. A única hipótese que permite prever algo de conclusivo diz respeito a perspectivas asseguradas pelo pleno desenvolvimento da economia urbana e industrial Nesse caso, passaríamos para um tipo de organização da vida econômica que nos colocaria ao abrigo de percalços dessa natureza. Na fase em que estamos, porém, a própria industrialização tende a expandir­-se de forma tumultuária, desordenada e devastadora, acumulando sérios dilemas para o futuro da economia nacional. Mesmo manifestações localizadas do processo econômico não chegam a encontrar formas construtivas de controle social. Sirvam­-nos de exemplos as tensões e conflitos relacionados com as greves e com a fixação dos níveis dos preços. Nos diferentes ajustes, os efeitos finais terminam na fixação de tetos para os salários ou para os preços das utilidades. O que quer dizer que em nenhum círculo social se procura tirar, de semelhantes tensões e conflitos, resultados de interesse para a coletividade como um todo. Os fins visados são particularistas, restringindo­-se aos interesses dos assalariados ou dos empresários. No entanto, mudanças ocorridas em outras sociedades de economia industrial sugerem que tensões e conflitos nessa esfera podem dar origem a formas mais complexas de controle social e a alterações importantes da estrutura da sociedade.26

As relações entre o campo e a cidade se inverteram, no Brasil, após a expansão urbana assinalada acima. De simples expressão do poder econômico do campo e da civilidade de sua gente, a cidade tornou­-se o verdadeiro foco dinâmico da vida social no Brasil. Ela ainda está longe de ser um centro econômico autônomo; a sua prosperidade funda­-se em riquezas procedentes do campo. O problema nos interessa aqui, porque o processo moderno inverte os polos da relação, mas não produz uma reintegração propriamente dita dos padrões de vida econômica. Enquanto não se formar uma economia de mercado, extensa, orgânica e diferenciada, essa integração não se processará. Ora, isso depende, como apontamos, de transformações de estrutura social e estilos de vida. De modo que o atual entrosamento entre o campo e a cidade, igualmente prejudicial para a modernização da agricultura e para a industrialização, poderá perpetuar­-se como um fator de inércia por tempo indeterminado. Enquanto a nova ordem social, associada ao sistema de classe, à economia de mercado e ao regime democrático, expandir­-se apenas em grupos urbanos, será inconcebível pensar em verdadeira interdependência entre o campo e a cidade, bem como na formação de uma economia industrial plenamente desenvolvida. Como sugerem as contribuições dos técnicos da Unesco e os exemplos de outros países subdesenvolvidos, nesta área os planos de desenvolvimento econômico darão resultado à medida que se entrosarem com projetos de reconstrução social.

No segundo nível, é possível considerar como as relações recíprocas do sistema econômico com as instituições políticas se refletem no processo de industrialização. Por menos que se queira reconhecer, o Estado preencheu importante papel na expansão da indústria brasileira, em particular depois da revolução de 1930. Doutro lado, a influência política dos industriais aumentou de forma patente, nesse período, contando as suas associações entre os grupos de pressão de maior poder na estrutura política da nação. Apesar disso, nem o Estado chegou a preencher as funções que lhe cabiam na aceleração e orientação do processo econômico, nem os industriais contribuíram para criar uma política nacional de desenvolvimento econômico, capaz de servir como um mecanismo seletivo e de intensificação das tendências positivas à industrialização.

