7.

Floreal:
uma revista “do contra”

O ano que passou foi bom para mim. Em geral, os anos em sete fazem grandes avanços aos meus desejos. Nasci em 1881; em 1887 meti-me no alfabeto; em 1897, matriculei-me na Escola Politécnica. Neste andei um pouco, no caminho dos meus sonhos. […] Já começo a ser notado.
— Lima Barreto, Diário íntimo

 

Floreal, n. 2, 1907.

 

Fazendo aquecimento na Fon-Fon

Embora tenha sido obrigado a abandonar o curso da Politécnica, Lima manteve vários amigos dos tempos de estudante, aos quais se somaram alguns que conheceu no serviço público. Os rapazes encontravam-se em geral no Café Papagaio, jogavam muita conversa fora em torno de garrafas de parati, mas também discutiam política, maldiziam os jornalistas e debatiam literatura. O nome que criaram para identificar o círculo masculino e de jovens escritores é prova do humor que os unia; afinal, ali estava a divertida confraria Esplendor dos Amanuenses.

O grupo — de algum modo capitaneado por Lima — se tinha em alta conta. Na avaliação de seus integrantes, eles seriam os “novos”. “Novos” porque se autoproclamavam os genuínos representantes de uma nova literatura; “novos” porque apartados do que consideravam ser os protecionismos da ABL e dos grandes jornais da capital. Na opinião da confraria, o ambiente daquela República das Letras era por demais fechado, até tacanho, e avesso a iniciativas concorrentes. Claro que essa era a percepção de uma geração que ia chegando com muita vontade de ascender, ou, ao menos, de ter chance de mostrar seus trabalhos.

E eles tinham lá suas razões. Formada em boa parcela por jornalistas, a literatura nacional crescia, sobretudo a partir de instituições como a Academia Brasileira de Letras, que funcionava como uma sorte de régua interna a distinguir os mais estabelecidos daqueles que permaneciam como outsiders.1 Já a possibilidade de lançar um livro sem fazer parte desse círculo seleto era de todo restrita, uma vez que as poucas editoras que havia se concentravam usualmente em torno de nomes consagrados. Logo, a maneira mais fácil de apresentar uma obra e ganhar evidência era por meio dos jornais, que publicavam romances em capítulos e na forma de folhetins. Os trabalhos de vários escritores — nacionais e estrangeiros — foram divulgados desse modo, e os de Lima também.2 Aliás, cada vez mais populares, os folhetins vinham sendo promovidos por vários periódicos de grande circulação no Rio. Tramas rocambolescas e episódios picantes tinham como objetivo fisgar a curiosidade do leitor, que ficava preso na narrativa, a qual sempre terminava prometendo novos capítulos para os dias seguintes.

Mas até mesmo esse tipo de oferta era escasso, e as oportunidades disputadas a tapa. Ainda que os jornais se tornassem mais regulares e passassem a contar com um corpo de funcionários fixo e colaboradores afamados, justamente por causa dos artigos e colunas que assinavam, continuava difícil entrar nesse clube, em que todos se conheciam e reconheciam.

Carta timbrada que Lima Barreto endereça a seus colegas da confraria Esplendor dos Amanuenses.

 

Mesmo assim, nosso autor, embora sem ter livro publicado e apenas debutar na vida de cronista, jamais baixava suas altas expectativas com relação à literatura. Como vimos, no dia 12 de janeiro de 1904, em seu Diário, o amanuense registrava que estaria escrevendo uma “espécie de Germinal negro”, com uma “psicologia especial” e um “sopro de epopeia”. O drama seria tão “sombrio, trágico e misterioso, como os do tempo da escravidão”. A ideia de escrever sobre a escravidão não era nova; fazia parte do espírito de época e da tentativa de dar conta desse sistema, ainda mal analisado e estudado, de nossa história. Novo era o grau de comparação e o acento do projeto. Lima usava como parâmetro o romance de Émile Zola, Germinal, publicado em 1885, cujo mote é uma greve de trabalhadores provocada pela redução de salários. Nela, o escritor francês denuncia as circunstâncias desumanas em que vivem os mineradores, além de descrever os primórdios do que seria a organização política e sindical da classe operária e experimentos anarquistas. E, no seu Diário íntimo, o morador de Todos os Santos confessava: “Como exija pesquisa variada de impressões e eu queira que esse livro seja, se eu puder ter uma, a minha obra-prima, adiá-lo-ei para mais tarde”.

O rapaz deixava claro, pelo menos no espaço protegido da sua privacidade, que pretendia encontrar seu lugar na literatura a partir de uma narrativa de fundo histórico e que retomasse os tempos da escravidão; “essas ideias” que o “perseguem”. Tencionava “pintar e fazer a vida escrava com os processos modernos do romance, e o grande amor que me inspira — pudera! — a gente negra, virá, eu prevejo, trazer-me amargos dissabores, descomposturas, que não sei se poderei me pôr acima delas”. Essa seria sua utopia, sua definição de literatura, uma “literatura negra” porque impactada pelas estacas da escravidão. Mas, “até lá”, escrevia ele, “meu Deus!, que de amarguras, que de decepções! Ah! Se eu alcanço realizar essa ideia, que glória também! Enorme, extraordinária e — quem sabe? — uma fama europeia”.3

Do alto da sua juventude, aos 23 anos, Lima não escondia pretensões. Seria um escritor da saga dos afrodescendentes, a despeito de temer pela reação: “Dirão que é o negrismo, que é um novo indianismo, e a proximidade simplesmente aparente das coisas turbará todos os espíritos em meu desfavor; e eu, pobre, sem fortes auxílios, com fracas amizades, como poderei viver perseguido, amargurado, debicado? Mas… e a glória e o imenso serviço que prestarei a minha gente e a parte da raça a que pertenço. Tentarei e seguirei avante. ‘Alea jacta est’. Se eu conseguir ler esta nota, daqui a vinte anos, satisfeito, terei orgulho de viver! Deus me ajude!”.4 Como se percebe, suas projeções pessoais não eram pequenas: escrever um novo Germinal, ganhar fama na Europa, terminar uma obra-prima, adotar o negrismo como filosofia e escrever com jeito de indigenismo; não o romântico, mas aquele que descrevia valores locais e incluía a história dos africanos que chegaram forçadamente ao Brasil. Ao mesmo tempo, ficam claros temores que se revelarão presentes ao longo da carreira do autor. Lima, que apostava muito em sua literatura e em seu futuro como escritor, não era um franco-atirador. Já nesse contexto tinha a certeza de que “sua cor” e o fato de seus avós terem sido escravizados lhe causavam grande prejuízo social. Segundo ele, eram tais precondições que geravam “fracas amizades” e frágeis possibilidades de contar com “auxílios” e proteções privados.

Leve, irônica e crítica, a Fon-Fon carregava já no seu logotipo a experiência motorizada da nova modernidade urbana, 1907.

 

Lima guardava uma atitude tão ambivalente diante de tudo e de todos, que desfazia até dos próprios integrantes da turma. Também no Diário, no mesmo ano de 1904, ele conta que seu amigo Bastos Tigre era “um tipo de literato do Brasil […], inteligente, pouco estudioso, fértil, que usa da literatura como um conquistador usa das roupas — adquirir mulheres, de toda a casta e condição”. Domingos Ribeiro Filho, com quem frequentava, entre outros, o Clube dos Democráticos, uma das três grandes sociedades que regiam o Carnaval local, tampouco se saía bem no escrutínio de Lima.5 Na definição dele, Domingos, natural de Macaé,6 era um escritor “daqueles que pensa [sic] que o literato deve ser o inimigo do casamento, da moral, das coisas estabelecidas, com tintas de darwinismo e haeckelismo, velhíssimas coisas que ele pensa novas, escreveu um romance rebarbativo e idiota, para fazer constar que é um voluptuoso, um lascivo, e põe-se nas ruas a fazer os mais baixos comentários sobre as mulheres que passam: ‘Que peixão! Que bunda! Oh! A carne!’. Isso! Aquilo! É um imbecil”.

