2.

Vira mundo, o mundo virou:
a doença de Amália, a ascensão e a queda de João Henriques1

Livre! livre! [] Mas como estamos ainda longe disso! [] São boas essas recordações; elas têm um perfume de saudade e fazem com que sintamos a eternidade do tempo. O tempo inflexível, o tempo que, como o moço é irmão da Morte, vai matando aspirações, tirando perempções, trazendo desalento, e só nos deixa na alma essa saudade do passado, às vezes composto de fúteis acontecimentos, mas que é bom sempre relembrar.
— Lima Barreto, “O traidor”

 

Hospital São Sebastião onde João Henriques passa algum tempo internado, 1901.

 

D. Amália Augusta tinha tudo para se afastar do destino que lhe fora reservado como “ingênua” ou dependente direta dos Pereira de Carvalho. Ela mesma ganhava para seu sustento: era professora e diretora de escola, e casara-se com um profissional liberal que lhe ajudaria a criar a família, com estabilidade financeira. Mas o futuro se revelaria bem diferente do sonho e dos prognósticos que se abriam com o casamento.

Antes de tudo, a fragilidade da saúde mental de João Henriques não demoraria a se manifestar. Logo que se decidiu pelo noivado, o futuro pai de Lima apresentou o que seria diagnosticado, anos depois, como um primeiro surto psicótico. Ao que tudo indica, quando não foi contemplado com o cargo de chefia que almejava, e temendo não conseguir manter o padrão que Amália conhecera até então, o noivo teve alguns sofrimentos mentais. Deu para imaginar que sua vida como tipógrafo seria marcada por dívidas, e que agiotas bateriam à sua porta a cada novo filho. Se essa era mesmo uma ideia fixa que atormentava João Henriques, não temos como saber, mas era disso que Lima Barreto se lembraria na maturidade. O exemplo paterno parece ter traumatizado o ainda rapaz, que, em seu Diário, ajuíza que preferia continuar solteiro por receio de não poder sustentar dignamente uma família.2 No romance póstumo O cemitério dos vivos, coloca na boca do personagem principal — Vicente Mascarenhas — o mesmo tipo de temor. Sem conseguir pagar os gastos da esposa e do filho, Vicente passa a beber e é internado num hospício.

A sina de João Henriques é bem semelhante à do personagem criado pelo filho. Um pouco antes do casamento, o padrinho Afonso Celso, percebendo a ansiedade e o estado depressivo do noivo, internou-o às suas próprias expensas na Casa de Saúde e de Convalescença de São Sebastião, uma das mais conhecidas na época e localizada no Catete, ao pé do morro Tavares Bastos, a dois quilômetros e meio do largo da Carioca.

A instituição situava-se numa “grande chácara, elevada […] ocupando três grandes edifícios”. A vista era “esplêndida” e o local, “rodeado de vegetação”, era considerado uma das mais “aprazíveis vivendas do Rio de Janeiro”. O estabelecimento contava com médicos, clínicos, oftalmologistas, muitos deles fluentes em vários idiomas. Os anúncios alardeavam, inclusive, como estavam à disposição “aposentos especiais para alienados, preparados segundo as mais modernas ideias da ciência”.3 O certo é que Afonso Celso não economizou nos recursos.4 O doente ficou por lá, segundo Francisco de Assis Barbosa, durante seis meses, e seguiu depois para Caxambu. Os ares e a calmaria lhe fizeram bem, e João Henriques retornou ao Rio pronto para o casamento marcado para o dia 17 de novembro de 1878.5 Mas a experiência da loucura entraria na pequena família dos Lima Barreto para não mais sair.

Era como se eles, na contramão de seus sentimentos e intenções mais arraigados, acabassem por involuntariamente comprovar diversas teorias que começavam a entrar em voga nessa sociedade que se preparava para a abolição definitiva do cativeiro. O mesmo momento que anunciou novos modelos de liberdade, foi justamente aquele que engendrou o surgimento de uma série de teorias deterministas e raciais.6 O contexto em que frutificaram as teorias do liberalismo foi o que reinventou, em terras tropicais, as teorias das diferenças biológicas e hereditárias. Segundo elas, negros e sobretudo populações mestiçadas eram mais propensos à manifestação de doenças marcadas pela hereditariedade, como a criminalidade, a loucura, a tuberculose, a epilepsia. Esses seriam estigmas externos a atestar a existência de uma degeneração formativa e racial que incidia sobre esses grupos.

Pautadas em conceitos deterministas biológicos — que vinculavam raças a determinadas características “naturais” —, essas novas vogas partiam do princípio de que pouco valia o indivíduo, já que ele não passava da soma dos atributos de seu grupo; a bem dizer, de sua raça. Conhecidas como “teorias do coletivo”, elas em tudo se opunham aos modelos do liberalismo político, que se apresentou como um discurso igualitário e que apostava nas virtudes e no livre-arbítrio do indivíduo.7 Segundo autores como Haeckel, Gobineau, Taine, Lapouge, existiria entre indivíduos de raças diferentes a mesma distância encontrada entre animais variados, como um cavalo e um burro, por exemplo. Por isso mesmo, as raças humanas eram consideradas como realidades essenciais e ontologicamente distintas.8 Um indivíduo não escapava, pois, das determinações de seu grupo, sendo os estigmas equivalentes a sinais externos de degeneração.

Assim, se em meados dos Novecentos assimilação e mobilidade viraram realidade em vários cantos do planeta — quando foi suspensa uma série de restrições legais, sociais e políticas que ainda grassavam sobre populações sujeitas a processos de escravidão ou presas a trabalhos serviçais —, seguiu-se a tal período um momento condicionado por teorias raciais, francamente opostas aos modelos igualitários, universais e de inclusão social. Chamado por Leo Spitzer de “embaraço da marginalização”, esse segundo contexto inaugurou diferentes maneiras de condicionar diferenciação social baseadas na cor dos indivíduos e também na diversidade étnica, religiosa e cultural. O movimento andava, portanto, na contramão: em vez do fim das servidões, surgiam novas formas de hierarquia entre os homens.9

No Brasil, enquanto no corpo da lei se preparava a sociedade para o exercício da liberdade e da igualdade, a ciência parecia mostrar o oposto: os indivíduos não nasciam iguais, e não se poderia prever a igualdade entre, por exemplo, negros e brancos. Mais que isso, os modelos deterministas estabeleciam agora, e de maneira rígida, diferenças definitivas entre os grupos humanos, dividindo-os em superiores e inferiores. Brancos — euro-americanos — compunham o ápice da humanidade, enquanto os africanos figuravam na base social. Cor e raça convertem-se, dessa maneira, numa espécie de régua perversa, a medir a capacidade das pessoas.

As consequências desse tipo de pensamento foram imensas no país, que, desde os anos 1860, começara a ser entendido como um “laboratório” de raças mistas degeneradas. Agassiz, naturalista suíço radicado nos Estados Unidos, comprovou por aqui, e em 1865, o que já queria previamente encontrar. Escrevia ele: “quem quiser conhecer a degeneração que venha ao Brasil!”.10

Mas não foram só estrangeiros que diagnosticaram os “males da mestiçagem”. Não por coincidência, ganhava bastante renome um dos médicos fundadores da Escola Tropicalista Baiana. Nina Rodrigues realizou a mais importante pesquisa sobre as nações africanas residentes no Brasil. Depois disso passou a estudar a criminalidade, adentrou o terreno da loucura, e não mudou de teoria. Para ele, a hereditariedade era fundamental nos passos futuros dos indivíduos. Leitor de Cesare Lombroso — de seu O homem delinquente (1876) e das conclusões da “antropologia criminal” —, Rodrigues pretendia alertar a nação acerca dos males da mestiçagem e do desequilíbrio que esta causava.11 A ideia era que a “raça” se constituía em peça fundamental na conduta dos criminosos. Amparado nesse modelo é que Nina defendia a proeminência dos médicos na elaboração do código criminal, bem como condenava a igualdade jurídica, uma vez que ela previa uma unidade populacional não comprovada pela biologia. Em 1894, seis anos após a abolição da escravidão, Nina publicou As raças humanas e a responsabilidade penal, em que defendeu a tese de que o “crime era relativo”. Ali propunha a existência de dois códigos penais — um para negros, outro para brancos —, sempre justificando que a grupos diversos não poderia corresponder apenas uma regra e sanção.12

O fato é que, ao mesmo tempo que o Brasil se aproximava da abolição iminente, multiplicavam-se as saídas visionadas para o futuro da nação. Representantes da ciência médica eram em boa parte contrários ao que chamavam de abolição “repentina”; escravocratas afirmavam que as populações cativas “não estavam preparadas” para o exercício da liberdade; vários juristas e reformadores defendiam o fim do sistema, destacando o papel vexatório e retardatário do país na questão; manifestantes mais radicais e favoráveis à libertação imediata propunham a emancipação na marra; e as populações ainda escravizadas cada vez mais fugiam em massa, amotinavam-se, rebelavam-se.

O medo era também grande companheiro. Medo que as elites sentiam do absoluto descontrole; medo que as populações livres e recém-libertas tinham da reescravização.13 Do mesmo modo, criavam-se hierarquias pautadas no tempo pregresso de liberdade: quem nascia livre, sentia-se diferente dos que logravam a manumissão pela lei: os “Ventres Livres”, os “Sexagenários”, e depois os “Treze de Maio”. Grupos igualmente se distanciavam e eram diferenciados pela cor e a partir das teorias raciais. Mesmo duvidando ou sendo contra, não se passava incólume por essas teorias que chegavam com o beneplácito da ciência.

E talvez fosse esse o medo recôndito que os Barreto sentiam. Afinal, o mesmo contexto anunciava não só a igualdade, como a diferença “essencial” entre os homens, já que naturalizada pela biologia. E a jovem família logo experimentaria certo “embaraço”, a partir de suas próprias experiências mais íntimas e doloridas.

De um lado, João Henriques, quiçá informado acerca dessas teorias deterministas e raciais, deveria temer que o pequeno desequilíbrio que acabara de sofrer não fosse apenas uma reação pessoal ou individual ante as novas responsabilidades que a vida lhe apresentava, mas um alerta diante de um estigma considerado comum às “raças mestiças”. É certo que naquele momento a doença não se manifestaria em Henriques de maneira mais duradoura. Não obstante, para os “doutores do determinismo”, um primeiro sintoma já era marca de uma patologia persistente e de fundo: um estigma operante de degeneração e de hereditariedade. E há ainda o outro lado da mesma história: Amália Augusta logo depois dos primeiros partos apresentaria mais um “sintoma” — a tuberculose.