Esse fato tem dado margem a especulações. Haveria para alguns, aparentemente, ausência de interesses construtivos no uso do poder em fins práticos. Outros supõem que o poder tem sido usado, mas de forma pervertida, para favorecer interesses escusos de industriais e de políticos. É provável que ambas as coisas ocorram, em diferentes casos concretos. Como tendência geral, entretanto, nada fica explicado, através das duas afirmações. O que parece patente, do ponto de vista sociológico, é que se formou uma “ideologia do progresso econômico”, que vem sendo improdutiva e desvantajosa para o Brasil. O cerne dessa ideologia, desigualmente compartilhada por todos os segmentos da população brasileira – inclusive pelos agricultores, pelos operários e pelas classes médias das “grandes cidades” – está na valorização da mecanização. A introdução de máquinas, no país, é encarada como um fim em si mesmo; e incentivada não tanto como um meio para aumentar a riqueza ou a produção, mas como símbolo de progresso social. Nessa superavaliação da civilização mecânica concorrem atitudes herdadas do passo escravocrata e atitudes ligadas a uma apreciação superficial do êxito de algumas potências industriais modernas. De qualquer forma, essa superavaliação da máquina e da civilização mecânica produziu duas polarizações ideológicas inelutáveis: 1º) a concepção de que se implanta a civilização mecânica no país operando na área da simples transplantação de técnicas e de equipamento; 2º) a concepção de que qualquer progresso, conquistado nesse terreno, por aparente ou ínfimo que seja, deve ser defendido a todo o preço. A primeira concepção tem conduzido a atitudes improdutivas – que só não se tornaram ruinosas em virtude das condições especiais da indústria brasileira – e à frequente importação de equipamento obsoleto. A segunda concepção tem servido como um meio de defesa e de exaltação de empresas mal planejadas e aparelhadas. Em conjunto, as duas alimentam avaliações curiosamente conservantistas em círculos radicais, pois impedem ou dificultam as poucas possibilidades existentes de renovação de equipamentos e de modernização do parque industrial.

Do ângulo em que nos colocamos, portanto, os efeitos negativos da inexistência de uma autêntica política de desenvolvimento econômico são atribuídos a fatores impessoais. São fatores subjetivos, de natureza ideológica, que interferem nos mais variados círculos sociais e na atuação do Estado. O que nos importa, aqui, é que eles restringem ou deturpam a consciência da situação histórico­-social e fomentam opções aparentemente úteis para a coletividade como um todo, mas de fato comprometidas com interesses particularistas. Em consequência, a intervenção do Estado acaba terminando onde ela deveria começar, com a agravante de converter o Governo em instrumento político de determinados setores das camadas dominantes. O empresário industrial, por sua vez, recebe os benefícios de uma política protecionista, sem sentir­-se nem ser compelido a aplicar os constantes acréscimos de sua renda em fins produtivos. A ilusão provocada pelas ficções da pseudopolítica de desenvolvimento econômico nacional chega a ir tão longe, que as camadas mais prejudicadas das populações urbanas – o proletariado as classes médias – se empenham em defendê­-la, sem correções substanciais. Em síntese, ainda que seja desagradável pôr em evidência tais coisas, as relações do processo econômico com as instituições políticas são de natureza a sacrificar o futuro pelo presente, ainda que as aparências identifiquem o contrário. Em lugar de uma política de desenvolvimento econômico, contamos com uma política de expansão de setores privilegiados da produção. O que isso representa, como perigo para a industrialização, não precisa ser ressaltado...

No terceiro nível, é possível considerar como a relações do sistema econômico com a tecnologia e a educação se refletem no processo da industrialização. A economia pré­-industrial brasileira não fez nenhuma pressão no sentido de colocar o Brasil na era tecnológica. Os incentivos, nesta direção, partiram do crescimento das cidades, da construção das vias de comunicação e da expansão das indústrias. Em três quartos de século, aproximadamente, de desenvolvimento irregular, descontínuo mas acelerado em algumas de suas fases, o sistema tecnológico brasileiro tornou­-se bastante diferenciado para suportar as solicitações mais variadas do meio social ambiente. No entanto, ainda hoje ele só comporta a satisfação de um número reduzido de necessidades fundamentais, em sua maioria relacionadas com problemas práticos já conhecidos e resolvidos tecnicamente. Por isso, tendo­-se em vista as conexões que nos interessam aqui, trata­-se de um sistema tecnológico que oferece uma base quase satisfatória para a manutenção do grau de diferenciação alcançado pela indústria brasileira. Mas que não tem capacidade para atuar como um elemento dinâmico no processo de industrialização, seja no sentido de aumentar sua diferenciação e de integrá­-la segundo padrões tecnológicos modernos, seja no sentido de sanar as inconsistências da empresa industrial brasileira e de acelerar seu ritmo de desenvolvimento.