Enfim, embora tivesse uma rede de amigos próximos, Lima não abria mão de se distinguir deles. Com frequência se escudava em sua condição mais remediada, por vezes era a origem afrodescendente que explicava sua situação distinta; em outros momentos, o fato de residir nos subúrbios lhe dava argumentos para se “aproximar” da população dessas vizinhanças, apartando-se dos demais escritores. Eram sobretudo as diferenças sociais que, na própria visão do autor, faziam dele um peixe que nadava fora da marola criada pelo grupo.

De toda forma, 1907 começou prometendo, e muito. Nesse ano Lima foi convidado a tomar parte de uma nova iniciativa literária: a revista Fon-Fon, que já surgia badalada.7 Seria uma boa oportunidade para ele se jogar de vez na carreira de jornalista, que consistia, como vimos, num passo fundamental para chegar à “grande literatura”. Lançada no dia 13 de abril, a revista rapidamente ganhou a simpatia do público carioca por conta de seu tom leve, engraçado e informativo. Fon-Fon assim se definia: “Semanário alegre, político, crítico e esfuziante; noticiário avariado, telegrafia sem arame, crônica epidêmica; tiragem: cem mil quilômetros, por ora; colaboração de graça, isto é, de espírito”.

A revista trazia no título o barulho da buzina dos novos carros e tinha tudo a ver com os ares de modernidade dos cariocas. Não se sabe bem por que o poeta simbolista, criador de vários periódicos e um dos fundadores da Fon-Fon, Mário Pederneiras, convidou Lima para atuar como secretário de redação do semanário.8 Sabe-se, porém, que tentou convencê-lo com o argumento de que devia abandonar a colaboração no que se chamava, na época, de imprensa burguesa; qual seja, os jornais em boa parte nascidos no fim do XIX e início do XX, e que nesse período já se encontravam estabelecidos, como a Gazeta da Tarde, Diario de Noticias, Cidade do Rio, Gazeta de Noticias e Correio da Manhã.

Nessa altura, Lima não era um desconhecido. Basta lembrar da série de crônicas chamadas “O subterrâneo do morro do Castelo”, que publicara no Correio, com relativa repercussão. No entanto, e mesmo assim, nas rodas de amigos ele costumava atacar as publicações “binoculares”, numa referência às colunas sociais, as quais faziam grande sucesso no momento, que só olhavam de longe, e de maneira superficial, para a realidade bem defronte de seus próprios olhos.

Lima aceitou o convite de Pederneiras, que lhe permitiria manter a posição de amanuense. Mas sua passagem pela Fon-Fon acabaria sendo rápida. Por lá permaneceu nove meses — três dos quais como secretário de redação —, deixando uma carta de demissão da qual hoje só conhecemos o rascunho. Nela, lamenta que o semanário não oferecesse mais oportunidades, atribuindo a culpa em parte a si, em parte à direção. Lima era sempre assim: a princípio compreensivo e depois sinceramente agressivo. “Vejo que as coisas minhas não agradam”, lastimava-se. E acrescentava: “ficam à espera enquanto as de vocês nem sequer são lidas, vão logo para a composição”. É difícil entender como não conseguia publicar seus artigos se era secretário de redação. O fato é que sua atitude continuava ambivalente: ele se movia entre considerar-se inserido e ter certeza de que era preterido. Tanto que afirmava não sentir “ciúme” dos demais; dizia-se de há muito apenas “resignado”.

De todo modo, entre atender o que chamava de “a bondade” de Pederneiras e se demitir, revelando “orgulho”, Lima decide dar fim à situação. Diante desse tipo de impasse, punha sempre a culpa em sua história pregressa: “A desgraça não me deixa andar para adiante; eu venho assim desde os sete anos e me resigno perfeitamente, o que é de meu gênio e das minhas origens…”.9 Não havia espaço, concluía Lima, para ele desenvolver um projeto editorial próprio junto à revista. Prova maior foi que, durante o primeiro ano de circulação da Fon-Fon, não publicou mais que três crônicas, e, mesmo essas, um pouco escondido atrás dos pseudônimos de Phileas Fogg e S. Holmes.10 Também a escolha dos nomes não parece coincidência. Phileas Fogg é o protagonista do romance A volta ao mundo em oitenta dias (1873), de Júlio Verne. Homem de poucas palavras, enigmático e pontual, é frio e econômico nos gestos. Já Sherlock Holmes é o célebre detetive criado pelo médico e escritor inglês Sir Arthur Conan Doyle, que ganhou fama pela maneira como resolve seus casos: a partir da lógica dedutiva e do método científico.

Detalhe de foto de conferência promovida pela Fon-Fon em 1907. Entre os vários colaboradores da revista encontra-se, muito provavelmente, Lima Barreto, que aparece mais à esq. na terceira fileira. (A identificação foi feita por Felipe Botelho Corrêa, que publicou o documento na seleção de crônicas de Lima organizada por ele em 2016.)

 

O então secretário da Fon-Fon selecionou, assim, dois personagens famosos da ficção; ambos bastante sóbrios no comportamento, originais na atuação. As crônicas de Fogg e Holmes são críticas à situação do Brasil e contrárias aos bovarismos; ou seja, a adoção de uma cultura postiça, pelo simples fascínio pelo que é estrangeiro. Em “Falsificações”, Lima detona a mania dos consumidores de evitar “gêneros perfeitamente puros” e preferir os “falsificados”: “Nosso irrepreensível! apóstolo, no sacrossanto intuito de mostrar a sua perfeita solidariedade com os animais, não come carne nem peixe, e usa botas de pano com solas de borracha […] E porque lhe constasse que nos Estados Unidos se falsificavam artefatos de borracha com a pele e tecidos dos pretos linchados, o altruístico vice-diretor submete à prova infalível da análise as sandálias […] as botinas que vai calçar. Os falsificadores são terríveis…”.11

Talvez tenha sido a decepção perante a Fon-Fon o que animou Lima a investir numa publicação própria. Nela, ele não se esconderia mais atrás de pseudônimos e não veria seus artigos esperando na gaveta ou sendo preteridos em nome de outros colaboradores. Ao menos, foi o que Lima alegou na carta de demissão endereçada a Mário Pederneiras, em seu já conhecido movimento de recuar e atacar. Quem sabe por isso mesmo ele tenha encontrado um final titubeante para a sua mensagem: “Não me gabo de ser lá grande escritor […] entretanto, tenho feito esforços, neste e naquele gênero, para os agradar. Fantasio, imagino, faço química, escrevo pilhérias… não há meio!…”.12 Lima não tinha certeza, mas imaginava, e muito.

Floreal: Lima Barreto, o faz-tudo

Mas, apesar da frustração com a Fon-Fon, o momento não era de todo mau. Ao contrário, parecia anunciar bons projetos. Em 1908, nas anotações que deixou em seu Diário íntimo, o escritor realizou uma espécie de balanço do ano anterior: “5 de janeiro. O ano que passou foi bom para mim. Em geral, os anos em sete fazem grandes avanços aos meus desejos. Nasci em 1881; em 1887 meti-me no alfabeto; em 1897, matriculei-me na Escola Politécnica. Neste andei um pouco, no caminho dos meus sonhos. Escrevi quase todo o Gonzaga de Sá, entrei para o Fon-Fon, com sucesso, fiz a Floreal e tive elogio do José Veríssimo. […] Já começo a ser notado”.13

Se Lima queria começar a “ser notado”, 1907 fora de fato um ano que anunciava bons prognósticos. No Diário ele esquece dos contratempos experimentados na Fon-Fon, menciona a conclusão de seu primeiro romance e ainda inclui a revista que passaria a dirigir: a Floreal. Bem a seu estilo, e desenvolvendo muitos projetos ao mesmo tempo, além de Gonzaga de Sá escrevia em ritmo acelerado Recordações do escrivão Isaías Caminha e apostava firme na possibilidade de uma nova publicação, mais combativa que as demais.14 Não se sabe muito bem como foi concebido o periódico. Mas com certeza foi desenhado nas mesas do Café Jeremias, ou do Café Papagaio.15 Era nesses locais que se reunia regularmente o grupo de Lima, que, além de se reconhecer como “boêmio”, guardava singularidades no humor. Bastos Tigre, Emílio de Meneses, Raul Pederneiras e Lima Barreto compunham outra confraria — a “confraria humorística” —, fazendo trocadilhos, desafios e, no caso de Calixto, que também frequentava as mesas do café, caricaturas bem-humoradas.

