5.

Arrimo de família:
como ser funcionário público na Primeira República

Logo no primeiro dia em que funcionei na secretaria, senti bem que todos nós nascemos para empregado público. [] Aquela placidez do ofício, sematritos, nem desconjuntamentos violentos; aquele deslizar macio durante cinco horas por dia; aquela mediania de posição e fortuna, garantindo inabalavelmente uma vida medíocre []
— Lima Barreto, “Três gênios de secretaria”

É notório que aos governos da República do Brasil faltam duas qualidades essenciais a governos: majestade e dignidade.
— Lima Barreto, Diário íntimo

 

O ofício do amanuense: transcrever documentos e seguir ordens. Careta, 13 de setembro de 1919.

 

Um Rio de Janeiro belle époque

A virada do século XIX para o XX anunciou um tempo de crença no progresso. Aliás, nunca se acreditou tanto na ideia de que o homem podia vencer a natureza em passos rápidos e que avançava rumo ao futuro de maneira evolutiva e sem volta. O avião cortava a leveza dos céus voando como os pássaros; trens rasgavam novos territórios e transportavam pessoas em massa; as cidades tornavam-se cada vez mais populosas; e a industrialização mostrava que chegara para ficar. Tal regime de certezas duraria pouco, mas então o ambiente ainda era de esperança, mantida por altas doses de prepotência.

Afinal, quando terminava o século XIX , após um período de depressão econômica reequilibraram-se as economias dos países centrais, a partir de certo desafogo e expansão dos negócios na Europa Central e nos Estados Unidos. O resultado foi um clima de otimismo e confiança absoluta que ganhou a cultura, os costumes e a moral. Nesse intervalo breve, de 1890 até a Primeira Guerra Mundial, a evidência da prosperidade deu lugar a uma sociedade de sonhos ilimitados: nascia a belle époque, um período marcado por muita ambiguidade e todo tipo de conjetura. De um lado, ela representava a esperança numa época de pacificação, de outro carregava o medo de novos conflitos e reversões nas relações internacionais.

No Brasil, a atmosfera que no Rio de Janeiro ficou conhecida como Regeneração parecia corresponder ao surto que ocorria em outras partes do mundo, além de transmitir a sensação de que o país vivia em sintonia com a civilização ocidental. Para isso, não faltaram os patriotas de plantão, os quais viam apenas com bons olhos essa época que tinha muito de maquiagem superficial, que prometia um futuro estável onde só cabiam sonhos passageiros.1 O suposto vigente era que a República representava a modernidade recém-chegada ao país, tirando-o da “letargia da monarquia” ou da “barbárie da escravidão”. Marca maior da era novidadeira, Santos Dumont levou aos ares as expectativas brasileiras de alcançar as alturas das nações modernas. Ícone desses tempos foi também a “nova avenida Central” — atual avenida Rio Branco —, emblema do novo projeto urbanístico da cidade do Rio de Janeiro, com suas fachadas art nouveau feitas de mármore e cristal, seus modernos lampiões elétricos, suas lojas de produtos importados e seus transeuntes vestidos à francesa. A contrapartida da reforma urbana consistiu na expulsão da população pobre que habitava os casarões da região central. Era a ditadura do “bota-abaixo”, que demolia residências e disseminava as favelas, cortiços e hotéis baratos; os “zunga”, onde famílias inteiras viviam apertadas, dormiam juntas e no chão.2 Isso para não falar da repressão às festas populares e procissões: saía das ruas centrais o popular entrudo e esboçava-se algo que mais se parecia com um ordeiro Carnaval de Veneza.3

No planejamento urbano, o presidente Francisco de Paula Rodrigues Alves, que governou de 1902 a 1906, montou uma equipe de políticos e profissionais à qual concedeu poderes irrestritos. Com o propósito de fazer do Rio de Janeiro o cartão-postal do país, concebeu um plano em três direções paralelas: a modernização do porto ficaria a cargo do engenheiro Lauro Müller, o saneamento da cidade — acometida por doenças e epidemias infecciosas — seria responsabilidade do médico sanitarista Oswaldo Cruz, e da reforma urbana se incumbiria o engenheiro Pereira Passos, que havia conhecido de perto a política empreendida pelo barão Haussmann em Paris.4 Lima Barreto, anos depois, comentaria a velocidade das reformas que se abateram sobre o Rio de inícios do XX: “De uma hora para outra, a antiga cidade desapareceu e outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação de teatro. Havia mesmo na coisa muito de cenografia”.5

O caso da abertura da avenida Central, no dia igualmente alegórico de 7 de setembro de 1904, foi exemplar. No mês de março, acontecera a inauguração solene dos trabalhos do “grande bulevar”, que representava um prolongamento das obras do cais do porto — 557 prédios foram desapropriados para dar lugar a um percurso de 1997 metros de mar a mar, e 33 de largura. Com ela, tudo se acelerou: as linhas de bonde, o telégrafo e os telefones — estes já chegavam a 13 mil em 1908. A área era densamente habitada por uma população pobre e desfavorecida, cujo deslocamento ocasionou imensa repercussão social.6 Afinal, a região desapropriada tinha sido “agora apropriada”, dizia a imprensa, para passeios no fim da tarde, chás em restaurantes e confeitarias, circulação de veículos, e para a arte do ver e ser visto. E era uma elite abonada que desfilava e aproveitava tais benesses. A euforia da propaganda oficial destacava, porém, a ideia de igualdade social e escondia a exclusão engendrada por “tamanha” modernidade.7

O panorama de otimismo resultaria, também, em outros costumes e hábitos e, especialmente, num incremento na vida social, sobretudo a da capital nacional. É fato que a hegemonia paulista começava a impor-se, já em fins do século XIX , e a aliança com Minas Gerais — a famosa política do “café com leite” — passava a ameaçar o até ali inconteste domínio fluminense. O Rio de Janeiro, entretanto, não perderia suas características de centro político graças à presença do poder federal — do presidente e do Congresso — e de sua projeção social. Era lá que estava o núcleo administrativo do Estado — com um funcionalismo inflacionado —, a maioria dos aparatos culturais e o cenário ideal para os novos experimentos sociais.

Exemplo de grande experimento foi a introdução do bonde, que não só implicou uma adequação e ampliação dos transportes, como, a seu modo, deu um novo estímulo à vida urbana. A inauguração do serviço de bondes pela Companhia Ferro-Carril do Jardim Botânico ocorreu ainda no longínquo ano de 1868, mas data somente do início do século seguinte a expansão das linhas, que desenharam as ruas da cidade com seus trilhos e com o movimento que o transporte gerava.8

O aumento nas linhas de bonde aumentava na proporção em que esse transporte urbano se generalizava, alterando no mesmo ritmo os costumes locais. Em primeiro lugar, multiplicavam-se as formas de chegar ao trabalho e de visitar conhecidos e familiares. O incentivo era agora para, em vez de ficar em casa, “tomar a fresca” no bonde. Tanto que, na época, dizia-se que esse veículo representava não só uma agradável oportunidade de aliviar o calor como uma forma dileta de sociabilidade.9 O bonde guardava ainda duas características aparentemente opostas: de um lado, oferecia ares de modernidade ao Rio de Janeiro; de outro, transgredia, de certa maneira, a ordem planejada. Se fazia parte das benesses da capital federal, que se “vestia de noiva” para bem casar com a recente situação política, econômica e social, colocava agora, no mesmo espaço, classes sociais diversas, o que apenas tornava mais claras as diferenças entre elas, em termos de afluência e consumo. Assim, se o transporte permitia certo convívio social, também desnudava fronteiras e mostrava como a pobreza estava agora mais localizada na periferia e distante da zona nobre do Rio. Em 1901, porém, inaugurou-se o uso do bonde de luxo para as elites que frequentavam o Teatro Lírico. Por causa do revestimento em brim branco, tais veículos foram logo apelidados de “bondes de ceroula”.

E logo chegariam novas opções de transporte elegante à capital; os automóveis. José do Patrocínio, que andava também às voltas com seu experimento voador — o aerostato Santa Cruz —,10 importou na época o primeiro carro que transitou pelas ruas irregulares do Rio, ainda em 1895.11 As condições das vias eram inapropriadas para a circulação de transportes individuais desse tipo, datando apenas de 1903 o primeiro licenciamento da prefeitura para um automóvel particular. Tratava-se, portanto, de um círculo vicioso: a urbe criava suas novidades, e estas lhe alteravam o perfil. Estima-se que em 1906 existia uma população de 811443 habitantes na cidade do Rio de Janeiro. Em 1903, rodavam somente seis automóveis por suas ruas; em 1907, eram 99; e em 1910, o total alcançava 615.12 Mas, como todo verso tem seu reverso, bondes e carros geravam conflitos. Brigas causadas por falta de troco, acidentes, confusões nas linhas e percursos, demoras e atrasos — eis alguns dos impasses que os veículos motorizados traziam consigo, mostrando que modernidade não era, tão só, projeto evolutivo e isento de contrariedades.

Outras vogas entravam — e algumas ficavam — no dia a dia da cidade. O francesismo, que já era chique nos tempos da monarquia, continuava a imperar nesses anos da República. A influência francesa era evidente na literatura, na educação, na moda e nas diversões. Na arquitetura só se falava em art noveau, aulas particulares apenas de francês, e nos anúncios das grandes livrarias ofertavam-se mais livros escritos por Victor Hugo ou acerca do Caso Dreyfus que obras de autores nacionais.13 Os tecidos para as camisas de homens de elite eram igualmente importados da França; sorvetes ou gelados eram anunciados no Café Glacier; perfumes como o L’Origan chegavam de Paris, assim como os chapéus franceses viravam coqueluche. As roupas das mulheres transformavam-se de maneira a destacar as formas femininas, sendo os modelos variados: devant, droit, erect, form todos criados em Paris e feitos em casas especializadas do Rio como as de Madame Garnier e Agnes Scherer.

No rol das diversões mais populares eram duas as grandes novidades: o jogo do bicho14 e os “novos” circos. O primeiro ganhou espaço entre grupos sociais variados, que tentavam a sorte na “centena” ou no “milhar”. O circo também atraiu classes diferentes, embora em seu interior se estabelecesse uma estrita hierarquia a partir da separação de lugares: camarote, cadeiras, geral e arquibancada. Seu surgimento foi mais tardio, e apenas no fim do século XIX e início do XX é que podiam ser vistos picadeiros e palcos na apresentação de sainetes (peças dramáticas jocosas de um ato), dramas e comédias.15

O teatro mantinha, porém, sua proeminência, herdada dos tempos do Império, e novas casas de espetáculo foram criadas. O Municipal foi inaugurado somente em 1909, mas surgiram no início do século o Lírico (onde fica hoje o João Caetano), o Recreio (desde 1903 denominado São José), o Apolo (inaugurado em 1890).16 Pelo Lírico passaram várias companhias francesas e italianas, e em setembro de 1903 o grande tenor Caruso apresentou-se pela primeira vez no Rio de Janeiro, atuando na ópera Rigoletto. Como se vê, até parecia — claro, para quem frequentava a área que circundava a rua do Ouvidor e tinha dinheiro para gastar com as ofertas culturais crescentes — que vivíamos, nos trópicos, como em Paris.

