Política de e entre doutores
Desde menino, sentira bem que era preciso não perder de vista a submissão aos grandes do dia, adquirir distinções rápidas, formaturas, cargos, títulos, de forma a ir se extremando bem etiquetado, doutor, sócio de qualquer instituto, acadêmico ou coisa que o valha, da massa anônima. Era preciso ficar bem endossado, ceder sempre às ideias e aos preconceitos atuais. […] Era preciso dominar e, na sua espessa mediocridade, esse desejo guiava todos os sentimentos e matava outra qualquer veleidade mais nobre.
— Lima Barreto, Numa e a ninfa
Galeria de personagens criados por Lima Barreto para figurar no romance Numa e a ninfa. A Noite, 12 de março de 1915.
Na década inicial do século XX, o mundo da política andava muito agitado, sobretudo na capital federal. Como vimos, recebeu o nome de Campanha Civilista a participação do baiano Rui Barbosa na corrida para a Presidência, que ocorreu entre 1909 e 1910. A vitória seria do marechal Hermes da Fonseca, em 1910, mas a disputa eleitoral significou a primeira grande fissura na política do café com leite, que fazia oscilar no poder, desde a escolha de Prudente de Morais em 1894, um político de Minas Gerais e outro de São Paulo. Nesse ano, ao contrário do que se deu em boa parte das disputas durante a Primeira República, os dois estados defenderam lados opostos.
Em 1908, dois anos antes do encerramento de seu mandato, Afonso Pena, do Partido Republicano Mineiro, abrira o debate em torno da sucessão presidencial. O procedimento era novo e tinha objetivo certo. O candidato de Afonso Pena — com o devido apoio da oligarquia paulista — era o então presidente de Minas Gerais, João Pinheiro; um republicano de “velha cepa” e que estava na base de um projeto de modernização para o estado que presidia.1 No entanto, ainda em 1908, com a morte repentina do indicado no dia 25 de outubro, o presidente sugeriu o nome de seu ministro da Fazenda, Davi Campista. Mas a história com Campista era diferente; ao contrário de Pinheiro, ele não tinha carisma ou prestígio, sua experiência política era considerada pequena, e não apareceu como um nome de consenso entre os políticos mineiros.
E assim, correndo por fora dos circuitos de Minas, foi tomando forma, de um lado, a campanha do baiano Rui Barbosa, apoiado por seus conterrâneos e pelos paulistas; de outro, a de Hermes da Fonseca. Ministro da Guerra do governo Afonso Pena, ele provinha do Rio Grande do Sul, e foi logo adotado pelo influente político gaúcho Pinheiro Machado, que temia o fortalecimento crescente da bancada mineira, além de desejar implantar uma alternativa à Política dos Governadores. Estava anunciada a crise. Os gaúchos, que inicialmente pretendiam apoiar Rui Barbosa, acabaram aprovando a candidatura de Hermes. A opção pelo militar, até então tida como secundária, ganhou força diante de um possível embate contra o governo federal. Alçar um militar à Presidência representava uma forma de passar a contar com o apoio das Forças Armadas, afastadas do poder central desde o governo Floriano Peixoto.
Lima, numa carta ao amigo Noronha, que se encontrava em viagem à Europa, fez um resumo bem-humorado dos acontecimentos da capital: “Sabias que o Campista era candidato à presidência do Pena. Bem. A estupidez nacional e a cavação também começaram a agitar o nome de Hermes. Ele [Campista] tomou a sério […]. O Pena pediu então à gralha [Hermes] que declarasse se era ou não candidato […]. Sabes o que o Pena fez? Mandou chamá-lo, pediu-lhe desculpas, abandonou o Campista e a gralha ficou na pasta. Está aí a que está reduzido o Brasil”.2
Começava, portanto, a disputa — e Lima Barreto a sintetiza bem — pela hegemonia na política nacional. A própria base do governo no Congresso corroía-se rapidamente, a ponto de a maior parte das lideranças mineiras ter apoiado para vice na chapa de Hermes a indicação do governador do seu estado, Venceslau Brás.