O café tornou-se quartel-general do grupo, que batizou de Floreal sua nascente publicação, em homenagem ao oitavo mês do calendário revolucionário, decretado em 1793 pela Convenção Francesa, e que lembrava a primavera e a liberdade dos povos. Lima também costumava destacar que havia nascido em maio: o mês das flores.

Em torno da revista reuniram-se alguns dos amigos mais chegados do autor — como Antônio Noronha Santos e Domingos Ribeiro Filho —, mas também colegas um pouco distantes, como Manuel Curvelo de Mendonça (bacharel em direito e jornalista) e Fábio Luz16 (médico e literato que concorreu várias vezes à ABL , sempre sem sucesso), ambos do círculo anarquista que Lima viria a frequentar anos depois.

A ideia tomava forma, e logo ficou estabelecido que Lima coordenaria o projeto. O escritor continuava ganhando a vida como amanuense, e apenas aceitou o desafio, comentava ele de forma debochada, porque nenhum deles tinha “pai livreiro”. O objetivo da revista não era nada velado: os redatores queriam ver seus artigos publicados e assim saber se eram, afinal, “burros ou inteligentes, geniais ou medíocres”.17

Pois bem, no dia 25 de outubro de 1907, um sábado, chegava às mãos do público carioca uma nova revista, cujo editor e diretor era Lima Barreto. Apresentando um formato pequeno, 15 × 22 cm, Floreal surgia para disputar o gosto dos leitores da capital. Sua meta, assim definiam os redatores, consistia em “escapar às injunções dos mandarinatos literários […] ao formulário das regras de toda a sorte”.18 O alvo declarado era a Academia e o que julgavam ser uma literatura muito pautada por regras gramaticais distantes da linguagem do povo. Com certeza, tratava-se da ousadia dos “jovens”, que vinha acondicionada com muito desejo de épater le bourgeois. Os rapazes pensavam alto: queriam competir por uma fatia do mercado de veículos impressos, o que se revelaria tarefa árdua numa época em que os jornais iam ganhando em recursos financeiros e técnicos também. Os jornais que circulavam no Rio nesse momento eram, em geral, mais bem diagramados; contavam com fotos, ilustrações, caricaturas e projeto gráfico caprichado; e, portanto, pouco pareciam com brincadeira de amadores e iniciantes.

Capa e contracapa do n. 1 da Floreal, 1907. O nome de Lima Barreto aparece em destaque.

 

Além do mais, era crescente o número de periódicos disponíveis na capital: se entre 1890 e 1899 surgiram quinze jornais no Distrito Federal, entre 1900 e 1908 esse número mais que triplicou, chegando a 52 novos empreendimentos. Apenas em 1907, ano de lançamento da Floreal, apareceram oito. A natureza desses jornais de início do século XX (e até 1908) era bem variada, sendo eles divididos em noticiosos (36), literários (22), científicos (24), religiosos (onze), almanaques (sete), didáticos (quatro), humorísticos (quatro), estatísticos (quatro), comerciais (seis), espíritas (três), esportivos (dois), anunciadores (três), infantis (dois), históricos (três), industrial (um), marítimos (dois), militar (um).19 Tal crescimento refletia o anseio de informação de um público urbano e a emergência de uma classe média com interesses culturais mais definidos.20

A Floreal, sem contar com ilustrações internas e carente de tudo — de uma máquina administrativa e industrial, de recursos financeiros e de uma equipe de escritores consagrados —, teria assim um difícil caminho a percorrer a fim de ganhar a atenção do leitor carioca, que possuía um cardápio bastante farto à disposição.

De toda maneira, no dia 26 de outubro de 1907, o Jornal do Brasil noticiava de forma simpática e camarada o aparecimento de uma revista literária dirigida pelo sr. Lima Barreto. Ela “traça, com bastante humour, o seu programa. Tem boa colaboração e é trabalhada com esmero, até na parte material”.21 O jornalista não se enganara a respeito do “humor” presente na nova publicação. Especialmente na segunda parte, chamada de “Revista da Semana”, tudo era repassado de modo irônico: personalidades, eventos, situações, nada escapava da pena afiada dos rapazes.

No entanto, enganava-se quem achava que a filosofia a animar o grupo era apenas fazer graça. Ao contrário, na redação da Floreal estava um grupo que pretendia ir longe e alçar voo. A redação foi instalada modestamente numa saleta no centro da cidade — rua Sete de Setembro, 89, primeiro andar —, atrás de uma alfaiataria frequentada por um dos membros do grupo: Mário Tibúrcio Gomes Carneiro, estudante da Faculdade de Direito.22 O projeto representava, sobretudo, a materialização de uma espécie de plataforma comum, idealizada, mais particularmente, por Lima, que tinha então 26 anos. Dirigir sua própria revista e fazer dela um instrumento de intervenção — e de sua apresentação — na sociedade literária carioca era o sonho maior do jovem amanuense. Até porque, naquela altura, ele ainda não se destacara entre os literatos da capital, e não havia publicado um romance sequer. Mas a Floreal significava também um esforço de equipe, um empreendimento geracional e de amigos. O preço da revista era baixo — quinhentos réis —, “de amigo”, mas, mesmo assim, a revista só veio a lume porque cada “sócio” se dispôs a contribuir com uma cota de 10 a 20 mil-réis mensais.23

O estilo da revista lembra muito o de Lima e seu grupo, que, nas animadas reuniões realizadas nos cafés, ironizavam o “perfil sensacionalista” dos demais jornais, os quais, sem meias palavras, eram chamados de “imprensa burguesa”, interessada apenas em sucesso comercial e nas altas tiragens. A nova publicação, por sua vez, pretendia denunciar o periodismo em voga, feito “de mágica, com encantamentos, alçapões e fogos de bengala”.24 A ideia era, pois, fazer da Floreal um noticioso “por oposição”: eles seriam em tudo contrários aos demais, não teriam preocupações mercantis, apresentariam as notícias de modo isento e mais próximo do que diziam ser o “interesse popular”.

Lima tinha tal influência e presença na revista que, das 39 páginas do primeiro número, ele comparecia em dezessete, e nas duas partes da publicação: no noticioso e nos artigos especiais. Além disso, seu nome estava grafado na abertura, em letras maiúsculas, em negrito e bem no centro da página. Com o intuito de assinalar, logo de início, a que vinha o periódico, já no artigo de abertura se apresentava uma sorte de plataforma. Nos termos do grupo, consistia num projeto “individualista”, em que cada um poderia, “com a responsabilidade de sua assinatura, manifestar as suas preferências, comunicar as suas intuições, dizer os seus julgamentos”.25 Mais uma vez, a personalidade da revista não diferia da de seu editor, que lhe imprimiria um caráter afirmadamente autoral. Ela era “individualista”, pois o que se pretendia não era dar publicidade a uma nova estética de vanguarda, mas sim, e sobretudo, aos seus redatores. Por outro lado, partindo do princípio de que se tratava de uma empreitada coletiva, não só os editoriais como alguns dos artigos — muitas vezes de autoria de Lima — eram escritos no plural e assim partilhados pelos colegas.

No editorial de abertura, por exemplo, o diretor explicitava as diretrizes adotadas pela revista, bem como as razões de sua publicação: “Não se destina, pois a Floreal a trazer a público obras que revelem uma estética novíssima e apurada; ela não traz senão nomes dispostos a dizer abnegadamente as suas opiniões sobre tudo o que interessar a nossa sociedade”.26 No entanto, a despeito do fôlego anunciado pelos redatores, ao empreendimento faltavam grandes nomes, desenhos, e as fotogravuras que começavam a ser facilmente encontradas nas páginas em cores com chapadas de vermelho estampadas nos demais periódicos da época. O grupo e acima de tudo o diretor da Floreal também careciam de um maior capital de relações, tanto no meio literário como entre as elites locais que poderiam bancar uma iniciativa como aquela.