Na rua do Ouvidor, na Quinta da Boa Vista, mas sobretudo na avenida Central, a diversão ganhava agora o espaço aberto da rua. Suas dimensões mais largas se deviam à necessidade de priorizar o movimento desimpedido das mercadorias, dos veículos e das pessoas. E os exemplos são muitos. No Parque Fluminense, instalado no largo do Machado, ouvia-se concerto da banda militar, assistia-se a números de bonecos ou deslizava-se sobre patins no skating rink. O Guarda Velha, um simpático café musical, era local dos mais concorridos, pelo menos até o ano de 1907.17 Na praça da República, antigo Campo de Santana, renomeada por conta do novo regime, dois pavilhões foram especialmente construídos para dar lugar a apresentações musicais. Geraldo Magalhães cantava “O sole mio”, numa tradução de Guimarães Passos, e à tarde dançava-se o two-steps, ritmo americano, com dois passos para cada lado. Festas nos parques e jardins, piqueniques na Floresta da Tijuca e no morro do Corcovado.

O cinema já estava bem consolidado nessa época: as sessões eram agora apresentadas em horários regulares e contavam com programação variada. Em 1900, o Salão Paris exibia D’Artagnan, O diabo e o trabalho, Gatuno em flagrante, Jogo-de-bola, Dreyfus na prisão e Dança russa. Em 17 de setembro de 1907, foi inaugurado o Cinematógrafo Pathé, na avenida Central, cuja frequência se convertia num dos hábitos elegantes da população. Anunciando muitas atrações por semana e divulgando seus preços módicos, o cinematógrafo começava a se tornar uma das diversões prediletas da cidade. Casas novas abriam a cada dia, trazendo letreiros vistosos e filmes ora mais realistas ora mais fantásticos, dramáticos ou cômicos. Tudo isso avivado pelo acompanhamento de pequenas orquestras ou de um simples piano, o que transformava a ida ao cinema em evento social.

Em 1909, por exemplo, funcionavam regularmente dez cinemas no Rio de Janeiro, entre eles o Cine Pathé e o Paraíso do Rio, na avenida Central, o Palace, na rua do Ouvidor, e o Brasil, na praça Tiradentes.18 Outra novidade desse começo de século foi a gravação de discos. A Casa Edison, cuja origem é norte-americana, foi pioneira no ramo. Instalou-se no Rio em 1900 e dois anos depois deu início à gravação de músicas de artistas brasileiros.

Também os esportes disputavam as atenções. Bem na virada do século — em 1901 — realizou-se o primeiro jogo de football com a participação de amadores, geralmente oriundos da alta sociedade local. Os primeiros clubes cariocas foram o Rio Football Club e o Fluminense Football Club, ambos criados em 1902. Em 1904, seria fundado o Botafogo Football Club e, junto com o desenvolvimento dos campeonatos e a profissionalização dos atletas, outra prática foi se consolidando: a cobrança de ingressos para uma plateia que começava a escolher seus times e a acompanhar o futebol como se fosse questão pessoal e de foro íntimo.

E era! Lima desaprovaria a moda e escreveria várias crônicas criticando a prática esportiva, que considerava “importada” e muito violenta. Ele criaria até mesmo uma Liga Contra o Football, a qual, como se pode imaginar, não teve vida longa. Anos depois, em 13 de março de 1919, resumiu no Rio-Jornal o que acreditava serem os grandes “males” do novo esporte. Reproduzimos aqui alguns trechos do artigo sobre o escritor e o diálogo que ele trava com o jornalista: “Lima Barreto reside, há dezesseis anos, na pacata estação suburbana de Todos os Santos. A sua casa é modesta, porém clara e ampla, cercada de fruteiras e respirando sossego. A sua sala de trabalho, ao mesmo tempo dormitório, é também clara e ampla, tendo livros, móveis, quadros — tudo em ordem. — Você por aqui! exclamou ele logo ao ver-nos. — É verdade. Quero saber bem esse negócio da ‘liga’ que você fundou. […] — O negócio é simples. Há cerca de um ano […], conversando sobre os sports, em uma confeitaria do Méier, Valverde me expôs, com a sua competência especial de médico que conhece o seu ofício, os prejuízos de toda a ordem que o abuso imoderado dos sports, sobretudo o football, trazia à nossa economia vital. […] Verifiquei que havia uma irritação inconveniente entre os players. […] Concluí que, longe de tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral entre as divisões políticas da União, separava-as”.19

Convencido em seu julgamento, Lima continua explicando que “a coisa pegara” em São Paulo, no Rio, em Recife, chegando a Belém e Porto Alegre. Segundo ele, os grandes clubes esportivos, aqueles que o escritor Coelho Neto apoiava, seriam portadores de “uma pretensão absurda, de classe, de raça”. Conclui que o “jogo do pontapé propaga a sua separação social e o governo o subvenciona”. Por isso, era contra o governo incluir o esporte no orçamento de despesas da República, já que o futebol só criaria “cizânias entre Estados da União” e “distinções idiotas e antissociais entre os brasileiros”. Instado pelo jornalista a confirmar suas opiniões, o escritor afirma não ter provas, e termina: “Nem eu, nem ninguém…”.20

Mas essa seria mais uma das “bandeiras” de Lima fadadas ao fracasso: o futebol entraria em cheio no gosto do brasileiro e a liga do autor seria fechada por falta de recursos. Aliás, várias modalidades esportivas, seguindo a voga higienista que pregava o culto do corpo saudável, ganhariam força no início do século XX. Prova disso foi a criação de, entre outros, O Brazil Sportivo, jornal carioca especializado no tema e que anunciava as muitas atividades agora à disposição dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro: patinação, ciclismo, tiro ao alvo, esgrima, regatas. Apenas na capital, uma média de dez clubes dedicavam-se ao remo: Clube de Regatas Botafogo, Guanabara, Flamengo, Clube de Natação e Regatas, Boqueirão do Passeio, Internacional, Icaraí, Náutico, Velo Clube e Clube Atlético de Santa Teresa. O Sport Club concentrava-se na prática do ciclismo, e a Sociedade de Tiro Fluminense, na do tiro ao alvo.21 Só no ano de 1902, quatro partidas de hockey na grama foram disputadas na cidade. E no Club Internacional seria introduzido um novo jogo: o ping-pong, invenção inglesa que começava a conquistar adeptos no país.22

Jogos… também os de azar. O carioca passou a apostar nos páreos de turfe, além de desfilar pelo Jockey Club. Em casa, os brasileiros se distraíam com as cartas: o voltarete, o gamão, o solo, o uíste, a bisca; às escondidas, com o pôquer, o lansquenê e a roleta. Ademais, e apesar da repressão policial, popularizaram-se as casas de tavolagem, como a Fuão Bentoca, a Carrapeta, a Comigo é Nove e a Pois Sim, em que se praticava qualquer tipo de jogo — os lícitos e os nem tanto.

O período é também afeito a novos temas sociais, e as mulheres começavam a reivindicar formas mais efetivas de participação: voto, trabalho e divórcio estavam em pauta na agenda nacional. Numa sociedade patriarcal em que as representantes do sexo feminino, até bem pouco tempo antes, mal saíam de casa, esses temas podiam soar um tanto postiços, mas vieram para ficar e ganharam espaço.

Formaram-se, ainda, novas associações culturais. O padrão era até então dado pela Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897 por um colegiado de homens públicos e intelectuais como Machado de Assis, Graça Aranha, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e Oliveira Lima.23 Seguindo o modelo da matriz francesa, a ABL reunia quarenta personalidades que representariam uma espécie de “arcabouço intelectual, moral e político da nação”.24 No entanto, com o correr do tempo, e já nos anos 1910, esse grupo passou a ser acusado de ocupar um lugar não só exemplar como por demais estabelecido. A nova instituição representava, para Lima e sua geração, um dos símbolos máximos dos escritores que ali “se encastelavam”, abrindo mão de fazer uma literatura mais renovada e crítica. Na contramão, mas sempre atentos a formas de se incluírem na instituição, novos grupos, dos quais nosso escritor tomava parte, chamavam os acadêmicos de “mandarins literários”25 e procuravam criar redes de sociabilidade alternativas, naquela que ia se convertendo numa República das Letras.

O ambiente cultural também se diversificava. Em 1901 fundou-se o jornal Correio da Manhã, e em 1902 dois livros foram publicados, com grande sucesso: Canaã, de Graça Aranha, e Os sertões, de Euclides da Cunha. Se em Canaã a imagem de um Brasil mais branqueado com a imigração alemã e voltado para o futuro aparecia como solução para redimir as mazelas do presente, em Os sertões o retrato era bem outro. A obra espelha uma importante e quase insolúvel contradição entre suas conclusões de cunho mais determinista — que condenam o brasileiro a partir de seu meio físico e de sua raça — e as evidências coletadas no cenário da luta em Canudos. Euclides ainda deixava escancarada a chacina no arraial e os muitos Brasis que viviam além da capital civilizada. Dentre os autores de não ficção, destacam-se o crítico José Veríssimo e Sílvio Romero, o professor da escola do Recife que podia ser lido igualmente nos jornais do Rio de Janeiro. Em 1901, este último lançou Ensaios de sociologia e literatura e, em 1906, em parceria com João Ribeiro,26 Compêndio de história da literatura brasileira. Lima guardaria reações diferentes diante de Veríssimo e Sílvio Romero: enquanto o primeiro seria o grande crítico literário — aquele que, como vimos, ele conhecera em curso ministrado na Politécnica —, o segundo ficaria conectado a certo racismo científico que condenava a mestiçagem existente no país.

No ano de 1901 foi publicado Escritos e discursos literários de Joaquim Nabuco. Figura tarimbada do abolicionismo, Nabuco virara personagem nacional, mas com o fim da monarquia retirara-se por algum tempo da política. Nessa altura, participava assiduamente da ABL, da qual, como vimos, fora um dos fundadores.

Na ficção, o contexto era marcado por livros como Luzia-Homem (1903), de Domingos Olímpio, e Tormenta (1901), de Coelho Neto, autor que no futuro serviria para Lima de contramodelo, não só por conta da paixão que guardava pelo futebol, mas, e sobretudo, por seu perfil literário crescentemente voltado para o parnasianismo. Não há como esquecer, claro, das obras de Machado de Assis, que continuava em plena atividade: Dom Casmurro é de 1899, Esaú e Jacó de 1904 e Memorial de Aires de 1908, ano em que o mestre viria a falecer. Na época, o Bruxo do Cosme Velho era seguido por muitos, porém criticado por vários, especialmente aqueles que, sem tomar parte da ABL, o chamavam, demonstrando despeito, de “múmia do Machado”. Esse foi o caso de Lima, cuja reação ante o escritor sempre foi ambivalente: tinha todos os seus livros na biblioteca, mas desfazia do tipo de projeto literário que o Bruxo representava. Intrigas à parte, Machado seguia com sua posição consolidada. Contestá-lo significava, de alguma maneira, reconhecer-lhe a liderança no cenário nacional. Em 15 de agosto de 1905, deu-se o lançamento da primeira pedra do prédio da Biblioteca Nacional, na avenida Central; passados cinco anos, estava terminado o projeto.27 Seria também um lugar bastante frequentado por Lima Barreto e pelos novos escritores com ganas de galgar o Olimpo literário.

