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O jornalismo como ficção:
Recordações do escrivão Isaías Caminha1

Escrevendo estas linhas, com que saudade me não recordo desse heroico anseio dos meus dezoito anos esmagados e pisados! Hoje!… É noite. Descanso a pena.
Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha

A capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori.
Lima Barreto, Diário íntimo

 

Retrato de Lima Barreto que circulou na época em que o escritor publicou Isaías Caminha. Comportado, bem-arrumado, ele mais parece um cordato funcionário público.

 

Lima Barreto escolheu a dedo o romance com que ingressaria na vida literária nacional. Ao que tudo indica, e como mostra Francisco de Assis Barbosa,2 tinha alguns outros livros em preparação ou quase terminados, mas decidiu lançar Recordações do escrivão Isaías Caminha com o claro objetivo de escandalizar. Julgava que o Gonzaga de Sá era mais morno; quem sabe, acomodado demais. Já Isaías Caminha tinha potencial para a polêmica, e daria novo impulso à carreira que ele havia trilhado na Floreal e ia desenvolvendo nas demais revistas literárias.

O livro que Lima mal tirara do forno, narra a história do jovem Isaías, que chega à cidade grande cheio de esperanças de tornar-se “doutor” mas conhece o preconceito, a humilhação e a tristeza. Apesar de o argumento ser forte, o texto não foi recebido como imaginava o escritor, tampouco se converteu em sucesso imediato de crítica. O original tinha, porém, pólvora para agitar o cenário intelectual da época e, sobretudo, da imprensa. E agitou.

O grupo de literatos que circulava em torno dos periódicos era ainda pequeno, bastante autorreferente, e foi duramente atingido pelos ataques desferidos por Lima com seus “pseudônimos” mal disfarçados na trama — o protagonista, como o autor, mora em região distante do “centro”, arruma emprego num jornal mas pena muito para se afirmar nesse mundo fechado. Não por acaso, a artilharia dirigiu-se ao chamado “jornalismo burguês”, que Lima considerava leviano, adepto de uma cultura superficial, sujeito a políticas de influência e a práticas corruptas de toda sorte. Já os literatos foram descritos como dândis sem responsabilidade social e com formação artificial e importada. Diria Isaías Caminha, espécie de porta-voz das ideias de seu criador, no meio de um diálogo: “O jornal já prestou serviços. — Decerto… não nego… mas quando era manifestação individual, quando não era coisa desse lucro; hoje, é a mais tirânica manifestação do capitalismo e a mais terrível também”.3 O escritor dava vazão, assim, a um debate que não se limitava ao contexto nacional. No panorama europeu, não poucos intelectuais analisavam criticamente o papel conservador que os jornais iam assumindo. O suposto era que eles iam perdendo seu caráter contestador, não só na configuração de novos gêneros literários como nas técnicas de expressão.

Lima queria mesmo escancarar a questão. Para ele, o protótipo do “jornal burguês” era o Correio da Manhã — (mal) disfarçado no romance de O Globo —, o qual, segundo o autor, já nascera grande.4 O escritor também parecia pouco preocupado em esconder-se e aos jornalistas que atingia, e não camuflava a forma literária que procurava seguir. Era um defensor do realismo europeu, e autores como Balzac, Dickens, Flaubert, Maupassant, Eça de Queirós e Tolstói estavam entre seus preferidos. O gênero, que se contrapunha ao romantismo, dedicava-se a imaginar mas também descrever e criticar as mazelas da realidade, além de inspirar-se por elas. O suposto era que, em vez da visão parcial, do “egocentrismo romântico”, a literatura realista deveria apresentar o indivíduo — seus sentimentos, talentos, inspirações — a partir das engrenagens sociais que o condicionavam. Vem daí o acento nos interesses materiais, no poder, no prestígio, que estariam sempre por detrás das boas intenções e dos sentimentos puros que justificavam o amor romântico ou o casamento.5

Como vimos no capítulo anterior, Lima era admirador confesso da literatura de Dostoiévski e do modo como o autor russo introduzia em suas novelas a violência e as políticas de humilhação social implementadas pelo Estado.6 Não serão poucas as vezes em que o escrivão discorrerá, apaixonadamente, sobre esse seu gosto literário, o que se dá de maneira exemplar no início de Recordações. Nesse caso, o narrador e protagonista interrompe a história para avaliar a qualidade de sua própria escrita: “Se me esforço por fazê-lo literário é para que ele possa ser lido, pois quero falar das minhas dores e dos meus sofrimentos […] Não nego que para isso tenha procurado modelos e normas. Procurei-os, confesso; e, agora mesmo, ao alcance das mãos, tenho os autores que mais amo. Estão ali o Crime e castigo de Dostoiévski, um volume dos Contos de Voltaire, A guerra e a paz de Tolstói, o Le Rouge et le noir de Stendhal, a Cousine Bette de Balzac, a Education sentimentale de Flaubert, o Antéchrist de Renan, o Eça”.7

Mal disfarçado sob a pele de Isaías Caminha, Lima repassa na ficção os livros e a biblioteca que tem efetivamente diante de si, no seu quarto, e refere-se não apenas aos literatos como aos cientistas sociais que faziam parte da sua lista de eleitos: “Na estante, sob as minhas vistas, tenho o Taine, o Bouglé, o Ribot […]. Confesso que os leio, que os estudo, que procuro descobrir nos grandes romancistas o segredo de fazer. Mas, não é a ambição literária que me move […]. Com elas, queria modificar a opinião dos meus concidadãos, obrigá-los a pensar de outro modo, a não se encherem de hostilidade e má vontade quando encontrarem na vida um rapaz como eu e com os desejos que tinha há dez anos passados”.8

Há, portanto, um projeto narrativo, uma forma literária que aparece justificada nessa abertura do primeiro romance que Lima decide publicar: de um lado estão as cenas e os personagens retirados da realidade; de outro, a capacidade de alterá-los na ficção por meio do estilo e da alma do escritor.9 Não há dúvidas de que o modelo para Recordações veio também da escrita autobiográfica de Flaubert em Aeducação sentimental e das novelas de Dostoiévski narradas em primeira pessoa, como Humilhados e ofendidos e Recordações da casa dos mortos.10 Fiel a seus modelos, Recordações do escrivão Isaías Caminha vinha repleto de eventos extraídos da biografia íntima de Lima, misturados com personagens, fatos e características do jornalismo da época. Assim, se boa parte do enredo era dedicada à denúncia dos jornalistas e da vida que levavam nos “jornais burgueses”, a obra, no seu conjunto, não se limitava a isso. Investia igualmente em temas de difícil trato, e caros ao escritor, tais como as diferenças sociais expressas em termos de cor, raça, classe e região. Não por acaso o personagem sai do subúrbio para ganhar a cidade grande; é pobre, jovem, bem-educado, tem “uma tez de cor pronunciadamente azeitonada”, e andava cheio de planos. Tudo muda quando ele perde a inocência e assume o tom cético da maturidade.

O livro traz ainda uma crítica profunda a um Brasil que não se realizava; ou melhor, que mostrava as mesmas políticas de exclusivismo e de discriminação. Era profundamente oligárquica aquela nova/velha República, marcada pela proeminência dos bacharéis e dos grandes proprietários do café;11 a “República do Kaphet”, conforme Lima ironizava em muitos de seus textos. Isaías, “parente” próximo do autor, é por vezes revoltado, por vezes resignado; esperançoso e desiludido; isolado e integrado; crítico das teorias darwinistas raciais mas temeroso do destino que se inscrevia em sua pessoa; com muitos projetos para realizar mas pessimista de índole; enfim, ambivalente como nosso escritor. Lembra de perto as contradições desse intelectual que pretendia muito de si e de sua carreira mas se desapontava sempre com a política, com os preconceitos, com os conchavos e em alguns momentos até com os amigos.

Além disso, o romance pretendia reagir a um gênero de literatura mais suave, de grande aceitação na época, e que o escritor Afrânio Peixoto, em seu Panorama da literatura brasileira, chamou de “o sorriso da sociedade”: “Quando ela é feliz, a sociedade, o espírito se lhe compraz nas artes e, na arte literária, com ficção e poesia, as mais graciosas expressões da imaginação”.12 Ora, era justamente a esse tipo de visão que o livro de Lima endereçava o ataque. Sua obra de fundo social se caracterizaria pelo sofrimento, e daria à literatura outro lugar e condição.

Apesar das divergências, esses dois escritores tinham mais em comum do que Lima poderia, a princípio, imaginar. Recordações saiu em 1909 e recebeu uma crítica impiedosa, que o acusou de ser um romance à clef, isto é, muito influenciado pela experiência pessoal do autor e, portanto, carente de imaginação:13 Se o leitor tivesse a chave em suas mãos, não demoraria a identificar as personagens reais ocultas por detrás da ficção.14 Já o romance de Peixoto, A esfinge, publicado dois anos depois, e também baseado na biografia de seu autor, nunca teve o prestígio abalado por isso.15 O mesmo ocorreu com O Ateneu, de Raul Pompeia, que, a despeito de retratar a difícil experiência do próprio Pompeia num colégio do Rio, foi logo aclamado. Lançado em 1888, o livro era evidentemente obra de memorialista, mas não o questionaram. O problema não estava, portanto, no gênero; parecia mais endereçado à obra de Lima, e aos ataques que ele insistia em desferir contra o jornalismo.

Também nessa época, como vimos, Lima Barreto escreveu Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, que ficaria na gaveta quase até a sua morte.16 Gonzaga de Sá, assim como Isaías, era avesso ao panorama das letras nacionais, acusando a “nossa emotividade literária” de só se interessar “pelos populares do sertão, unicamente porque são pitorescos e talvez não se possa verificar a verdade de suas criações”. De resto, explicava o amanuense, os literatos se importavam apenas com “retórica mais difícil” para falar sempre do mesmo: “D. Dulce, moça de Botafogo em Petrópolis, que se casa com o dr. Frederico […] Está aí o grande drama de amor em nossas letras […]. Quando tu verás, na tua terra, um Dostoiévski, uma George Eliot, um Tolstói […]?”.17

No entanto, entre o ponderado Gonzaga de Sá e o esquentado Isaías Caminha, Lima escolheu o último como carta de apresentação. Ele era seu personagem jovem e afrodescendente, o que lhe facultaria voltar a temas que já havia abordado, mesmo que lateralmente, na Floreal: o “negrismo” e uma visão desesperançada sobre a abolição, que não teria redimido a população a quem afirmava proteger.