Aliás, tendo em vista as poucas credenciais de Lima, só se pode explicar a escolha do nome dele para a direção da revista em função de seu caráter ativo e empenhado, que não era segredo para ninguém. Se faltava tudo, sobrava vontade. Por isso, a estratégia seria, mais uma vez, a da contraposição. Ou seja, construindo seus dragões na grande imprensa — por eles considerada de todo estrangeirada —, a Floreal, como se fosse um Dom Quixote, viria se bater pelas questões mais propriamente nacionais. A ideia era que, sem buscar exatamente uma nova estética, eles se opusessem “aos mandarinatos literários”; aos “protegidos”, aos “preconceituosos”, aos “preguiçosos acomodados às regras”.

A Floreal assumia, assim, um tom de grupo e anunciava logo no início dos trabalhos certa atitude de combate, mas com respeito. Porém, já na apresentação da revista, as propostas citadas iam todas na direção contrária. Por exemplo, a maneira de definir os demais jornais em circulação significava quase uma declaração de guerra. Chamados de “féerie”; de “cinematógrafos”, por causa da brevidade das notícias, os jornais da capital eram todos transformados em caça-níqueis burgueses.27 Já a Floreal teria surgido para ser diferente. O estilo seria direto, pouco acabado como forma escrita, as opiniões plurais e baseadas na contribuição livre de seus colaboradores. Também não aceitariam o que denominavam “teoremas da arte”; ou seja, as fórmulas literárias que consideravam fechadas e preconcebidas.

Enfim, se não existia programa ou plataforma absolutamente fechada, o que parecia integrar o grupo eram as garras da nova geração. Mas sem afugentar o leitor. Nada de “estúpidas hostilidades preconcebidas”, pois “o antigo se encadeia no novo, o novo no novíssimo, e […] quando mesmo isso não se dê, ambos podem coexistir, por mais antagônicos que sejam”.28 Contudo, mesmo com as armas encobertas — para evitar o conflito em campo aberto — a Floreal não deve ter agradado os colegas jornalistas e escritores. O periódico vinha carregado de empáfia e dizendo tudo por meias palavras. Não conseguia esconder que seu fito, afinal, era combater uma imprensa que julgava burguesa e dada a amenidades, e um grupo literário igualmente voltado para a vida social.

No número de estreia da revista, por exemplo, apareciam as seguintes matérias: um “diálogo” a respeito da nova moral sexual, de autoria de Antônio Noronha Santos; o prefácio e o primeiro capítulo do que seria o romance inaugural de Lima Barreto — Recordações do escrivão Isaías Caminha; e o terceiro capítulo do conto “Dia de amor”, de Domingos Ribeiro Filho, antes publicado em duas edições dominicais do Correio da Manhã.29 Para que se possa ter uma ideia, se o artigo de Noronha provocava a moralidade local, pouco afeita a um debate sobre a abertura sexual dos cariocas, a história de Isaías Caminha, como veremos logo mais, atacava de frente a cena jornalística da época — com nomes facilmente identificáveis. Já o conto de Domingos acabou saindo inteiro na Floreal, visto que seus capítulos foram considerados imorais e devidamente censurados pelo Correio.30 Espécie de dramalhão vivido por Pedro e Vera, a narrativa gira em torno de uma paixão tão incontrolada quanto proibida, contada com requintes de sensualidade.

E, se Domingos Ribeiro Filho apenas redirecionou um material que já vinha publicando em outro veículo, Noronha Santos escreveu seu artigo especialmente para a revista. Amigo mais constante de Lima, colega dos tempos do Liceu e da Politécnica, legou uma assídua correspondência com ele, testemunho da amizade que mantiveram pela vida afora. Noronha viveu dos oito aos onze anos em Paris, acompanhando o pai médico. Formou-se bacharel em direito e tentava então entrar no circuito dos jornalistas da capital, a exemplo do amigo. Por isso caprichou no seu primeiro texto para a Floreal, intitulado “Diálogo”. Nele, imagina uma conversa entre dois sujeitos que criticam a prática do uxoricídio — o assassinato premeditado de mulheres por seus maridos e namorados —, bastante comum e relativamente aceito na época.

O adultério foi tema do Código Penal de 1890, e a República classificou-o de crime “contra a segurança da honra e honestidade das famílias”. O ato era punido com prisão celular — confinamento em “células solitárias e individuais” — de três anos para o caso da mulher considerada adúltera. Para o homem, previa-se penalidade apenas no caso em que fosse provada a existência de uma concubina “teúda ou manteúda”, ou seja, um relacionamento estável. Isso porque se regulava por lei a responsabilidade do marido de sustentar a família. Sendo assim, se às mulheres cabia a punição da reclusão, os homens só iam parar na prisão quando a Justiça entendia existir ameaça ao conforto da esposa legítima e dos filhos.31

O artigo de Noronha explicava que a sociedade precisava encontrar outras saídas, distintas do uso indiscriminado da violência.32 A crônica listava diferentes práticas do divórcio e pedia que a sociedade brasileira se abrisse a elas. A abordagem desse tema mostrava a disposição dos redatores de não abrir mão de questões polêmicas e espinhosas em seu contexto.

Agora, exploremos um pouco mais o conto de Domingos Ribeiro Filho, “Dia de amor”. Como vimos, o trecho correspondia ao terceiro capítulo de um livro maior, cuja publicação o Correio da Manhã achara por bem suspender, alegando impedimentos morais. Se tomarmos somente a decisão editorial da revista — de dar continuidade a um material recusado por outro veículo —, já se evidencia seu posicionamento contestador. Mas essa não foi apenas uma escolha de ocasião. São conhecidas as afinidades do diretor do periódico com a temática tratada por Domingos Ribeiro Filho e Noronha Santos. Algum tempo depois, o próprio Lima publicaria seu “Manifesto maximalista”, em que, além de discorrer sobre outros temas, defendia o divórcio como uma das bases para a transformação da sociedade capitalista.

Outra afinidade entre os três colegas de redação era a simpatia com o anarquismo, em especial com as ideias de Kropótkin, um dos líderes do anarquismo e do anarco-comunismo.33 Domingos Ribeiro Filho, na definição de Astrojildo Pereira,34 era um escritor não conformista, extremamente cioso da sua independência. Teria virado “um rebelde por natureza e revolucionário por convicção, e por tudo isso duro no combate a todas as formas e manifestações de farisaísmo intelectual ou de torpeza política”.35

Eram muitas, pois, as compatibilidades entre Lima e Domingos, mas também as discordâncias. Lima Barreto, por exemplo, no terceiro número da Floreal, fez severas críticas ao futuro livro de Domingos, que, lançado em 1907, ganhou o título de O cravo vermelho. Resultado da história publicada aos pedaços, o romance tratava quase que didaticamente, na opinião do amanuense, de temas como o casamento, a infidelidade feminina, o adultério, os crimes da paixão e a violência baseada na questão de honra. A despeito de apoiar a perspectiva combativa de Domingos, e se opor publicamente a atitudes mais conservadoras em relação ao casamento e à família, que considerava instituições burguesas, o diretor da Floreal julgou que a qualidade da obra deixava a desejar. O tema era novo e merecia divulgação, mas a trama concedia demais ao assunto que queria explorar. Ao que tudo indica, Domingos não aceitou bem as reservas do amigo. Muitos anos depois, nos idos de 1938, quando Lima já não estava nem vivo para responder, ele avaliou negativamente a trajetória política do ex-companheiro, o qual, segundo ele, jamais atuara como um “verdadeiro revolucionário anarquista”.36