D. Amália, a mãe de olhar triste e lembrança fugidia

Desde o princípio a vida não deu trégua ao casal. Exatos dez meses após o casamento, em setembro de 1879, Amália teve um primeiro parto muito difícil. O filho resistiu apenas oito dias; tanto que mal houve tempo de batizar o primogênito, que foi chamado de Nicomedes, numa homenagem a reis, sábios e matemáticos da Antiguidade, mas também ao santo sofredor. Como consequência, Amália adquiriu traumatismo e paralisia nas pernas, que lhe abalaram de maneira irreversível a saúde; seria para sempre obrigada a usar muletas. Ainda assim, teve mais quatro filhos, e em curto intervalo: Afonso Henriques em 1881, Evangelina em 1882, Carlindo em 1884 e Eliézer em 1886.

O primeiro nome de Afonso Henriques de Lima Barreto, o que vingaria como o mais velho dos filhos, foi escolhido em homenagem a seu poderoso padrinho: o então senador Afonso Celso de Assis Figueiredo. Já o segundo foi retirado do nome do pai, seguindo-se o costume bem brasileiro de destacar a ascendência paterna. O rebento nasceu no dia de Nossa Senhora dos Mártires, fato que Lima ressaltará como premonitório, numa visão acerca de si próprio e do deslocamento social e literário que sentiu pela vida afora.

As coincidências não parariam por aí. Há outra, ainda que um pouco anacrônica. Afinal, vale a pena anotar os usos que a memória faz da história.14 O garoto veio ao mundo no dia 13 de maio, exatos sete anos antes do ato mais popular do Império: a promulgação da Lei Áurea.15 Coincidências nunca são apenas coincidências, e o 13 de maio ficaria gravado como data simbólica na memória de Lima. Seria vivenciado, como vimos, primeiro como uma alegria infantil, depois como promessa, e por fim como desilusão e infortúnio.

Mas não nos cabe aqui acreditar em premonições. Melhor ficarmos nos idos de 1881, quando ainda não se imaginava que a abolição definitiva viria dali a sete anos, sem indenizações aos proprietários e muito menos, o que seria ainda mais importante, planos de inserção social para os libertos. O ambiente era tenso, os projetos pipocavam, e em 1885 a lei que dava liberdade aos sexagenários, de tão conservadora e tímida em seus efeitos, acabou por gerar reação contrária à esperada: em vez de consagração, vingou uma espécie de escárnio nacional. A liberdade chegava para os escravos com mais de sessenta anos, os quais, depois de tanto tempo de trabalhos forçados, significavam para o senhor mais prejuízo que lucro. Não é obra do acaso os jornais apresentarem uma série de casos de “sexagenários” que morreram nas vizinhanças das propriedades em que haviam trabalhado, assustados diante do desafio de enfrentar — pela primeira vez — a cidade grande.16

Quanto aos Barreto, suas preocupações eram bem mais imediatas. João Henriques estava muito preocupado com sua principal batalha familiar: vencer a má saúde da esposa, que declinava a olhos vistos. Amália Augusta agora apresentava problemas “nos pulmões”, segundo os termos correntes. Por essa época, a família mudou de endereço várias vezes, na esperança de encontrar melhores condições climáticas para a jovem matriarca. Foram, por exemplo, para a rua Dois de Dezembro, no Flamengo, quando os médicos receitaram banhos de mar à paciente. Mas a terapia não era uma unanimidade. Anos após a morte de Amália, o dr. Plínio Olinto discorre sobre as perdas e os ganhos dessa terapia “como medida higiênica, como tônico, mas também no tratamento de várias doenças e nas suas convalescenças”, em artigo publicado na Revista da Semana de dezembro de 1915. Confirma ainda que as praias que os Barreto procuraram — a do Flamengo e a de Santa Luzia — eram as mais frequentadas para esse fim. Porém, ressaltava que aos tuberculosos nem sempre se aconselhava tal tipo de tratamento.17

 

Moda nos balneários cariocas, Rio de Janeiro, 1915.

 

De toda maneira, desde meados do século XIX crescia a preocupação com as condições de salubridade das cidades, principalmente como forma de combater as epidemias existentes. Não por coincidência, introduziu-se na capital do país uma melhor estrutura de distribuição da água, de captura e dispensa do esgoto, de coleta de lixo e de atendimento de saúde.18 E foi então que o uso da água e dos banhos de mar virou moda, ao menos como prática terapêutica e medicinal.19

Uma coisa foi puxando a outra e com a consolidação dos banhos de mar houve uma maior demanda de locais públicos para as trocas de roupa. Assim, surgiram no país as casas de banho, que no Rio de Janeiro funcionavam desde as primeiras horas da manhã.20 Os preços variavam, mas os estabelecimentos tinham em comum a oferta de pequenas cabines equipadas com banquinho e espelho, capazes de garantir que seus clientes se vestissem e desvestissem com privacidade. Ou melhor, com relativa privacidade, já que notícias da época denunciam a prática masculina de tentar observar mulheres nuas ou pouco vestidas que ingenuamente faziam uso desses locais. Em 1883, por exemplo, a casa High-Life, uma das mais conhecidas da praia do Flamengo, a fim de afastar qualquer dúvida sobre sua reputação, publicou notas nos jornais do Rio destacando ser o primeiro estabelecimento balneário da América do Sul, o mais bem montado e o único a funcionar de maneira digna na capital.21

Em 1879, A Estação descrevia a moda feminina para os banhos de mar: “A blusa e a calça são abotoadas, uma à outra, no cinto sofrivelmente largo, pregado de modo a correr com facilidade. Este modelo, de baetilha branca, é apertado por uma faixa, e enfeitado de bordado a ponto de marca”.22

Não obstante o empenho de João Henriques, no caso de Amália o tratamento não deu muito certo. Desanimados, os Barreto passaram a viver na casa da rua das Marrecas. O novo endereço pelo menos facilitava a vida do marido, já que ficava perto da Santa Casa da Misericórdia e da Imprensa Nacional, que funcionava na antiga rua da Guarda Velha (atual avenida Treze de Maio). Além disso, não distava muito da praia de Santa Luzia, localizada nas imediações do Passeio Público e considerada tão boa como aquela do Flamengo.

Nesse meio-tempo, as coisas insistiam em dar errado: as constantes mudanças, o rigor com os afazeres da casa, o cuidado com os dois filhos pequenos, levaram ao agravamento da doença da jovem mãe. Além do mais, Amália esperava outro bebê, Carlindo, que nasceria, como vimos, em 1884. Por essas e por outras o estabelecimento de ensino da mãe de Lima foi fechado, e ela passou a se dedicar exclusivamente à vida doméstica, aos filhos e à sua saúde.

Foi quando sugeriram a João Henriques que fossem viver nos subúrbios, onde não só o clima era melhor, afamado por possuir bons ares, próprios para a cura de “moléstias do peito”, como o preço dos aluguéis mais módico. Mudaram-se primeiro para a região da “Boca do Mato”, que tinha fronteira com os bairros do Engenho de Dentro, Engenho Novo e Méier. De lá passaram para o Catumbi, que não ficava longe do centro do Rio; bem no limite com os bairros do Rio Comprido e Santa Teresa. Foi lá que nasceu Eliézer, em 1886. A situação de Amália, ainda assim, não melhorava. E o chefe da família tentou outra mudança, para o bairro de Paula Matos. Quem sabe os ares da montanha, na casa da rua Santo Alfredo,23 não ajudassem na recuperação. Como indica o anúncio de um imóvel situado na mesma rua, no número 14, o lugar “era muito saudável e com esplêndida vista”.24 Talvez por isso os Barreto tenham dado ao novo lar o significativo nome de Paraíso.

Mas a tuberculose não deu trégua a Amália Augusta, que viria a falecer em dezembro de 1887. Sua sina não foi, porém, exceção. A história da doença no Brasil datava do período colonial, e sua disseminação foi de tal monta, sobretudo entre as classes menos favorecidas, que ficou conhecida, popularmente, como a “praga dos pobres”. Com o crescimento das cidades no Novecentos, passou a matar ainda mais, com as estatísticas mencionando cerca de setecentos óbitos para cada 100 mil habitantes no país por ano.25 Acumulou, então, outra alcunha: a “peste branca”. E diante da sua proliferação descontrolada, que alcançava níveis epidêmicos, a moléstia deixou de ser associada ao romantismo das décadas anteriores. Isto é, se até meados do XIX a tuberculose era vinculada à criação cultural — e artistas como Casimiro de Abreu chegavam a desejar morrer de tísica —,26 agora ela em nada lembrava o “belo sofrimento”; ao contrário, suscitava muita preocupação.