Com a oficialização da dupla Hermes-Venceslau, em maio de 1909, São Paulo ficou numa posição espinhosa. Afinal, naquela altura, ligar-se ao bloco mineiro e gaúcho significava ter que dividir a vitória com Minas Gerais e Rio Grande do Sul, e, para piorar, assumir papel secundário no jogo montado. A situação, que já era complicada, ficou ainda mais tensa quando, no dia 14 de junho, em meio à crise sucessória, o presidente Afonso Pena faleceu, sendo substituído pelo vice, Nilo Peçanha, que apenas completaria o mandato. Nilo era filiado ao Partido Republicano Fluminense, ligado a Pinheiro Machado, e inimigo do presidente morto. E foi ele quem abriu o caminho para a candidatura de Hermes da Fonseca. À oligarquia paulista, escanteada, não restou alternativa senão apoiar o nome da oposição que mais se destacava no quadro sucessório: Rui Barbosa. E assim a campanha de 1910 inaugurou um cenário totalmente novo: de um lado estavam Rio Grande do Sul e Minas Gerais; de outro, Bahia e São Paulo. A candidatura civil de Rui animou a população. Contando com os recursos financeiros dos cafeicultores paulistas, pela primeira vez na história republicana brasileira um candidato à Presidência percorreu vários pontos do país em busca de votos; e a bordo de uma caravana muito vibrante. Na lógica da propaganda eleitoral de Rui, essa era a competição de um bacharel, advogado e jurista com um marechal do Exército.
Porém, ao fim e ao cabo, a máquina da Primeira República voltou a agir. Hermes da Fonseca, que contava com o apoio da maioria dos políticos dos estados, sagrou-se vencedor. Rui Barbosa acabou funcionando como uma espécie de cavalo de Troia para acalmar e distrair a oposição. De toda maneira, ninguém duvidava da força que sua candidatura ganhou, ao congregar as elites descontentes com o militarismo, e engajar apoios de peso como o PRP e de jornais como O Estado de S. Paulo e o Correio da Manhã. E os civilistas fizeram bonito: se a oposição costumava receber pouquíssimos votos nessas eleições fechadas, o resultado dessa vez foi muito significativo. A chapa oficial terminou com cerca de 403 mil votos, enquanto Rui teve pouco mais de 222 mil. A Campanha Civilista mostrou sua força e granjeou mais votos do que Hermes em importantes capitais, como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador — cidade natal do baiano. O país estava dividido e a resposta das urnas expressou tal efeito de ação prolongada.3
Lima deve ter percebido que sua carta a Noronha mais parecia um trailer de filme cujo enredo é previamente conhecido. Com tal ambiente em mente, preparou, então, o argumento de seu futuro romance — Numa e a ninfa —, baseado nos acontecimentos que levaram à vitória de Hermes da Fonseca. Dessa vez buscava atingir os políticos, não mais os jornalistas. Um conto com o mesmo nome, verdadeira pílula condensada e melhor lapidada que o romance — que viria a ser publicado em forma de folhetim no jornal A Noite somente em 1915 —, saiu na Gazeta da Tarde no ano de 1911. Os políticos apareciam por lá retratados sem dó nem piedade!
Os personagens do conto e do romance formam um casal nada romântico, movido por interesses comuns. Segundo João Ribeiro, na resenha que faz para o livro, Numa teria casado com Edgarda “para viver profissionalmente de genro. Era marido por emprego”.4 Aliás, até seu nome é alegórico, uma vez que Numa Pompílio de Castro carrega uma referência ao segundo rei da monarquia romana.5 Político sem convicção e com o hábito de dormitar na bancada, Numa tinha a fama de ser o “deputado ideal”: sabia-se antecipadamente sua opinião e voto, e ele não perdia uma sessão sequer. No conto, Lima menciona que seu protagonista tinha “faro de adivinhar onde estava o vencedor — qualidade que lhe vinha da ausência total de emoção, de imaginação, de personalidade forte e orgulhosa”. Filho de um empregado de um hospital do Norte, fizera-se bacharel em direito às custas das privações da família. Numa via na sua formatura uma maneira de se transformar num dos “brâmanes privilegiados, dominando sem grande luta e provas de valor […] O filho do escriturário, desprezado pelos doutores, percebeu logo que era preciso ser doutor fosse como fosse”.6
Conta o escritor que a vida de Numa era “miserável”: mal se alimentava, dormia em cima de jornais. Apesar disso, jamais faltava às aulas, formando-se aos 24 anos sem ter “alta estima às matérias”. Pragmático, sabia que, se “tais matérias foram criadas, descobertas ou inventadas, o foram tão somente para fabricar bacharéis em Direito”. Decorava apostilas, cadernos, e com esse saber de “períodos mastigados, triturados” e repetidos passava nos exames e ia ganhando distinções. Tinha sempre as melhores notas; só se deu mal em medicina legal quando, fiando-se num erro de sua prática como copista de cadernos, confundiu-se e disse que na glândula tireoide haveria dezessete gramas, em vez de dezessete centésimos de miligrama, de arsênico. O pequeno lapso tirou-lhe a distinção e um prêmio: “Foi a única amargura de sua vida”.