Esse embate apimentado ainda tardaria, porém, a acontecer. No começo da Floreal, os laços de identidade entre os dois escritores eram maiores que as desavenças. A publicação simultânea de partes de Recordações do escrivão Isaías Caminha e de O cravo vermelho na revista representava um esforço comum no sentido de questionar a imprensa que seus editores consideravam acomodada. Basta lembrar a passagem do futuro romance em que Lima descreve o ambiente da redação de O Globo, disfarce frágil que logo deixa reconhecer o lugar do Correio na trama, além de não poupar os jornalistas da casa: “Não há repartição, casa de negócio em que a hierarquia seja mais ferozmente tirânica. O redator despreza o repórter, o repórter, o revisor; este por sua vez, o tipógrafo, o impressor, os caixeiros do balcão”.37

Na segunda parte — “Revista da Semana” — do primeiro número da Floreal, e mais particularmente na seção “Pretextos”, Lima já destilava o estilo crítico ao discutir algumas iniciativas do cenário literário carioca. De acordo com ele, certos escritores, famosos por conta das obras que publicaram ou em função da posição que ocupavam na política e na administração pública, “resolvem reunir-se e fundar uma sociedade, um clube, que dê banquetes congratulatórios e convoque sessões ruidosas”.38 Mais uma vez, o diretor da Floreal desfaz do ambiente literário, definido como um grotesco “bric-à-brac” com seus senhores de casaca desfilando “nas salas elegantes do Cassino e Lírico da Guarda Velha”.39

E Lima vai fechando a coluna com seu célebre desdém: “Singular maneira de melhorar o gosto público e de levantar a cultura da massa!”. Esse era mesmo um modo dileto de se distinguir dos demais escritores, dizendo duvidar que outra “casta” ou “classe” e muito menos esses literatos amassem “o povo” ou achassem nele “poesia, matéria-prima para suas obras”. Com os olhos voltados para o Lírico, para os bondes de Botafogo, para as barcas de Petrópolis ou para os passeios na Tijuca, eles teriam se esquecido de uma das maiores “funções da literatura que é de soldar os grupos de um país uns aos outros” e revelar formas diferentes “de pensar, de sentir, os sonhos, as aspirações particulares a cada qual”.40

Na seção “Jornais e Revistas”, ainda no primeiro número da Floreal, Antônio Noronha Santos comenta um artigo publicado no Mercure de France sobre o cinematógrafo. Mais saudosista que Lima, Noronha Santos parecia acreditar que a nova técnica “devorará talvez o romance, o conto, a comédia, o drama, o poema narrativo”. A revista vai seguindo, no número de estreia, com seus pitacos, mirando tudo que fazia sucesso. Nessa toada, seus editores escolhem como alvo o romance Canaã, do acadêmico Graça Aranha, e junto com ele todos os demais “reformadores da ortografia”. Na seção “Ecos” aparecem pequenas notas humorísticas acerca das atividades de tais literatos, que “acreditaram que pugnavam em prol de uma obra de simplificação e economia”, e um comentário igualmente maldoso sobre o aviador Santos Dumont, verdadeiro herói da vez. O “retrato” que dele faz a Floreal é bem diferente do corrente. Dizem os rapazes que o aviador é “mais conhecido no globo do que a Cléo de Mérode.41 Tem automóvel, frequenta belas mulheres, e aparece nos álbuns…”.42

Enfim, parece que o estilo da revista consistia em dar uma no cravo e outra na ferradura. Diferentemente do tom mais moderado da abertura, a estratégia era provocar, chocar, criticar, e debochar de tudo que fosse mais estabelecido. Qualquer “pretexto” — aliás, título de uma das seções — bastava para desfazer dos que eles consideravam seus “outros”: membros da ABL, literatos de maior proeminência, jornalistas influentes, gramáticos e celebridades da época.

A Floreal era, assim, o produto de um grupo jovem, que se pretendia em tudo diferente e por isso ousava atravessar algumas fronteiras da convenção acertada entre os jornais mais consolidados. Talvez tenha sido esse o motivo por que vendeu tão pouco. E a própria redação tratou de ironizar o tímido sucesso da revista. Na segunda edição, de 12 de novembro de 1907, a avaliação das vendas é iniciada com a reprodução do diálogo ocorrido entre a redação e Tomás Labanca, o distribuidor da Floreal: “— Quantos, Labanca? — Trinta e oito, respondeu o Labanca, com entonação compungida. — 38! Sim, tinham sido 38 os exemplares avulsos, vendidos do primeiro número da Floreal! Trinta e oito — 38 — sobre os 850 mil habitantes da cidade do Rio de Janeiro, por curiosidade, por esquecimento, por qualquer motivo, este aqui, aquele mais adiante […] Trinta e oito heróis eram esses, seguramente, que ousavam assim proceder diante de toda esta heroica cidade, talvez na rua do Ouvidor, à vista do dr. Ataulfo e da Casa Raunier! Uma onda de gratidão nos invadiu a alma. Benditos 38! […] Dignos 38!”…43

Como se pode notar, o fracasso financeiro não comprometeu o bom humor e a atividade dos jornalistas do periódico. No segundo número, a venda avulsa chegou a 82 exemplares, feito por eles comemorado como um grande sucesso.44 Os confrades insistiram na bravata e ainda aumentaram um pouco o tamanho da revista, que passou de 39 para quarenta páginas e ainda mais duas com propagandas. A mudança era quase um detalhe, mas mostrava que o grupo não se intimidara diante do primeiro resultado.

Aliás, também a capa e o projeto gráfico seguiam deixando a desejar. Uma tímida flor lembrando o estilo art déco, mas sem truques maiores, continuava a ser a marca da publicação.

Nesse novo número, a Floreal dedicou o artigo inicial à discussão dos erros e acertos das ideias de Herbert Spencer, filósofo e sociólogo inglês muito identificado ao darwinismo social e especialmente influente entre intelectuais brasileiros. Fiel ao estilo da revista, em “Spencerismo e anarquia” Manuel Ribeiro de Almeida discute o lugar, a extensão e a função do Estado, bem como avalia o papel da sua intervenção administrativa, em longas e um tanto enfadonhas dez páginas. Em seguida, o periódico traz o poema “Face a face”, de João Pereira Barreto. A composição não parece fazer jus ao tom mais arejado que o grupo clamava para si, já que se remete a Deus e sua relação com a natureza. “Sem que jamais por ela um só remorso passe;/ Algo que nos arroube, algo que nos impila,/ E à força desse Deus se oponha face a face”.45

Depois do poema, vinha “História triste”, de Carlos de Lara, conto que reproduz a conversa de quatro amigos durante um baile. Um deles narra sua aventura (ou desventura) ocorrida em Londres, envolvendo Lucy, jovem de quinze anos, loura, alta, delgada, uma criatura “suavemente franzina”, a qual dizia ganhar a vida na rua desde que o pai a entregara a um “homem bruto” que a obrigava a levar dinheiro para casa. O rapaz a acompanha até o quarto, dá-lhe duas libras, e ao sair nota um sujeito em seu encalço, provavelmente o pai. Para piorar a situação, logo percebe que a menina lhe batera o relógio e a corrente!46 Misto de crítica social e autoironia, o conto entra no arranjo orquestral dos rapazes da Floreal tanto pela ousadia do tema e pelo desfecho quanto pelo fato de o autor ser pouco conhecido, até mesmo em seu contexto.

E a primeira parte do segundo número da revista fechava com a continuação da história de Isaías Caminha, que, nas suas quase oito páginas, ia introduzindo novos personagens sob pseudônimos, sempre facilmente “traduzidos” pelos jornalistas atacados. O folhetim, ainda que aos pedaços e publicado num noticioso de baixa circulação, acabaria escandalizando o meio literário local, e selaria a futura má recepção do livro de Lima, como veremos em breve.