Mesmo assim, a origem da tuberculose era ainda objeto de disputa nesse momento. Para alguns, tratava-se de uma doença congênita, para outros de um componente “externo ao funcionamento do organismo” — ligado a fatores como o meio ambiente e o modo de vida. Boa parte dos especialistas apostava, não obstante, na hereditariedade da moléstia. Na revista O Brazil-Medico, o dr. Cipriano de Freitas, professor de anatomia e fisiologia patológica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, mesmo constatando a exígua quantidade de documentos a comprovar sua tese, opta pelo diagnóstico que determinava o caráter infeccioso e hereditário da doença: “Pode-se afirmar que, neste século, todos os patologistas têm admitido o papel importante dos ascendentes sobre a aparição da tuberculose”.27

Como se vê, no ano da morte da mãe de Lima, a tuberculose era ainda alvo de todo tipo de polêmica: discutiam-se as causas e os tratamentos, que incluíam medicamentos (em geral na forma de xarope) e alterações no padrão de vida.28 No caso de d. Amália, se conferirmos as alterações frequentes de endereço, fica claro que o diagnóstico médico pedia por “mudança de ares”. Já os tratamentos eram vários. No ano de 1887, normalmente se aconselhava o uso de tanino, de iodureto de cálcio, terpina ou terpinol. O iodureto de cálcio, reunindo os dois agentes medicamentosos num só composto, era solúvel na água, por isso produzido na forma de xarope. Costumava-se também dissolvê-lo em cascas de laranja, de genciana, em vinhos amargos ou em licores, e tomar o líquido antes das refeições.29

Mas um dos diagnósticos deveria incomodar os Barreto: o fato de a tuberculose ser entendida como um sinal hereditário de degeneração, muito próprio dos grupos mestiçados. Naquele contexto, a estigmatização dos doentes era frequente. Mesmo com o incremento das iniciativas médico-higienistas de controle da moléstia nas camadas sociais mais pobres, ela era encarada com grandes doses de ambiguidade: produzia tanto solidariedade quanto isolamento. Se era preciso cuidar dos indivíduos infectados, eles eram também vistos como “agentes corruptores do meio social”, ou transmissores de germes.30

Para a família de Amália sobrava, pois, o preconceito. Afinal, loucura e tuberculose eram dois estigmas fortes, nos termos de Cesare Lombroso,31 denunciando as “fraquezas da mestiçagem”. Talvez por isso a imagem da mãe de Lima tenha ficado para ele associada não só à educação como à fragilidade. Como declinou Manuel Bandeira em “Pneumotórax”, poema publicado em Libertinagem (1930): “A vida inteira que podia ter sido e que não foi”.

Depois de sete anos de sofrimento, em 24 de dezembro de 1887 a Gazeta de Noticias publicava, na seção de obituário, a nota de falecimento de Amália Augusta Barreto. Nela, João Henriques de Lima Barreto, seus filhos e d. Clemência da Costa Vieira — chamada por Francisco de Assis Barbosa de “a ama-seca da família” — convidavam todas as pessoas de sua amizade para acompanharem o féretro de sua mulher, mãe e amiga, que saía “da rua de Santo Alfredo n. 7, descendo pela ladeira do Viana e rua do Cunha, em Catumbi, hoje às quatro horas da tarde, 24 do corrente, para o cemitério de S. João Batista”.32 A Cidade do Rio, dos mesmos dia, mês e ano, também noticiou que, vítima de “tubérculos pulmonares”, falecera no dia anterior a “exma. sra. d. Amália Augusta de Lima Barreto, virtuosa esposa do nosso amigo João Henrique [sic] de Lima Barreto, a quem damos sentidos pêsames. Com a morte de tão respeitável senhora, perdem os carinhos e os afagos maternos seus quatro inocentes filhinhos”.33 “O escritor guardou para sempre a imagem da mãe morta”,34 combalida pelos partos e pela doença, com quem aprendera o abecê35 e que vira num caixão, com apenas seis anos: “Só me lembro dela no caixão quando meu pai, chorando, me carregou para aspergir água benta sobre o cadáver. Durante toda a minha vida fez-me falta […] Deixando-me na primeira infância, bem cedo firmou-se o meu caráter…”.36 Já adulto, não poucas vezes Lima recordou a maneira como ela o olhava, “fosse em que circunstância fosse, onde havia, mesclados, terror, pena, admiração e amor”.37

João Henriques e sua ascensão profissional

João Henriques tinha, então, 34 anos completos, e já havia dado mostras de que sofria do que hoje chamaríamos de transtorno bipolar. Em alguns momentos parecia alegre e confiante; em outros, e logo na sequência, ficava triste e calado. De toda maneira, contra os prognósticos mais negativos, o viúvo, que restara sozinho e com quatro filhos pequenos para criar — o maior com seis anos e o caçula com quase dois —, ia construindo uma carreira de sucesso como tipógrafo. Durante a doença da esposa, ele acumulava, com o serviço regular, trabalhos como o de examinador de português na escola noturna do Congresso Operário de Beneficência e o de presidente da Associação de Auxílios Mútuos dos Empregados da Tipografia Nacional.

Após a morte de Amália, João Henriques e os filhos mudam-se novamente. Dessa vez para a rua do Riachuelo, esquina com a do Rezende. Voltavam para a região central, mais próxima do principal emprego do chefe da família, no jornal A Reforma. A tipografia do periódico, sediada na rua do Ouvidor, em 1875 passara a funcionar na Sete de Setembro, 181. Na época em que o pai de Lima trabalhou por lá, o endereço já era outro — rua dos Ourives (atual Miguel Couto), 9 — e um grupo animado frequentava a tipografia. É possível que Henriques tenha encontrado José do Patrocínio, que começava a chamar a atenção para a causa do abolicionismo, com seus discursos inflamados e espetáculos que organizava em teatros e com apresentações de concertos.38

O pai de Lima trabalhava no jornal fazia um bom tempo. Já em 25 de maio de 1873, conforme matéria publicada pelo Jornal do Commercio e intitulada “Arte tipográfica”, ele aparece como administrador das obras da tipografia de A Reforma e responsável por “imprimir o volume sob o título O partido ultramontano do sr. dr. Joaquim Nabuco”. O artigo é só elogios: define a edição como um “primor da arte tipográfica”. Mais ainda, Henriques, “com a impressão desse volume e de outros” — não citados “para não ofender a sua modéstia” —, passa a merecer “o título de reformador elegante e sistemático da arte tipográfica no Brasil”.39

Mas, ao que parece, ele nunca se livrava da polêmica; na mesma nota, o autor — que assina como “um apreciador de mérito” — afirma que o tipógrafo “não estaria isento dos apodos e calúnias”. Como sugestão, o anônimo fã (que bem poderia ser o próprio Henriques) termina com um verso do poeta Bocage: “zoilos, tremei, rugi, mordei-vos!”.

O “reformador elegante e sistemático” surge, a partir de 1880, como membro da Associação Nacional dos Artistas Brasileiros Trabalho, União e Moralidade.40 Já no ano seguinte constava na posição de vice-presidente, segundo nota da Gazeta de Noticias acerca da eleição da nova diretoria da associação.41 Entre 1883 e 1885, o nome do tipógrafo é mencionado nos jornais do Rio, por conta das convocatórias e resultados publicados dos exames preparatórios para o curso comercial do Liceu de Artes e Ofícios.

A formação do tipógrafo seguia a contento e com ela a possibilidade de galgar a outras posições. A Gazeta de Noticias do dia 1o de março de 1886 informa sobre a composição da nova direção da Associação de Auxílios Mútuos dos Empregados da Imprensa Nacional e Diário Oficial: João Henriques de Lima Barreto era o presidente.42 O importante é que, com esse cargo, e com a notícia da presidência, o pai de Lima já entrava, automaticamente, na oficina da Imprensa Nacional.43

Foi nesse período bom para sua carreira que João Henriques publicou o Manual do aprendiz compositor, o qual traduzira do original francês de autoria de Jules Claye, como já tivemos oportunidade de comentar. A qualidade da tradução do “hábil operário” e o papel fundamental da obra foram bastante saudados nos jornais de época.44

A partir de dezembro de 1888, sem abrir mão do emprego público diurno, o pai de Lima aceita trabalhar à noite na recém-fundada Tribuna Liberal, também instalada na famosa rua Nova do Ouvidor, onde tudo parecia acontecer. A Tribuna era órgão do Partido Liberal, vinculada ao padrinho de João Henriques, o já conhecido visconde de Ouro Preto. Henriques muitas vezes levava o filho mais velho para o expediente noturno na oficina do jornal. O menino ficava por lá, brincando na rua em frente, enquanto o pai ia paginando as crônicas monarquistas e católicas de Carlos de Laet45 e os textos literários de Valentim Magalhães.46 Lima escreveria, num texto datado de 3 de junho de 1920 e intitulado “O meu almoço”, que “vinha passar a noite” ao lado do pai “paginador da infausta Tribuna Liberal”, ou saía para perambular pelas ruas nas cercanias.47

Nessa altura, além de paginador e chefe técnico das oficinas tipográficas da Tribuna Liberal, João Henriques era mestre da oficina de composição da Imprensa Nacional, muito respeitado pelos colegas, segundo informa a nota de aniversário de 1889, publicada na Cidade do Rio em 20 de setembro daquele ano.48 Nesse caminho ascendente, ele tomaria parte do Centro 13 de Maio, iniciativa originalmente destinada à organização das festividades em honra da assinatura da Lei Áurea, que em curto espaço de tempo passaria a congregar a cada vez mais influente classe tipográfica.

A maré favorável, porém, duraria pouco tempo para João Henriques. Assim como a Tribuna Liberal, o Centro 13 de Maio estaria bastante vinculado a Ouro Preto e aos monarquistas, cujo predomínio político tinha os dias contados. Os bons ares decididamente começavam a soprar em direção contrária.

De mãos dadas com o pai: “Liberdade é o dia de hoje”

João Henriques tentou, na medida do possível, manter certa normalidade dentro da família. Afonso Henriques passou a frequentar uma escola pública localizada nas cercanias — na rua do Rezende, 127 —,49 enquanto a irmã, Evangelina, foi matriculada no Colégio Perret; sobrenome, aliás, de sua diretora, Agostinha Ana Perret, e de suas irmãs, as professoras Cecília Júlia Perret e Elisa Carolina Perret de Castro.50 Ouro Preto assumiria o custeio dos estudos do menino Lima Barreto, tendo sido preservados os documentos que mostram que o material escolar, livros e vestuários eram todos financiados pelo visconde.

A escola de Lima, modesta, contava apenas com “duas salas de aula”, “grandes e pesadas carteiras do tempo”.51 Era chamada de “escola de d. Teresa”, por causa da grande influência que essa professora exercia por lá. Foi na época da Lei Áurea que Lima a conheceu, e foi também por isso que jamais a esqueceu.