Mas se engana aquele que pensa que invenções, hábitos urbanos e modernidades vinham em apenas um sentido, crescente e convergente. Afinal, essa foi uma época marcada também pelas “patologias da pátria”, motivadas pelo lamentável estado sanitário do Brasil e pela miséria.28 Das doenças então chamadas de pestilenciais, algumas eram avaliadas como vindas “de fora”; foi o caso das dramáticas epidemias de cólera que assolaram o território nacional. Já outras eram consideradas “de dentro”, como a febre amarela, a varíola e a peste bubônica, esta por vezes entendida como uma moléstia importada. E, junto com os imigrantes amontoados na terceira classe dos navios, aportava o tracoma. Por aqui vigeria uma “trindade maldita”: malária, doença de Chagas e ancilostomíase, ao lado da lepra, da sífilis e da tuberculose, além de uma dezena de outras enfermidades infecciosas e parasitárias que castigavam o país. Essas seriam as “doenças do Brasil”, na perspectiva defendida desde 1910 pelo médico e cientista Carlos Chagas, que se mostrou muito ativo na institucionalização de projetos de saúde pública.

Tais “patologias do Brasil” estariam associadas, por sua vez, às representações de vários grupos doentes, alvos da medicina pública. Faziam parte da lista sertanejos, caipiras e as populações do interior, vítimas das endemias rurais, assim como ex-escravizados, moradores dos cortiços e favelas, imigrantes, trabalhadores informais e camponeses. Já as populações indígenas se mantinham invisíveis para a saúde pública institucionalizada, e com frequência dissolvidas na identidade de caboclos.29 Mente sã em corpo são, eis um dos lemas que explicita a política de Oswaldo Cruz, muito bem aplicada naquele momento de combate à febre amarela e a outras doenças tropicais. O outro lado, porém, levou ao recrudescimento de uma espécie de “ditadura médica”, mais motivada por uma “urgência nacional” do que pelo desejo de incutir uma “educação sanitária”. O resultado foi, muitas vezes, o descompasso entre as práticas científicas e a compreensão da população.

Esse desacordo podia ser sentido também em outras áreas. Mesmo que afastadas dos centros mais elegantes, as festas religiosas e populares continuavam a mostrar que a ciência convivia com a espiritualidade e o misticismo. Desordenando a racionalidade científica estavam as solenidades da Semana Santa, com suas procissões, a festa da Penha e demais cortejos de santos. E havia quem estranhasse ver tais celebrações misturadas a tantos novos exemplos de urbanidade. Olavo Bilac foi um dos que se lamentaram, numa crônica de 1906: “Num dos últimos domingos, vi passar pela avenida Central um carroção atulhado de romeiros da Penha: e naquele amplo boulevard esplêndido, sobre o asfalto polido, entre as fachadas ricas dos prédios altos, entre as carruagens e os automóveis que desfilavam […] me deu a impressão de um monstruoso anacronismo: era a ressurreição da barbárie — era a idade selvagem que voltava, como uma alma do outro mundo, vindo perturbar e envergonhar a vida da idade civilizada”.30

Consequência imediata e imprevista dessa sanha modernizadora e da política autoritária impostas pelo governo nos primeiros anos da República foram as revoltas que estouraram pelo país, revelando que nele existiam muitos interesses e tempos distintos. No campo, as insurreições representavam um composto de religiosidade, misticismo e luta pela terra. Já nas cidades, a população reagia ao que era então chamado de “ditadura sanitarista”. A Revolta da Vacina, que estourou no Rio em 1904; o Contestado, uma luta social ocasionada pela falta de regularização da terra bem na fronteira entre Paraná e Santa Catarina, e que durou dos anos 1912 a 1916, e até mesmo Canudos (1896-97) são resultado desse processo de modernização “a qualquer custo”. Aí estão duas faces de uma mesma moeda. De um lado, “a vertigem” da modernidade — que foi o termo usado por Euclides da Cunha para definir o espetáculo insano a que assistiu na destruição do arraial de Canudos; de outro, a exclusão e o autoritarismo das medidas disciplinares urbanas.

A “vertigem” possuía, porém, muitos ângulos. Se os jornais insistiam em destacar os sinais de urbanidade, civilidade e racionalidade, não havia como deixar de pensar nos sertões longínquos e abandonados nem nas desigualdades sociais vigentes nas cidades. O espírito ufanista que inundou a belle époque encobria as fragilidades das novas estruturas urbanas. Encobria também as relações que uniam e separavam o centro dos subúrbios cariocas. No caso dos Barreto, o desgarramento entre os ideais dos novos tempos e a realidade do tempo presente seria tremendo.

A aposentadoria de João Henriques: trocando o centro pelos subúrbios cariocas

A paisagem luminosa do progresso não seria o único cenário na vida de Lima Barreto. Do outro lado da curva estava João Henriques, que ia seguindo na mão oposta. Ele manifestara sinais de loucura, doença considerada como o contrário da racionalidade: enquanto a civilização representava o reino da ordem, a loucura simbolizava a manifestação da desordem.

E o pai de Lima suscitava preocupações. Mais uma vez o caso dele vinha estampado nos jornais: não a loucura, mas “as contas” e o balancete da sua administração. As despesas lançadas não fechavam, e revelavam arbitrariedade no uso da verba pública. Ainda assim, nunca se provou uso indevido da receita durante a gestão de João Henriques nas Colônias de Alienados.31 No final de 1902, fatigado, ele conseguiu uma licença médica de um mês. No entanto, passado esse período, uma denúncia anônima ao Jornal do Brasil, datada de 13 de janeiro de 1903, selaria de vez a sorte do outrora orgulhoso empreendedor e almoxarife/administrador da ilha do Governador.

Esses eram tempos do ministro J. J. Seabra, titular da pasta de Justiça e Negócios Interiores do recém-empossado presidente Rodrigues Alves. Seabra, que já havia aberto inquérito para apurar irregularidades no Hospício Nacional, estendeu a medida para as colônias. No artigo do Jornal do Brasil exigia-se o exame imediato dos livros da instituição. Os registros atestaram que tudo andava na mais perfeita ordem, e que a denúncia anônima, muito provavelmente, não passara de boato criado por um funcionário que devia ansiar pelo lugar de João Henriques. Afinal, o emprego garantia casa espaçosa, salário fixo e até alguma visibilidade social. Mas o estrago estava feito: apesar de o ex-administrador ter sido inocentado, o incidente só piorou seu estado mental.

O contratempo acabou forçando o afastamento definitivo do pai de Lima do mercado de trabalho. O administrador requereu aposentadoria ao ministro do Interior, a qual só lhe foi concedida, com restrições, um ano depois, em 12 de fevereiro de 1903.32 A morosidade da burocracia obrigou a família a aguardar bastante até ver reconhecidos os direitos de Henriques. Parecia que a cada dia um novo documento era solicitado, entre memoriais, pedidos e rogos, e a situação só se resolveu a muito custo.

Debochada, a nota publicada no jornal O Malho de 10 de janeiro de 1903 bem poderia ter sido da lavra de Lima Barreto.

 

Um importante personagem de Lima Barreto nasceu inspirado em Pelino Guedes, então diretor-geral da Diretoria de Justiça, secretário do sr. dr. Seabra e responsável pelo processo da aposentadoria de João Henriques. O escritor criou então um “modelo” de funcionário público sempre disposto a emperrar qualquer processo. Na literatura de Lima, Pelino seria ora Xisto Beldroegas, em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, ora o secretário bajulador e carreirista do ministro J. F. Brochado, nas páginas de Numa e a ninfa.

Xisto é um funcionário que se dedica a escrever biografias de ministros e sempre de forma laudatória, e que “vivia obcecado com os avisos, portarias, leis, decretos e acórdãos”. Famoso por seu afã obsessivo, perdeu a calma quando não conseguiu estipular a quantidade de flechas que atravessa o corpo de são Sebastião, ou quando deixou de determinar o número de dias chuvosos ou o crescimento das plantas em um ano de gestão. Era, à sua maneira, “contra a lei”, por isso indeferia todos os pedidos de aposentadoria, e nunca com rapidez; somente após muitas investidas e desgaste dos pobres cidadãos.33

No romance Numa e a ninfa (publicado como conto no jornal Gazeta da Tarde de 3 de junho de 1911, e como livro no ano de 1915), que apresenta uma crítica severa ao sistema político brasileiro, a definição do secretário do ministro Brochado não poderia ser mais impiedosa: “múmia peruana, untada de pinturas e a enxergar por uns óculos negros”.34 Tanto escárnio vinha, com certeza, do desgosto que Lima sentiu ao enfrentar a lerda burocracia que o impedia de receber a pequena aposentadoria do pai.

Sem poder recorrer a ninguém, foi obrigado a abandonar de vez a Politécnica. Anos depois, tentando fazer da circunstância uma premeditação, Lima, em texto de 1919 — intitulado “Henrique Rocha” e incluído na coletânea Bagatelas —, reflete sobre a sua sensação de não pertencimento àquela escola e a consequente desistência do curso. “Desde muito que eu desejava abandonar o meu curso. Aquela atmosfera da escola superior, não me agradava nos meus dezesseis anos, cheios de timidez, de pobreza e de orgulho. Todos os meus colegas, filhos de graúdos de toda sorte, que me tratavam, quando me tratavam, com um compassivo desdém, formavam uma ambiência que me intimidava, que me abafava, se não me asfixiava. Fui perdendo o estímulo; mas, a autoridade moral de meu pai, que me queria ver formado, me obrigava a ir tenteando. […] Desgostava-me e era reprovado…”35

Quem sabe, por linhas tortas, a alienação de João Henriques não tenha ajudado na decisão, tantas vezes adiada, do filho. Sem a rédea curta do pai, Lima perdia a última motivação para prosseguir no curso. Ele ia também tomando consciência das privações que passara por lá, ou, ao menos, ia se permitindo levá-las a sério, assim como registrá-las, e por escrito. Era dessa maneira que ele explicava sua situação familiar e íntima: “Vivia eu nesse conflito moral desde os meus dezenove anos, quando, aos vinte e um, meu pai adoeceu sem remédio, até hoje. Estava livre, mas por que preço, meu Deus! […] Não seria mais doutor em cousa alguma. […] Ia me fazer por mim mesmo, em campo muito mais vasto e mais geral!”.36

Lima não sabia bem a que projeto devia se dedicar. Pensou logo no amigo Bastos Tigre, “que já, por aquela época, fundava jornalecos e revistecas”. O futuro escritor referia-se à publicação de O Diabo, que só duraria quatro ou cinco números, e que “fez o seu sucesso de estima”. Ou seja, ajudava na moral mas não nas finanças. Diz ele que foi então que começou a conhecer “uma porção de artistas, poetas, filósofos, cronistas, jornalistas, repórteres”, citando de cor vários — a despeito de alegar não lembrar de todos: “Emílio de Meneses, Guimarães Passos, Raul Braga, Domingos Ribeiro Filho, Raul, Calixto, Luís Edmundo, Santos Maia, Lucílio, Hélios, os dois Timóteos, os dois irmãos Chambellands, Evêncio, Jobim, Lenoir, Gil, Camerino, Arnaldo, Gonzaga Duque, Lima Campos e tantos outros, alguns já mortos e alguns ainda vivos, poucos felizes e o resto… na mesma”.37

Diferentemente do que a visão mais caricata legou — guardando uma memória feita de trás para a frente —, Lima ainda não fazia, nessa época, parte da turma dos “beberrões inveterados”. Ou ao menos não era assim que se via: “Não tinha eu hábitos de boêmia, de botequim, de confeitaria, apesar de desde pouco mais de quinze anos, quando me matriculei, até àquela data, viver sobre mim, em casas de cômodos e comendo em pensões mais ou menos familiares”.38 Possivelmente já tomava seus tragos, mas parecia sobretudo concentrado em prover a família do sustento que não viria mais de João Henriques, cuja aposentadoria mal dava conta dos gastos com sua saúde.