É certo que Lima não os cita diretamente, mas suas opiniões indicam algum conhecimento de uma elite de intelectuais negros e ativistas como Paul Cuffee, Martin Delany, J. A. Horton, Edward Blyden, Marcus Garvey e W. E. Du Bois, que discutiam, no contexto norte-americano, os limites do escravismo e, no pós-abolição, o processo de subalternização das populações negras. Em comum lutaram pela valorização cultural do grupo, pela importância da retomada dos laços com a África, e, a despeito de não se desvincularem do tema da integração do negro em suas sociedades, questionaram a noção biológica de raça. Deles, talvez o mais renomado tenha sido Du Bois, que, no livro Asalmas da gente negra (1903), chamou a atenção para o “dilema universal do negro”, emparedado entre a busca de sua especificidade e a integração nas comunidades em que se inseria.18 Du Bois foi também um ativista político na luta pela união africana com a diáspora negra, denominando esse movimento de “cooperativismo negro” e “solidariedade negra”.19

Lima também abordaria de frente, em seu romance de estreia, a questão do “preconceito de cor”, mostrando como Isaías, apesar de inteligente e bem formado, sofria com as barreiras e o racismo da sociedade brasileira. Em carta a um colega, diria que o personagem tinha tudo para vencer, porém seria “batido, esmagado, prensado pelo preconceito”.20 Em missiva endereçada ao crítico Veiga Miranda, tratou de asseverar que vigorava, sim, esse tipo de problema no país, e acrescentou que conhecia “sociedades de homens de cor” em São Paulo e em Campinas.21 Bem informado, o escritor decerto se referia aos vários clubes, associações beneficentes, centros cívicos e grêmios literários criados por afro-brasileiros durante a Primeira República, não só entre paulistanos mas país afora. Eram movimentos de “associativismo negro” que combinavam o desejo de assimilação com iniciativas políticas e práticas sociais específicas.22

Assim, vai ficando claro que Lima escolheu conscientemente apresentar-se na cena literária a partir de uma obra combativa; um romance de crítica social. A arte é um fenômeno social, insistia, citando Taine, Descartes, Spencer e contrapondo-se a tudo que era realizado no país. À semelhança do que havia feito na Floreal, seu livro de estreia chegaria provocando a intelectualidade carioca, a qual, sentindo-se atingida, não perdoaria a “ousadia do iniciante”. A propósito, o ressentimento causado pela revista levou o escritor a se deparar com muitas dificuldades para publicar Recordações. Só o fez graças à intervenção do colega João Pereira Barreto, que, já tendo publicado um livro de poemas em Portugal, prontificou-se a apresentar Lima a seu editor. Foi o “amigo e camarada”23 Antônio Noronha Santos que levou a carta e os originais para a Europa, sendo Recordações do escrivão Isaías Caminha lançado pela Livraria Clássica Editora, de A. M. Teixeira & Cia., com sede em Lisboa. Bom mesmo seria editar na Garnier, então a mais importante casa editorial brasileira, mas a empresa só publicava autores consagrados, e Lima não era um deles.

A editora portuguesa elogiou o estilo e o talento do principiante, destacou o potencial de “escândalo” do romance e aceitou lançá-lo. Havia, entretanto, uma condição: ele precisava abrir mão dos direitos autorais e, como dizia Noronha, não ser “exigente na questão”.24 O livro chegaria cerca de nove meses após a entrega dos originais. Eram 316 páginas envoltas em capa cor de vinho, e pode-se imaginar a alegria de Lima ao recebê-las. A obra representava a concretização de seu projeto como escritor, novidade que vinha bem a calhar. Afinal, naquele ano de 1909, ele sofreu um revés na lista de promoções da Secretaria da Guerra. Diferentemente do que esperava, continuou na posição de amanuense. Quem acabou se beneficiando foi um funcionário que ingressara na repartição “sem concurso e dois anos depois dele”. Tal situação lhe deu grande desgosto. Lima chegou a redigir um memorial — possivelmente não enviado — para o presidente da República, em 13 de fevereiro de 1909, no qual apelava para “a alta justiça de Vossa Excelência” a fim de que “as altas autoridades da República respeitem os seus direitos e recompensem os humildes serviços que tem prestado à administração da República”.25

Em carta endereçada ao amigo Noronha, Lima informava também que fora preterido: “Creio que esperavas isso; eu não, por isso o fui. Um idiota, dos mais que há aqui, passou-me a perna, graças à pusilanimidade do barão [barão de Itaipu, então diretor da Secretaria da Guerra]…”. O outro respondeu animando-o: “Foste preterido? Depois do teu livro [referindo-se a Isaías Caminha], não o serás mais”.26 Diferentemente da visão otimista de Noronha, Lima acreditava, porém, que o livro não o ajudaria. Ou pelo menos foi o que ele explicou ao amigo em nova missiva datada de 18 de maio de 1909, quando opinava sobre a reforma feita pelo marechal Hermes no quadro de funcionários do Ministério da Guerra: “O Hermes fez a tal reforma projetada. Tirou a importância da repartição e eu penso que o meu livro em nada servirá para evitar futuras preterições. Ando imaginando o meio de sair daqui. Sinto-me incompatível e cheio de rancores. Agora mesmo, graças a tal reforma, projetam-se promoções e eu serei de novo preterido […]. Todas essas injustiças me sabem como roubos…”.27

Lima era tão realista como negativo e perseguido. Promoções salariais ele não obteve; mas, com a reforma, trocou de título burocrático: virou “terceiro oficial da secretaria”. Enfim, sucesso de público ou não, Isaías Caminha era, mesmo antes de aparecer em livro, personagem conhecido nos círculos literários da capital. Saíra nas páginas da Floreal, distribuído nos seus quatro primeiros números. A revista, como sabemos, não obtivera êxito, mas não passou desapercebida a críticos literários e jornalistas que acompanhavam aquele tipo de publicação. Por isso, os que tinham resolvido nada comentar em relação ao periódico, continuaram a guardar silêncio diante do lançamento do romance. Ou melhor, se encararmos o silêncio como uma forma de recepção, podemos dizer que Recordações do escrivão Isaías Caminha fez barulho. Como escreveu Lima em 1916: “A única crítica que me aborrece é a do silêncio”.28

Eu, Isaías Caminha

O novo romance vinha narrado em primeira pessoa, por Isaías, claramente um alter ego de Lima: de fora da capital, pobre, de cor azeitonada, esforçado, tenta a sorte como jornalista e acaba escrivão da coletoria. A metáfora da estrada de ferro surge também nesse livro, cujo enredo parece estar constantemente “em trânsito”. Isaías começa viajando de trem para a capital — verdadeiro ritual de entrada na vida estrangeirada do Rio, onde as diferenças de região, classe e cor eram muito mais presentes e distintas. Já na cidade grande, Isaías anda por todo lado, percorre diferentes bairros; sempre de bonde, em movimento.

Tal como Lima, Isaías é bom aluno e recebe um livro da professora de ginásio, do qual não se separa mais. Detesta, igualmente, Botafogo e Petrópolis, não gosta das artificialidades do jogo social, carrega desconfianças para com o Apostolado Positivista e diante das reformas urbanas que vão sendo realizadas. Por fim, assim como seu criador, amarga sérias preocupações acerca da relevância da obra que está escrevendo: suas recordações. Na “Breve notícia” que abre a versão da Floreal,29 Lima apresenta Isaías como um amigo seu, escrivão da coletoria. Repassa então a própria história da edição do livro — com a viagem de Noronha à Europa, a publicação dos poemas de João Pereira Barreto em Portugal e a menção elogiosa ao texto “sem escoras ou para-balas”. A “Breve notícia” traz até o comentário favorável de Veríssimo aos primeiros capítulos que saíram na Floreal.

Os recursos literários, apesar de previsíveis em seu conteúdo, são bastante inovadores na forma. Lima usa, inclusive, dois prefácios na edição de 1917: um do personagem e outro do “amigo” Lima Barreto. Num prefácio ficamos conhecendo a crítica de Veríssimo, que estaria disposto a desfazer um grande engano: as recordações são verdadeiras — Caminha existe e Barreto é seu editor. No outro, é Caminha quem explica a razão de escrever suas memórias, e Lima reaparece numa nota dando opinião e contando sobre o Isaías dez anos depois de tê-lo concluído. Há aqui uma dupla arapuca para o leitor. Em primeiro lugar, o término da história de Isaías não está no fim do livro, e sim no início, por meio da voz de seu falso editor. Em segundo, um leitor desatento pode não perceber que o livro não começa no primeiro capítulo, mas no prefácio. E mais: o “editor Lima Barreto” declara que resolveu publicar o manuscrito que lhe fora confiado transcrevendo o “prefácio inteiramente como saiu na inditosa Floreal”. Não há perigo de erro: Isaías é mesmo Lima, sendo o oposto, como veremos, também verdadeiro. Ou melhor, estando espelhado em seu criador, é mais que ele e diferente dele. Na verdade, ao usar esse tipo de recurso, o escritor põe a própria autoria em questão e cria sua identidade, ao mesmo tempo que a dissimula.