Como nada tinha dos “penates paternos”, foi “em busca da fortuna”. Despachado como promotor de uma comarca de estado longínquo, que no conto Lima nomeia Catimbau,7 Numa virou-se como podia para adquirir “fama de talento. Fundava jornais onde escrevia panegíricos aos chefes, organizava bandas de música e animava representações teatrais em pequenos teatros de fortuna”.8 Fez-se de “juiz alfanje de emir”, e passou a seguir o influente Neves Cogominho, que foi logo eleito presidente do estado. Numa virou então chefe de polícia local.
Ocorre que o político tinha uma filha que chamou a atenção do dedicado Numa. Até então, este se mantivera solteiro, e só pensava em “encarreirar-se”. Mas nunca deixou de lembrar que o casamento poderia oferecer-lhe “o definitivo empurrão na vida”. Por isso, “ora ameaçava casar com a filha de Fulano e obtinha isto; ora deixava transparecer que gostava da filha de Beltrano, e conseguia aquilo”. Por isso, também, julgou até “natural” casar-se com a filha de Cogominho. Aliás, a presença da moça o fez pensar mais alto e relembrar de “suas desmedidas ambições casamenteiras”. Não que fosse belo e galanteador; afinal, “sabia que essas coisas não são indispensáveis para um bom casamento, desde que o noivo não viesse a fazer má figura no eirado dos diplomatas e outras pessoas exigentes da representação interna e externa do Brasil”.9 E assim foi: a mesma “firmeza” com que se formara e havia se empregado invadiu o protagonista da história. Ele não via nenhum obstáculo.
Edgarda era mais nova do que ele, apesar de já haver passado dos vinte anos. Nascida e criada no Rio de Janeiro, tinha vivido em “rodas senatoriais e burguesas” e possuía “ilusões de nobreza”. Como “castelã”, sonhara casamentos excepcionais. Ainda assim, “nunca supôs que aquele bacharel esguio, amarelado, cabelos duros, com um grande queixo, vestido com um apuro exagerado de provinciano, premeditasse casar-se com ela”.10 Não obstante, por conta do “ócio provinciano” e da “falta de galanteadores passáveis”, ou até mesmo por causa da “vontade de matar o tédio” que a levou a “esquecer a artificial representação que tinha de si mesma”, a moçoila acabou aceitando a corte feita a ela por aquele promotor e juiz que atuava na política ao lado de seu pai. Já Cogominho viu com bons olhos o casamento, que bem podia ser “útil à sua política”. Para manter Numa como aliado, incentivou a união e converteu-o em deputado federal.
Casados, partiram Numa, já como deputado eleito, e sua jovem esposa Edgarda para o Rio, onde ele iria tomar assento na Câmara Federal. E é a partir daí que o romance se desenvolve. A despeito do casamento recente e da mudança para a capital, a vida era apenas “plácida, como a de um velho casal”. Pouco conversavam entre si, e Edgarda mantinha uma atitude reservada; lia o tempo todo. O esposo, que jamais terminara um livro sequer, não conseguia entender que tipo de prazer ela tirava daquilo.
Em pouco tempo, Edgarda começou a perceber a “obscuridade” e a “resignação” do marido: ele decorava discursos, não gostava de conversar com colegas, levantava e dormia cedo, lia os jornais superficialmente. Não se sabe bem por quê, mas num certo momento ela decidiu que precisava fazer dele um grande deputado. Essa era “sua ambição”: iria realizar-se na celebridade do cônjuge. Pôs-se então a redigir os discursos de Numa, os quais eram logo decorados e declamados por ele com bom desempenho nas sessões da Câmara. Os discursos foram agradando e até se dizia que havia muito “pensamento” por trás deles. Aliás, o apelido “ninfa” para Edgarda vem da menção do colega, o deputado Pieterzoon, “um gordo descendente de holandês, mas cuja malícia não tinha nem o peso do seu corpo, nem o da sua raça”, que certa vez disse em tom zombeteiro: “O Numa ainda não ouviu a Ninfa”. A referência remetia à lenda segundo a qual o rei romano Numa tirava sua inspiração da ninfa Egéria, que aparecia à noite para lhe dar conselhos. Ninfas, na mitologia grega, eram aquelas que protegiam e curavam. Edgarda era, pois, um pouco disso tudo; não que fosse amorosa, mas com certeza cuidava bem da profissão do esposo.