A saída, por ironia, veio justamente da área de seu vilão predileto: Pelino Guedes. Lima aceitaria em breve um emprego de funcionário público, ocupação comum a boa parcela da classe média residente no estado do Rio de Janeiro e que supria os quadros necessários para a capital da República.

Ganhando a vida como amanuense: mestres da boa letra

Diante da absoluta falta de opção, Lima resolveu prestar um concurso público. Na ocasião, encontrava-se aberta na Secretaria da Guerra uma vaga de amanuense, profissão bastante usual na época. A palavra deriva do latim “amanuensis”, que provém da expressão também latina “ab manu”, “à mão”. Vulgarmente chamados de copistas, aos amanuenses cabia reproduzir e copiar textos e documentos, sendo julgados pela boa caligrafia. Charles Dickens era amanuense antes de se transformar em romancista; esse foi ainda o caso do poeta satírico Luís Gama, até ele entrar para a Faculdade de Direito e conseguir libertar muitos escravizados fazendo uso das brechas da lei.39 Amanuenses e escrivães também inspiraram grandes personagens, como Bartleby, o protagonista de uma novela de mesmo nome escrito por Herman Melville, publicado originalmente em 1853. Bartleby era um jovem escriturário que, para desespero do seu chefe, sempre que lhe requisitavam algum serviço respondia simplesmente que “preferiria não fazer”. A simbologia é forte e lida com a imagem desse profissional que, depois de tanto escrever, acaba se paralisando. No Brasil da Primeira República, sobretudo na capital, que inchava com tantos novos empregos destinados ao funcionalismo público, e diante da pouca especialização, a profissão ia virando regra em meio à intelectualidade, não exceção.40 Tratava-se ainda de uma saída para o que era então chamado de “complexo de Bartleby”. Retirado do personagem de Melville, o conceito significava aproveitar-se do sistema e encontrar um ganha-pão nas franjas dele.

Lima, no entanto, apesar de, daí por diante, ter sido obrigado a copiar documentos durante muitos anos de sua vida, além de haver redigido outros tantos, nunca viu na profissão uma saída digna. A decisão foi pragmática, e o filho de João Henriques inscreveu-se no concurso que, exigente, constava de provas de português, francês, inglês, aritmética, álgebra, geometria, geografia, história, direito, redação oficial e caligrafia.41 Foram oito dias de exames presididos pelo barão de Itaipu, Francisco Manuel das Chagas.42

O ex-aluno da Politécnica deve ter confiado nos conhecimentos que acumulara, mas não contava com um obstáculo “extra”: sua má letra. Ficou então em segundo lugar, pois na prova de caligrafia recebeu nota 3, e seu competidor o superou com um vistoso 9. Na crônica “Esta minha letra…”,43 que saiu na Gazeta da Tarde oito anos depois de sua contratação, ele ainda se amargurava: “A minha letra é um bilhete de loteria. Às vezes ela me dá muito, outras vezes tira-me os últimos tostões da minha inteligência…”. O texto tratava dos problemas de Lima com o jornal, que seguidamente publicava os textos dele de forma truncada, por conta da dificuldade que sua letra impunha aos revisores. Contudo, o que mais interessa é como a letra vira metáfora para o insucesso: “Estou nesta posição absolutamente inqualificável, original e pouco classificável: um homem que pensa uma coisa, quer ser escritor, mas a letra escreve outra coisa e asnática. Que hei de fazer? Eu quero ser escritor, porque quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei os meus navios; deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras […] e agora vem essa coisa de letra, esse último obstáculo, esse premente pesadelo, e não sei que hei de fazer! Abandonar o propósito; deixar a estrada desembaraçada a todos os gênios explosivos e econômicos de que esses Brasis e os políticos nos abarrotam? É duro fazê-lo, depois de quase dez anos de trabalho, de esforço contínuo e — por que não dizer? — de estudo, sofrimento e humilhações. Mude de letra, disse-me alguém. É curioso. Como se eu pudesse ficar bonito, só pelo fato de querer”.

Embora Lima tivesse ficado em segundo lugar, abriu-se outra vaga e ele pôde preenchê-la. Mesmo assim, continuou a maldizer sua letra: “e tenho que aguentar esse meu inimigo, essa traição que está nas minhas mãos, esse abutre que me devora diariamente a fraca reputação e apoucada inteligência”. Recebeu o aviso em 27 de outubro de 1903, e já no dia seguinte assumiu o cargo. O salário de amanuense não era dos melhores, 200 mil-réis conforme mostra a Gazeta de Noticias desse dia. Dava para o sustento da família, a despeito de implicar uma redução de patamar econômico; a casa, por exemplo, teria que ser menor. E lá foram eles, novamente, para a vida dos subúrbios. Com um emprego mais estável, logo que pôde Lima se mudou com a família novamente para os subúrbios, dessa vez para o bairro de Todos os Santos, na rua Boa Vista, 76.

Agora era o pai quem demandava cuidados: segundo o diagnóstico do dr. Braule Pinto, João Henriques tinha neurastenia, cujos sintomas são perda geral de interesse, apatia, inatividade. Palavra de origem grega, “neuro” significa “nervo”, e “astenia”, “fraqueza”; refere-se a um transtorno psicológico motivado por razões endógenas (uma predisposição genética à ansiedade e depressão), mas também exógenas: trabalho exaustivo, problemas de frustração ou situações traumáticas. O termo fora empregado pela primeira vez em 1869 por George Miller Beard, que descreveu o distúrbio como um estado de exaustão física e psicológica combinado a uma grande sensibilidade, o qual resulta em irritabilidade seguida de depressão. A neurastenia era tão popular na época que nos jornais, em anúncios publicitários, alardeava-se a cura da doença a partir da ingestão de um vinho iodotânico fosfatado, que prometia milagres, o tratamento por hipnotismo e eletricidade, ou “pílulas rosadas do Dr. Williams”.44

Nova casa da família Barreto, agora na rua Boa Vista (depois Elisa de Albuquerque), 76, no bairro de Todos os Santos. Mas os santos não ajudavam…

 

A causa do distúrbio de João Henriques poderia ser qualquer uma das até aqui citadas. Ele havia manifestado problemas psicológicos em outros momentos de sua vida, e vivenciara uma série de situações traumáticas: a morte prematura da esposa, a perda do emprego com a chegada da República, a acusação de malversação da verba pública e o escândalo nos jornais. Este último caso deve ter sido a gota d’água, e o diagnóstico, bastante comum no início do século XX, veio rápido.

Como administrador, o pai de Lima já revelara oscilação de humor, mas sempre recuperava certo equilíbrio, conseguido a partir de uma vida regrada e sem excessos — só de vez em quando quebrada por um gole de parati. Mas nesse momento a situação parecia sem volta: João Henriques se deixava ficar apático na poltrona de sua nova casa — localizada numa região que sofria com infraestrutura precária, falta de acesso a água e a saneamento básico. Isso quando não mudava de humor e passava a gritar e alucinar, imaginando a chegada da polícia, que viria prendê-lo. Provavelmente por essa razão a residência dos Barreto, em vez de estar cercada por alienados, agora seria ela própria conhecida como “a casa do louco”.

Na confraria dos amanuenses: “Todos nós nascemos para o ofício público”

Depois de enfrentar o cotidiano na Politécnica e de criar para si um personagem literário — a figura de Alfa Z na coluna do jornal estudantil A Lanterna —, Lima teria que se conformar com a tarefa diária de escrever, copiar e, raras vezes, dar uma última redação a avisos e portarias ministeriais. Nada que se assemelhasse ao futuro que desenhara para si. Além do mais, tendo residido no centro do Rio, perto de onde “tudo acontecia”, estava de volta aos subúrbios, que deviam lhe lembrar a triste circunstância da morte de sua mãe.

Lima Barreto, porém, sempre que podia, dava um jeito de se reinventar a partir de seus personagens. Dessa maneira, se Policarpo Quaresma é espelhado em seu pai, Isaías Caminha simboliza o preconceito que Lima sentiu na pele quando estudante e nos primeiros tempos de jornalista; já Gonzaga de Sá representa a vida dele como funcionário público. No retrato detalhado que faz da sua atividade de amanuense, no conto “Três gênios de secretaria”,45 publicado em 1919, o escritor a define sem dó nem piedade, mas com muita graça. O trabalho estaria resumido na função desempenhada pela ironicamente denominada Secretaria dos Cultos, que equivaleria à “sua” Secretaria da Guerra. O texto começa com uma nota dedicada a Augusto Machado, personagem ficcional ao qual Lima atribui a autoria do livro Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Nela, o escritor destila ironia em relação à profissão que desempenharia por catorze longos anos: “Logo no primeiro dia em que funcionei na secretaria, senti bem que todos nós nascemos para empregado público. Foi a reflexão que fiz ao me julgar tão em mim, quando, após a posse e o compromisso ou juramento, sentei-me perfeitamente à vontade na mesa que me determinaram […]. Eu tinha vinte e um para vinte e dois anos; e nela me abanquei como se de há muito já o fizesse. Tão depressa foi a minha adaptação que me julguei nascido para ofício de auxiliar o Estado, com a minha reduzida gramática e o meu péssimo cursivo, na sua missão de regular a marcha e a atividade da nação”.46

É fácil perceber como Lima não faz nenhum esforço de se disfarçar no meio de seu texto; critica inclusive a sua afamada má letra. Continua então desfazendo de sua função ao descrevê-la: “Puseram-me também a copiar ofícios e a minha letra tão má e o meu desleixo tão meu, muito papel fizeram-me gastar, sem que isso redundasse em grande perturbação no desenrolar das coisas governamentais. […] Aquela placidez do ofício, sem atritos, nem desconjuntamentos violentos; aquele deslizar macio durante cinco horas por dia; aquela mediania de posição e fortuna, garantindo inabalavelmente uma vida medíocre…”.

Brincando com o uso de um tom um tanto didático, explica que naquele emprego nada há de “imprevisto”, assim como não se requer “esforço” algum; só se espera pelo dia seguinte com “calma e suavemente, sem colisões”. Amanuenses convertem-se assim em metáforas certeiras do novo regime; com o seu cotidiano de fazer sempre o mesmo e nada criar, a não ser nos “dias feriados, santificados e os de ponto facultativo, invenção das melhores da nossa República”.47 De fato, parece que o escritor despendia pouco tempo mental como amanuense. Tanto que passou a escrever contos, crônicas e até trechos de futuros romances nos versos ou nos almaços marcados com o timbre da Secretaria da Guerra.