Mas os amigos queriam mesmo chocar. Em “Pretextos”, Edmundo Enéas Galvão, pseudônimo de Noronha Santos,47 comenta a dificuldade de serem discutidas questões que envolviam o Exército, como o caso da Lei do Sorteio. A lei havia sido criada em 1906 e instituía o serviço militar obrigatório por meio de uma loteria. Lima, como já sabemos, na época da Politécnica afastou-se da diretoria da Federação de Estudantes depois de a entidade ter encaminhado ao Congresso uma moção favorável à obrigatoriedade do serviço militar. O artigo de Noronha Santos é, porém, bem mais cuidadoso e menos intempestivo. Apesar de ser contrário à ideia, ele se dedica a explicar que a medida visava, entre outras coisas, garantir nas fileiras do Exército não apenas trabalhadores de poucos recursos, como recrutas advindos de todas as classes sociais. Embora tal lei jamais tenha sido aplicada, vale a pena acompanhar a argumentação de Noronha, que pretende salientar os problemas criados pela obrigação militar para os trabalhadores nacionais. Segundo ele, não só faltavam aos brasileiros condições de competição profissional com os estrangeiros, como estes saíam beneficiados, já que não lhes era exigido que servissem ao Exército. E mais uma vez o grupo da Floreal se opunha, nesse caso ao que se considerava uma das benesses da jovem República: o serviço militar.

Em “Questões atuais”, o mesmo autor voltou à carga, abordando novamente o polêmico assunto do sorteio para o serviço militar. Noronha alegava que a prática levaria ao afastamento de grande contingente de braços do setor produtivo, isso sem falar do custeio de manutenção desse pessoal por dois ou três anos. Para ele, tais procedimentos geravam uma “militarização por via direta” e uma atitude oposta àquela da “inteira dedicação à pátria”.48

Como se vê, a revista era de fato uma ação entre amigos e uma conversa pública de ideias que todos partilhavam. Tanto que a seção “Protocolo” foi ocupada com os poucos cumprimentos recebidos pela primeira edição e com uma nota acerca da publicação do romance de Domingos Ribeiro Filho, O cravo vermelho. “É o primeiro de uma série de estudos sociais e morais”, tendo como “mola interior” a questão da importância do estabelecimento de uma regra para nossa conduta à felicidade.49

Por sinal, “amigos” não só dão evidência a seus trabalhos, como se divertem juntos. Em “Ecos”, fazem uma sátira aos costumes da elite brasileira, representada por Mme. de Bulhões Silva, em cuja casa se servia o chá fervendo. E lá ia crítica ao “senhor barão do Rio Branco”, o qual, com sua “alta cultura” e o seu considerável “savoir-faire”, teria que tomar cuidado com os copeiros nacionais, que precisavam aprender a “servir o chá na temperatura certa”. O barão do Rio Branco simbolizava tudo que os confrades mais censuravam: a pose de aristocrata herdada do Império, a pompa de embaixador e os discursos tão extensos como vazios.

O segundo número terminava com muito autoescárnio: os autores davam boas risadas dos mesmos 38 exemplares vendidos e agradeciam àqueles leitores que efetivamente adquiriram a Floreal. Os motivos de a revista não emplacar, embora não fosse cara quando comparada a outras, só não eram evidentes para seus editores. O periódico continuava sem apelo visual, não contava com nomes reconhecidos, era muito voltado para o próprio grupo e, além do mais, não deixava nada em pé.

Teimosos, os redatores mantiveram a estrutura básica no terceiro número. Manuel Ribeiro de Almeida, por exemplo, escreveu um artigo intitulado “A evolução da matéria”, tratando da obra de Gustave Le Bon. Le Bon ficara muito conhecido por suas teorias sobre a psicologia das massas e também pelas máximas acerca da superioridade racial branca. No caso, porém, Manuel Ribeiro nada dizia a esse respeito, optando por resenhar uma obra menos conhecida do cientista, L’Évolution de la matière, datada do ano de 1905, e que lidava com o árido tema de como toda matéria “se dissocia lentamente […] e tudo desaparece aos poucos no éter”. Não deu certo. Novamente, o texto de abertura, a despeito de deveras atualizado para a intelectualidade brasileira, parecia ser muito específico e de difícil leitura para um público mais amplo. Aqui é a ciência que empresta aos amigos de redação a pretensão de serem “novos”.

Floreal, n. 3, 1907.

 

A capa desse novo número, mais elaborada, trazia uma musa com um ramo nas mãos, em destacado estilo art déco, afastando-se um pouco do aspecto por demais gráfico das anteriores. Lima continuava na direção, mas seu nome não constava mais na capa, sendo substituído pela designação “crítica literatura”.

Além do ensaio de Domingos, a terceira Floreal trazia um poema de Otávio da Rocha. Não sabemos se Rocha era mesmo um colaborador, uma vez que nada foi encontrado com esse nome, ou se se tratava de um pseudônimo. Quem conhecemos é Deodoro Leucht, ao qual foi dedicado o poema. O próprio Lima lhe dedicou um conto bastante escandaloso intitulado “Um e outro”, escrito em 1913 e publicado juntamente com a primeira edição de Triste fim de Policarpo Quaresma, datada de 1915. A linguagem e o tema do conto eram semelhantes aos da agenda do grupo, e por isso é importante lembrá-lo aqui, assim como imaginar que fosse da autoria de um dos redatores da Floreal.

Para mostrar como o repertório é comum, basta recuperar o começo de “Um e outro”: “Não havia motivo para que ela procurasse aquela ligação, não havia razão para que a mantivesse. O Freitas a enfarava um pouco, é verdade. Os seus hábitos quase conjugais; o modo de tratá-la como sua mulher; os rodeios de que se servia para aludir à vida das outras raparigas; as precauções que tomava para enganá-la; a sua linguagem sempre escoimada de termos de calão ou duvidosos; enfim, aquele ar burguês da vida que levava, aquela regularidade, aquele equilíbrio davam-lhe a impressão de estar cumprindo pena. Isto era bem verdade, mas não a absolvia perante ela mesma de estar enganando o homem que lhe dava tudo, que educava sua filha, que a mantinha como senhora, com o chauffeur do automóvel em que passeava duas vezes ou mais por semana […] A bem dizer, ela não gostava de homem, mas de homens; as exigências de sua imaginação, mais do que as de sua carne, eram para a poliandria. A vida a fizera assim e não havia de ser agora, ao roçar os cinquenta, que havia de corrigir-se. Ao lembrar-se de sua idade, olhou-se um pouco no espelho e viu que uma ruga teimosa começava a surgir no canto de um dos olhos […] Examinou-se melhor. Estava de corpinho”.50

No caso desse conto de Lima, não eram só os homens que tinham direito à infidelidade; também as mulheres tomavam, aliás, parte ativa em relações do tipo. O terceiro número da revista trouxe ainda um ensaio de Domingos Ribeiro Filho, intitulado “Educação negativa”, com uma crítica à vida moderna, e a continuação de Isaías Caminha, com mais insinuações aos jornalistas da capital, além de um comentário de Juliano Chaves Barbosa, o qual detonava com duas peças de teatro na primeira parte e duas conferências na segunda. O principal alvo era Coelho Neto, um dos idealizadores da ABL, e vítima preferencial de Lima toda vez que o escritor queria acusar algum literato de verborragia ou academicismo. Dizia o artigo, e parece que em nome de todos: “Não suporto o sr. Coelho Neto. Acho-o falsíssimo com seu bucolismo português de zagais e ovelhinhas brancas, de serranas e espigas louras; não tolero o aprumo conselheiral do período, a ênfase, a solenidade, a mania bíblica e os termos sem significação, sem valor algum, para as nossas ideias e sensações atuais, catados aos dicionários”.51 Há quem diga que a desavença entre os escritores começara anos antes. A história da intriga pessoal é mais ou menos esta. Certo dia, Coelho Neto escreveu uma resenha para o jornal O Paiz, elogiando um dos livros de Lima, autor a quem conhecia apenas de nome. Educado, o criador de Isaías Caminha resolveu pagar-lhe uma visita com o objetivo de agradecer pela crítica. Dirigiu-se, então, à residência do futuro acadêmico, onde foi recebido pela criada da casa. Como tinha ordens explícitas de jamais incomodar o patrão, ela foi logo explicando ao visitante que o escritor havia saído. Já Lima achou por bem insistir, o que causou um bate-boca azedo no meio da rua. O dono da casa, interrompido pela confusão, procurou informar-se do que estava ocorrendo. Ao que consta, a empregada descreveu Lima Barreto como um tipo qualquer; um “maltrapilho”. A reação de Neto foi imediata: “Estou, mas não o recebo! Não quero amolações! Vá dizer!”. Quando a criada foi transmitir o recado, já não encontrou o editor da Floreal, que com certeza ouviu os comentários. Tempos depois, impressionado com os textos ferinos que Lima entregava a seu respeito, Coelho Neto soube da “grosseria involuntária” que cometera, e tentou uma reaproximação. Mas era tarde demais; o escritor de Todos os Santos não costumava levar desfeita para casa.52