Na tentativa de explicar o argumento da obra, Lima afirma que lembrou de escrever “estas recordações” quando, dois anos antes, “um dia, por acaso, agarrei um fascículo de uma revista nacional, esquecida sobre o sofá de minha sala humilde, pelo promotor público da comarca”. No periódico, um dos colaboradores “fazia multiplicadas considerações desfavoráveis à natureza da inteligência das pessoas do meu nascimento, notando a sua brilhante pujança nas primeiras idades, desmentida mais tarde, na madureza”. Continua Isaías, reconhecendo que, quando leu o trecho pela primeira vez, sentiu tanto “ódio” que teve “desejos de rasgar as páginas e escrever algumas verrinas contra o autor”. Leitor do racismo científico, Isaías/Lima desmente, portanto, com essas suas “recordações”, as certezas da teoria que apostava numa “involução” de certas raças: começo brilhante, maturidade em descenso.30

A crítica a esses modelos mas também um temor profundo a eles fariam parte da história de Lima. Talvez a dor que o escritor carregou, de ver seu pai largado e insano, seria vingada pela personagem da ficção, com o próprio desenrolar da trama. Ademais, trata-se do parágrafo de abertura do livro, o qual deixa claro que o autor/personagem não só tiraria partido de seu “nascimento”, como guardaria uma reação ambivalente: num primeiro momento Isaías sentiria “ódio”, para depois desenvolver uma atitude resignada diante da vida. Mais velho, ao escrever o prefácio, arrazoa: “Considerei melhor e vi que verrinas nada adiantam […] O melhor, pensei, seria opor argumentos a argumentos, pois se uns não destruíssem os outros, ficariam ambos face a face, à mão de adeptos de um e de outro partido”.31

Seria esse o motivo das tais “recordações”, que cobririam nascimento, infância, mocidade e o começo da aposentadoria do personagem. A frustração, segundo ele, era reconhecer o abismo entre os “extraordinários inícios nos mistérios das letras e das ciências e os prognósticos dos meus professores de então, com este meu triste e bastardo fim de escrivão de coletoria de uma localidade esquecida”. E Lima continua descrevendo as ambiguidades de Isaías: “Cheio de melancolia, daquela melancolia nativa que me ensombra nas horas de alegria e mais me deprime nas de desalento […], olhei um momento o rio a correr e me pus a analisar detidamente os fatos de meu passado […] Cri-me fora de minha sociedade, fora do agrupamento a que tacitamente eu concedia alguma coisa e que em troca me dava também alguma coisa”.32

Era o próprio Lima quem se habituara a oscilar entre alegria e desilusão, entre acreditar ser — ou poder ser — parte integrante da nova sociedade que então se formava e julgar-se apenas um estranho nesse ambiente. E termina assim a “breve notícia” de abertura: “Perdoem-me os leitores a pobreza da minha narração. Não sou propriamente um literato, não me inscrevi nos registros da Livraria Garnier, do Rio, nunca vesti casaca e os grandes jornais da Capital ainda não me aclamaram como tal — o que de sobra, me parece, são motivos bastante sérios, para desculparem a minha falta de estilo e capacidade literária. Caxambi, Espírito Santo, 12 de julho de 1905. Isaías Caminha. Escrivão da Coletoria”.33

O recurso indireto à autobiografia, a demonstração inicial de modéstia e o fato de não se vangloriar por ser literato não escondem as grandes aspirações de Lima, reveladas a partir da contraposição com a Garnier, as roupas arrumadas e os periódicos mais estabelecidos do Rio. Não era, mas pretendia ser isso tudo, ao mesmo tempo que desfazia de si próprio. Tanto que, no romance, Isaías volta ao tema da literatura e das dúvidas e projeções que mantinha diante de seu novo livro: “Despertei hoje cheio de um mal-estar que não sei donde me veio […] Penso — não sei por quê — que é este meu livro que me está fazendo mal […] Não é o seu valor literário que me preocupa; é a sua utilidade para o fim que almejo […] Eu não sou literato, detesto com toda a paixão essa espécie de animal”.34

O procedimento é semelhante: aproximar-se e afastar-se. Lima tinha iniciativa para publicar seu livro, porém não queria ser igualado aos demais literatos. O romance representa, igualmente, uma versão direta e clara do que o escritor chamava de “negrismo”; qual seja, uma projeção para o Brasil do movimento internacional de pan-africanos que, naquele momento, internacionalmente lidava com as dificuldades enfrentadas pela população negra no pós-abolição. Lima descreve com detalhes a cor de seus personagens, bem como o mundo de constrangimentos que fazia parte do cotidiano dessas populações. Isaías, que sempre se entendeu mais educado e inteligente que as outras pessoas de “seu nascimento”, não deixa de ironizar a si próprio: “Aquela postura no jardim, fez-me lembrar não sei que passagem do meu livro de cabeceira […] Abri-o e, desejoso por encontrar a passagem, não reparei que uma pessoa viera sentar-se no mesmo banco que eu. Num dado momento, virei-me e dei com uma rapariga de cor, de olhos tristes e feições agradáveis. Tinha uma bolsinha na mão, um chapéu de sol de alpaca e o vestuário era pobre. Considerei-a um instante e continuei a ler o livro, cheio de uma natural indiferença pela vizinha. A rapariga começou a murmurar, perguntou-me qualquer coisa que respondi sem me voltar. Subitamente, depois de fazer estalar um desprezível muxoxo, disse-me ela à queima-roupa: — Que tipo! Pensa mesmo que é doutor… Fechei o livro, levantei-me e, já afastado, ainda ouvi dela alguns desaforos […] Olhei uma, duas, mil vezes, os pobres e os ricos. Eu estava só”.35

A sensação de “estar só” — não fazer parte do seu grupo de origem nem de outros círculos sociais literários — era um mote frequente do Diário de Lima e elemento constitutivo de sua personalidade. Recordações, por sua vez, elege um partido: escolhe denunciar a exclusão social experimentada pelos negros durante a Primeira República. O trecho em que esse tema aparece de forma mais forte, e que já tivemos tempo de mencionar, é aquele em que o personagem principal, em seu caminho até o Rio, pede uma média no balcão de uma pequena estação de trem e leva não só uma reprimenda como a insinuação: “Aqui não se rouba, fique sabendo!”. Isso, ao mesmo tempo que “um rapazola alourado” recebia rapidamente o seu pedido.36 Lima não procura dourar a sensação perversa do racismo; ao contrário, inclui a cor de pele para deixar a descrição ainda mais direta.

A resposta de Isaías vai da “raiva muda”, que por “pouco […] não rebentou em pranto”, até o desalento. Incrédulo, sentindo-se “trôpego e tonto”, o protagonista comenta não ter atinado bem a situação. Por isso, passa em revista sua roupa, suas “mãos fidalgas”, e Lima/Isaías alude abertamente à mãe, professora. O que fica na entrelinha é o trabalho escravo que carcomia as mãos e os pés dos trabalhadores. Para causar maior mal-estar no leitor, o personagem, embora diante de tamanha evidência de racismo, repassa traços do seu rosto para concluir que não “era hediondo nem repugnante. Tinha-o perfeitamente oval, e a tez de cor pronunciadamente azeitonada”.37 Enfim, o narrador nos faz seguir de perto as inquietações de Isaías, tenta entendê-las; procura a resposta em si mesmo, mas não a encontra. Repassa sua própria imagem e recupera seus olhos castanhos, a “fisionomia animada” por seus olhos de “timidez e bondade”. E se pergunta: “Por que seria então, meu Deus?”.38

Talvez a reação não fosse, afinal, necessária; melhor era dormir com “o crepúsculo [que] cobria as coisas com uma capa de melancolia”. A sensação que Lima deixa é a de que, diante de certas situações, as palavras não dão conta. “Repentinamente senti-me outro”, diz o protagonista.39 O sentimento de virar outro, de estar só, reaparece nesse caso representando uma espécie de iniciação para o jovem Isaías em seu caminho para a cidade grande. Lima não economizava nos temas espinhosos, os quais estavam na contramão do modelo de Brasil pregado pela reforma de Pereira Passos, que com o bordão da modernidade parecia não ter tempo e espaço para lidar com as especificidades de uma nação onde a escravidão acabara de ser abolida e as consequências desse sistema continuavam à flor da pele.

O caminho da recepção de Recordações foi, a seu modo, paradoxal. Em vez de se deter na forte denúncia racial, presente em diversos momentos da obra, ou mesmo na forma original do personagem/narrador, a crítica preferiu abordar a maneira como o livro tratou o jornalismo e as formas de sociabilidade literárias, e, principalmente, os periódicos. Se o romance como um todo é autobiográfico, nessa segunda parte ele soa rancoroso, um relato tão detalhado como impiedoso de várias publicações e personagens que tomavam parte daquele mundo da belle époque brasileira. E a reação viria rápido: partiu da própria classe dos jornalistas, que selou a sorte da obra, ao menos em seu contexto de nascimento.