A seção era chefiada pelo mesmo barão de Itaipu que lhe aplicara os exames. Na descrição de Lima, ele surge como o mais “perfeito dos burocratas”, além de continuar a ostentar o título de nobreza, quando esse uso fazia muito havia sido abolido. No romance sobre Gonzaga de Sá, o escritor o esconde — mal — na figura do barão de Inhangá; um especialista na arte de apontar lápis: “Era um gasto de lápis que nunca mais acabava: mas o Brasil é rico e aprecia o serviço de seus filhos”. Inhangá completara 25 anos de serviço e virara até barão.48 Já Itaipu, que beirava os oitenta anos quando Lima o conheceu, estava no batente desde os tempos do Império, “seu máximo trabalho era abrir e fechar a gaveta da sua secretária”. Pode ser que essa seja a verdade apenas de Lima. De toda maneira, mais uma vez a vida lhe dava pretextos para criar um personagem memorável — um modelo de secretário desses que ganham pedestal e insígnia.49

“Um e outro”, publicado na Águia do Porto, v. 4, de 1913.

 

Retrato acabado e bem-feito foi aquele que Lima Barreto criou para a confraria Esplendor dos Amanuenses. No mesmo romance, o autor explica que era desse modo que ele e os amigos denominavam as reuniões que faziam entre os profissionais da área, quando tinham suas “horas de satisfação”, numa “orgia regada a café” para compensar o “enfado da repartição” e as “agruras de lares difíceis”.50 O horário de Lima ia das dez da manhã às três horas da tarde, quando permanecia executando, segundo ele próprio, basicamente nada. “Quando era amanuense de uma Secretaria de Estado e não tinha que fazer, lia os volumes de alvarás, cartas régias etc., do tempo dos reis portugueses; e nelas encontrei muitos atos doces e paternais que denunciavam ainda a origem patriarcal do chefe de Estado.”51

Vencia o enfado com duas atividades: usava as muitas horas vagas para imaginar uma série de projetos (todos, ao menos nesse período, devidamente engavetados) e trocar conversa com o amigo Domingos Ribeiro Filho, companheiro de aventuras no jornalismo e no grupo Esplendor dos Amanuenses, citado igualmente no Gonzaga de Sá. Por sinal, após o fim do expediente, Lima podia ser visto nas seletas reuniões de amanuenses, sempre realizadas no Café Papagaio e sob a liderança “do Domingos”. No artigo “Os galeões do México”, que saiu na Gazeta da Tarde de 20 de maio de 1911, ele escreve que por lá se encontravam no mínimo quatro desses profissionais, os quais viviam horas de felicidade por oposição “à inércia” que experimentavam em suas respectivas secretarias. E termina: “e bebíamos café, e só café, pois as finanças não permitiam o luxo da cerveja ou do whisky”. O certo é que então já bebiam mais do que café, pelo menos Lima. A partir das quatro da tarde e até de madrugada, quando finalmente voltava para casa, ele perambulava de bar em bar, encontrando amigos mais conhecidos, mas também outros, anônimos e ainda mais humildes, que circulavam por perto da estação. Na rua da Conceição, por exemplo, costumava ser visto tomando uma talagada de parati, por uns quinhentos réis (o que não significava muito, já que em alguns bondes os bilhetes custavam de cem réis a um tostão), num bar que poderia ser considerado típico para a sua época. “Duas portinhas, um balcão, uma mesinha com duas cadeiras cada uma a um metro e pouco do balcão. Umas prateleiras com garrafas e, por detrás delas, uma espécie de depósito de caixas de garrafas. E, no fundo, uma área de claraboia e uma instalação sanitária — tanque, pia, torneira.” Esse era o padrão médio de boa parte desses estabelecimentos que se espalhavam pela cidade; em geral sem nome, instalados de forma provisória numa antiga casa residencial ou num armazém de dois andares.52

E, se Lima e seu personagem não levavam a sério a função de amanuense, já os “colegas” de serviço, ao menos os descritos no romance, eram todos muito orgulhosos, julgando-se capazes de engendrar um “sistema de nomeação” em que “entrava-se amanuense e, de promoção em promoção, ia-se a presidente”. A vantagem seria que, “quando houvesse necessidade de se lavrar um decreto em palácio, o presidente estava perfeitamente apto a fazê-lo”.53 Novamente, não ficção e ficção travam seu jogo, a despeito de não podermos ver na segunda uma decorrência imediata da primeira. Quem sabe os personagens e as confrarias que Lima criava não eram muito mais divertidos do que a própria realidade, cada vez mais enfadonha durante as cinco horas passadas à escrivaninha, copiando papéis. Para dar conta desse marasmo, Lima recorria a muita imaginação — criava vários projetos para sonhar: de livros, crônicas, peças de teatro — e a bastante bebida para aguentar o tédio. O escritor, que antes tomava seus tragos apenas socialmente, passou a inventar programas para poder se dedicar aos botecos, mais desimpedidamente. Nunca chegava em casa antes das duas ou três da madrugada e, por vezes, só quando o dia raiava. E, apesar de ele negar, foi nessa época que o vício entrou na sua vida, transformando-se em seu mais fiel companheiro até a hora da morte. De secundária a atividade viraria personagem principal.

Vários projetos e tantos “bovarismos”

No ano de 1903, João Henriques achava-se definitivamente tomado pela loucura, e Lima se iniciava como amanuense, mas sem abrir mão da carreira nas letras. Manteria os dois “empregos” pela vida afora. Com o novo salário de funcionário complementava seu sustento e o da família, e ainda se curava da “inércia”. Esse era, aliás, o termo que ele usava para definir sua profissão e que escolhera para compor o primeiro pseudônimo na coluna de A Lanterna: Momento de Inércia. No Diário, comentava que, somados seus vencimentos aos do pai aposentado, as entradas eram de apenas 360$000.54 Anotava também que 120$000 iam para o aluguel de uma casa modesta em Todos os Santos e 100$000 para o armazém.55 Sobrava muito pouco para gastarem com supérfluos, e por isso o escritor isolava-se do seu mundo social.

Nessa época, Lima havia publicado algumas crônicas, como vimos, no jornal A Lanterna — a primeira ainda em 1902. Por lá, fazia o papel de enfant terrible, criticando professores e colegas. No semanário humorístico O Tagarela, sob o pseudônimo de Rui de Pina, escreveu duas crônicas, em julho de 1903. Em A Quinzena Alegre, revista que editou a convite de Bastos Tigre, notam-se os traços da sua pena afiada, assim como em O Diabo. E um antigo colega da Politécnica, Carlos Viana, ofereceu-lhe um emprego na Revista da Epoca, que, dedicada às notícias do cotidiano da cidade (obras do porto, figuras públicas etc.), apresentava ainda poemas, charadas e anúncios. A publicação, apesar de se declarar quinzenal, não tinha a regularidade anunciada. De toda forma, a partir do fim de 1903, trazia Lima Barreto no expediente, na função de secretário. O primeiro número da Revista da Epoca veio a público em 1902, e o periódico durou, com dificuldades, até 1918. O escritor permaneceria, porém, pouco tempo como secretário; já no número de 24 de março de 1904 saía a nota: “Lima Barreto, o nosso querido companheiro, em razão de acúmulo de trabalho deixa o secretariado da Revista que com tanta dedicação exerceu, continuando, entretanto a redigir as suas apreciadas crônicas que têm sempre constituído um great attracion para nossos leitores. Assume o cargo de secretário o nosso distinto companheiro de redação José Veríssimo Filho”, filho do famoso crítico literário que o amanuense tanto apreciava.

Se Lima desistiu do cargo, saiu, contudo, “por cima”, e figurava como grande atração daquele periódico feito por colegas, entre eles Bastos Tigre, Miguel Calmon du Pin e Almeida, Edgar A. Romero, Carlos Ferreira de Araújo, E. Seidl, Heitor Melo, Ribas Fradique, Antônio Bandeira, Toledo de Loiola e o caricaturista Hermes Fontes. O grupo de redatores não era muito conhecido até então, e nenhum deles fazia parte do cânone vigente. Tampouco a revista conseguiria muita projeção. Aliás, ela representava uma das iniciativas que pretendiam dar visibilidade aos representantes das novas gerações de escritores, os quais, considerando-se preteridos pela ABL, atacavam quase como esporte a instituição; pelo menos até que entrassem em seus quadros.56

Para justificar sua demissão, Lima apresentou duas razões. Se o motivo público foi o acúmulo de tarefas, o privado tinha a ver com o perfil intelectual do escritor. Na carta que endereçou a Viana, diretor da publicação, ele afirmava que se demitia por causa da obrigação de escrever um ou outro artigo mais laudatório aos políticos. Alegava que preferia deixar de contar com a remuneração da Revista da Epoca e ficar feliz por “seguir sua consciência”.57 Como colaborador, podia escolher os temas de suas matérias, em vez de obedecer aos ditames da revista. Mas o que ele queria mesmo era ganhar espaço no jornalismo mais estabelecido. Em 1904, lá estava Lima fazendo reportagens para o consolidado Correio da Manhã.

Não se sabe quem indicou seu nome. De toda maneira, vale a pena notar que no número 5 de O Diabo, datado de 9 de setembro de 1903, Lima e outros colaboradores publicam um agradecimento ao proprietário do Correio da Manhã, o mesmo com quem ele se desentenderia no futuro e a quem desdenharia nas páginas de Isaías Caminha: Edmundo Bittencourt. Mas nesse momento ele era todo elogios: “Rendemos aos Deuses os nossos melhores votos, por haverem trazido em salvamento e com boa saúde o magnífico e ardoroso jornalista dr. Edmundo Bittencourt. Filhos da sua escola jornalística de intrepidez e independência, nós, humildes redatores d’O Diabo, faltaríamos ao mais sagrado dos deveres […] se aqui não entregássemos um hurrah por tão auspicioso fato”.

Dois colegas seus — Bastos Tigre e Pausílipo da Fonseca — já trabalhavam no Correio, cujo estilo mais independente provavelmente agradava a Lima. À diferença de boa parte dos jornais da época, que tinham vocação para bajuladores, desde o primeiro número aquele periódico apostou no jornalismo de denúncia.58 Lima foi contratado para escrever uma série de reportagens sobre “o subterrâneo” do morro do Castelo, justamente quando era aberta a avenida Central e o morro virava um tipo de vilão da cidade.