Dizia-se que o menino era muito ressabiado; andava sempre meio cabisbaixo, não dava conversa para ninguém. Clemência, a criada que o pai contratou para cuidar das crianças, padeceu nas mãos de Lima, que cismou com a moça e até forçou sua demissão. Na crônica “Da minha cela”, o escritor se refere a ela, sem mencionar o papel que desempenhou para que deixasse a casa dos Barreto. “A minha educação cética, voltairiana, nunca me permitiu um contato mais contínuo com religiosos de qualquer espécie. Em menino, logo após a morte de minha mãe, houve uma senhora idosa dona Clemência, que assessorava a mim e a meus irmãos, e ensinou-me um pouco de catecismo, o ‘Padre-Nosso’, a ‘Ave-Maria’ e a ‘Salve-Rainha’, mas, bem depressa nos deixou e eu não sabia mais nada dessas obrigações piedosas, ao fim de alguns meses.”52

No conto “O filho da Gabriela”53 é possível reconhecer alguns traços do escritor, que projeta sua meninice em Horácio, o personagem principal na história, o qual, “pelos seis anos, mostrava-se taciturno, reservado e tímido, olhando interrogativamente as pessoas e coisas, sem articular uma pergunta”.54 Também em “O moleque” é fácil notar a sombra de um Lima menino.55 Nele, o autor relata o caso de d. Felismina, que vivia num barracão de um só aposento, com seu filho Zeca. Era “preta e honesta”, definia Lima. Tanto que, certo dia, perto do Carnaval, ao ver o filho entrar em casa todo contente, com uma reluzente máscara de Diabo, logo o acusou de tê-la roubado. “Você roubou, meu filho?… Zeca, meu filho! Pobre, sim; mas ladrão, não! Ah! meu Deus!…”56 Na verdade, a máscara fora presente. Mas a acusação ficou na lembrança com muito mais força do que a acareação da realidade. Lima, aos quase sete anos, passou por experiência semelhante. No seu Diário lemos a seguinte passagem: “Logo depois da morte de minha mãe, quando fui acusado injustamente de furto, tive vontade de me matar”.57

Tratava-se, enfim, de um garoto um tanto depressivo, isolado, e que devia sentir a falta de Amália e as ausências constantes do pai. Esse primogênito em quem João Henriques depositava suas maiores esperanças, estudava, pois, na escola de d. Teresa Pimentel do Amaral, referência feminina e forte na vida do escritor, e tantas vezes evocada: “Mas, de todos, de quem mais me lembro, é da minha professora primária, não direi do a-b-c, porque o aprendi em casa, com minha mãe, que me morreu aos sete anos”.58 Em outro trecho, Lima menciona sua “primeira década de vida, de meu primeiro colégio público municipal, na rua do Rezende”, e sobretudo de d. Teresa, de quem “talvez se a desgraça, um dia, enfraquecer-me a memória não me esqueça de todo”.59

D. Teresa devia ter mesmo uma personalidade marcante. Juntamente com Maria do Nascimento Reis Santos recebeu em 1907 um prêmio de 25$000 pelo conto “Entre 10 horas e 10¾”.60 Reproduzida no Correio da Manhã de 21 de fevereiro do mesmo ano, a história correspondia a uma enumeração didática sobre os valores morais que se pretendia transmitir aos alunos. O primeiro caso gira em torno de uma menina que caçoou de outra por se julgar superior a ela. A justificativa residia no fato de que seu pai era engenheiro, enquanto o da colega não passava de um catraieiro — o proprietário de uma catraia, ou seja, de um pequeno bote. Explica-se, então, que todos têm “uma missão a cumprir na vida” e que as profissões se igualam, desde que exercidas com “critério e hombridade”. Outra lição de d. Teresa se refere ao preconceito racial. Nela é descrita a situação em que uma aluna, fazendo alusão a uma gatinha preta, apontava para sua colega negra. Conclusão da mestra: é preciso estimar os amigos “sem distinção de família, de cores, de condição”, e “sem distinção de classe nem de adiantamento”.61 Enfim, Lima tinha motivos para se aproximar da sua professora e defender valores parecidos com os dela. E, de fato, a relação com d. Teresa era muito afetiva.

Entre os documentos que o escritor guardou consigo, consta um livro de Louis Figuier, As grandes invenções antigas e modernas nas ciências, indústria e artes: Obra para uso da mocidade,62 cuja dedicatória manuscrita é datada de novembro de 1890. Nela podemos ler: “Mensagem da professora T. P. de Amaral para um aluno seu Afonso”. Assis Barbosa refere-se a um documento que teria encontrado na mesma coleção, onde se lê: “Afonso, guarda esse livro como uma lembrança de quem se orgulha de ter desenvolvido um pouco tua grande inteligência da qual muito espera nossa cara Pátria”.63 O primeiro livro ninguém esquece, e o de Lima foi oferta de sua professora, na escola pública.

Também foi d. Teresa quem deu a notícia, quiçá, mais relembrada pelo escritor Lima Barreto em diferentes momentos de sua vida: ela reuniu a classe e contou que a partir daquela data, 13 de maio de 1888, não existiam mais escravos no Brasil. É certo que o menino, que contava sete anos feitos naquele dia, pouco compreendeu a dimensão da boa-nova. No entanto, muitas vezes história se escreve ao revés. Por isso vale a pena transcrever o relato do autor sobre o momento, tantas vezes recuperado em livros, crônicas e seletas, mas sempre com introduções e conclusões distintas e ao sabor dos tempos. A insistência só confirma a importância da ocasião.

No artigo intitulado “Maio”, publicado na Gazeta da Tarde do dia 4 de maio de 1911, o escritor assim descreve o momento da comunicação da professora Teresa: “Eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos hediondos”.64

Distante da memória do cativeiro, o menino não deixou de se contaminar, porém, com a alegria que tomou as ruas do Rio: não havia mais escravos no Brasil e a liberdade era agora de todos. Continua ele: “Era bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição foi geral pelo país. Havia de ser, porque já tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão. Quando fui para o colégio, um colégio público, à rua do Rezende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos tinha tomado. A professora, dona Teresa Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, a quem muito deve o meu espírito, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! Livre! Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia. Parece que essa convicção era geral na meninada, porquanto um colega meu, depois de um castigo, me disse: ‘Vou dizer a papai que não quero voltar mais ao colégio. Não somos todos livres?’”.

Num manuscrito não datado encontrado na Biblioteca Nacional, o começo e o final do artigo são um pouco diferentes: o primeiro parágrafo foi suprimido e no último Lima é menos pitoresco e mais cético nas suas recordações: “Livre! livre! […] Mas como estamos ainda longe disso! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis! […] São boas essas recordações; elas têm um perfume de saudade e fazem com que sintamos a eternidade do tempo. O tempo inflexível, o tempo que, como o moço é irmão da Morte, vai matando aspirações, tirando perempções, trazendo desalento, e só nos deixa na alma essa saudade do passado, às vezes composto de fúteis acontecimentos, mas que é bom sempre relembrar”.65

Muitas vezes escritos inacabados funcionam como peças vivas, pois estão sempre sendo alterados por seu autor. No caso, as oscilações no documento acompanham as expectativas de Lima em relação aos diferentes contextos que experimentou. E nesse que estamos relendo o menino revelava seus sonhos. Afinal, o momento da Lei Áurea, além de ansiosamente aguardado, vinha repleto de simbolismo e emoção. Demorou muito, demais, e, quando chegou, a tramitação foi rápida. O projeto de lei que extinguia a escravidão foi aprovado no dia 10 de maio na Câmara e no dia 13 no Senado, quando se promulgou a lei 3353. O texto tinha apenas duas linhas: “É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Revogam-se as disposições em contrário”. A lei custara tanto a sair e vinha assim, tão breve. As divisões entre escravistas, abolicionistas, liberais, conservadores e políticos em geral corriam soltas e eram muitas; mas a lei veio como uma gota d’água em copo já cheio. O imperador estava no exterior, adoentado, e as versões variavam: para alguns, Isabel se adiantara por medo de que o monarca não tivesse tempo de libertar os escravos. Para outros, era questão de cálculo político mesmo, e o ato visava garantir a existência de um Terceiro Reinado, o qual, como sabemos, nunca vingou — assinando o ato, a filha do soberano acabaria como “autora” das duas maiores leis abolicionistas: a do Ventre Livre e a Áurea. Mas, se é verdade que Isabel lucrou politicamente com a promulgação do ato, seu prestígio social não contribuiu muito para melhorar a situação política do Império, então com os dias contados.

Ao fim e ao cabo, a princesa conseguiu a proeza de decepcionar diferentes lados: os senhores, que queriam indenização pelas “perdas” em seu capital, os abolicionistas e ex-escravos, que pretendiam ver concretizados projetos mais amplos de inclusão dos libertos na sociedade que então se reorganizava. Mesmo assim, a medida foi saudada com entusiasmo pelos brasileiros, e o povo na rua acompanhou o espetáculo como se estivesse num grande teatro ao ar livre.

 

Reprodução do documento da Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, com sua composição em tipos criados para a ocasião.

 

A Gazeta da Tarde de 15 de maio de 1888 foi toda dedicada ao evento, informando, inclusive, os nomes dos profissionais que trabalharam na elaboração do documento. A composição da lei foi descrita como um ritual, sugerindo o cuidado dos tipógrafos envolvidos na tarefa e dando indícios da importância do lugar de sua arte e ofício naquele contexto. O pai de Lima, certamente, rejubilou-se ao apreciar o trabalho da sua classe e o “tipo completamente novo”, criado para a ocasião festiva.66

No dia seguinte à assinatura da lei o jornal estampou o significativo título: “Liberdade é o dia de hoje”. A palavra “liberdade” estava na boca de todos, e a notícia da Lei Áurea foi celebrada com um desfile que atravessou a rua do Ouvidor e invadiu a região do Paço. A comissão da Confederação Abolicionista (composta entre outros por João Clapp, Nicolau Moreira, Joaquim Nabuco, Afonso Celso Júnior, José do Patrocínio e José Dantas) subiu até uma das salas do Paço para aguardar a princesa imperial regente, com quem, como vimos, ficariam todos os louros e a memória do ato.

Pouco antes das três horas da tarde foi anunciada a chegada de Isabel, “com entusiásticos gritos do povo, que em delírio a aclamava, abrindo alas o ministério, camaristas e damas do paço [que] vieram recebê-la à porta”.67 A regente, acompanhada do esposo, o conde d’Eu, subiu a escada na qual alas de senhoras jogavam flores à sua passagem. Instantes depois, a Comissão do Senado foi recebida na Sala do Trono para apresentação dos autógrafos. Seus membros postaram-se de frente para o trono; o senador Manuel de Sousa Dantas fez um breve discurso e em seguida entregou os autógrafos ao presidente do Conselho, para que este passasse o documento a Sua Alteza, d. Isabel Cristina de Bragança.