O ritual de iniciação: a experiência do preconceito na cidade grande

O tema da desigualdade racial e social aparece desde o início do romance, com a disparidade intelectual que se estabelece no que o personagem, ainda menino, descreve como “espetáculo do saber de meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe”.40 Se o abismo está dado logo nas primeiras páginas, a explicação, profunda, só chegaria um pouco depois. Isaías era resultado de um “romance fortuito” entre uma mulher de origem africana e um padre. Como diria a linguagem popular, era “filho de padre”. “Meu pai, o seu corpo anguloso, seco, a sua dor contida, que se escapava no seu olhar e na sua fisionomia transtornada. Via-o às tardes, nos dias de bom humor, mudá-la de chofre, fazer-se risonho, vir para mim, sentar-se à mesa, e, à luz do lampião de querosene, explicar-me pitorescamente as lições do dia seguinte […] Às oito horas, depois dessas efusões, dessas raras manifestações da sua paternidade, minha mãe punha, na mesa da sala de jantar, o chá que ele tomava em geral sozinho no quarto. — Pode tirar o chá, ‘seu’ padre? — Pode, minha filha. Era assim que se falavam. Encontrei sempre esse tratamento distante entre eles. Pareceu-me que o seu encontro fora rápido, o bastante para me dar nascimento. Uma crise violenta do sexo fizera esquecer os votos do seu sacerdócio, vencera a sua vontade, mas, passada ela, viera, com o arrependimento da quebra do seu voto, a dor inqualificável de não poder confessar a sua paternidade.”41

Distância e formalidade entre os pais, “confessar” ou não o fruto de um relacionamento de circunstância, oficializar ou ocultar o passado, aí estão descritos os dramas de muitas crianças, frutos de uniões passageiras e por isso cercadas, sobretudo por parte paterna, de muita ambiguidade. Lima se esmera no relato e na quantidade de contradições que devem circundar esse tipo de relação: “Em público, olhava-me de soslaio, media as carícias, esforçava-se por fazê-las banais; em casa, porém, quando não havia testemunhas, beijava-me e afagava-me com transporte. Ele temia o murmúrio, temia dar-lhe força com os atos ou palavras públicas; entretanto toda a redondeza quase seria capaz de atestar em papel timbrado a minha filiação…”.42 Esses eram os segredos mais conhecidos do Brasil. O pai se fazia servir de chá e contava histórias de uma “antiga escrava”: “Vinha o chá, nós ficávamos a tomá-lo e ao menor ruído minha mãe vinha do interior da casa para saber se meu pai queria alguma coisa. Acabado o chá, eu ainda ouvia histórias da tia Benedita, uma preta velha, antiga escrava do meu reverendo pai […]. Tal fora a minha infância, que, nas dobras da saudade […] me vinha trazendo à memória com uma nitidez assombrosa”.43

A situação é novamente exemplar: permite entender a questão da paternidade tantas vezes recusada a filhos e filhas de escravizadas. A mãe de Isaías tinha “a cor do bronze” e portava-se de maneira humilde diante do pai dele. Já o pai devia ser branco e era padre. Por isso, mal se falavam; tudo que tinham em comum era o filho em segredo.

Daí em diante, o romance vai ficando menos cuidadoso e mais didático em seus objetivos: personagens aparecem e desaparecem, situações restam pouco claras e há saltos narrativos. O protagonista vai se afundando na cidade, cada vez mais frustrado, sem dinheiro nem emprego. Os primeiros ataques dirigem-se aos políticos. Um deles, um senador, “bolina” uma moça no bonde; outro só pode ser encontrado na casa que não é de sua família. Já a sessão da Câmara é caracterizada como “o misterioso trabalho de fazer leis para um país” realizado pelos “augustos e digníssimos representantes da Nação Brasileira”.44 Políticos, por sinal, ganham no livro sua melhor definição: pessoas cujas “palavras […] morriam nos lábios”. Um deles, por exemplo, “movia a boca e gesticulava como um doido furioso”, ao passo que os colegas, “desapegados da sua eloquência”, dividiam-se em grupos. À esquerda, alguns viam cartões-postais; outro “escrevia febrilmente, erguendo, de quando em quando, a caneta para pensar”; uma roda de três conversava sorrindo; ao fundo, “um deputado gordo […] esquecido no sono, por detrás de um par de óculos azuis, roncava perceptivelmente”.45

Enquanto isso, Isaías está longe de lograr uma ocupação fixa. Com uma carta de recomendação nas mãos, ele começa um verdadeiro périplo tentando abrir as portas da capital. Para não desanimar, fia-se no conselho da mãe, que antes da partida do filho, com um olhar que mesclava “terror, pena, admiração e amor”, lhe diz: “— Vai meu filho! […] E não te mostre [sic] muito, porque nós…”.46 O suposto das reticências e do “nós” — e dos “outros” ocultos — acompanharia o protagonista central em sua esperança e desalento, nessa trajetória de iniciação ritual em que ele seria frequentemente lembrado de sua origem; do seu “nós”.

Toda vez que é obrigado a explicar o motivo de sua viagem, é desconfiança o que encontra. “O senhor veio a passeio? perguntou-me. — Não senhor, disse-lhe de pronto. Vim estudar. — Estudar! — De que se admira? — De nada.”47 O cenário é, pois, de desencontro; da dificuldade de se integrar, de achar emprego ou de fazer valer o seu estudo. Cheio de metáforas, o personagem é comparado a “uma árvore cuja raiz não encontra mais terra em que se apoie e donde tire vida; era como um molusco que perdeu a concha protetora e que se vê a toda a hora esmagado pela menor pressão”.48

A noção de “opressão”, de “humilhação”, é reiterada a cada vez que Isaías deixa de encontrar seu suposto “pistolão” ou vive a experiência de desconfiança — sua e alheia. E as situações multiplicam-se: no hotel, nas ruas, nas repartições. Um dos episódios mais marcantes do livro e que, não por coincidência, assinala o fim da primeira parte, faz alusão a uma experiência íntima do próprio Lima. Ele e Isaías foram acusados injustamente de roubo.49 A mesma alta voltagem com que o autor descreve o episódio em seu Diário retorna no romance, na voz de Isaías: “Escrevendo estas linhas, com que saudade me não recordo desse heroico anseio dos meus dezoito anos esmagados e pisados! Hoje!… É noite. Descanso a pena”.50

Muito mais forte do que a memória da época da maturidade, que relembra de forma resignada o passado, é a força dessa situação em particular, que jogou Isaías de vez num lugar que não era seu: a delegacia. “A sua intimação era para as onze horas.” Assim começa o relato do episódio, vindo de encontro a um Isaías que andava “deprimido, desalentado”, cuja “vontade era frouxa”; os “sentimentos tinham-se enfraquecido”. Ficava ele entretido em “curtir ódios”, “arquitetar vinganças”, enquanto farejava “a miséria próxima”.51

Até então, ele não sabia bem por que fora convocado a depor na delegacia. É o copeiro do hotel em que se encontrava quem lhe transmite a ordem, mencionando por alto um roubo que ocorrera naquele estabelecimento na noite anterior. Quando Isaías indaga ao funcionário o que ele iria fazer lá, o outro se limita a responder: “Depor, naturalmente”. Só quando se vê sentado na estação policial é que o narrador lembra a expressão do copeiro, que “sublinhara a resposta com um piscar de olhos cheio de canalhice… Seria possível? Qual! Eu era estudante, rapaz premiado… Qual! Nem por sombras!…”.52 Estudante, rapaz premiado, nada disso parecia superar a certeza da cor e da origem.

Chegando à delegacia, Isaías toma um chá de cadeira que lhe permite acompanhar os vários rituais de humilhação empreendidos com sucesso durante os inquéritos. É quando o relógio de parede bate quatro horas e do fundo do compartimento sai um “personagem ventrudo, meão de altura, de pernas curtas, furta-cor, tendo atravessado no peito um grilhão de ouro, donde pendia uma imensa medalha cravejada de brilhantes”. Imponente, ele se dirige ao inspetor: “— Raposo, vou sair: há alguma coisa? — Nada, capitão Viveiros. — E o caso do Jenikalé?53 Já apareceu o tal mulatinho?”.54 Com a menção ao hotel em que se encontrava hospedado, logo Isaías percebe o que está acontecendo: é sua cor novamente em questão. E lá vai confissão íntima: “Eu saíra do colégio, vivera sempre num ambiente artificial de consideração, de respeito, de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto, estava cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se juntava ao meu orgulho de inteligente e estudioso, para me dar não sei que exaltada representação de mim mesmo, espécie de homem diferente do que era na realidade, ente superior e digno a quem um epíteto daqueles feria como uma bofetada”.55

A ideia de que ele fosse só um “mulato”, e no diminutivo — a “baixeza do tratamento” —, deixava evidente o desinteresse por sua história pregressa ou sobre sua formação: ninguém queria saber “da minha personalidade que não queriam ouvir, sentir e examinar”. Nada o distinguia dos demais “mulatos”, e tal atitude vinha justamente de “um funcionário, de um representante do governo, da administração que devia ter tão perfeitamente, como eu, a consciência jurídica dos meus direitos ao Brasil”.56 Na continuação do relato, o protagonista do romance afirma que “as lágrimas secaram-se nos olhos, antes que o inspetor o apresentasse ao escrivão Viveiros”. E o pior debate estava por acontecer: “— O senhor é o moço do Hotel Jenikalé? — Sou um deles. — Qual é sua profissão? — Estudante. Houve algum espanto na sua fisionomia deslavada. Conteve-se e continuou-me a perguntar: — Tem documentos? — Alguns. — Ah! Pode-se justificar perfeitamente. — Como? — Com testemunhas e documentos. — Se não conheço ninguém aqui no Rio… — Eu lhe arranjo. — Aceito e obrigado. — Mas custa-lhe trinta mil-réis. — Não posso pagar, Capitão. Não tenho dinheiro. — E o seu correspondente? — Não tenho. — Então meu caro… Encolheu os ombros, afastou-se cheio de indiferença…”.57

Corrupção e cinismo sublinham as palavras do policial, que obrigou Isaías a esperar ainda mais um pouco e assim constranger para lograr a confissão. Em seguida, ele é levado mais uma vez à presença do capitão Viveiros. E o interrogatório prossegue sem que o estudante entendesse o sentido de tanta suspeita. O delegado, por sua vez, tomava a atitude de espanto do rapaz como prova de mentira, e assim se difundia o “sentimento geral da minha inferioridade, decretada a priori”.58

Na mesma época, em seu Diário, Lima anotou: “A capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori”.59 A expressão é a mesma, e não restam dúvidas de que os sentimentos do autor e de seu personagem eram iguais, assim como a atitude. Tanto que Isaías, perguntado se conhecia dois versos, logo afirma não ler poetas. É o suficiente para o diálogo entornar de vez. Da sua parte, conta Isaías que foi nesse momento que ele se lembrou de Dostoiévski: o abateu “o que um autor russo chamou a convulsão da personalidade”. E continua: “Senti num segundo todas as injustiças que vinha sofrendo; revoltei-me contra todos os sofrimentos que vinha suportando. Injustiças, sofrimentos, humilhações, misérias, juntaram-se dentro de mim […] e então expectorei sacudindo as sílabas: — Imbecil!…”.60 Resultado: Isaías vai para o xadrez. “Entrei aos empurrões; desnecessários, aliás, porque não opus a menor resistência. As lágrimas correram-me e eu pensei comigo: A pátria!”61