Esses fatos estão associados à incompreensão da importância do ensino básico e da ciência para a urbanização, a renovação das técnicas agrícolas e, em particular, para a industrialização. Na verdade, os industriais brasileiros quase não fizeram pressão alguma para alterar o sistema educacional brasileiro e para expandir a produção de conhecimentos científicos no país. A empresa industrial brasileira dependeu, de modo quase exclusivo até pouco tempo, mais da oferta de grande massa de trabalho, que de trabalho qualificado e especializado. Em consequência, as escolas profissionais que se criaram, nesse período de tempo, ou eram um fardo e uma superafetação mantidos pelas indústrias para salvar as aparências, ou formavam especialistas em campos da tecnologia que exigem conhecimentos complexos, às vezes de nível superior. As escolas destinadas aos operários, principalmente, não foram orientadas na direção de absorver paulatinamente, a totalidade dos candidatos a essas carreiras. Essa necessidade ainda não é reconhecida como essencial, temendo os empresários que ela redunde em fator de encarecimento da mão de obra e de aumento das dificuldades no ajustamento dos operários às condições existentes de trabalho.

Doutro lado, a expansão do ensino primário, secundário, colegial e superior não favorece de modo brilhante e tenaz o desenvolvimento da tecnologia. O ensino primário, o secundário e o colegial mantêm­-se presos a padrões obsoletos de formação e de preparação do homem para a vida. Eles só não são totalmente inúteis porque adestram ou aperfeiçoam os estudantes no uso de técnicas de grande importância em uma civilização letrada. O ensino superior sofreu uma evolução decisiva, nos últimos vinte e cinco anos, com a introdução de ideais e padrões universitários de trabalho intelectual. Na verdade, porém, ainda prevalece a antiga mentalidade pré­-universitária, improdutiva para a expansão da pesquisa científica e letal para o desenvolvimento do ensino científico básico. O pior aconteceu com os centros universitários que conseguiram preencher parte da sua missão; a falta de recursos suficientes impõe uma opção dramática entre a progressiva deterioração do padrão de trabalho universitário (de ensino ou de pesquisa) e o colapso total.

O que se faz nesses centros universitários tem interesse específico para a nossa análise. O progresso da tecnologia exprime, invariavelmente, o progresso alcançado na ciência. Os países modernos, que se salientaram por seus feitos técnicos, tiveram antes de obter árduas conquistas nos ramos científicos do saber. Por isso, devemos encarar aqueles centros universitários como peças fundamentais do futuro da tecnologia no Brasil. Observa­-se que nesses centros domina uma mentalidade antiquada, no que concerne ao modo de entender as relações entre a teoria, a pesquisa e a aplicação. Dá­-se pouco ou nenhuma importância a esta última, mantendo­-se uma separação entre o “cientista” e o “técnico” que deixou de ser fundamento em nossa era. Além disso, poucos professores se dão conta, realisticamente, das implicações intelectuais da situação de trabalho do cientista no Brasil. Em qualquer lugar, o valor da contribuição do cientista mede­-se pela soma de conhecimentos teóricos ou empíricos originais que ele descobre. Para o progresso da tecnologia, inclusive, é importante que os cientistas logrem avanços reais na pesquisa fundamental. Seria danoso, portanto, um desenvolvimento da ciência, nas universidades, que se divorciasse dos verdadeiros padrões e requisitos do saber científico. Não obstante, o Brasil não pode arcar com os papéis de mecenas da ciência. Países mais ricos falham nessa tarefa. Os gastos invertidos na pesquisa científica deveriam ser aproveitados, criteriosamente, de maneira a incentivar: 1º) a expansão dos campos de pesquisa atualmente viáveis em nosso meio; 2º) a escolha preferencial de áreas de investigação suscetíveis de produzir conhecimentos ulteriormente aproveitáveis na solução de problemas práticos. Essas duas condições raramente são tomadas em conta. Vemos acontecer, em consequência, duas coisas paradoxais: um país pobre formando cientistas que só logram aproveitamento eficiente em centros de pesquisas de países ricos; o empirismo mais rudimentar coexistindo e impondo­-se sobre o conhecimento verdadeiramente científico, por falta de iniciativas apropriadas dos cientistas.