Novo discurso foi proferido pelo senador Dantas, que exaltou as “boas qualidades” das majestades imperiais e o fato de o imperador “achar-se melhor de seus graves padecimentos”, e de ser “o primeiro entre os mais esforçados propugnadores do grande e jubiloso acontecimento que acaba de realizar-se”. Sabemos que rituais têm por vezes poderes de inverter a realidade. De toda forma, Isabel, “com os olhos cheios de lágrimas”, teria confessado: “Seria hoje o dia mais feliz de minha vida, se meu extremoso pai não se achasse enfermo; mas espero em Deus que em breve ele regresse bom à nossa pátria”. Após “uma tempestade de aplausos”, o povo, que nessa altura invadira a Sala do Trono, acompanhou “Sua Alteza” a uma sala contígua onde ela sancionaria os autógrafos e referendaria o decreto extinguindo a escravidão. Depois de receber o documento das mãos do ministro da Agricultura, o conselheiro Rodrigo Augusto da Silva, a princesa assinou o documento “servindo-se da riquíssima e delicada pena de ouro que para esse ato lhe foi oferecida pelo povo”. Aí estava a que ficou conhecida como a “canetada da princesa”.

Logo depois, as fotos de época mostram Isabel achegando-se às janelas para cumprimentar o povo, “que em massa se estendia até grande distância”. Nas imagens e nos textos dos jornais a regente foi aguardada, como dizia a edição da Gazeta, com “entusiásticas aclamações e repetidos vivas”. A população postada diante do palácio parecia esperar entre impaciente e maravilhada pelo momento solene, apenas protegida do sol inclemente do começo da tarde por suas sombrinhas, que não escondiam o tom colorido do povo que se espremia para ver o ato. Dizem que eram 10 mil pessoas, apeadas para ver a princesa acenar na sacada do Paço.

Multidão concentrada diante do Paço Imperial para a assinatura da Lei Áurea, Rio de Janeiro, 1888.

 

Aqueles que até então se achavam no interior do Paço seguiram a multidão, e João Clapp, comerciante de louças e porcelanas e membro da equipe da Tribuna Liberal, em nome da Confederação Abolicionista, entregou à princesa um ramo de violetas e camélias artificiais, cujas fitas de seda branca traziam o dístico: “Libertas alma mater. A S. A. Imperial Regente, a Confederação Abolicionista. 13 de maio de 1888”. “Traga a liberdade, alma de mãe” era frase de efeito, como se o ato só pudesse ter vindo de uma mulher e mãe.

Em continuidade ao rito, José de Seixas Magalhães, membro ativo da Confederação Abolicionista e dono da chácara onde se instalou o quilombo do Leblon, levou mais um ramo de camélias à princesa. O português Seixas Magalhães trabalhava com fabrico e comércio de artigos de couro e possuía um estabelecimento, o Seixas e Cia., que funcionava num amplo armazém na rua Gonçalves Dias, no coração elegante da cidade. Era lá que se reuniam abolicionistas proeminentes como o poeta Olavo Bilac, o jornalista José do Patrocínio, o jurista Rui Barbosa, o escritor Coelho Neto e alguns intelectuais de renome, como André Rebouças, Paula Nei e Joaquim Nabuco — quase todos favoráveis a um projeto de abolição imediata e sem indenização aos proprietários de escravos.68

Criada no Rio de Janeiro por José do Patrocínio e André Rebouças, a Confederação Abolicionista reunia cerca de trinta clubes e associações antiescravistas, surgidos em praticamente todas as províncias do Império. A agremiação nasceu com a agenda cheia: aliciou escravos, acoitou fugitivos, produziu panfletos e manifestos, organizou conferências. Também esteve a postos para apoiar os fugitivos do quilombo do Leblon, e contribuiu ativamente para a proteção, organização e manutenção do refúgio de escravizados que Seixas instalou em sua chácara. No entanto, o quilombo do Leblon tornou-se famoso graças a uma particularidade: os que lá permaneciam se dedicavam ao cultivo e ao comércio de flores, mais especificamente camélias brancas. A associação da flor com a abolição foi uma ótima tirada. A camélia era rara no Brasil e, diziam eles, em sua fragilidade assemelhava-se à liberdade que os escravos lutavam por conquistar. Assim como a liberdade, ela necessitava de cuidados e abrigo especial, além do manejo de técnicas complexas de cultivo que dependiam, é claro, do trabalhador livre, e não da mão de obra escrava.

Levar uma camélia na botoeira do paletó ou cultivá-la no jardim de casa virou gesto político e simbólico: significava uma declaração de princípios e indicava disposição para a ação, ou seja, mostrava-se adesão à causa da abolição e a intenção de proteção aos cativos fugidos. E o que era iniciativa isolada foi virando um sentimento nacional: em São Paulo, por exemplo, os “caifases”, contando com a figura mítica de Antônio Bento de Sousa e Castro — que em São Paulo assumira o lugar de liderança do célebre rábula Luís Gama —,69 ajudavam a embarcar para a corte os escravizados amotinados e fugitivos das fazendas de café, com a orientação de aguardarem que alguém, usando uma camélia branca na lapela, os viesse buscar na plataforma de desembarque da Estação Dom Pedro II.70 Os abolicionistas do Recife evocavam igualmente o simbolismo da flor e batizaram de Camélia uma barcaça que levava libertos para o Ceará.71

Já o pai de Lima estava mesmo de ouvidos e coração voltados para o evento que ocorria bem em frente ao Paço. Afinal, na sequência desse ritual do Estado, bem montado para agradar e emocionar a população ali estacionada, vinha o discurso de José do Patrocínio, popular abolicionista negro, que não por acaso foi selecionado para se manifestar naquele momento solene. José Carlos do Patrocínio era filho de uma escrava alforriada e do cônego João Monteiro. Chegou a frequentar a Escola de Medicina, mas acabou se formando em farmácia no ano de 1874. Participou de uma série de periódicos, nos quais foi acumulando a fama de polemista, até ingressar na Gazeta de Noticias, em 1877, jornal que serviu de plataforma para vários de seus artigos abolicionistas. Nessa época, ele fazia parte da roda de colegas do pai de Lima em A Reforma. Foi em 1881 que adquiriu a Gazeta da Tarde, tendo aí permanecido por seis anos e feito aberta campanha abolicionista. Teria o mesmo tipo de atuação em 1887, mas no jornal Cidade do Rio, onde radicalizou seus ataques aos escravocratas e aos projetos de indenização.

Seu lugar naquele pódio era em tudo especial: filho de escravizados, afrodescendente, abolicionista, discursando ao lado da princesa, e na sacada do Paço. O menino há de ter se impressionado com a figura imponente. Patrocínio era, porém, personagem polêmico: já no ano de 1905, Lima chama a atenção para o fato de certos políticos, entre eles o “líder negro”, terem tirado proveito do momento para se autopromoverem. No seu Diário íntimo, ele relembra o 13 de maio de 1888, e mais explicitamente a fala de José do Patrocínio: “Quem conheceu o Patrocínio como eu o conheci, lacaio de todos os patoteiros, alugado a todas as patifarias, sem uma forte linha de conduta nos seus atos e nos seus pensamentos, não acredita que pudesse ter sido, como dizem, o apóstolo da Abolição”.72 Anos depois, Lima o acusa de “arranjar facilmente dinheiro” e explorar a causa em seu benefício. Impiedoso, acrescenta: “E, quando já era quase universal no Brasil esse amargo sentimento, é que apareceu seu Patrocínio, que, sem honestidade e sem grandeza, aproveita-se da história e, pelo ‘jornalismo’, consegue ser elevado à altura de um apóstolo, de um evangelizador”.73

Não obstante, no ano de 1888, Patrocínio guardava ainda jeito de unanimidade. Sua participação na sequência de eventos de celebração da Lei Áurea foi marcante. Tanto que, terminado o discurso do patrono, Isabel retirou-se para seus aposentos particulares, seguida de mais vivas. De uma das janelas do Paço conversou com Joaquim Nabuco, “congratulando-se com o povo pelo glorioso acontecimento que se festejava”. Mais discursos foram feitos à porta do Paço, por Clapp, Patrocínio e Dantas, formando um préstito que se espalhava pelas vizinhanças do palácio.

Na rua do Ouvidor, novas falas e congratulações, dessa vez proferidas das janelas das redações de jornais pelo mesmo José do Patrocínio, por Joaquim Nabuco e Afonso Celso Júnior. Com a rua iluminada, às sete horas da noite passou a banda de música dos Imperiais Marinheiros. Pouco depois, uma marcha de estudantes provenientes da Escola Naval, da Escola Militar, da Escola de Medicina e da Politécnica inundou as imediações com seus estandartes. Parecia Carnaval atrasado, bem no meio de maio. Passadas três horas, as ruas da corte continuavam lotadas e em festa. Diversos órgãos, instituições nacionais e estrangeiras enviaram mensagens à regente, congratulando-a pelo ato da libertação; incluía-se nessa lista uma comunicação do papa Leão XIII, que atribuíra à princesa uma condecoração: a Rosa de Ouro. Isabel deve ter ficado muito feliz com a comenda, uma vez que era católica e devota.

Os festejos prosseguiram após o dia 13, alcançando diferentes categorias. A Gazeta da Tarde de 15 de maio, na coluna “O dia de ontem”, sublinhava as comemorações organizadas pelos estudantes de preparatórios que se reuniram numa sala do Liceu de Artes e Ofícios.74 O mesmo espírito comandou o encontro da classe tipográfica.

Dentre todos os eventos que se seguiram ao dia 13, um foi registrado em foto e assim permaneceu na memória de muitos: a missa campal celebrada em 17 de maio. A imagem impressiona por conta da verdadeira multidão lá congregada, pela presença de populações de todas as cores, ambos os sexos e várias gerações, e por causa da proliferação de flâmulas e outras insígnias ligadas a sociedades e associações abolicionistas.