Como se pode notar, e a despeito das críticas que recebeu, Recordações não tratava exclusivamente da imprensa. Toda a primeira metade do romance representa uma espécie de ritual de passagem: a consciência de que a educação, apenas, não era suficiente para garantir a inclusão, e a certeza de que cor de pele era mais que uma marca externa e física. Quase no final do livro, com evidente ironia, Lima volta ao tema sem se referir a Isaías. Resolve contar a história de um crime que tomara a imaginação da cidade e que fora desvendado por meio de mensurações antropológicas. “O laudo do dr. Franco concluía que o homem era mulato, muito adiantado é verdade, um quarteirão, mas ainda com grandes sinais antropológicos da raça negra.” Raça era, pois, um argumento em si, a comprovar, previamente, qualquer crime. Abolia-se a necessidade de comprovação factual. A confissão já vinha embutida na superfície da pele.62

Somente na parte VIII do livro, com mais da metade do enredo andado, é que Isaías consegue seu emprego e uma maior estabilidade financeira: vai trabalhar num grande jornal da cidade. Apesar disso, as duas partes do romance não são, definitivamente, distintas e estanques. A partir daí, embora vivendo uma nova situação social, o protagonista carregaria as mesmas dificuldades e contradições de seus tempos iniciais na capital. Não voltaria, porém, a manifestar a esperança inocente com que ali chegou. Tudo lhe parecia, agora, falso e artificial: os deputados, a polícia, a política, os políticos, a civilização e, sobretudo, os jornalistas.

Quem é quem nas Recordações do escrivão Isaías Caminha

Confiança e desconfiança fariam parte da personalidade do protagonista do livro. No auge do desespero, quando tudo parecia insistir em não dar certo, Isaías finalmente arruma um emprego de contínuo na redação de O Globo, jornal que, todos sabiam, já na época, correspondia ao Correio da Manhã, para o qual Lima trabalhara no ano de 1905. Por isso mesmo ele conhecia bem os bastidores da redação e o ambiente entre os seus profissionais. O fato é que o romance envereda para a descrição da vida e do cotidiano do periódico, mas, dessa vez, sem usar o subterfúgio de dizer e voltar atrás. A crítica é direta, impiedosa, cheia de detalhes, a despeito de o autor se valer de pseudônimos para nomear uma série de jornalistas e literatos envolvidos na trama.

O caso mais frequente, e que está presente desde o início do romance, é o de João do Rio, de quem Lima não disfarça sua “bronca”. Na terceira parte do livro nos é apresentado o jovem jornalista Raul Gusmão. Na primeira menção a ele, escorre a malícia de Lima/Isaías, que estranha “a voz fanhosa, sem acento de sexo, e emitida com grande esforço doloroso”. A insinuação da homossexualidade de Gusmão estará sempre evidente, introduzida com ironia, o que só deve ter azeitado a inimizade entre os dois e a pirraça com que João do Rio passaria a tratar de Lima Barreto vida afora.

Por exemplo, quando o original de Lima chegou ao editor português pelas mãos de Noronha Santos, João do Rio, que se encontrava em Lisboa na ocasião, teria mentido, dizendo “desconhecer” aquele autor. Mas Lima tinha feito por merecer tal “desconhecimento”. Afinal, a caracterização do personagem — conhecida desde a publicação de trechos do romance na Floreal — era repleta de preconceitos e caricaturas: “Essa sua voz de parto difícil, esse espumar de sons ou gritos de um antropoide que há pouco tivesse adquirido a palavra articulada, deu-me não sei que mal-estar, que não mais falei até à sua despedida […]. Fiquei a ouvi-lo respeitosamente, tanto mais que nos tratou, a mim e ao padeiro, com tal desdém, com tal superioridade que fiquei entibiado, esmagado, diante do retrato, que dele fiz intimamente, de um grande literato, universal e aclamado, espécie de Balzac ou Dickens, apesar da voz de Pithecanthropus. Falava e não nos olhava quase; errava os olhos — os olhos pequeninos dentro de umas órbitas quase circulares a lembrar vagamente uma raça qualquer de suíno”.63

Pithecanthropus, raça de suíno, falso literato, são alguns dos atributos que Lima repete durante o romance, mostrando seu escárnio, e inclusive tornando a narrativa reiterativa. É fato que João do Rio, em seu As religiões no Rio, cuja primeira edição data de alguns anos antes, 1904, também usou termos semelhantes para definir os terreiros de candomblé, que caracterizou como “antros de gorilas manhosos e de uma súcia de pretas cínicas e histéricas”.64 Mais uma vez, não é possível apostar na coincidência dos termos e na possível revanche do autor de Isaías Caminha. Mas o certo é que qualquer coisa referente a Raul Gusmão logo virava “falsa” e “insolente”: a maneira como pedia “vinhos antigos”; tirava “uma preguiçosa fumaça do charuto”; pedia bebidas importadas “como peppermint e uma dose de Xerez”; pegava “na colherzinha com dois dedos”. Tudo parecia irritar Lima/Isaías: os “gestos”, as “palavras”, as opiniões e os costumes, “o alentado corpanzil encostado à bengala vergada”.65 Evidentemente desequilibrado quando se trata de definir Gusmão/João do Rio, Isaías resume o personagem deste modo: “Nos confins da minha aldeia natal, eu não podia adivinhar que o Rio contivesse exemplar tão curioso do gênero humano, uma desencontrada mistura de porco e de símio adiantado, ainda por cima jornalista ou coisa que o valha, exuberante de gestos inéditos e frases imprevistas”.66 Enfim, havia uma guerra surda mas declarada.

João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, o João do Rio, era naquela altura uma personalidade carioca, autor de crônicas de grande sensibilidade e muito renomadas no ambiente literário. Data de 1904 sua série de reportagens intitulada “As religiões do Rio”, quando tratou dos cultos africanos na cidade. O sucesso foi tal que os textos logo viraram livro. Em apenas seis meses, 8 mil exemplares foram vendidos, e a obra facultou a entrada do cronista na ABL , em 1910.67

Por sua vez, a orientação sexual de João Paulo Coelho Barreto sempre gerou suspeita e muita troça por parte dos colegas. Tradutor de várias obras de Oscar Wilde, um “dândi de salão”, João do Rio desafiou essa sociedade que conferia pouco espaço à diversidade sexual. Talvez levado pela caçoada geral, Lima, em vez de poupar o colega, incendiou ainda mais os termos. “Figura inflada”, “mescla de suíno e símio”, “fisionomia de porco Yorkshire” num “corpo alentado de elefante indiano”, “sorriso afetado”, “covardia moral”, são algumas das imagens que Lima/Isaías usa, trazendo a público, na ficção, as chacotas dos bastidores.

Em certo momento do livro, aliás sem grande importância para o desenvolvimento da narrativa, Isaías Caminha participa de um diálogo acerca da sexualidade do colega. “Era de fato ele de braço com o Oliveira. Vestia um grande fraque de xadrez; tinha botinas de verniz com os canos de pano e marchava conversando com o companheiro, apertando os olhos e procurando os mais surpreendentes gestos que lhe viessem aumentar a reputação jornalística […] — É verdade o que se diz por aí dele? indagou a meia voz o solicitador. — Não sei, nunca vi, mas, no domingo, nós… […] vimo-lo entrar numa hospedaria da rua da Alfândega com um fuzileiro naval. — Que coisa! Mas será verdade? — Qual, disse Leiva, não creio. Ele faz constar isso e faz suspeitar, para se ter em melhor conta o seu talento. O público quer que o seu talento artístico tenha um pouco de vício; aos seus olhos, isso o aumenta extraordinariamente, dá-lhe mais valor e faz com que o escritor ganhe mais dinheiro. — Como é então que entrou na hospedaria? indagou Marques. — Tinha-nos visto e, mediante uma gorjeta, obrigou o soldado a prestar-se ao papel…”68

O escritor, que assumia papel tão significativo na denúncia do racismo vigente no país, não parecia se comover muito com outras minorias que também sofriam preconceito e exclusão social. Por outro lado, se Lima deveria apreciar o tipo de jornalismo que João do Rio realizava, não deveria aprovar sua carreira literária e as concessões sociais que fazia. Não fica difícil, portanto, entender o “troco” que João do Rio lhe daria não apoiando a publicação de seu livro e sua futura candidatura à ABL.

Outros jornalistas também saíram chamuscados em Recordações. Florêncio, por exemplo, seria o já mencionado Figueiredo Pimentel, que assinava a conhecida coluna “Binóculo”, publicada na Gazeta de Noticias. Originalmente autor de romances e de livros infantis, Pimentel virou colunista social e acabou ditando moda. Na história de Lima, o personagem por ele inspirado é pego em flagrante ao roubar um livro. Ricardo Loberant seria Edmundo Bittencourt, o proprietário do Correio da Manhã, que fundou o jornal em 1901. Na ficção ele é o autoritário diretor/proprietário de O Globo, o “moralizador da República”. Pacheco Rabelo é Pedro Leão Veloso Filho, o Gil Vidal, um dos fundadores do Correio e que atuava, na época, como redator-chefe. Ele é descrito como a “segunda cabeça da casa”, um sujeito irascível e igualmente autoritário. “Um homem gordo que se movia pela sala com a dificuldade de um boi que arrasta a relha enterrada na charrua.”69 E por aí vamos. Leporace, o “secretário, arrogante como todo jornalista”, é Vicente Piragibe, redator do Correio e depois diretor de A Epoca. Frederico Lourenço do Couto, o Floc, era João Itiberê da Cunha, que assinava como Jic a crítica teatral e musical daquele jornal. Sempre de casaca, Floc matou-se na própria redação. Lobo, aquele que tratava das “escoras gramaticais” e que, no romance, terminou no hospício, era Cândido Lago, responsável no mesmo periódico pela seção “O que é correto”. Losque era Gastão Bousquet, redato do Correio, que na pena de Isaías vira uma “espécie de cavalaria parta viva no ataque e capaz de deitar frechas mortais na retirada”.70