Desde os tempos de d. João, o Castelo era considerado prejudicial aos cariocas, uma vez que, segundo as teorias miasmáticas do período, dificultava a circulação de ventos e o livre escoamento das águas. Mas agora se comentava que fora descoberta no local uma espécie de túnel, o que acabou por alimentar o folclore que envolvia o malfalado morro. Originados na época das invasões francesas, no século XVI, os rumores ganharam força com a expulsão da Ordem dos Jesuítas em 1759, por determinação do marquês de Pombal. Desde lá, parece ter vingado o dito: “Quem conta um conto, aumenta um ponto”. E a lenda urbana, com o tempo, foi ficando cada vez mais robusta. Dizia-se que maravilhosos tesouros estariam enterrados em galerias secretas, deixadas às pressas pelos jesuítas. O tema era popular e havia sido explorado, só para ficarmos no século XIX , por escritores como Joaquim Manuel de Macedo e Machado de Assis. Já Lima, no conjunto de 26 textos publicados entre abril e junho de 1905, descrevia as fantásticas galerias subterrâneas, “construídas há mais de dois séculos pelos padres jesuítas, com o fim de ocultar as fabulosas riquezas daquela comunidade ameaçadas de confisco pelo braço férreo do marquês de Pombal”. E sublinhava: “Verdade ou lenda, caso é que este fato nos foi trazido pela tradição oral e com tanto mais viso de exatidão quanto nada de inverossímil nele se continha”.59

Para engrossar o caldo que já era espesso, o escritor explicava que a ordem fundada por Inácio de Loiola em 1539 logo se tornou célebre por sua imensa riqueza, a ponto de ir se convertendo, pouco a pouco, numa potência financeira e política na Europa e na América. Confiscados os bens da Companhia de Jesus, em 1759, os discípulos de Loiola teriam procurado, então, salvaguardá-los. E foi assim que tomou forma a ladainha que cantava a existência de riquezas inestimáveis enterradas no morro do Castelo, “sob as fundações do vasto e velho convento dos jesuítas”. Lá estariam “objetos de alto lavor artístico, em ouro e em prata, além de moedas sem conta e uma grande biblioteca”. Ironizava ele que, não por coincidência, todo o movimento teria se dado nos “tempos do Encilhamento”, numa referência à política econômica desastrosa do ministro Rui Barbosa, que provocou nosso primeiro pique inflacionário. Os artigos vão mostrando que sucessivas escavações foram realizadas, todas sem êxito, “até que um velho, residente em Santa Teresa, prestou-se a servir de guia […], sem que de todo este insano trabalho rendesse afinal alguma coisa a mais que o pranto que derramaram os capitalistas pelo dinheiro despendido”.

Segundo os textos fantasiosos, tais fatos restaram esquecidos, até que o “desgracioso morro condenado a ruir em breve aos golpes da picareta demolidora dos construtores da Avenida” voltou a chamar a atenção do público. Lima descreve, então, os trabalhos, as pesquisas e como um sentinela foi recrutado para ficar na porta do “subterrâneo que guarda uma grande fortuna ou uma enorme e secular pilhéria”. Tudo estaria sendo supervisionado pelo dr. Paulo de Frontin60 e pelo dr. Lauro Müller,61 os famosos engenheiro e prefeito que andavam reformando o Rio e acabando com muitas de suas antigas ruas, casarões, casebres e bares. De acordo com o escritor, os administradores da cidade, assim como as “altas camadas”, acreditavam piamente na “existência dos tesouros dos jesuítas no subterrâneo do morro do Castelo”. E ele alfineta: “que uma fada benfazeja conduza o dr. Dutra no afanoso mister de descobridor de tesouros, tornando-o em mascote da avenida do dr. Frontin”.62

Enfim, zombando de toda a polêmica que envolveu o morro do Castelo, o qual começou a ser demolido nesse momento mas cuja destruição só se completou no ano de 1922, o autor fazia fantasia com a realidade e vice-versa: transformava a realidade em fantasia. O morro foi ao chão, mas jamais se comprovou seu malefício à cidade e muito menos a existência de tesouros perdidos no seu interior. Para chatear, Lima endereça seu texto aos “megalômanos, candidatos a um aposento na praia da Saudade”.63 Em seu diário pessoal, o escritor colou dois artigos de autoria de Vieira Fazenda que terminavam perguntando: “E o restante ainda estará guardado nas entranhas do morro do Castelo? Pode ser que sim, pode ser que não”.64 A narrativa, que caprichava na fantasia, anunciava o grande estilo do escritor, que ainda não tinha emplacado romance algum mas tinha pretensão e vontade para tanto.

Um Diário íntimo e outras incursões na literatura

Foi no ano de 1903 que Lima deu início ao seu Diário, composto de tiras e notas separadas, as quais Francisco de Assis Barbosa e Evangelina Barreto (a irmã de Lima) reuniram num livro que postumamente intitularam de Diário íntimo. O texto começa com a seguinte anotação: “1903. Um Diário Extravagante. Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho vinte e dois anos. Sou filho legítimo de João Henriques de Lima Barreto. Fui aluno da Escola Politécnica. No futuro, escreverei a História da escravidão negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade. * * * Nasci em segunda-feira, 13-5-81. * * * O meu decálogo: 1 — Não ser mais aluno da Escola Politécnica. 2 — Não beber excesso de coisa alguma…”.

A Politécnica ia ficando no passado e a bebida se apossava do presente. Lima devia andar impressionado pela história do pai, o qual, diziam, tomava seu trago sempre que se encontrava só, ainda quando trabalhava, o que, segundo teorias vigentes no período, teria impulsionado sua alienação. O amanuense também parecia estar a par dessas teorias sobre a bebida, o estado de embriaguez, a hereditariedade do alcoolismo e sua relação com os modelos de degeneração racial. Possuía livros sobre o tema na sua biblioteca e a eles se referiria com frequência em seus artigos. Naquele momento, os alcoolizados eram internados juntamente com os alienados, e passavam por tratamentos e terapias semelhantes. Artigos faziam correlações entre a incidência do vício no caso de populações de origem africana, como é o exemplo de O Brazil-Medico, uma publicação de responsabilidade da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro que determinava: “A raça africana no Brasil e sua descendência fornece [sic] grande dízimo mortuário determinado, quase sempre, pelo alcoolismo e suas consequências”.65 Lima devia guardar fresca, também, a memória de colegas internados por mero “pileque” passageiro ou “ressaca” brava. Entre eles o Huberto, o Pavoroso, que resolvera morar perto da estação do Méier, uma zona meio perigosa à noite. Era lá que ele encontrava Lima para um último gole e o acompanhava até em casa.66

Movimento de doentes atacados de alcoolismo (1907-12)
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

 

No mesmo diário, Lima prometia escrever uma tese sobre escravidão, e parecia apostar em vários outros livros, todos devidamente elencados em suas anotações pessoais. Anotar projetos devia ser uma forma de dar-lhes vida ou ao menos não os esquecer. Pode ser que esse fosse um modo de não abrir mão deles, ou de garantir a si mesmo que um dia se transformaria no que sonhava ser: escritor. Data de 1903, igualmente, um curso de filosofia que Lima elaborara e que incluía, de maneira discriminada, o “estudo das raças”, tema que, hoje sabemos, o tocava de perto, e de longe também.67

Pode-se avaliar tal tipo de preocupação num esquema para uma peça intitulada Os negros, cujo primeiro esboço se encontra entre seus documentos desse mesmo ano. Além do mais, em suas anotações, hoje reunidas no Diário íntimo, Lima registrou estar escrevendo um romance que trataria da vida e do trabalho dos escravos numa fazenda. A novela, afirmou ele, seria uma espécie de “Germinal negro”. Dizia-se influenciado pelo “negrismo”, filosofia, movimento político e literário que, sobretudo a partir dos anos 1920 e 1930 — portanto, muito depois do contexto que agora descrevemos —, e contando com a liderança de Cuba, desempenhou papel estratégico na formação de uma rede de estudos e interpretações de afrodescendentes e para afrodescendentes.68 Não sabemos se Lima tomaria conhecimento desses autores no futuro, ou se teve acesso à história coetânea da ilha caribenha, onde a abolição da escravidão se deu em 1886 e a independência em 1898. O fato é que, quando ele escrevia essas suas notas, Cuba já contava com um diretório central das sociedades da raça de cor, liderado pelo jornalista Juan Gualberto Gómez, em cuja agenda a questão da discriminação era tema central.69 As teorias do negrismo teriam ganhado força nas Américas, principalmente nas Antilhas, em associação com as vanguardas europeias e latino-americanas e com os movimentos de abolição da escravatura. O negrismo mantinha, também, diálogo com o conceito de “cultura popular”, anunciando a possibilidade de diferentes povos e grupos adquirirem voz e dicção próprias.70

Mas o negrismo de Lima não perseveraria muito; pelo menos esse. Com diversos projetos para tocar, e nos mais diferentes gêneros, o autor mudou de ideia novamente e se propôs a escrever, segundo consta nas páginas de seu Diário, e ainda na década de 1900, o que dizia ser um romance denominado Marco Aurélio e seus irmãos. Dele, deixou somente quatro laudas, das quais conhecemos uma frágil estrutura, dividida em alguns capítulos. Marco Aurélio é definido como um modelo de “orgulho, bondade, talento”, mas também de “tristeza”, por ver tanta gente “sem força, sem coragem, sem ânimo de trabalhar e de lutar, os homens; as mulheres, sem dignidade, sem grandeza, sem força para resistir às seduções, mergulhadas na prostituição”.71

No romance, o autor iria contar a história de um velho preto, criado de Marco Aurélio havia quinze anos, caracterizado por sua “larga e doce simpatia, que só se encontra nessas almas selvagens dos velhos negros, onde o cativeiro paradoxalmente depositou amor e bondade”. A inspiração para o personagem fora, quem sabe, Manuel de Oliveira, que Lima conhecera internado numa das colônias da ilha do Governador. Para o escritor, Manuel simbolizava os “negros libertos” que guardavam tamanha lealdade a seu senhor que jamais criavam suas próprias famílias. Também lembrava o modelo retirado de A cabana do Pai Tomás, obra de autoria da norte-americana Harriet Beecher Stowe, que trata do conflito vivido entre escravos e seus proprietários no Sul dos Estados Unidos e que logo se transformou em sucesso mundial. Lançado em 1852, o livro mostra os horrores do sistema escravocrata, e é narrado por uma escritora que conheceu de perto essa realidade e a descreve com indignação. A cabana do Pai Tomás, que contribuiu muito para o acirramento do debate sobre a abolição da escravidão naquele país, foi proibido nos estados sulistas, tendo se convertido num dos ícones da luta pela liberdade. A recepção do texto de Stowe foi, porém, até mesmo em sua época, paradoxal. Publicada pela primeira vez em forma de folhetim, a obra difunde uma visão bastante pacífica acerca das atitudes dos escravizados, bem como uma concepção moderada e controlada da batalha encetada pelo fim desse sistema.

Algo semelhante ocorre com o rascunho de Marco Aurélio, que apresenta uma versão bastante próxima do modelo presente no livro de Stowe: um tipo de abolicionismo confinado aos “bons valores” e à luta pacífica pela liberdade. Este era o Lima de inícios do século; mas existiam e existirão outros, ainda mais aguerridos. O importante é que o tema “mordeu” o escritor, que andava refletindo muito acerca da sua “origem” e dos problemas sociais que daí advinham.72

Outro projeto que o autor começou nesse momento foi o romance Clara dos Anjos, cujo texto ele alterou durante toda a vida e que até hoje é considerado inacabado. O primeiro esboço aparece justamente no Diário de 1904, em forma de rascunho e com um final muito diferente daquele que conhecemos. Na versão atualmente estabelecida, Clara é uma moça “mulata” que vive nos subúrbios, bem cuidada e protegida por seus pais, que não a deixam afastar-se muito do círculo familiar. Isso até a garota conhecer Cassi — um “modinheiro”, mais claro que ela, e com uma pretensa melhor condição econômica —, por quem se apaixona perdidamente. Resultado: ela termina só, desiludida e grávida.

A Clara que aparece no Diário de Lima é ainda mais radical. Ela supera a primeira desilusão, reage, têm vários amantes, inclusive um português que lhe dá cinquenta contos e a deixa com uma filha. Diferentemente da protagonista do romance publicado anos mais tarde e que por sua passividade lembra muito Pai Tomás, a Clara do Diário continua vivendo livremente: casa-se com um jogador que lhe rouba os cinquenta contos e morre, e ela então se amasia com um pedreiro.