A despeito do escárnio dos rapazes, a revista passava por sérias dificuldades financeiras e contava agora com poucos artigos e colaboradores. Por isso, os editores recorriam mais e mais a nomes pouco conhecidos. As contas não fechavam, e no dia 5 de janeiro de 1908, fazendo um balanço do ano anterior, Lima segredou nas páginas de seu Diário: “A Floreal vai mal”. Mesmo assim, e na mesma nota, comentou que o período não havia sido de todo ruim. Continuava escrevendo bastante, e nas vésperas do Natal encontrara José Veríssimo — o grande crítico literário da época. Tinha ido visitá-lo junto com Manuel Ribeiro. E segue o relato: “Recebeu-nos afetuosamente. Ribeiro falou muito, doidamente, difusamente; eu estive calado, ouvi, dei uma opinião aqui e ali. Deu-me conselhos, leu-me Flaubert e Renan, aconselhando aos jovens escritores. Falou da nossa literatura sem sinceridade, cerebral e artificial. Sempre achei a condição para obra superior a mais cega e mais absoluta sinceridade […] Concordei, porque me acredito sincero. Sê-lo-ei? Às vezes, penso ser; noutras vezes, não. Eu me amo muito; pelo amor em que me tenho, com certeza amarei os outros. A Floreal vai mal”.53

Essa nota contém vários elementos importantes. Não poucas vezes Lima desfazia dos amigos e elevava a si próprio. Um elogio de Veríssimo devia significar muito então, ser digno de moldura;54 portanto, não é de todo estranho o fato de o escritor se vangloriar. Ao mesmo tempo, parece um tanto constrangedor que ele confessasse “se amar muito”. Talvez fizesse uso da máxima cristã: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Quem sabe, naquele momento ele ainda fosse muito confiante em si e em suas potencialidades.55 De toda maneira, um projeto bastante claro e certa arrogância, ao menos um bem-querer, não faltavam. As condições materiais é que não ajudavam, e seu primeiro investimento pessoal estava prestes a fechar.

Claro que Lima não poderia saber que a quarta edição da Floreal, de 31 de dezembro de 1907, seria também a última. E ela foi, paradoxalmente, a maior em número de páginas: 56 no total. O humor e a chacota, tão comuns à revista, permaneciam lá, assim como a crítica a personalidades literárias da época. Nesse número publicou-se um “Pequeno almanaque de celebridades”, com biografias breves e nada enaltecedoras de homens de letras. Aparecem ressalvas a Afrânio Peixoto, Curvelo de Mendonça e Pinheiro Machado, de quem se diz, por exemplo, que era “senador e chefe do Bloco. Um dos muitos brasileiros que aprenderam português pelo método ‘Berlitz’”.56

A edição foi preenchida pelos temas do grupo e por textos de seus representantes. Domingos Ribeiro Filho respondeu à crítica de Lima sobre o romance O cravo vermelho, reafirmando seu anticatolicismo. Mas a camaradagem continuava em alta, e Domingos endereçava o ensaio ao “Barreto amigo”. Falou-se ainda, e mal, de Na Estacada, panfleto quinzenal recém-lançado por Sílvio Romero e Lopes Trovão no Rio de Janeiro entre 1907 e 1908. Publicação modesta, que saía nos dias 10 e 25 de cada mês num fascículo de dez páginas, e de impacto pequeno, o folheto não escapou, porém, da reação dos redatores da Floreal, que o definiram como “recheado de latim e escrito numa maneira um tanto arqueológica para os nossos vinte e tantos anos”.57 Como se vê, marcar a geração era também uma estratégia do grupo, do mesmo modo que afirmar inconformismo diante de qualquer escrita mais acadêmica e repleta de “passadismos”.

Último número de Floreal, datado de 31 de dezembro de 1907.

Exemplo de projeto gráfico utilizado como padrão da Floreal, 1907.

 

Mas a crítica social foi talvez o maior cimento a unir os rapazes da Floreal, os quais faziam troça das colunas sociais de sucesso — como a “Binóculo”, de Figueiredo Pimentel, que inaugurou esse gênero de grande perenidade e influência no país, e que já na época trazia notas de aniversário, bilhetes de amor e comentários sobre a vida elegante do Rio. Tal mundanismo desgostava profundamente o grupo, que não cansava de enaltecer seu próprio engajamento e perfil de exceção.

Reconhecido pelos editores, o malogro da Floreal seria debatido no último número, em que confessavam que os distribuidores não tinham interesse naquele tipo de revista e por isso a colocavam debaixo das publicações mais famosas: “os cotidianos [sic] sagrados e as revistas respeitavelmente paleontológicas”. E terminavam jogando o pano branco: “O nosso caso é eloquente. Cada um de nós passa junto de um vendedor e não vê a Floreal; quando se recolhe a edição, venderam-se trinta e oito exemplares. Que se há de fazer?…”.58

A capa do número final saiu mais caprichada, com letras art nouveau e um desenho em primeiro plano: uma mulher segurando o ramo de flor que dava nome à publicação.

O interior da revista também se sofisticou, recebendo uma diagramação mais cuidadosa e desenhos que representavam musas estilizadas. Mas era tarde demais. Já no segundo número, o próprio distribuidor, Tomás Labanca, fazendo um balanço das vendas do primeiro, ajuizava: “A capa matou muito…”. Quiçá Labanca não conhecia bem, ao menos não profundamente, o grupo e o idealizador da revista. Na verdade, fazia parte do modelo preconizado pelos rapazes valer-se do conteúdo e ganhar proeminência apenas a partir deste. O projeto previa evitar os truques “caça-níqueis”. Pretendiam também conquistar os leitores por meio de teorias e artigos que os identificassem com tudo que havia de novo em matéria de filosofia, literatura e ciência.

Entretanto, em vez de granjear adeptos de peso, a revista passou a contar com colaboradores tão desconhecidos quanto seus idealizadores, ou mais. Do último número da Floreal participaram, além de Lima, Domingos e Manuel Ribeiro, nomes hoje pouco mencionados pela crítica: João Pereira Barreto, Chaves Barbosa, Gilberto de Morais, Juliano Palhares. Esse também deve ter sido um dos motivos da escassa receptividade da publicação, que, não conseguindo engajar autores mais renomados, tomou como estratégia desfazer deles.

A Floreal teve a duração de dois meses e quatro números. O grupo imaginou que existiriam no mercado nacional espaços para um periódico sóbrio, fincado na crítica literária séria. Mas a desvantagem diante das demais publicações foi mortal. Seus redatores entendiam a leitura como uma atividade emancipatória; pena que, na sua grande maioria, o público leitor não concordasse com eles.59

Com um olho nas vanguardas europeias, os colaboradores da Floreal usaram como modelo, aparentemente, a revista Mercure de France, que o grupo não só seguia com assiduidade, como fez questão de resenhar no primeiro número. A ordenação das seções; os artigos mais analíticos na primeira parte; a “Revista da Quinzena” na segunda, a seção “Ecos” e a “Revista da Semana”, que depois passou a se chamar “Revista da Quinzena”: tudo deixava transparecer o diálogo com aquela publicação fundamental na cena cultural da Europa.