Desse fogo cruzado nem os literatos escaparam. Veiga Filho é o escritor Coelho Neto, que no livro recebe um tratamento pra lá de cruel. Lima sempre duvidara — e continuaria duvidando até o fim da vida — do talento do acadêmico, visto por ele como símbolo maior da hipocrisia literária vigente na sociedade carioca. Assim o descreve Isaías: “O grande romancista de frases campanudas, o fecundo conteur […] Era aquele o homem extraordinário que a gente tinha que ler com um dicionário na mão? Era aquela a forte cerebração literária que escrevia dois e três volumes por ano […]?”.71

O próprio Lima está representado na figura de Plínio de Andrade ou Plínio Gravatá de quem escreve: “Plínio Gravatá, mais por sistema do que por qualquer outra coisa, continuava a dispensar-me a consideração de igual…”.72 Não é o caso de multiplicar os exemplos;73 o que importa é mostrar que, nessa segunda parte, o romance é mesmo à clef e concede muito aos gostos e desgostos de Lima. Literatos e jornalistas são descritos como superficiais, sem ética, mundanos e atentos somente aos negócios e ao conchavo. “A Imprensa! Que quadrilha! […] Nada há tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno […]. Todos nós temos que nos submeter a eles, adulá-los, chamá-los gênios, embora intimamente os sintamos ignorantes, parvos, imorais e bestas. […] Fazem de imbecis gênios, de gênios imbecis […].”74 Numa referência, ainda que sem a devida citação, Lima homenageia Balzac, um de seus autores preferidos: “Era a Imprensa, a Onipotente Imprensa, o quarto poder fora da Constituição!”.75 Aí está uma espécie de Ilusões perdidas desse Balzac tropical, com Lima reconhecendo na imprensa o quarto poder da República, artificial e coadunada com os embelezamentos empreendidos por Pereira Passos, outro alvo dileto do escritor.

Falando em reformas urbanas, elas não escapariam ilesas dos ataques de Lima/Isaías. O escritor inventa uma medida compulsória criada pela República acerca “dos sapatos obrigatórios” e, a partir dela, critica os projetos de modernização do Rio. Mas a brincadeira nada tem de ingênua; tem destino certo. Trata-se de uma dupla alusão. De um lado, o autor de Recordações refere-se a uma interdição antiga e imposta pela lógica do costume que impedia escravizados de usar sapatos. Estes ganharam tal valor simbólico que, logo após a abolição, vários libertos correram às lojas para comprar calçados, transformados em metáfora de liberdade.76 No entanto, há outro paralelo possível. Sabemos que Lima escreveu sobre a Revolta da Vacina, a qual ocorreu no Rio de Janeiro nos idos de 1904. Se a medida era correta, uma vez que visava erradicar a febre amarela na cidade, a forma autoritária como foi implementada gerou verdadeira comoção popular. Por isso Lima ironiza a falta de comunicação vigente naqueles primeiros anos da República e o abismo que ela ia criando diante de seus cidadãos. “Nascera a questão dos sapatos obrigatórios de um projeto do Conselho Municipal, que foi aprovado e sancionado, determinando que todos os transeuntes da cidade […] seriam obrigados a vir calçados. Nós passávamos então por uma dessas crises de elegância, que, de quando em quando, nos visita. Estávamos fatigados da nossa mediania, do nosso relaxamento; a visão de Buenos Aires, muito limpa, catita, elegante, provocava-nos e enchia-nos de loucos desejos de igualá-la.”77

Entre acertos e erros, escárnio e mensagem dirigida, Lima mostrava suas garras diante da imprensa, e fazia dela uma plataforma de ataque à República das Letras e a tudo aquilo de que se julgava excluído. A investida, forte, não foi em vão. No caso da imprensa, o silêncio foi o melhor contra-ataque.

Estratégia equivocada

Por essas e por outras é que não há coincidência no fato de Lima Barreto ter escolhido exatamente Recordações do escrivão Isaías Caminha para se lançar como escritor. O romance trazia de tudo um pouco — crítica social, fofoca literária, bastidores do jornalismo; o suficiente para chamar bastante atenção e causar escândalo. A decisão se revelaria, porém, equivocada. A fria recepção que a obra mereceu é prova de seu desajuste, ao menos na época.

Já mencionamos que o próprio Lima trabalhara no Correio da Manhã — cujo diretor então era “o autoritário” Edmundo Bittencourt —, produzindo uma série de matérias não assinadas. De 28 de abril a 3 de junho de 1905, publicou as reportagens “O subterrâneo do morro do Castelo”. Talvez por isso não seja o caso de pensar numa vingança contra o Correio, apenas. Quem sabe o escritor visasse atingir o periodismo de um modo mais geral e só tenha selecionado esse periódico por ser ele o exemplo de maior sucesso naquele momento. Atingi-lo representava atacar “o jornalismo moderno” de forma ampla, e a todos que teriam por prática o ato que o escritor atribuiu a O Globo: “vendeu-se, vendeu-se, vendeu-se…”.78

Não vale a pena desempatar a partida e decidir se a crítica era dirigida ou não. O importante é que na época o Correio representava, para Lima, o protótipo da imprensa que ele gostava de criticar, formada por jornalistas ligeiros, habituados a publicar crônicas superficiais. Mas há outro lado nessa história. Se é certo que o autor pretendia escancarar as fragilidades dos noticiosos brasileiros — e as muitas injustiças que, com certeza, ocorriam —, queria também gerar escândalo e virar, ele próprio (com seu livro), notícia: “Se lá pus certas figuras e o jornal, foi para escandalizar e provocar a atenção para a minha brochura. Não sei se o processo é decente, mas foi aquele que me surgiu para lutar contra a indiferença, a má vontade dos nossos mandarins literários”.79

Há, pois, uma clara estratégia de inserção literária construída por meio de vários “anti”: antiacademia, antiformalismo, antijornalismo, antirrepública. E, em tal contexto, nada como atacar o periodismo e, assim, resvalar em todo o resto. Afinal, é evidente o moralismo das acusações presentes em Recordações, que constrói uma imagem cruel desse ambiente profissional e exclui da avaliação apenas o autor do livro. A atitude era coerente com a atuação de Lima e da nova geração de escritores que pretendia opor-se a tudo que fosse estabelecido e consolidado, até porque se encontravam afastados dessas instituições de consagração. Além do mais, ao citar com frequência alguns de seus mestres — como Taine e Eça de Queirós —, Lima procurava passar atestado acerca de seus próprios modelos. Uma literatura engajada, preocupada em conscientizar os leitores dos problemas de sua sociedade.80 Essa seria a função social de sua literatura, bem como a justificativa, mais digna, para seu romance de estreia.

A verdade é que o livro não vendeu nem gerou o escândalo público imaginado por Lima. Nas diferentes críticas e em boa parte das notas publicadas a respeito do romance, a avaliação parecia unânime: ele ficava devendo demais à realidade local. O Paiz de 25 de janeiro de 1910, por exemplo, salientou que uma “literatura de escândalo, isto é, de crítica pessoal e direta”, estaria “irrompendo no nosso meio com alguma violência”. Citava então o “livro irreverente de Lima Barreto, um escritor novo e fulgurante, que desenhava nas Recordações do escrivão Isaías Caminha os perfis mais evidentes do nosso mundo literário e jornalístico, exagerando-lhes as deformidades, os defeitos, os senões, e exercendo sobre eles, com um prazer satânico, uma espécie de vingança de rebelado”. Para contrastar com o livro resenhado, o autor mencionava a nova obra de Elísio de Carvalho, Five o’clock,81 que também retratava o mundo das letras mas que se convertera, segundo ele, num incontestável sucesso de público.82

Já na “Nota à margem”, que saiu em Careta de 5 de fevereiro de 1910, “Frei Antônio” observa que, tendo Lima Barreto “surpreendido, no interior de um jornal em atividade, algumas figuras de jornalistas”, agora, depois de tê-las fotografado, “exibe-as com indiscrição nas páginas de suas Memórias do escrivão Isaías Caminha”. O autor da matéria claramente oscila entre condenar e elogiar o caráter alusivo do romance. Ao fim e ao cabo, esquiva-se e conclui: “Se as Memórias são um livro de ódio e vingança, podereis (vós, não eu) contestar a nobreza destes sentimentos”.83

De todo modo, Lima deixava aos poucos de ser um mero desconhecido. Figurava até em crônicas na imprensa. Na seção “Fora do sério”, de A Epoca de 12 de abril de 1913, um artigo assinado por R. Dente e que leva o nome de “Autêntica” — no sentido de “piada autêntica” — mais um pseudônimo a esconder a identidade de seu autor — apresenta um encontro imaginário entre o amanuense e um jornalista: “O Lima Barreto encontra um conhecido jornalista, célebre pela sua mania de citações. O jornalista puxa de uma tesoura, com que corta a ponta de um charuto. — Para que traz, você, esta tesoura? Perguntou o Lima. — Ora, não estás vendo? Para cortar os meus charutos. — Ah! Pensei que fosse para escreveres os teus artigos…”.84

Enfim, Lima ia ficando conhecido no meio literário como um autor crítico e pernóstico; mas seu livro não vendeu. Em carta ao amigo, jornalista e magistrado piauiense Esmaragdo de Freitas,85 que publicara resenha sobre o Isaías Caminha, Lima elaborou uma espécie de avaliação do desempenho do romance: “Ninguém quis ver no livro nada mais que um simples romance à clef, destinado a atacar tais e quais pessoas; os que gostaram foi por isto, os que não gostaram foi por isto também. Há alguma cousa a mais do que isso no meu modesto volume”.86 Ele não deixava de ter razão. O livro recebeu pouquíssimas críticas sérias, e elas repisavam o mesmo argumento. De resto, reinava um silêncio frustrante para quem pretendia, em sua estreia, polemizar e conquistar lugar de evidência.