O ato foi sem dúvida muito popular, mas os números e cálculos variam conforme o humor e afinidades dos jornais. A Gazeta de Noticias do dia 18, na seção “Abolição”, menciona o comparecimento de mais de 30 mil pessoas.75O Paiz da mesma data registrou apenas 15 mil e ainda menosprezou: “As proporções do campo de São Cristóvão, área capaz de conter número superior a 50 mil pessoas, e a colocação do altar, que não nos pareceu a melhor, não deram à missa com que a imprensa fluminense inaugurou ontem os festejos com que soleniza a promulgação da lei de 13 de maio, o aspecto imponente que se esperava”.76

A Gazeta da Tarde foi às ruas em 17 de maio de 1888 destacando a emoção que tomou conta do ambiente. Entusiasmado, o autor da matéria descreve o que seria uma “confusão alegre, arroubando o espírito e deslumbrando o olhar”. Comentou a presença de senhoras elegantemente trajadas, além da do ministério, do corpo diplomático, da oficialidade de terra e mar, da Escola de Medicina, da guarnição da corte, dos aspirantes da Marinha, do Batalhão Naval, do Corpo de Bombeiros, das escolas municipais, das associações religiosas e civis, e da “multidão calada, respeitosa, serena”. Pelo jeito, a festa contagiava; no mesmo artigo ficamos sabendo que várias ruas da freguesia de São Cristóvão foram enfeitadas, e que muitas casas expuseram colchas e flores em suas janelas. O trânsito local chegou a ser “interrompido”, em razão do excesso de carros. E os bondes da Companhia de São Cristóvão “foram insuficientes para o povo”.77

Missa campal celebrada no dia 17 de maio de 1888 em ação de graças pela abolição da escravatura no Brasil.

 

Pelos relatos deixados por Lima na Gazeta da Tarde de 4 de maio de 1911, foi seu próprio pai quem o levou para ver a princesa, por duas vezes — na frente do Paço e durante a missa campal. A notícia da abolição tinha virado ato cívico, e João Henriques deve ter achado importante que o filho mais velho presenciasse o momento ritual. Já Lima, que do alto dos seus sete anos há de ter visto tudo de baixo para cima — isso se o pai não o levantou até a altura dos ombros —, impressionou-se com a alegria geral e com a brancura da princesa.

Anos depois, no mesmo texto sobre o dia em que a professora Teresa entrou na classe e conversou com os alunos acerca da promulgação da Lei Áurea, Lima repisaria a sua impressão. Explica ele dessa vez: “Estamos em maio, o mês das flores, o mês sagrado pela poesia”. Tudo segue igual até Lima mudar o “dono da boa-nova”, que não seria mais a professora mas o pai. “Agora mesmo estou a lembrar-me que, em 1888, dias antes da data áurea, meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus anos. E de fato passou; e nós fomos esperar a assinatura no largo do Paço. Na minha lembrança desses acontecimentos, o edifício do antigo Paço, hoje repartição dos Telégrafos, fica muito alto, um sky-scraper […] Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do velho casarão. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenço, vivas. […] Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente festa e harmonia.”78 A lembrança do menino, refeita pelo escritor já adulto, não foge à realidade do dia ensolarado, da multidão presente ao local, da princesa na janela. Mas a memória é também traiçoeira, e nosso autor aproveita para associar a data a seu próprio aniversário. Essa marca ia ficar. Libertação do presente, desatino do futuro.

O relato continua, agora descrevendo a missa: “Houve missa campal no campo de São Cristóvão. Eu fui também com meu pai; mas pouco me recordo dela, a não ser lembrar-me que, ao assisti-la, me vinha aos olhos a Primeira missa, de Vítor Meireles. Era como se o Brasil tivesse sido descoberto outra vez […] e eu me lembro que vi a princesa imperial, na porta da atual Prefeitura, cercada de filhos, assistindo àquela fieira de numerosos soldados desfilar devagar. Devia ser de tarde, ao anoitecer. Ela me parecia loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado. Nunca mais a vi e o imperador nunca vi, mas me lembro dos seus carros, aqueles enormes carros dourados, puxados por quatro cavalos, com cocheiros montados e um criado à traseira”.79

A imagem da princesa doce, maternal, quase santa, se colaria na memória do menino que perdera a mãe muito jovem e da população em geral, que atribuiu a ela o feito. Além do mais, eram muitos os que consideravam a ideia de missa como inauguração da nação e a da abolição como representação de um novo descobrimento do país — de um Brasil livre —, naqueles dias carregados de emoção. E Lima fecha a sua história afirmando nunca ter conhecido “uma pessoa escrava”. O escritor, do alto de seus sete anos, ainda não vinculava sua vida pregressa a esse sistema. De mãos dadas com o pai, ele parece adernar no clima alegre da população. Um passado tão próximo mas que devia parecer tão distante. Essa afinal era a vontade de todos. “Nós nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre país”, entoava o Hino da República, publicado em inícios de 1890: um ano e meio após a aguardada Lei Áurea. Tanto para lembrar, muito para (tentar) esquecer.

Vale acompanhar, mais uma vez, o texto de Lima com seu novo final, que se alterava a cada redação. No caso, ele parece menos identificado ao instante do ato e mais absorto no pai, claro, traído pela profunda melancolia de adulto: “ainda tenho de memória um dos versos: ‘Houve um tempo, senhora, há muito já passado…’.80 São boas essas recordações; elas têm um perfume de saudade e fazem com que sintamos a eternidade do tempo […] Quanta ambição ele não mata! Primeiro são os sonhos de posição: […] a gente vai descendo de ministro a amanuense […] Obras, satisfações, glórias, tudo se esvai e se esbate. Pelos trinta anos, a gente que se julgava Shakespeare, está crente que não passa de um ‘Mal das Vinhas’ qualquer; tenazmente, porém, ficamos a viver, esperando, esperando… o quê? […] Esperando, quem sabe se a sorte grande ou um tesouro oculto no quintal?”.81

O imprevisto mais parecia encontro marcado; a esperança virava ceticismo, e Lima não lembra mais aquele menino curioso e de braço dado com seu pai. Ao contrário, o tempo, em vez de bom amigo, virava espécie de “inimigo” e atropelava as esperanças da época da Lei Áurea. Nada de milagres ou de tesouros enterrados. E conclui: “E assim se faz a vida, com desalentos e esperanças, com recordações e saudades, com tolices e coisas sensatas, com baixezas e grandezas, à espera da morte, da doce morte, padroeira dos aflitos e desesperados…”.82

A crônica de 1911 dava a impressão de estar distante do ambiente que perdurou por alguns meses após a promulgação da lei. É certo que a medida chegou tímida, sem introduzir os projetos mais abrangentes que foram sendo propostos nos anos e meses anteriores ao 13 de maio de 1888, e mesmo depois desse dia. Ainda em maio, Cotegipe tentou passar no Senado uma medida que visava à indenização pecuniária a ex-senhores de escravos. Para os ex-escravizados, porém, nada. Ao contrário, ganhava força o movimento “indenizista”,83 que não teria muitos braços para atravessar o mar de clamores pela liberdade geral e irrestrita. No caso, valeu o ditado: “Inês é morta”, e viva a abolição.

Por conta da popularidade do ato, muitos — até mesmo aqueles que bem pouco antes eram contra sua assinatura — tentaram deixar seu nome ou imagem ao lado da Lei Áurea. Num detalhe da foto da missa, chama atenção a quantidade de personalidades que ladeavam a princesa em seu palanque.84

 

Detalhe da missa campal. Em destaque a princesa Isabel.

 

Há quem diga que a fotografia nasceu para mentir.85 Ou melhor, a técnica desde o princípio facultou “enquadrar” a realidade, permitindo incluir e também excluir. É por isso que a foto, observada no detalhe, causa estranheza. Lá está uma aglomeração formidável e um pormenor significativo: no palanque aparecem personagens públicos, como se construíssem um sentido oficial; uma representação visual do poder. O certo é que, por vezes, um registro direto, uma fonte incontestável como essa, pode parecer artificial. Outras vezes, aquelas que são manipuladas são tomadas como originais. Nunca se escapa, porém, da agência do fotógrafo: o seu enquadramento e intenção. Coisas da técnica casada ao ritual: ambos tinham tudo para encantar, e encantaram.86

Afinal, a abolição foi festejada como um novo início. Símbolos e rituais nada têm de inocentes. Ao contrário, eles fundam modelos, definem direções, difundem significados. Também são bons companheiros em situações de crise e em momentos inaugurais. É isso que explica o crítico literário Edward Said em seu livro Beginnings. O começo, enuncia ele, “é o primeiro passo na produção intencional de sentido”.87 Foram muitos os festejos, e vários os responsáveis, para que a festa não tivesse falhas e encantasse os olhos. “Não me lembro bem de tudo”, recorda Lima Barreto, “sei só que ficamos na rua Primeiro de Março; que havia muita gente; que o largo do Paço estava coalhado de povo; mas não havia cordão, nem um bandão de policiais e militares de todas [sic] as matizes.”88 Faltava banda, mas para o menino Lima era o mundo que passava em desfile, ao lado da princesa loura que, se não fosse pela cor, lembrava muito sua mãe recém-falecida.89

Vira mundo, o mundo virou

Deixamos pai e filho irmanados no mesmo sonho. O sonho da liberdade, da educação como forma segura de emancipação. Aí estava o bom exemplo de João Henriques, que, mesmo sem a esposa por perto, ia conseguindo manter os filhos em boas escolas, além de dar continuidade a seus propósitos profissionais. Tamanha ascensão — a realidade de ser publicamente reconhecido como tipógrafo — talvez haja tornado ainda mais íngreme a queda, que se aproximava junto com o fim iminente do Império.

Nessa altura, Henriques estava muito bem empregado e inserido na classe a que pertencia, tendo inclusive assumido lugar de visibilidade no Centro Tipográfico 13 de Maio, que representava 22 de suas oficinas. Os profissionais da área queriam redigir uma lei orgânica que lhes garantisse os direitos adquiridos com essa função, e o pai de Lima constava de todas as diretorias do grupo.