Mais uma coincidência ou indício. A Mercure, em seu número de setembro de 1907, trazia a resenha de uma revista de Luxemburgo cujo título era, justamente, Floreal.60 De toda maneira, se o acaso não explica tudo, o periódico brasileiro objetivava apresentar a mesma rebeldia estética praticada pela Mercure de France, também conhecida como Revue des Deux Mondes des Jeunes.

A revista francesa, que nasceu ainda no XVII como Le Mercure Galant,61 publicava obras originais, resenhas e informações mais mundanas, partituras, crítica musical, teatral e literária de Paris, bem como notas variadas sobre costumes sociais. Passou a se chamar Le Mercure de France em 1724, e seu ressurgimento reuniu escritores que assinalavam mudanças geracionais, encetando uma espécie de batalha contra o “antigo” e o “ultrapassado”.62 Sorte de insurreição literária, exaltava agora a abertura para novas formas de construção do romance. Foi em 1889 que a revista Le Pléiade, após seu quinto número, apropriou-se do nome Mercure de France e se pôs a rivalizar com outras publicações, como a Revue de Paris e a Revue des Deux Mondes. Para se contrapor a elas, denominou-se Revue des Deux Mondes des Jeunes, herdando um público consolidado mas garantindo, já no título, a geração que dali em diante lideraria o empreendimento. Cada número trazia crônicas, poemas, excertos de romances inéditos, além de crítica de arte e literatura. Havia seções fixas como “Les Livres”, com resenhas de obras recém-lançadas; “Journaux et Revues”, que continha um balanço dos jornais franceses; e “Échos Divers et Communications”, na qual a revista buscava dialogar de forma direta com seu público leitor. A publicação dedicava-se, ainda, às artes, às ciências e à filosofia, e apostava nas novas tendências. Talvez por isso tenha traduzido Nietzsche, já em 1893, seguindo a voga que o filósofo inaugurava entre as vanguardas de pensamento.63

Enquanto isso, a versão tropical da Mercure, a valente Floreal, se não contava com nomes famosos, também se entendia como vanguarda nos temas, nos autores citados e resenhados, na crítica à literatura e ao jornalismo da época, que, de boca cheia, seus editores chamavam de burguês. Não por obra do acaso, a revista saiu num momento em que os jornais ainda andavam inundados pelas notícias da Revolução Russa de 1905. O anarquismo e as novas demandas do movimento operário, que começava a tomar as ruas de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, foram entrando nas páginas da Floreal. E na mala dos imigrantes chegavam também as ideias anarquistas de Bakunin, a literatura de Zola e Tolstói, e o anticlericalismo de Renan.

A circulação de ideias evidencia-se quando comparamos as duas revistas. Há uma diferença abismal, porém: o grupo brasileiro era um tanto restrito e girou, basicamente, em torno de si. No dia 20 de abril de 1914 de seu Diário, Lima comenta o fato de ter andado lendo a Mercure de France no mesmo período em que resolveu escrever seu primeiro livro, Isaías Caminha, e, portanto, no momento de criação da Floreal. Mas agora o tom do relato é totalmente distinto, e em nada lembra o entusiasmo inicial do grupo de amigos. “Hoje, pus-me a ler velhos números do Mercure de France. Lembro-me bem que os lia antes de escrever o meu primeiro livro. Publiquei-o em 1909. Até hoje nada adiantei. Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. O maior desalento me invade.”64

Como se vê, havia muito lastro para pouca vela e o barco adernou, rapidamente. De todo modo, e apesar de sua vida curta, a Floreal representou uma estratégia bem ensaiada da equipe e nomeadamente de seu diretor para tentar sair do anonimato. Se Lima não podia entrar na República das Letras pelo coro dos iguais, faria sua iniciação por meio da alteridade, de maneira “marginal”. A criação da Floreal marca, pois, a estreia profissional do romancista, jornalista e escritor perante o público leitor, assim como inaugura o seu traço fundamental: a contraposição crítica. Havia de entrar nessa República das Letras por outra porta.

Seguiria ainda, e à risca, o que entendeu ser o conselho de Veríssimo. Seria “sincero”, dialogaria diretamente com temas da realidade e faria uma literatura que considerava, nos seus próprios termos, “militante”. Também se inspiraria no realismo russo, leria Flaubert, e adotaria o bovarismo como lema e estratégia literária. Miraria igualmente Dostoiévski e os temas explorados por ele, como a autodestruição, a humilhação dos mais destituídos e a loucura. Existiam inclusive coincidências biográficas: a mãe de Dostoiévski morreu de tuberculose quando ele era jovem, e o pai, embora não apresentasse distúrbios mentais, guardava um temperamento irascível. Além disso, como Lima, que desenvolveria problemas psicológicos graves, Dostoiévski tinha epilepsia, amargou uma relação ambivalente com o pai e logrou manter apenas uma inserção parcial na sua sociedade, desfazendo das elites locais a despeito de querer delas participar.65

O escritor carioca também era leitor assíduo do filósofo e historiador francês Ernest Renan, que, entre outras atividades, colaborava na Revue des Deux Mondes, a qual, como sabemos, estava entre as preferidas de Lima. Renan acreditava no determinismo universal, era anticlerical e anticatólico, só entendendo a crença na sua forma radical e racional, razão por que virou referência obrigatória para agnósticos e ateus. Em 1882 publicou Qu’Est-Ce Qu’Une Nation?, obra crítica ao nacionalismo que teria grande influência nos livros futuros do então amanuense. Em questão estavam o Estado e suas técnicas de construir consensos emocionais; vazios de significado.

Lima cercava-se, pois, de modelos críticos e ia declarando sua guerra, cada vez mais pessoal, à República brasileira e seus representantes. Espelhou-se nesses autores e, como boa parte deles, guardou uma posição ambivalente em relação à prática que mais queria para si: a literatura. Se desdenhava da profissão (e dos colegas de ofício), a entendia como seu ideal, sua missão, sua maneira de projeção.

O fechamento da Floreal não pôs fim ao relacionamento de vários de seus colaboradores. Havia entre eles uma afinidade que poderia ser sintetizada na noção de combate, guerrilha das letras e rebeldia. Esse tipo de concepção surgiria resumido no artigo “Amplius!”, publicado no jornal A Epoca de 10 de setembro de 1916.66 Tal qual um manifesto tardio do grupo, lá estavam as novas regras do jogo que Lima anunciaria quase dez anos depois: “o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros […]. A literatura do nosso tempo vem sendo isso nas suas maiores manifestações, e possa ela realizar, pela virtude da forma, não mais a tal beleza perfeita da falecida Grécia […]; não mais a exaltação do amor que nunca esteve a perecer; mas a comunhão dos homens de todas as raças e classes, fazendo que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens. […] Não desejamos mais uma literatura contemplativa […] Não é isso que os nossos dias pedem; mas uma literatura militante para maior glória da nossa espécie na terra e mesmo no Céu”.67

Nesse “manifesto”, o escritor se posicionava contra o que considerava obstáculos à entrada dos jovens no cenário da literatura nacional.68 Lima andava igualmente motivado pelo desejo de se ver transformado em arauto de um novo momento, e assim exagerava nas tintas.

Uma escrita mais direta, voltada para a conscientização “do povo”, menos “binocular”, era o lema dos rapazes da Floreal, e continuaria sendo a bandeira de seu colaborador mais assíduo. Essa estratégia literária, que previa a exclusão porém queria a inclusão, nunca foi abandonada por Lima. Como veremos, na hora de publicar seu primeiro livro, ele tinha dois textos na gaveta: Recordações do escrivão Isaías Caminha e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Não se sabe ao certo por que pendeu para o primeiro, mas sem dúvida foi a escolha mais coerente com a postura do escritor que queria “ser notado” e construía sua “persona literária” e seu projeto literário na oposição.69 Isaías Caminha pretendia épater la bourgeoisie, sobretudo aquela vinculada aos jornais mais estabelecidos da capital. De fato, bateu pesado.