O resultado pífio de vendas poderia ser considerado ainda pior quando comparado ao de outros romances que saíram naquele ano de 1909. Fiquemos apenas com o tão caricaturado João do Rio. Lima Barreto, que foi obrigado a abrir mão dos direitos autorais de Recordações, devia saber que a Garnier pagara a João o valor de 1:000$000 pela venda dos direitos de Dentro da noite. No ano anterior, este recebera 1:500$000 da editora Francisco Alves pela venda dos direitos de Era uma vez…, em coautoria com Viriato Corrêa. Em 1907, a Garnier lhe adiantou 2:000$000 para que escrevesse duas obras: Momento literário e A alma encantadora das ruas.87 A Lima couberam, como forma de pagamento pela publicação de Isaías Caminha, apenas alguns exemplares, e ele próprio tratou de divulgar seu trabalho. As inúmeras cartas que enviou a amigos, livreiros, pessoas influentes, atestam o empenho do escritor na distribuição e venda do livro. Isso sem esquecer o fato de ele ter sido lançado por uma editora portuguesa, o que tornava ainda mais difícil aferir-lhe o desempenho no mercado livreiro nacional.

Mas o malogro maior veio da atitude do Correio da Manhã. Principal alvo de ataque, o grande jornal simplesmente ignorou a existência do romance, e vetou o nome de Lima na sua redação e nas suas páginas. Como se dizia na época, foi um “silêncio olímpico”. Já os demais periódicos, fazendo coro a certa “ética de classe”, devem ter achado mais prudente calar, ao menos por um tempo, diante de uma obra considerada absolutamente “inconveniente”.88 Foram poucas as exceções: Alcides Maia, no Diario de Noticias, decretou que o livro não passava de uma “verdadeira crônica íntima de vingança, diário atormentado de reminiscências más”, e Medeiros e Albuquerque, em A Noticia, escreveu tratar-se de “um mau romance e um mau panfleto”;89 alegava que era “uma decepção, porque todo ele é feito de alusões pessoais, de descrição de pessoas conhecidas, pintadas de um modo deprimente”. O uso de personalidades do jornalismo para basear personagens da obra, ainda de acordo com Medeiros e Albuquerque, representaria a falta de coragem do autor para realizar uma investida direta às pessoas “que mesmo os panfletários mais virulentos deveriam respeitar”. Aí estaria, segundo ele, uma tentativa de causar escândalo sobre motivos pessoais e extraliterários.

Medeiros e Albuquerque não era figura qualquer. Jornalista, professor, político, literato, teatrólogo, ensaísta e memorialista, compôs a letra do Hino da Proclamação da República e entrou na ABL. Talvez por conta dessa sua biografia influente, Lima tenha se dirigido a ele, em carta datada de 15 de dezembro de 1909, tentando desfazer a má impressão: “Estou certo de que as pessoas que não me conhecem só poderão ter a impressão que o senhor teve. Há, entretanto, alguma coisa que a justifique, dentro mesmo dos motivos literários. Se a revolta foi além dos limites, ela tem contudo motivos sérios e poderosos”.90

Cauteloso, o escritor procurou explicar suas razões no que se referia aos personagens: “há (ouso pensar) uma simples questão de momento. Caso o livro consiga viver, dentro de curto prazo ninguém mais se lembrará de apontar tal ou qual pessoa conhecida como sendo tal ou qual personagem”.91 O autor de Recordações tentava, assim, tirar o foco dos pseudônimos com o propósito de destacar as qualidades literárias da obra. Mas o tempo provaria que Lima, nesse aspecto, estava equivocado. Pois, se o enredo é considerado menos bem-acabado, mesmo quando comparado ao de outros livros de sua autoria, os jornalistas indiretamente citados e todo o ambiente em que viviam ainda são tomados como documentos históricos, fundamentais para descrever os primeiros anos da República. Por outro lado, tinha razão ao buscar igualmente se desvincular de seu personagem. Afinal, literatura é o que faz. E Isaías, sendo criatura de um escritor, era “outro” também, e não se limitava à mera projeção pessoal.

Até o consagrado crítico José Veríssimo, o qual, como vimos, saudara positivamente a Floreal, bem como o romance do escritor que nela saía na forma de folhetim, mudou a sua avaliação ao ler o livro até o seu final. Em carta endereçada diretamente a Lima, escreveu que, apesar de sua primeira “impressão geral […] excelente” sobre o livro, encontrou “nele, porém, um defeito grave […] É pessoalíssimo, e, o que é pior, sente-se demais que o é. Perdoe-me o pedantismo, mas a arte, a arte que o senhor tem capacidades para fazer, é representação, é síntese, é, mesmo realista, idealização […]. A cópia, a reprodução, mais ou menos exata, mais ou menos caricatural, mas que se não chega a fazer a síntese de tipos, situações, estados d’alma, a fotografia literária da vida, pode agradar à malícia dos contemporâneos que põe um nome sobre cada pseudônimo, mas, escapando à posteridade […] Eu que isto lhe digo, eu mesmo me deliciei, com a sua exata e justa pintura da nossa vida jornalística e literária, mas não dou por boa a emoção que ela me causou”.92

Veríssimo denunciava a verdadeira mania que tomara conta da elite carioca de “pôr um nome sobre cada pseudônimo”. Além do mais, mudou de opinião; se na época da Floreal saudou os primeiros capítulos do livro — de maneira que Lima até o citou no falso prefácio que abre a obra —, agora entrava no coro dos críticos e acusava a caricatura. Ao que tudo indica, o que levou à censura velada de Recordações, diferentemente do que dizia o reconhecido crítico, não foi apenas o fato de o romance ser à clef; foi antes a atitude, considerada atrevida, para um escritor principiante. E Lima sabia disso. Tanto que presentearia o amigo Noronha com um exemplar do também à clef A esfinge, de Afrânio Peixoto, devidamente lido e anotado. Na dedicatória ficam registradas a ironia e a contrariedade do autor de Isaías Caminha: “Ao Sr. Dr. Antônio Noronha Santos, desejando que tenha na sua estante uma eloquente prova da importância do senso literário nacional e também do critério que, por este século XX, ainda se tem, entre nós, do romance”. E numa margem do livro escreveu: “É à clef, e eles elogiaram”.93 O próprio Medeiros e Albuquerque, que enxergara no livro de Lima “um mau romance e um mau panfleto”, no caso de A esfinge escreveu resenha em tudo diversa, elogiando-o como “um documento precioso para o estudo do nosso tempo”, onde não havia “excesso” ou “caricatura”.94

Assim, o que estava em jogo, e Lima logo intuiu, não eram as qualidades literárias dos dois romances coetâneos, mas a origem social dos autores: um deles, negro, morador do subúrbio e funcionário público sem expressão que ousava se lançar como escritor; o outro, um jovem branco, médico e professor da Faculdade de Medicina, que, antes até de publicar um livro, já se tornara membro da ABL. No entendimento de Lima, a responsabilidade pelo fracasso da obra não podia estar nela mesma; havia de estar em outro lugar. De toda maneira, ele repetia para si o que via em seu personagem: o estigma racial é que explicava o bom ou o mau destino de um livro, bem como a atitude de crítica a essa artificiosa República das Letras, tema que jamais sairia da pauta do escritor.

Não há como esquecer que o personagem/narrador Isaías traz o nome de profeta; aquele que reivindica a verdadeira religião. Também é o profeta Isaías aquele que traz a salvação e cujo nome significa “ajuda” e “auxílio”. Enfim, levando o nome do protagonista a sério, e nos fiando nos princípios do realismo e do gênero à clef, quem sabe concluiríamos não haver acaso na escolha do narrador. Isaías seria então um mensageiro que traria a salvação ao anunciar as mazelas sociais de seu momento.95

Talvez por conta dessa conversa íntima com seu contexto, se Isaías Caminha é até hoje muito lido, para a sua plena compreensão, sobretudo a de sua segunda parte, o livro pede uma espécie de “bula”, de forma que se evidenciem instituições, personagens, episódios destacados e o próprio autor camuflado na obra. Já o escritor preferiu pôr a culpa na sociedade, mas sentiu o golpe. Justo ele que esperava tanto desse seu romance de estreia. Coincidência ou não, foi na mesma época que o amanuense começou a fazer da bebida mais que um passatempo; ela foi virando sua parceira de toda hora. “Vai me faltando energia”, escreve Lima em seu Diário. “Já não consigo ler um livro inteiro, já tenho náuseas de tudo, já escrevo com esforço. Só o Álcool me dá prazer e me tenta… Oh! Meu Deus! Onde irei parar!”96

O alcoolismo, mal que acometera seu pai, perseguiria o escritor daí até o fim da vida. E Lima passaria a ser visto andando maltrapilho pelas ruas, agindo de modo inconveniente com os amigos, ou sentado nos bares com uma garrafa de parati ou de cerveja na mão. Nessa época, aliás, ganharia outra fama, sem dúvida contrária ao bom-mocismo da Academia: a de boêmio contumaz.

Se a dor da exclusão social e a realidade da humilhação das populações afro-brasileiras, mas também seus gestos, modos de viver e certo sentimento estético e religioso já faziam parte de seu projeto literário — que por vezes ele chamava de negrismo —, nesse momento a diferença viraria ressentimento e até mania de perseguição. E a situação era certamente complexa. Por um lado, Lima parecia não dominar o vocabulário social do grupo literário preponderante; por outro, acabava impondo-se com suas críticas e a maneira nada generosa como descrevia os colegas. De toda forma, o livro serviu para “vestir” o artista, que adquiria não só a reputação de “terrível”, como a de escritor da nova geração que surgia na década de 1910, buscando romper com os cânones mais assentados e incluindo outros espaços sociais para a literatura. Em 1911, no anúncio da publicação do conto “A nova Califórnia” pela Revista Americana, citou-se também o livro sobre Isaías Caminha, assinalando-se que a obra conferira ao autor um lugar entre “os novos que vêm surgindo à vida literária do Brasil”.97 Numa coluna mais tardia, que saiu em O Paiz no dia 9 de julho de 1915, comentava-se a visita de alguns jornalistas brasileiros a Buenos Aires. A nota mencionava que muitos deles tinham se admirado ao encontrar na biblioteca particular de um escritor argentino “um livro que aqui teve o seu quarto de hora de notoriedade, mas não chegou a ser um sucesso de livraria”. Era um exemplar de Recordações: “Houve quem entre eles, sentisse os frêmitos da vaidade, parado diante da lombada do livro de Lima Barreto, tão cuidadosamente acondicionado numa estante luxuosa”.98

Nos desenhos pertencentes à coleção da Biblioteca José Mindlin, vemos um Lima Barreto boêmio, concentrado, à mesa de um bar.