Numa e Ninfa moravam em Botafogo, bairro que, como bem sabemos, representava para o escritor o suprassumo da nova burguesia metida a exibir ares aristocráticos. Lima complementa a boa caracterização dos personagens e do contexto com uma descrição das redondezas de Humaitá, onde “Darwin morou e ao anoitecer, punha-se a ouvir embevecido o hino que a natureza, por intermédio das rãs humildes, entoa às estrelas distantes”. A ironia fina desfazia da harmonia do jovem casal.
Mas, depois desse início hilário, tanto o conto como o livro de Lima se perdem numa nova paródia à clef, agora retratando os bastidores da política. Por sinal, na época em que foi lançado como romance (1915), mais uma vez identificaram-se rapidamente as personagens. O jornal A Noite de 12 de março anunciou tal publicação com grande estardalhaço: “Um romance que vai causar sucesso”.11 Não contente, o periódico apresentava a galeria de políticos em que o autor teria buscado inspiração. Dr. Bastos era Pinheiro Machado; General Bentes fazia as vezes do presidente Hermes da Fonseca; Xisto era o vice Davi Campista; Fuas Bandeira, o jornalista João Laje, que já fazia parte da galeria de personagens de Recordações do escrivão Isaías Caminha, e por aí vai. Até Lima estava lá, como Benevuto: um escritor que não sabia versejar e cuja preocupação era, justamente, não fazer nada.12
Nesse caso, porém, e segundo o folclore que cercou a escritura do romance, Lima escreveu um livro “intencionalmente” à clef. Foi o próprio jornal que encomendou o texto quem deu “carta branca” para que o escritor tratasse “de qualquer assunto, ou de qualquer pessoa — político, jornalista ou homens de negócios — sem limitações de espécie alguma”. Segundo o mesmo periódico, o romance, antes de vir a público, já tinha muita história de bastidores. “Um dia contavam-se aqui na redação vários escândalos dos milhares que assinalaram o governo Hermes”, cujo governo era considerado corrupto pelo redator da matéria. A iniciativa do folhetim teria partido do próprio periódico, que decidiu encontrar um escritor capaz de “romantizar os protagonistas do momento político e social brasileiro”. Logo veio à luz o nome de Lima Barreto, “o festejado autor das Memórias deIsaías Caminha, incontestavelmente um dos nossos romances nacionais mais bem escritos e mais populares”.
Conforme comentamos, não era bem verdade que o romance tivesse sido dos “mais populares”. Entretanto, a imagem de Lima, como escritor, é que ia se construindo ao lado da de seus personagens. Ao menos é isso que se depura das observações do periodista, que o define como uma pessoa marcada pela “despreocupação pelo sucesso na vida”, de “hábitos boêmios”, “um excelente observador” e dono de “uma ironia causticante”. A boemia entrara em definitivo na vida de Lima, e ele era cada vez mais descrito a partir dela, com a sua persona literária sendo sempre associada à propensão à bebida. Ele, que denunciava o racismo e a exclusão social, que era contra a literatura estabelecida, avesso aos jornais burgueses, encontrava no álcool um prazer mas também uma maneira de compor sua personagem carioca. Nada de ordem e “bom-mocismo”. Como dizia na sua crônica “Alguns reparos”, publicada em A Estação Theatral de 15 de julho de 1911: “não obedeço a teorias de higiene mental, social, moral, estética de espécie alguma”. Implicava com “a Câmara, com os diplomatas, com Botafogo e Petrópolis” e dizia-se avesso a qualquer filiação: não se definia como republicano, socialista ou anarquista.
O problema é que às vezes a “persona” que construía acabava por se misturar ao Lima real e fugia-lhe ao controle. Era visto com frequência nos bares, muitas vezes ébrio demais para se lembrar do que dizia. Escrevia rápido, não revisava os textos, mantinha diversos projetos ao mesmo tempo, e Numa e a ninfa seria mais um deles. Segundo a notícia de A Noite, poucos dias depois de feito o convite, Lima chegou à redação com o primeiro maço de tiras.13 O romance, ainda que mal começado, tomava forma e conteúdo.