É paradoxal, mas o realismo de Lima está mais aguçado no começo da carreira do que no final, ao menos no que tange às várias versões de Clara dos Anjos. Na primeira, a filha de Clara repete a vida da mãe, fugindo de casa com um cabo da polícia: José Portilho. Termina prostituída e morre como indigente na Santa Casa da Misericórdia.

No Diário de 1904, o escritor apresenta o seguinte esquema:

Época: 1874 a 1905.

Clara.

Nasceu..................1868

Morte do pai.........1887

Deflorada..............1888 (12 ou 13 de maio)

Dá à luz.................1889

Deixada.................1892

Casada...................1894

Viúva.....................1899

Amigada de novo..1900

A versão original de Clara era mais comprometida com certo “negrismo”, com a denúncia das estruturas de opressão, bem como mais esperançosa diante das possibilidades de reação por parte dessas populações. Basta notar a metáfora fácil de a defloração da protagonista acontecer bem no dia 13 de maio de 1888. Lima também se refere nessa versão ao poema de Castro Alves, “Vozes d’África”, publicado pela primeira vez em 1868. No poema, é a África que se queixa das desventuras dos seus filhos tirados do solo pátrio para serem escravizados. “Deus! ó Deus!”, escreve o poeta, “onde estás que não respondes?”73

Esse e alguns outros projetos inacabados de Lima já mostram traços que se converteriam em características evidentes em sua obra futura: a crítica ao bovarismo, uma maneira complexa de lidar com a própria circunstância e projetar a vida e a sorte para outro local. O bovarismo representava uma atitude de evasão do imaginário, que implicava conceber-se sempre como outro, diferente do que se é.74 Conforme Lima gostava de destacar, essa seria uma idiossincrasia da sociedade brasileira, igualmente presente na vida dos personagens dele. Clara, por exemplo, queria sempre afastar-se da vizinhança. A protagonista julgava-se diferente dos demais por conta de sua educação e cor mais clara, e não se conformava com a vida e o destino a ela reservados nos subúrbios.

Pode ser reconhecida, nessa peculiaridade, uma grande influência na obra de Lima Barreto: a utilização do conceito de bovarismo que fora retirado da teoria de Jules de Gaultier. Gaultier era um filósofo francês declaradamente nietzschiano, jornalista do Mercure de France, periódico por meio do qual provavelmente Lima tomou conhecimento de sua existência. Não há como ter certeza, mas sabemos que o escritor encomendou o livro, porque, em sua biblioteca, consta o registro de um exemplar na “estante I”. A teoria do francês girava em torno do poder da ilusão e da capacidade humana de se conceber a partir do que não se é. Para ele, os homens eram grandes mentirosos e produziam sentidos com base nas ilusões que criavam para si. Segundo o filósofo, essa conduta poderia ser aferida num grupo, mas também numa sociedade e até mesmo numa nação.75

O nome “bovarismo” é retirado do nome da personagem do famoso romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert, obra publicada pela primeira vez no ano de 1857. É possível dizer que Emma Bovary tinha dificuldade em “habitar” sua própria realidade e assim criava sempre outra para viver. O fato é que tanto a protagonista quanto a ideia “pegaram”, e no contexto de Lima alcançavam grande sucesso. O romance de Flaubert e sua personagem ficaram, é claro, muito mais conhecidos do que a teoria filosófica de Gaultier, mas Lima leu os dois, ambos fazem parte de sua Limana. No Diário íntimo, nos anos de 1904 e 1905, não foram poucas as ocasiões em que o escritor elencou suas reflexões acerca do bovarismo “alheio”: “Encontrei o Carneiro, o Mário Tibúrcio Gomes Carneiro, que sofre de ‘bovarismo’ revolucionário […]. Derruba governos e concerta países”.

É preciso reconhecer que também Lima era (ou ia ficando) um pouco bovarista: na época da Politécnica desdenhava dos alunos e da profissão de engenheiro; vivendo da profissão de amanuense, fazia pouco do funcionalismo público; morador do subúrbio, sentia-se desconfortável quando era confundido com seus colegas de trem. Mas também usava do conceito para questionar a si próprio. Em 26 de janeiro de 1905, Lima assim comenta sua triste situação familiar: “Ontem, quarta-feira, fui à casa do Santos, Antônio Noronha Santos […] Voltei pra casa, eis senão quando dou com um baile em forma […] Ora, no estado que meu pai está, com os poucos recursos que temos, positivamente aquilo me aborreceu […]. Demais, meu pai, aluado, na saleta, e o baile, a roncar […] A minha vida de família tem sido uma atroz desgraça. Entre eu e ela há tanta dessemelhança, tanta cisão, que eu não sei como adaptar-me. Será o meu ‘bovarismo’?”.76

Dois dias depois, o escritor conta em seu Diário ter voltado para casa e haver lido por uma hora “o bovarismo do Gaultier, um curioso livro”. No dia 31 de janeiro nova referência ao conceito: “Último dia do mês em que, com certa regularidade, venho tomando notas diárias da minha vida, que a quero grande, nobre, plena de força e de elevação. É um modo do meu ‘bovarismo’, que, para realizá-lo, sobra-me a crítica e tenho alguma energia…”.

Lima era leitor, também, das teorias do determinismo racial e tinha na sua biblioteca “clássicos do gênero” como Gobineau e Buckle. Chegou a afirmar que, depois da obra de Gaultier, a que mais o influenciou foi um presente do médico de seu pai, o dr. Braule Pinto:77 o livro de Maudsley, Le Crime et la folie, numa versão em francês. O doutor era amigo da família, e devia vigorar uma camaradagem entre Lima e ele, já que os Barreto conheciam Braule desde os tempos em que atuava como médico na ilha do Governador. Tanto que numa carta de 22 de agosto de 1907, em que o escritor dá notícias de um ataque sofrido por João Henriques, o tom é dos mais amistosos. Lima inicia a correspondência com o vocativo “Amigo senhor doutor Braule”, e segue: “Levo ao seu conhecimento, como amigo e médico que soube sempre ser de meu pai, que ele, ontem, às quatro para as cinco, foi acometido de um ataque, que lhe tirou a voz”. Termina a carta com “recomendações a todos, à dona Zizinha, ao José e à Nair”, e assina “seu amigo Afonso”.78

O presente do dr. Braule Pinto parece ter tido especial importância para Lima, que nunca escondeu sua predileção pela obra. Henry Maudsley era um psiquiatra inglês que naquele momento fazia relativo barulho em virtude da sua teoria sobre a associação entre responsabilidade penal e o conceito de sociopatia. Segundo ele, se alguns cidadãos possuíam “responsabilidade moral” e precisavam ser julgados em função dela, já outros não passariam de “imbecis morais”.79 A obra deve ter chamado a atenção de nosso autor não só por conta dos problemas do pai, mas ainda por causa da teoria de hereditariedade nela presente. Em outro livro, Responsabilidade na doença mental, Maudsley discute a relação entre psicologia e natureza e o que chamou de “patologia da insanidade”. Para ele, a chave da compreensão de tal problema estava justamente na herança biológica, assim como no conceito de degeneração racial. Ou seja, da mistura entre raças distintas o produto surgia “desequilibrado”, existindo estigmas fundamentais a ajudar na descoberta dos “problemas de hereditariedade”: epilepsia, criminalidade, loucura e também alcoolismo.

É bom lembrar que tanto o médico Nina Rodrigues, em As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (de 1894), como Euclides da Cunha, em Os sertões, haviam feito menção a esse pensador, mas para refletir acerca de impasses nacionais (e não individuais).80 Mais uma vez, não há como afirmar que Lima leu as obras de Euclides da Cunha e de Nina Rodrigues, mas o certo é que ambas tiveram grande influência no período. De toda maneira, o contexto de publicação era o mesmo. Além do mais, o peso — e a carga explicativa — que os livros de Gaultier e de Maudsley exerceram na literatura de Lima é notável. Nessa época, apesar de ter abortado seu projeto de virar “doutor”, o que em tese o liberaria das amarras da família, Lima acabou ficando cada vez mais preso a ela. Mesmo assim, reagia a seu pai e irmãos, como se fosse um estrangeiro diante deles. Em seu Diário, em janeiro de 1904, desabafa: “Dolorosa vida a minha! Empreguei-me há seis meses e vou exercendo as minhas funções. Minha casa ainda é aquela dolorosa cena pra minh’alma. É um mosaico tétrico de dor e de tolice. Meu pai, ambulante, leva a vida imerso na sua insânia. Meu irmão, C…, furta livros e pequenos objetos para vender. Oh! Meu Deus! Que fatal inclinação desse menino! […] A Prisciliana e filhos, aquilo de sempre. Sem a distinção da cultura nossa, sem o refinamento que já conhecíamos, veio em parte talvez prender o desenvolvimento superior dos meus. Só eu escapo!”.81

O curioso é que C. era Carlindo, que viria a fazer uma carreira relativamente bem-sucedida na polícia. Mais revelador é o comentário sobre Prisciliana e seus filhos — considerados inferiores pelo escritor, a ponto de este achar que diminuiriam “o desenvolvimento superior” dos irmãos dele. Justo Lima, que combatia preconceitos, deixava transparecer os seus, produzindo hierarquias internas diante de outras famílias afro-brasileiras que não devem ter contado com a mesma formação que receberam os Barreto. A “negra Prisciliana”, como o amanuense a chamava com certo desprezo, depois de muitos anos estabeleceu uma relação com um zelador da Colônia Juliano Moreira e se foi, levando consigo os filhos. A despeito disso, aparece de maneira errante nas memórias do escritor, como se ele não pudesse lidar abertamente com esse que foi um episódio bastante duradouro na vida de sua família.82 Igualmente revelador é o depoimento que deixa no dia 6 de novembro de 1904, quando visita a ilha do Governador com o objetivo de pagar umas dívidas que o pai não tivera tempo de sanar. Volta triste, melancólico. Põe a culpa no vinho — que lhe dava “um vazio n’alma, um travo amargo na boca, um escárnio interior”. Acrescenta, ainda, um episódio que deve ter mexido com ele e aumentado o tal “travo”. “Na estação, passeava como que me desafiando o C. J. (puto, ladrão e burro) com a esposa ao lado. O idiota tocou-me na tecla sensível, não há negá-lo. Ele dizia com certeza: — Vê, ‘seu’ negro, você me pode vencer nos concursos, mas nas mulheres, não. Poderás arranjar uma, mesmo branca como a minha, mas não desse talhe aristocrático. Suportei o desafio e mirei-lhe a mulher de alto a baixo e, dentro de alguns anos, espero encontrar-me com ela em alguma casa de alugar cômodos por hora.”83

Os trechos transbordam detalhes importantes. Em primeiro lugar, fica claro que Lima começara a beber. Moderadamente, mas já tomava mais que só café, como costumava afirmar, ou apenas socialmente. Fica também evidente seu constrangimento, expresso na viagem de trem e no retorno forçado à ilha. Por fim, o episódio do encontro com C. J. demonstra boas doses do bovarismo do próprio Lima. Não poucas vezes ele se referiu à dificuldade que sentia em encontrar uma parceira amorosa. Talvez o motivo fosse seu nível diferenciado de educação; talvez procurasse mulheres um pouco mais brancas que ele — como queria sua Clara ou alegava o viajante inoportuno do trem. Quiçá não fosse nada disso, mas somente Lima reagindo à sua cor e origem. De toda forma, a sensação de deslocamento social ia se agudizando, e as manifestações de preconceito não “passavam” mais sem deixar incômodo. Em outro trecho do Diário, no mesmo ano, dizia: “Hoje observei uma mulata que parecia amigada a um português; viajavam no bonde separados”.84 Para onde quer que olhasse, só via exclusão social: mistura, mas com separação.