 

Lima não se intimidaria, porém, com a recepção fria, e continuaria com sua militância literária e política. Por sinal, nessa mesma época — entre 1909 e 1910 —, ele andava engajado na acirrada campanha eleitoral para a Presidência, que contava com dois candidatos: o marechal Hermes da Fonseca, o qual representava a volta do militarismo, e Rui Barbosa; o jurista, político e diplomata, que fora coautor da primeira Constituição e primeiro ministro da Fazenda do regime instaurado em novembro de 1889, sendo um dos responsáveis pela demissão do pai de Lima.

Era a primeira vez durante a República que a população se mobilizava em grandes comícios. Rui Barbosa pôs em cena, então, um debate de ideias que privilegiava o respeito às leis e a prevalência da educação, da cultura e da moralidade pública.99 Lima deve ter colocado o passado em hibernação, e se afirmaria, então, como um anti-hermista de primeira hora, defendendo palavras de ordem da campanha de Rui: em nome “da liberdade, da cultura e da tolerância”. Pelo menos é esse o teor da missiva que ele enviou ao candidato civilista, a qual vinha assinada por Isaías Caminha.100 Quem sabe tivesse medo de retaliações na Secretaria da Guerra; quem sabe se sentisse melhor valendo-se da personalidade de sua “criatura”, que, diferentemente dele, no final do romance se encontrava mais estabelecida e podia escrever o que bem entendesse.

Foi assim, e contra qualquer prognóstico, que ele virou um adepto da causa civilista e aderiu ao nome de Rui Barbosa, cujo prestígio aglutinava todos os grupos de oposição contra o até então ministro da Guerra, Hermes da Fonseca. No dia 14 de junho de 1909, em plena campanha, o presidente Afonso Pena morreu (vítima de “traumatismo moral”, conforme se brincava na ocasião), e seu vice, Nilo Peçanha, assumiu o governo. A comoção foi grande, e o próprio Lima descreveria o episódio em seu conto e futuro livro, Numa e a ninfa, e num divertido panfleto, intitulado O Papão, que organizou com Noronha Santos.101

Folheto feito e distribuído por Lima Barreto e Noronha Santos a favor da Campanha Civilista, 1909.

 

O descontentamento ia crescendo na mesma proporção em que se consolidava a candidatura de Rui Barbosa: o bacharel contra o militar; o jurista versus o general. No dia 22 de setembro houve o episódio conhecido como Primavera de Sangue, que, a despeito de não estar vinculado diretamente à campanha pela sucessão presidencial, acabou apimentando ainda mais a situação. O estopim foi um conflito ocorrido nas ruas do Rio, durante uma passeata da primavera, quando os estudantes e o comandante da Brigada Policial se desentenderam. Representantes dos estudantes foram à polícia reclamar dos procedimentos violentos dos soldados, mas o general Sousa Aguiar não os atendeu.102

A celebração da primavera nada tinha a ver com a batalha eleitoral; era uma atividade tradicional dos estudantes (realizada em vários países sul-americanos) e vinha sempre associada a algum tipo de protesto. Aproveitando o ensejo, no mês de setembro de 1909 os alunos cariocas introduziram no ritual o enterro simbólico do general Sousa Aguiar. A expressão “matar de ridículo” vem dessa espécie de enterro político. Mas o general não aprovou a brincadeira: possesso, mandou a força policial interromper a celebração. E assim o ritual, que não passava de uma passeata com ares de Carnaval, provocou tumulto e terminou com a morte de dois estudantes e diversos feridos. O evento gerou comoção na cidade. Mesmo com tamanha agitação, a vitória foi de Hermes da Fonseca, que só conseguiu assumir seu cargo em 1910 por conta da temperatura alta vigente na capital.

No mesmo mês, organizou-se um tribunal do júri para avaliar o episódio do assassinato dos dois estudantes. Os acusados pertenciam todos ao Exército e, entre os jurados, estava o terceiro escriturário da Secretaria da Guerra: Lima Barreto. O clima era de muita tensão: o Exército ameaçou invadir o tribunal e os jurados receberam ameaças de morte.103 Por sua vez, os jornais do dia 14 de setembro deram grande cobertura à primeira sessão do júri, que votou pela condenação do tenente João Aurélio Lins Wanderley, sobrinho do general Aguiar, e seus companheiros. O episódio, que já era complexo, custaria ainda mais caro ao funcionário público Lima Barreto. Não se pode ter certeza da causa, no entanto o amanuense não ascenderia em sua carreira na Secretaria da Guerra. Tampouco seria convocado para o segundo julgamento, que acabou por absolver o tenente.104

Lima Barreto, na época do julgamento do tenente Wanderley, com traje completo. Setembro de 1910.

 

Das poucas fotos que restaram do escritor, duas foram tiradas na época do julgamento. Não sabemos por que Lima foi chamado para compor o polêmico júri, mas o fato é que ele não se furtou a tal missão. Nas imagens, aparece bem-vestido, atento, e quem sabe ciente da proeminência — não conquistada com o livro — que poderia ganhar com a situação. Até o Correio da Manhã, que, como sabemos, havia decretado veto ao seu nome, abriu uma exceção e elogiou-lhe a atuação no evento.

Isso era fogo de palha. Passado o segundo certame, que condenou o tenente Wanderley, Lima viu sua carreira de funcionário, e inclusive no grande jornalismo, deparar com sérios impedimentos. Sua carreira como servidor público jamais decolaria, quem sabe por conta de sua atuação na qualidade de jurado, quem sabe por sua atitude individual e das constantes licenças que passou a pedir.

Não há de ser coincidência que, em 1o de fevereiro desse ano de 1912, Lima tenha requerido e recebido licença para tratar a saúde até dia 30 de abril, com a justificativa de “reumatismo poliarticular, hipercinese cardíaca”. Esses eram problemas físicos mais ligados à bebida do que à tensão do julgamento. De toda maneira, fica claro como o escritor manifestava a firme intenção de não voltar mais ao serviço. Em carta de 1912, Lima atesta não ser de sua “disposição íntima” ir à secretaria, e autoriza o sr. Machado, a quem dirige a missiva, a “proceder de acordo com o regulamento”. Explica, ainda, que não tinha como expor seus “motivos” íntimos, mas que também não queria “criar embaraços”. E finaliza: “Meu caro Senhor Machado, o senhor deve conhecer bem aquele rifão que diz: vão-se os anéis, mas fiquem os dedos”.

O certo é que Lima se equilibrava nessa sua balança pessoal: de um lado, colocaria muito pouca energia no seu trabalho enquanto funcionário do Estado; de outro, jogaria todo o seu esforço na construção de sua “persona literária”, sempre independente e do contra. Em artigo de 1911, o escritor reconhecia: “O que tenho são implicâncias parvas; e é só isso. Implico com três ou quatro sujeitos das letras, com a Câmara, com os diplomatas, com Botafogo e Petrópolis; e não é em nome de teoria alguma, porque não sou republicano, não sou socialista, não sou anarquista, não sou nada: tenho implicâncias”.105 A quantidade de nãos é reveladora da sua posição afirmativa. Se o texto é fiel ao que o escritor entendia sobre si mesmo e acerca da sua atuação, significava também um atestado de como ele negociava com suas próprias pretensões e ia construindo — às vezes por opção e muitas vezes pela falta de opção — sua condição de “marginal”.106 Acreditou tanto na representação, que nela se enredou. Recordações do escrivão Isaías Caminha seria lido dessa forma em sua época, e o próprio criador acabaria se vestindo com seu personagem.

Significativa, nesse sentido, foi a crônica escrita para o Correio da Noite em 18 de janeiro de 1915, “O nosso secretário”. Nela, Lima volta a seu argumento sobre o clima reinante nas redações de jornal: “Dizem os metafísicos que o fundo do ser é a contradição; o fundo desta vida de jornais é também a contradição. Berram eles pelos princípios morais, reclamam lealdade entre os homens, generosidade, clemência, justiça etc. etc., e nada disso há entre os seus profissionais. Nas suas relações mútuas mais domina o azedume do que a cordialidade; mais a intolerância do que o perdão mútuo. Quem vive dentro do jornalismo, tem a impressão de que está entre lobos; os homens de jornais se devoram. Há mesmo a teoria do ‘tombo’. Consiste […] em se meter um sujeito em um jornal, por intermédio deste ou daquele, fazer artes e coisas, e derrubar o protetor. São intrigas de serralho, mas às quais ninguém escapa, quer como paciente, quer como agente, quer como agente-paciente”.107

Os jornais padeceriam, portanto, dessa teoria do “tombo”, e Lima parecia chamar para si a missão de denunciá-la, a despeito de pretender estar sempre perto dela. Se os jornais eram criadores de ficção, a ficção desse escritor era também, e à sua maneira, uma criadora de realidades: a sua realidade acerca dos jornais cariocas. Em 1917, quando publicou Recordações pela segunda vez, e então no Brasil, Lima acrescentou quatro curtos parágrafos à “Breve notícia”, e os datou e localizou: “Todos os Santos, 31 de dezembro de 1916”. Assim como Lima Barreto, seu personagem Isaías Caminha teria mudado de Caxambi, no Espírito Santo, para o bairro onde o escritor agora morava.