Parece­-nos desnecessário ressaltar o significado da situação existente na esfera da tecnologia, da pesquisa científica e do ensino para a industrialização. Em certa fase, esta é um processo meramente econômico, em especial quando já se dispõe das técnicas e conhecimentos que permitem a organização da empresa industrial e asseguram a produção de bens industrializáveis. Parece que já atingimos uma situação mais complexa. Torna­-se cada vez mais improvável que se mantenha e que se aumente, como necessitamos, o ritmo da industrialização, sem duas mudanças radicais. Primeiro, na estrutura e organização da empresa industrial brasileira, cujos elementos antieconômicos precisam se eliminados. Segundo, na manipulação das tendências favoráveis ao crescimento e à diferenciação das indústrias no Brasil. Os sacrifícios feitos na defesa das indústrias de bens de consumo e na implantação da indústria pesada não produzirão nenhum efeito prático duradouro, se essas tendências não forem orientadas, na medida do possível, segundo uma política construtiva de desenvolvimento econômico nacional. Isso quer dizer que a industrialização atingiu uma fase, na sociedade brasileira, que requer uma urgente modificação nos estilos de pensamento e de atuação prática dos empresários industriais, de seus associados e de todo o pessoal abrangido pela empresa industrial. É difícil pensar que tal coisa venha a acontecer, na escala necessária, sem alterações concomitantes na esfera da tecnologia, da educação e da pesquisa científica, que assegurem novas modalidades de aproveitamento dos resultados delas na vida econômica brasileira.

A digressão que fizemos tem o duplo defeito de ser demasiado sumária e excessivamente superficial. Segundo pensamos, porém, ela atinge o fim que tínhamos em vista: demonstrar o grau de desajustamento existente entre o horizonte intelectual do homem e as exigências da situação histórico­-social brasileira, que possuem algum significado para a industrialização. Resta­-nos completá­-la com uma reflexão de caráter prático. Ela suscita uma pergunta dolorosa: podemos alterar o nosso horizonte intelectual com a rapidez imposta pelas circunstâncias? A presente exposição é animada, de ponta a ponta, pela suposição de que isso é realizável. Os fatos conhecidos e analisados sugerem, no entanto, que se trata de algo sumamente difícil de conseguir. O que está em jogo não é tanto a ideia de que o “uso do cachimbo deixa a boca torta”. Todo comportamento social é alterável; e o homem caracteriza­-se por ser o animal social mais plástico em sua capacidade de alterar seu comportamento social, juntamente com as condições em que ele se organiza e desenvolve. A questão específica é outra: a principal dificuldade está nas atitudes sociais dominantes. Entende­-se, predominantemente, que a experiência industrial brasileira foi plenamente bem­-sucedida. Tal juízo, em termos relativistas, é verdadeiro. Em comparação com nosso passado agrário, essa experiência não só foi bem­-sucedida, como é espantosa. Mas, ao contrário do que se supõe, vulgarmente, não dispomos de todas as técnicas, conhecimentos e valores indispensáveis à industrialização. Sequer aprendemos a tirar todo o proveito dos elementos intelectuais disponíveis na cena social brasileira. Seria recomendável, portanto, que superássemos as resistências subjetivas, que opomos ao reconhecimento desses dois fatos, que em nada diminuem a significação da experiência industrial brasileira.

4 – Os fatores negligenciados da industrialização

A presente discussão comporta certas conclusões, de caráter mais geral e sistemático. Tem­-se neglicenciado demais, no Brasil, a importância dos fatores sociais no processo da industrialização. A nossa exposição sugere, ainda que toscamente, que o conhecimento desses fatores é essencial. Primeiro, para a percepção e compreensão de como ocorrem os processos econômicos. Estes se dão através da interação humana, socialmente organizada, podendo contar ou não com as condições societárias, requeridas por sua manifestação “normal”. A esse respeito, o que distingue a situação brasileira da situação existente em outros países – que possuem o mesmo tipo de sistema econômico – não é a natureza dos processos econômicos, mas o modo pelo qual a sociedade regula a sua manifestação e a seleção de seus efeitos sociais construtivos. Segundo, para a explicação das funções e tendências dos processos econômicos, visto através de regularidades propriamente sociais. Os mesmos processos econômicos podem desempenhar funções sociais diversas e assumir padrões variáveis de desenvolvimento em meios sociais relativamente distintos. Se isso não acontecesse, bastaria estudar tais processos em dada sociedade e generalizar os conhecimentos às demais sociedades em que eles se manifestassem. Terceiro, para a intervenção no curso ou nos efeitos dos processos econômicos. Os conhecimentos relativos à maneira pela qual os fatores sociais interferem na manifestação dos processos econômicos e na seleção dos seus efeitos apresentam enorme interesse prático. De um lado, porque eles complementam os conhecimentos sobre as regularidades puramente econômicas, fornecidos pelos economistas. De outro, porque intervenção nos processos econômicos sempre significa, em algum grau, intervenção nas condições sociais de existência humana. Por isso, a eficácia da intervenção aumenta em proporção aos conhecimentos que se possuam sobre tais condições e sua plasticidade diante dos intentos renovadores.