Além do Centro, outro órgão unia a classe: a Revista Typographica, criada para “servir de veículo e meio de organização e informação da classe tipográfica, circulação das ideias e propósitos do centro e dos demais órgãos ligados à causa da associação”. Nesse momento, portanto, a profissão de tipógrafo parecia estar em alta e com ela também João Henriques.90 Em 1888 ele fazia parte da nova administração da Imperial Associação Tipográfica Fluminense, na qual seu nome constava como vice-presidente da mesa. No ano seguinte, na matéria intitulada “7 de setembro”, publicada pela Gazeta de Noticias do Rio de Janeiro, foi registrada mais uma participação de Henriques em associações de tipógrafos. Dessa vez como consultor, integrando uma das comissões organizadas pela União Operária para o recebimento das autoridades imperiais em comemoração ao dia da Independência.91

Talvez um pouco entorpecido por fazer parte de tantas atividades e associações de classe, João Henriques deve ter se surpreendido com o golpe republicano que contava com a liderança dos militares e dos republicanos paulistas mas também com a participação de muitos abolicionistas e até de antigos escravocratas, agora bandeados para os lados do novo regime. Muitas vezes terremotos chegam sem aviso prévio. Afinal, se na superfície tudo parecia estar novamente em ordem — e a monarquia parecia sair reforçada com a popularidade da Lei Áurea —, já o pai de Lima, feliz com sua carreira ascendente, não tinha como notar que a situação mudava, e de forma rápida. Na verdade, o cenário interno crispava-se: no começo de 1889, ao mesmo tempo que o Império ia à França homenagear a Revolução — sendo o Brasil a única monarquia a tomar parte da Exposição Universal de Paris —, a campanha republicana se fortalecia dentro do país, tomando como mote as mesmas comemorações do centenário da República Francesa. E a cada dia as posições, e as oposições à monarquia, radicalizavam-se.

Foi então que se criou a Guarda Negra, retomando-se um projeto antigo que previa a organização de uma força paralela ao Exército para proteger a monarquia. Como narra o historiador Flávio Gomes, ainda hoje pouco se sabe sobre o grupo. Há quem afirme que teria sido concebido em 1888 pela Confederação Abolicionista, na época da comemoração do aniversário da lei de 1871 e como uma homenagem à princesa Isabel. O certo é que, no contexto dos anos 1880, a existência de tal organização militar de libertos, que visava também proteger e defender a liberdade dos afro-brasileiros, causou barulho. Os periódicos revezavam-se, noticiando conflitos com detalhes e interpretações variadas. As críticas principais vinham das folhas republicanas, que encaravam a Guarda Negra como uma milícia de navalhistas e capoeiras arregimentada pelo ministério conservador de João Alfredo, com o objetivo exclusivo de intimidar e provocar os “seguidores dos ideais republicanos”.92

Num período de incertezas, muitos medos e receio de reescravizações ou de reviravoltas na situação, os líderes da Guarda mostravam que era melhor ficar com o certo do que apostar no talvez. Na visão da época, e depois do ritual caprichado que o Império organizou por ocasião da Lei Áurea, até parecia que a abolição havia sido garantida pela monarquia, em vez de se tratar de um direito conquistado, e tantas vezes retardado. O fato é que uma série de especificidades históricas confundiam o cenário e as lealdades partidárias.

Nesse ambiente bastante tenso, no dia 15 de junho de 1889, quando a família imperial saía do Teatro Sant’Ana depois de ter assistido ao concerto da violonista Giulietta Dionesi, já dentro de sua carruagem d. Pedro sofreu um atentado. Ouviu-se do meio da multidão um “Viva a República” e um tiro acertou em cheio o veículo.93 Se o episódio não passou de acidente isolado, logo descobrindo-se o autor do crime — Adriano do Vale, um imigrante português de vinte anos, recém-despedido da casa comercial em que trabalhava —, os jornais o dramatizaram. Na verdade, na agenda agitada desse ano, o episódio servia como símbolo da fragilidade do regime para alguns, amostra dos desafetos crescentes para outros. E a reação foi rápida: o chefe de polícia da corte, dr. José Basson de Miranda Osório, ameaçava processar pelo artigo 90 do Código Criminal os indivíduos que, nas praças, ruas ou em outros lugares, dessem “vivas à República, ou morras à Monarquia”.

Do segundo semestre em diante, a cada dia algum acontecimento desdenhava da imagem de normalidade que a monarquia insistia em difundir. Em 15 de outubro, por exemplo, data das bodas de prata da princesa Isabel, a Guarda Negra ganhou as ruas do Rio de Janeiro, e pelo menos 1500 de seus homens saudaram o casal imperial. Contrariada, a imprensa republicana chamou a manifestação de “anárquica”, enquanto outros periódicos afirmaram ser aquele um forte sinal de que d. Pedro estava para abdicar em favor de Isabel e do genro: o malfalado conde d’Eu, acusado de ter “casas de pensão” e de emprestar dinheiro como agiota. Nesse ínterim, e depois de vários incidentes, o Exército, que andava calado, começou a assumir posição de liderança no cenário de contestação.

Em 6 de junho de 1889, muito pressionado, caía o ministério de João Alfredo, sendo substituído pelo gabinete do visconde de Ouro Preto, cuja plataforma de governo visava, no limite, evitar a ascensão da alternativa republicana. Não fora apenas por graça e bondade do imperador que Ouro Preto se convertera num dos poucos viscondes conhecidos no Brasil. Ele andava cada vez mais poderoso e próximo ao Paço. Desenhou uma carreira vertiginosa, assumindo nesse mesmo ano o lugar de chefe do Partido Liberal. Já empossado no cargo de ministro, o visconde apresentou seu programa: liberdade de culto, maior autonomia dos municípios e províncias, liberdade de ensino, reforma do Conselho de Estado e redução de direitos de exportação. O programa dividiu os políticos: para alguns, muito radical; para outros, tímido demais. Os conservadores, que detinham a maioria na Câmara, o rejeitaram em bloco, e Ouro Preto determinou a sua dissolução. Mais que reafirmar a viciosa disputa entre os partidos brasileiros, o episódio anunciava o fim da estrutura monárquica centralizada e a instabilidade da figura do imperador — que até então atuava como balança equilibrada entre os dois partidos. A realidade é que a ideia do término do regime monárquico começava a ser abertamente discutida, assim como a opção pela República.

O temor maior, porém, era do descontrole. E não por acaso o Partido Republicano Paulista passa a frequentar os quartéis, tramando um golpe preventivo.94 O estopim simbólico data do dia 9 de novembro de 1889. Era hora de d. Pedro II descer da calma de Petrópolis e inaugurar no Caju o Hospital São Sebastião. O imperador aproveitaria para presidir o Conselho de Ministros e à noite ainda tomaria parte do baile que o governo ofereceria à Marinha do Chile, o famoso Baile da Ilha Fiscal, o qual ficou conhecido como o “canto do cisne da monarquia”. Discorreu-se bastante, o quanto a imaginação alcançou, sobre as orgias, a ostentação e o luxo daquela noite, tão incompatíveis com a situação política, ou sobre os rumores de que as Forças Armadas teriam sido excluídas da lista de convidados. Mas o certo é que o baile na ilha contígua à corte fora montado para justamente representar a grandeza da monarquia. Suspensos momentaneamente os conflitos, reuniam-se num mesmo salão liberais e conservadores, a corte e seus barões, e até o primeiro-tenente da Marinha, José Augusto Vinhais, que teria um importante papel, dias depois, no golpe que selaria a sorte do Império.

Enquanto isso, os militares confabulavam nos quartéis e uma agenda política apertada começou a andar ligeiro. Não é o caso de detalharmos os meandros do golpe, mas apenas de mostrar como, nessa altura, a monarquia estava cada vez mais isolada. Por isso, com a pressão dos cafeicultores paulistas e a liderança de setores descontentes do Exército, o movimento em favor da República alastra-se e os acontecimentos se precipitam. A crise do Império chegava às ruas, e com ela novos temas entravam na agenda: a República como aspiração de futuro, a democracia como projeto, e uma ideia de modernidade vinculada à alternativa de um novo sistema. O marechal Deodoro, após forte boataria acerca da prisão do major Solon, acaba entrando a cavalo no quartel-general e, depois do lapso de dar “vivas a Sua Majestade o Imperador, à Família Imperial e ao Exército”, obriga Ouro Preto a demitir-se, afirmando que levaria pessoalmente ao imperador a formação do novo governo. No entanto, até mesmo essa passagem é objeto de controvérsia. Ao que tudo indica, a República não se proclamou a grito, mas Ouro Preto foi premido a se demitir.

E da queda do gabinete de Ouro Preto até a Proclamação da República o tempo passou rápido, apesar do primeiro tom mais titubeante do movimento. O anúncio oficial da República foi feito, finalmente, em 15 de novembro de 1889, em frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro. O orador selecionado foi ninguém menos que José do Patrocínio, naquele momento o vereador mais jovem e popular. No dia seguinte, a primeira edição do Diário Oficial da República dos Estados Unidos do Brasil estampou a proclamação do Governo Provisório, comunicando a extinção da monarquia. Era um novo Brasil que se montava: sem escravos e sem seu soberano. E, nessa maré, o pai de Lima, infelizmente, acabou associado a tudo que parecia antigo e vinculado ao regime monárquico.

O exílio de Ouro Preto e o descaminho de João Henriques:
um desempregado no meio da República

A partir de então as mudanças seriam muitas; das mais cotidianas às mais simbólicas, entre elas a alteração do hino, da bandeira, de nomes de ruas e de instituições, como é o caso da estrada de ferro que Lima tanto usaria no futuro, a qual perdeu a denominação de Pedro IIe passou a chamar-se Central do Brasil. Era toda uma nova cultura política que ia se inscrevendo nos detalhes, assim como nas estruturas mais fundamentais do país, conforme o Governo Provisório se tornava permanente. A República deitava suas raízes e vinha, como sabemos, para ficar.

João Henriques devia andar preocupado com a sorte do padrinho e, por consequência, com a sua própria. E não sem motivos: no próprio ano de 1889 ele sofreria um sério revés. A Tribuna Liberal, onde o pai de Lima trabalhava como tipógrafo, era umbilicalmente vinculada ao Partido Liberal, até então no poder; sendo o visconde de Ouro Preto seu diretor e proprietário. Além do mais, desde o golpe de novembro, destacava-se como órgão de resistência declarada ao republicanismo. Sua origem relacionava-se aos planos dos liberais de realizar um congresso no mês de maio de 1889. O encontro oficializou o novo programa do partido, pelo menos de uma ala mais radical dele, que agora incluía o voto secreto, a definição de eleitores por alfabetização e não pela renda, a reforma administrativa provincial, o direito de reunião, a liberdade de culto, o casamento civil obrigatório, o mandato com periodicidade determinada para o Senado e a reforma do Conselho de Estado.95 O projeto representava, assim, uma tentativa, de última hora, para preservar a monarquia, tornando-a mais aberta aos novos tempos.