Em 26 de dezembro, ainda em 1904, conta um episódio que provavelmente mexeu com sua autoestima. Escreve que ia andando pelo corredor do ministério, quando um soldado se dirigiu a ele e perguntou se era “contínuo”. O amanuense reagiu de maneira contrariada: “Ora, sendo a terceira vez, a coisa feriu-me um tanto a vaidade, e foi preciso tomar-me de muito sangue-frio para que não desmentisse com azedume. Eles, variada gente simples, insistem em tomar-me como tal […] Parece-me que […] a educação embeleza, dá, enfim, outro ar à fisionomia. Por que então essa gente continua a me querer contínuo, por quê? Porque… o que é verdade na raça branca, não é extensivo ao resto; eu, mulato ou negro, como queiram, estou condenado a ser sempre tomado por contínuo. Entretanto, não me agasto, minha vida será sempre cheia desse desgosto e ele far-me-á grande”.85

Lima parecia cético diante da filosofia que orientara sua família — de que a educação era o verdadeiro fator para a diferenciação social e “embelezamento”. Não só a loucura do pai e o abandono da faculdade representavam uma danação; também sua profissão de amanuense o deixava descrente em relação às possibilidades que aquele novo Brasil oferecia. Ele não passaria de um “contínuo da República”. E conclui a reflexão: “Quando me julgo — nada valho; quando me comparo, sou grande. Enorme consolo”.86 Em outro trecho, sentenciaria de maneira sintética: “É triste não ser branco”.87

O certo é que Lima cobrava um preço alto de si. Tornava-se cada vez mais ressentido, demandava reconhecimento de seu valor no trabalho, em casa, junto dos amigos. O outro lado dessa história é a constatação da discriminação, que produz nele a sensação do bovarismo que Lima tanto estuda: de estar em outro lugar, de querer estar em outro lugar, de ser jogado para outro lugar. Clara e Lima padeciam do mesmo mal, na teoria e na prática.

Revolta da Vacina. Todos contra a República

Não seria justo e muito menos correto dar a Lima só o lugar da vítima; que ele sem dúvida era também. Isto é, se fora obrigado a largar os estudos para cuidar do pai doente e se virara arrimo de família no início da mocidade, Lima não se acomodava na posição de “vencido”. Ao contrário, ia batalhando para se inserir no jornalismo e atuava como freelancer aqui e ali. Ao mesmo tempo, formava e fortalecia a rede de amigos que conhecera na Politécnica, nas associações, ou nos periódicos em que colaborou. Ia lapidando, igualmente, uma postura que desenvolveria durante toda a vida e com consistência: a “do contra”.

Licença médica requerida e conquistada por Lima Barreto já em 1905. Essa viraria uma prática do amanuense: ausentar-se do trabalho por conta dos problemas de saúde.

 

Com esse objetivo, Lima selecionava uma série de alvos, entre eles a República e Rui Barbosa. O amanuense o definia, antes de mais nada, como o algoz de seu pai, por ter sido aquele que assinou o seu documento da demissão e que fez dele um dos primeiros desempregados da República. Rui representava para o escritor, também, o exemplo maior da hipocrisia inscrita na retórica da República. Lima descrevia-o como o suprassumo do patriotismo falacioso, o maior representante do tom hiperbólico e declamatório das elites republicanas, o bacharelismo, o oportunismo político e o símbolo da intelectualidade a serviço do Estado. “Rui, o letrado beneditino das coisas de gramática, artificiosamente artista e estilista, aconselha pelos jornais condutas ao governo […] Até onde leva a retórica; e depois…”88 Contra o agora senador pela Bahia, Lima comentava no dia 14 de janeiro de 1905: “Ontem passei o dia em casa. Um dia bom. Folheei os meus livros, cortei os artigos dos jornais franceses e preguei-os de encontro à lídima prosa de Rui Barbosa. É um perfeito retórico esse tal Rui, glória do Brasil e honra da América do Sul […] Como a retórica exigia, lá vai pura, azulada e radiante”.89

É certo que esse era o Rui Barbosa que Lima criou. Mas combinava com a melancolia em que o escritor se encontrava. E dá-lhe desconsolo protegido pelo sigilo de seu Diário: “É notório que aos governos da República do Brasil faltam duas qualidades essenciais a governos: majestade e dignidade”.90 A bronca com Rui também vira pretexto para, no mesmo trecho, Lima desancar o papel do Estado e da República diante do episódio que ficou conhecido como a Revolta da Vacina. “Eis a narrativa do que se fez no sítio de 1904. A polícia arrepanhava a torto e a direito pessoas que encontrava na rua. Recolhia-as às delegacias, depois juntava na Polícia Central. Aí, violentamente, humilhantemente, arrebatava-lhes os cós das calças e as empurrava num grande pátio. Juntadas que fossem algumas dezenas, remetia-as à ilha das Cobras, onde eram surradas desapiedadamente. Eis o que foi o Terror do Alves; o do Floriano foi vermelho; o do Prudente, branco, e o do Alves, incolor, ou antes, de tronco e bacalhau.”

Lima acusava a política da República, que, diante da revolta popular eclodida no Rio de Janeiro em 10 de novembro de 1904, a qual durou seis dias, só soube responder com “tronco” e “bacalhau”, numa referência aos antigos instrumentos de tortura e humilhação de escravizados. Formada principalmente pela população pobre do centro e arredores da capital, a revolta reagia à vacinação obrigatória contra a varíola; operação liderada pelo médico e sanitarista Oswaldo Cruz.91 A manifestação era resultado, sobretudo, da falta de comunicação do Estado e da pouca sensibilidade dos seus agentes, que entravam nas casas aplicando injeções sem antes explicar à população os objetivos de tal medida. A incompreensão de parte a parte gerou uma verdadeira explosão social, com direito a quebra de meios de transporte, depredação de edifícios e ataque a agentes higienistas. O governo agiu com violência: decretou estado de sítio, suspendeu direitos constitucionais, prendeu e deportou para o atual estado do Acre os líderes do movimento. A revolta foi finalmente controlada, mas o saldo restou ambivalente: de um lado, a doença foi erradicada na cidade com um êxito extraordinário; de outro, chegou a trinta o número de mortos durante a rebelião e a 110 os registros de feridos.

Aí estava mais uma vez a “vertigem” descrita por Euclides da Cunha; o descompasso entre as diferentes partes do país. Não há dúvidas de que era necessário priorizar a saúde da população; mas a desinformação pagava um preço alto demais. O problema era agudo. Desde o fim do século XIX viajantes, jornalistas, literatos, médicos e cientistas sociais andavam atentos à grande incidência de moléstias tropicais e às enfermidades, que, segundo eles, haviam sido geradas pela entrada de escravos africanos e imigrantes nas cidades.92 Isso jamais foi comprovado, contudo os dados oficiais revelavam que era crescente a taxa de óbitos acarretada por doenças de perfil epidêmico.

Óbitos, por moléstias, registrados no Distrito Federal (1908-12)
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

 

O município do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, em 1904 contava com uma população de 771276 habitantes. Em 1906, de acordo com o recenseamento realizado em 20 de setembro, o número de habitantes passou a 811443, sendo 625756 domiciliados na zona urbana e 185687 na suburbana. A doença que mais matava na cidade era a varíola, causa de 9046 óbitos em 1908, seguida pela tuberculose (3616 óbitos) e pelas moléstias do aparelho digestivo (3309 óbitos).

Já o caso da febre amarela era bastante singular. Data de 1850 sua entrada no Rio de Janeiro. A propagação foi favorecida pelo aumento da população e pela chegada em larga escala de navios negreiros, no ano de extinção do tráfico de escravos para o Brasil. Além disso, as péssimas condições de higiene, os inúmeros pântanos da cidade e o lixo acumulado contribuíram para a multiplicação dos mosquitos transmissores da doença. Em 1852, a febre amarela fez 1943 vítimas no Rio. Entre 1861 e 1864, sem registros de epidemias muito graves, ela quase desapareceu, retornando no final de 1869, e em todo o ano de 1870, quando atingiu centenas de pessoas. Até o fim do século a tendência prosseguiu, sem mudanças estruturais visíveis.

O cenário foi alterado quando Oswaldo Cruz montou um plano de combate, criando o Serviço de Profilaxia da Febre Amarela, em abril de 1903. Segundo Benchimol, a cidade foi repartida em dez distritos. A seção encarregada dos mapas e das estatísticas epidemiológicas fornecia coordenadas às brigadas de mata-mosquitos, que percorriam as ruas neutralizando depósitos de água com larvas do Aedes aegypti. Outra seção expurgava com enxofre e píretro [uma flor que serve como inseticida e repelente natural] as casas, depois de cobri-las com imensos panos de algodão, para matar o mosquito. Os doentes mais abastados eram isolados em suas próprias residências e os pobres iam para os hospitais públicos. As pessoas vitimadas pela peste e outras doenças contagiosas eram conduzidas, com seus pertences, para um dos desinfectórios da cidade e, em seguida, isoladas.93 O problema era, porém, outro, e foi corretamente apontado por Lima: a falta de vontade política da República de esclarecer a população, sobretudo aquela menos abonada, acerca dos riscos das doenças e dos procedimentos necessários para contê-las. Assim, em vez da educação, a saída era a força, que gerou grande reação popular.

Lima, por sua vez, começaria a manifestar, nas páginas de seu Diário, aquela espécie de “mania persecutória” que o acompanharia até o final da vida. Depois de alguns meses sem escrever nenhuma ficção ou ensaio, anotou: “Este caderno esteve prudentemente escondido trinta dias. Não fui ameaçado, mas temo sobremodo os governos do Brasil. Trinta dias depois, o sítio é a mesma coisa […] Um progresso! Até aqui se fazia isso sem ser preciso estado de sítio […]. Durante quatrocentos anos não se fez outra coisa pelo Brasil. Creio que se modificará o nome: estado de sítio passará a ser estado de fazenda. De sítio para fazenda, há sempre um aumento, pelo menos no número de escravos”.94

A escravidão teria acabado oficialmente, mas a violência continuava a existir. Esse é o Lima que não se conforma com a situação vigente e denuncia os maus-tratos aos mais humildes. Quem sabe, mais que tão só uma “testemunha”, no sentido daquele que passivamente anota seu contexto, o escritor não foi virando um dos “artífices” da imagem que hoje se colou à Primeira República: a de uma “República Velha”. Talvez ele andasse ressentido demais para poder reconhecer avanços institucionais e políticos do seu período. Ao contrário, passava a desconfiar das certezas que haviam alimentado o projeto de vida de sua família — a qual sempre se valera da educação como forma de integração. Ainda em seu Diário, Lima anotou: “A capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori. […] A ciência é um preconceito grego; é ideologia; não passa de uma forma acumulada de instinto de uma raça, de um povo e mesmo de um homem”.95