Nos “países subdesenvolvidos” há uma relativa compreensão da utilidade das ciências sociais. Os confrontos com os “países adiantados”, que possuem a mesma organização social e o mesmo sistema econômico, sugerem, mesmo ao conhecimento de senso comum, que os psicólogos sociais, os etnólogos, os sociólogos e os cientistas políticos “podem ser úteis”. Há ampla margem de progresso social a ser alcançado nos limites da ordem social estabelecida. Os argumentos expostos acima revelam que essa ideia se justifica. Como os economistas, os demais cientistas sociais podem oferecer contribuições de grande utilidade prática.

É preciso que reflitamos, todavia, a respeito dos papéis intelectuais polarizados em torno de semelhantes aspirações de utilização das ciências sociais. De minha parte, encaro como um dever a aceitação deles pelos cientistas sociais. Nos países mais adiantados, os cientistas sociais entendem mal convicções desta natureza. Parece­-lhes que, assim, se deturpa a obrigação intelectual do cientista de contribuir, exclusivamente, para o progresso da ciência. Ao aceitar tais papéis, no entanto, nenhum cientista social se vê necessariamente compelido a agir em detrimento da qualidade do conhecimento científico. Doutro lado, concorre para o progresso da ciência aplicada, condição essencial para o desenvolvimento integrado do saber científico. O busílis, aqui, está no fato de que naqueles países a tolerância pela contribuição prática dos cientistas sociais foi menor. Onde ela não apanhava os efeitos societários no plano dos ajustamentos da personalidade e do rendimento das instituições, ela poderia servir, diretamente, a movimentos sociais reformistas ou revolucionários, mais ou menos orientados contra a ordem existente. A proscrição de amplas tarefas intelectuais dos cientistas sociais, na esfera da aplicação, encontrava fundamento, portanto, na própria reação societária às ciências sociais.

Não se deve concluir, daí, que os cientistas sociais dos “países subdesenvolvidos” devam aceitar tais papéis de modo passivo. De fato, eles abrem perspectivas para o desenvolvimento da pesquisa e das ciências sociais aplicadas, que não devem ser perdidas. Contudo, o cientista social está normalmente obrigado perante um sistema de valores éticos – inerentes ao saber científico – que o compele a indagar, constantemente, se o destino dado às suas contribuições é o melhor possível. Se ele serve, realmente, aos propósitos humanitários da ciência e às funções que esta deve desempenhar na reconstrução das bases materiais, sociais e morais da vida humana. Ao fazer semelhantes indagações, pode descobrir consequências desagradáveis. Em geral, os estímulos ao uso das ciências sociais nos “países subdesenvolvidos” é animado por interesses de grupos ou de camadas sociais, que podem tirar maior proveito do desenvolvimento econômico e do progresso social. A ideologia criada e generalizada por esses círculos sociais disfarça tais interesses, formulando­-os e valorizando­-os em termos dos interesses da coletividade como um todo. Para que os cientistas sociais não sejam meros instrumentos nas mãos desses grupos e dessas camadas sociais, eles precisam aceitar as aludidas tarefas intelectuais sabendo, exatamente, o que elas representam em dado contexto histórico­-social. Em todos esses países, os economistas dão­-nos um exemplo que merece ser seguido, em um ponto; e escrupulosamente repelido, em outro ponto. A disposição que eles revelam em aceitar, igualmente, “tarefas teóricas” e “tarefas práticas” é algo que nunca será valorizado demais. Contudo, as tendências dominantes em seus ajustamentos às “tarefas práticas” são inaceitáveis perante as exigências da ética científica. Na base de seus ajustamentos, está a satisfação produzida pelo nível de renda e de prestígio social conquistados profissionalmente, e as identificações resultantes com a ordem existente e os mecanismos de sua preservação. É lógico que o cientista social pode ter motivos para identificar­-se com dada ordem social e pôr­-se a serviço de sua defesa. O que não se justifica, tão facilmente, é a tendência a ignorar as obrigações morais, impostas pelo código ético do cientista. A identificação, em tais casos, nunca deve resultar de interesses limitados, mas de uma opção claramente iluminada por um conhecimento da situação global e dos influxos da ciência em sua preservação ou em sua transformação.27