Para dar divulgação a essa agenda, lá estava a Tribuna Liberal, lançada em dezembro de 1888 como um órgão do partido e da própria realeza. Os vínculos do periódico com a monarquia eram de tal monta que ele foi um dos primeiros a ser fechado pelo novo governo da República, ao mesmo tempo que se enviava para o exílio seu diretor — o ministro do Império. Já o pai de Lima, recém-admitido como mestre de composição tipográfica na Imprensa Nacional e na Tribuna, acabou sem emprego.96

E vamos aos bastidores. Mesmo depois da Proclamação da República, um pequeno grupo ainda acreditava no retorno da monarquia, usando como porta-vozes alguns jornais contrários ao novo regime.97 Esse era o caso da Tribuna Liberal, que continuava a fazer oposição aberta ao Governo Provisório. No entanto, como Ouro Preto estivesse no exílio, era agora Carlos de Laet que atuava como chefe editorial.

Mas o governo da República não lidou de maneira passiva com a oposição; arregaçou as mangas da farda e demonstrou qual seria a sua filosofia. Logo no dia 23 de dezembro os militares foram claros: “os indivíduos que conspirarem contra a República e o seu governo; que aconselharem ou promoverem, por palavras escritas ou atos, a revolta civil e a indisciplina militar […] serão julgados militarmente por uma comissão militar nomeada pelo ministro da Guerra, e punidos com penas de sedição”.98 Deodoro e seu governo revelavam-se pouco dispostos a aceitar críticas por parte dos jornalistas, e já em março de 1890 ordenam a prisão do ex-governador do Maranhão, Pedro Tavares, que continuava a publicar artigos no jornal A Republica, da cidade de Campos, criticando o novo regime e conclamando a volta do antigo. E esse foi apenas um exemplo; quem sabe o mais comentado. Dizia-se que até mesmo os jornais do interior do Rio de Janeiro iam parar na escrivaninha do marechal, e que todos eles, bem como seus autores, acabavam incluídos na “lista negra” do Governo Provisório. Certo ou não, a água da chaleira, que estava para ferver, em 29 de março de 1890 entrou em ebulição. Sai nesse dia o decreto determinando que todos aqueles que dessem origem, “pela imprensa, por telegrama e por qualquer outro modo”, à circulação de “falsas notícias e boatos alarmantes”99 referentes aos “corpos militares” e à estabilidade da República, seriam detidos.

O documento foi recebido com grandes doses de preocupação pelos setores contrários ao novo regime, que iam ficando cada vez mais isolados. Nesse momento, os monarquistas se encontravam reduzidos a dois jornais: a Tribuna, no Rio de Janeiro, e O Commercio de S. Paulo, dirigido por Afonso Arinos. Mas faziam muito barulho. Também José do Patrocínio, apesar de sua rápida e ruidosa reconciliação com a República, já em 27 de novembro — isto é, doze dias depois de ter sido empossado o governo — escrevia seu primeiro artigo contra o novo plano financeiro, convertendo-se num dos mais abertos adversários de Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, de Deodoro da Fonseca e da própria República.

A Tribuna Liberal ficaria na mira de fogo do governo; até porque o jornal ia crescendo em popularidade desde o golpe. Em 22 de novembro de 1889, vangloriava-se de ter triplicado a sua tiragem e de, só na edição de 1o de dezembro, ter vendido 22500 exemplares. Mas não era fácil fazer oposição ao novo regime, pois a pressão contra esse tipo de periodismo crescia. O Jornal do Commercio, por exemplo, na edição de 26 de dezembro assinada por Miguel Lemos, destacava o protesto do Centro Positivista do Brasil contrário aos jornais favoráveis à monarquia.100

E é nesse clima tenso que, no dia 29 de novembro de 1890, ocorre o assalto à redação da Tribuna Liberal. Carlos de Laet, cada vez mais monarquista e raivoso, é preso em sua residência e conduzido à polícia. A justificativa para o mandado de prisão era sua “conspiração monarquista”, sendo o jornal considerado uma espécie de quartel-general dos revoltosos. Laet declarou que sua vida era “regular como um cronômetro”, e deu um depoimento “franco” afirmando sua lisura e correção, mas o governo militar não estava para brincadeira.101

João Henriques andava igualmente visado por ser “compadre do visconde”. Sua pregressa promoção na Tribuna Liberal era considerada “coisa de proteção”, do mesmo modo que a elevação desproporcional de seus vencimentos continuava a gerar suspeitas. No Diario de Noticias, criticava-se abertamente a promoção de Henriques, assim como o fato de ele ter recebido Pedro II no jornal, fazendo as honras da casa às vésperas do golpe. Com tantos anúncios desagradáveis, o pai de Lima não esperou o sinal vermelho. Quando soube que constava de uma “lista”, e depois de um colega provocá-lo por ter participado do “bota-fora de Ouro Preto”, João Henriques, tranquilo no trabalho e de caráter tempestuoso na vida, vestiu o paletó de alpaca que havia acabado de pendurar e afirmou que “não daria esse gosto” ao Rui Barbosa. Ninguém iria demiti-lo. Saiu da Tribuna e da Imprensa Nacional, onde fora tipógrafo por doze anos sem interrupção.102

Henriques mostrou, porém, que estava com a razão. Ninguém duvidava que o decreto de censura a jornais oposicionistas tinha endereço certo, e a Tribuna foi obrigada a fechar suas portas, deixando de circular em dezembro de 1890.

O pai de Lima jamais esqueceria essa sua passagem pelo jornal, nem mesmo os fatos violentos que envolveram a Tribuna; sobretudo o assalto à sede do periódico, que resultou na morte do revisor João Ferreira Romariz, seu amigo pessoal. Na correspondência que trocou com Lima Barreto, o amigo Antônio Noronha Santos103 comenta a notícia do assassinato nos seguintes termos: “Barreto. O Romariz, bom rapaz, revisor dedicado, estava na redação da Tribuna Liberal, quando soldados invadiram a redação, na procura do Laet, Andrade Figueira, Medeiros e não encontrando nenhum dos redatores citados, assassinaram-no à queima-roupa…”.104 Muita história correu.105 Mas o que ninguém discute é o fato de que o funcionário se encontrava no local fazendo serão noturno quando o edifício foi invadido e parcialmente destruído.

O episódio ficou na memória do menino; tanto que, anos depois, Lima voltaria ao caso no conto “A sombra do Romariz”,106 que é narrado por um tipógrafo chamado Brandão — claramente inspirado em João Henriques. É ele quem explica o que aconteceu em 1890, quando “acabava-se de proclamar a República”. Brandão relata que, à noite, fazia uns bicos na Tribuna Liberal, “um jornal apaixonadamente monarquista que atacava o governo provisório sem peso, nem medida”. Foi quando correu o boato de que “iam empastelar a folha”. O governo desmentiu, “assinando que era seu ponto de honra manter a liberdade de pensamento e de imprensa”. Confiante, Brandão continuou “a trabalhar com mais coragem e sossego”. E naquela noite, lá pelas oito ou nove horas, um “aprendiz assustado” entrou na oficina avisando: “Fujam! Fujam! Lá vêm eles!”. Perguntado sobre o que ocorria, ele respondeu que vinha descendo pela rua do Ouvidor “um magote de gente, fardados e outros à paisana, a gritar: ‘Morram os sebastianistas! Morra a Tribuna Liberal! Viva o marechal Deodoro!’”. Diante disso, “todos trataram de fugir […] Só ficou no edifício o Romariz, um pobre revisor que dormia profundamente, descansando a cabeça sobre os braços cruzados e estes sobre a mesa de trabalho. Por mais que o sacudissem e o chamassem, não foi possível despertá-lo”. Não havia mais tempo e o “infeliz revisor lá ficou abandonado. Ele vivia tresnoitado; trabalhava dia e noite para manter a mãe e os irmãos […] e para pagar a casa em subúrbio longínquo; lançara mão do ofício de revisor de provas, para apresentar [sic] sua renda”. Os assaltantes foram, então, entrando, “quebrando balcões, máquinas, derramando as caixas de tipos no chão”. Foi aí que deram com o Romariz dormindo. Sem saberem quem era e o que fazia por lá, foram logo “desancando de cacete e de coices d’armas na cabeça e ele mesmo sem saber por quê”. O narrador termina contando que “o cadáver estava hediondo” e a família “na maior miséria”. No final do conto, Brandão afirma que ninguém deve se meter com as “deveras fúteis barulheiras dos políticos” e que por todo canto ele ainda vê “a sombra do Romariz”. “Há muito mistério nesta nossa triste vida terrena”, conclui ele.107

Como Romariz, o pai de Lima trabalhava de noite, bebia uns tragos de vez em quando, fazia hora extra para sustentar a família e, embora não tenha morrido no serviço, acabou desempregado e descrente na modernidade. Virava, juntamente com os demais monarquistas, um “sebastianista”, numa referência anacrônica àqueles que estão sempre procurando pelo que já não encontram no presente; estão sempre atrás do passado, “do Encoberto”.

Entretanto, a despeito dos ares republicanos, a violência do assalto e a morte do revisor repercutiram muito negativamente no Congresso, na classe dos tipógrafos e dos jornalistas. A Tribuna Liberal circularia com esse título até julho de 1890, quando perderia o Liberal. Nessa altura, porém, João Henriques já tinha outro emprego. Antes de ir para o exílio, Ouro Preto não se esquecera de deixá-lo amparado. Arranjara para ele um serviço de última hora, um pouco distante das suas habilidades profissionais. Seria um bom jeito de Henriques se aguentar enquanto o novo regime continuasse vigente. O ex-ministro era ruim de previsões e imaginava que “essa tal de República” seria breve.

João Henriques então mudou de cenário. Partiu com a família para a ilha do Governador, onde seria administrador das Colônias de Alienados. O pai de Lima não tinha como saber que a loucura se instalaria, de vez, na sua vida, e que ele, o tipógrafo, daria fim à sua carreira repleta de êxito.