Em suma, os cientistas sociais, ao proclamarem a importância dos fatores sociais nos processos econômicos, não pretendem os papéis intelectuais de “ideólogos” de nenhuma camada social. Esse raciocínio é importante em um país como o Brasil. A razão é simples. O que o cientista social tem a dizer ou a fazer deve, fundamentalmente, relacionar­-se com os interesses fundamentais da coletividade como um todo. Nessa perspectiva, qualquer plano de desenvolvimento nacional adquire uma significação que transcende, com frequência, aos interesses e aos valores sociais consagrados pela ideologia das camadas dominantes. Embora a conjuntura histórica possa beneficiar tais interesses e valores, esse não pode ser o alvo específico ou exclusivo da contribuição do cientista social.

À luz destes argumentos, entende­-se que as atitudes do cientista social diante da industrialização sejam diferentes, em vários pontos essenciais, das atitudes do empresário industrial. Apesar de todas as coincidências, o primeiro dá mais atenção a mecanismos que não defendem o status quo com base na situação de interesses empresariais. Quanto aos fatores dinâmicos do processo, também é levado a pôr em proeminência os objetivos que parecem mais favoráveis não aos interesses restritos da empresa industrial, mas à realização dos planos viáveis de desenvolvimento da economia nacional como um todo. Essas diferenças de perspectivas não devem ser negadas, subestimadas ou solapadas. A contribuição prática dos cientistas sociais brasileiros só será útil e frutífera se eles corresponderem a seus papéis intelectuais específicos, deixando aos empresários a responsabilidade pela defesa dos interesses da empresa industrial no plano econômico, inclusive no que diz respeito à utilização de técnicas e de conhecimentos fornecidos pelas ciências sociais. Assim, ambos poderão contribuir melhor para o futuro da civilização industrial no Brasil.

22 Conferência proferida no auditório do Fórum Roberto Simonsen, da Ciesp e Fiesp, em 6 de agosto de 1959.

23 As primeiras evidências, que puseram tais argumentos na ordem do dia, foram a evolução da economia alemã e a “ocidentalização” da economia japonesa. Hoje, haveria pouco interesse em demonstrar esse ponto de vista, de tal modo ele é corroborado por fatos muito conhecidos.

24 Esse fato mereceria ser analisado, pois ele se prende à importância exagerada, que se atribuiu à industrialização, como e enquanto símbolo de “progresso” e de “adiantamento cultural”. O estudioso da economia brasileira precisa dar maior atenção à influência de avaliações sociais em decisões econômicas: muitas vezes, o motivo pecuniário exerce papel menos importante ou atua em conexão com motivos mais complexos, de teor irracional (como o de procurar, em certas realizações empresariais, um novo prisma de autoafirmação moral perante os “povos civilizados”).

25 De acordo, naturalmente, com a região do país que se considere e a importância que nela tiver a antiga ordem patrimonialista.

26 No presente confronto, não pretendemos insinuar que não ocorram, nas comunidades industriais europeias ou norte­-americanas, desajustamentos entre o homem e a máquina do tipo dos que se vêm manifestando no Brasil. Tampouco pretendemos defender o ponto de vista de que, nessas comunidades, a civilização industrial se tenha desenvolvido de modo orgânico e perfeito. A intenção que anima a comparação é clara: os desajustamentos entre o homem e a máquina ainda não se tornaram, na sociedade brasileira, um fator de mudança na esfera dos controles sociais e na da organização das comunidades em industrialização.

27 É lógico que esta afirmação tem uma aplicação circunscrita: ela não apanha todos os economistas brasileiros. Apesar do tom enfático, referimo­-nos, tão somente, aos economistas que, implícita ou explicitamente comprometeram suas explicações, de modo velado ou aberto, com interesses econômicos e sociais de segmentos das camadas dominantes, sem fazer nenhuma ressalva a respeito dos motivos que animam semelhante orientação.