Numa e a ninfa seria uma obra com cara, métrica e rima certas para denunciar o contexto em que fora criada, e deve ter divertido muito a seu autor, já que retomava temas que Lima gostava de castigar. Lá está descrita, por exemplo, a mania do brasileiro de se fazer passar por doutor, que, “no Brasil, é um título que dá todos os direitos, toda a consideração”.14 O escritor aproveitava para também dar uma patada na “República, necessária à integração do Brasil no regime político da América. Não se atina bem por que seja isso necessário, pois é perfeitamente sabido que, antes de nós, os argentinos, nos quais essa espécie de gente encontra modelo, quiseram lá implantar a forma monárquica”.15 Mas o alvo da vez eram mesmo os políticos. Tanto que, por meio de Numa, o escritor descrevia os bastidores dessa seara, “suas retortas de fantásticas transformações”. “Esse ritual de salamaleques e falsas demonstrações de amizade influem [sic] no progresso da vida política. Como havíamos de subir, ou, pelo menos, de manter a posição conquistada, se não fôssemos sempre às missas de sétimo dia dos parentes dos chefes, se não lhe [sic] mandássemos cartões nos dias de aniversário, se não estivéssemos presentes aos embarques e desembarques de figurões?”16
Ao definir os políticos, e sua “cauda de bajuladores”, Lima com certeza arrumava novos “inimigos” entre os que ocupavam as ruas centrais da capital do país. Afinal, era lá que se concentravam periódicos, confeitarias, associações de classe e os políticos do Congresso Nacional. E os jornais da época só ampliaram o escândalo embutido no novo romance. O Imparcial de 23 de março de 1917 comenta que “Numa e a ninfa é sobretudo um documento da nossa duvidosa moralidade política”.17 Já a A.B.C. de 17 de março de 1917 afirma que o livro é “pintura, forte e autêntica, dos nossos costumes políticos e sociais”. Nessa matéria da A.B.C., o jornalista arrisca ainda uma aproximação da literatura de Lima à do irlandês Swift: “É a mesma sátira, é a mesma revolta disfarçando-se, amargurada, nas dobras de um sarcasmo contundente…”.18
Mas a obra ficaria de certa maneira datada, tal a quantidade de referências imediatas ao contexto. Se o conto condensa e assim evita o registro documental, já no romance homônimo a política toma tanto espaço que a leitura sai prejudicada: é praticamente impossível ler o livro sem explicações ao lado. Mais uma vez, Lima valia-se dos humores de sua época e fazia de seu romance um termômetro que indicava a temperatura elevada do momento.
O incrível dr. Bogóloff
É em Numa e a ninfa que Lima introduz um personagem que ganhará vida própria em outros contos e romances de sua autoria. Grégory Petróvitch Bogóloff é definido como professor, tradutor do russo, um “velho anarquista”, e muitas vezes tomado por um “cáften”. Desfazendo da polícia do Rio, na base da chacota, Lima mostra como os profissionais da ordem confundiam a tudo e a todos. Para eles, “estes nomes em ‘itch’, em ‘off’, em ‘sky’, quase todos são de caftens. Não falha!”.
E ainda: foi nessa época que Lima começou a dedicar-se às leituras anarquistas, às quais ficaria, de alguma forma, vinculado pelo resto da vida. Bogóloff era uma espécie de charlatão barato, cujo caráter vinha, segundo o crítico Astrojildo Pereira, “da sua incapacidade de adaptação a um mundo hostil e adverso”.19 Talvez não tivesse o desejo de se “adaptar”, e por isso mesmo nenhum “empecilho moral” o detinha.20
Pensado nesses termos, Lima seria também Bogóloff; na desfaçatez e no desrespeito às autoridades.21 O personagem de ficção ganharia fôlego próprio, saindo em fascículos avulsos a partir de 1912. Louro e estrangeiro, tinha tudo para agradar as “elites empoladas”. Ele faz inclusive uso da ignorância dos políticos brasileiros para ascender e sempre aproveita o fato de ser estrangeiro para autopromover-se. Diferentemente de Lima, porém, Bogóloff acaba se dando bem na vida e cria a cada dia novas histórias delirantes para contar.
Exemplar de folheto datado de 1912 e que se concentra nas aventuras desse anti-herói.
A saga do russo ganhou fôlego maior quando foi publicada em folhetim. Explica Bogóloff que passou a ler “brochuras escandalosamente apologéticas da desconhecida república da América do Sul”. Nelas encontrava descrições de um país “onde não havia frio nem calor; onde tudo nascia com a máxima rapidez; que tinha todos os produtos do globo; era, enfim, o próprio paraíso”. Esperto, ele deu um desconto de “cinquenta por cento” no que leu, e mesmo assim resolveu emigrar. No final, terminou maldizendo a aventura: “Que desgraçada viagem! Nada há mais infernal que a terceira classe de um navio!”.22 O estilo do folhetim tinha o dom de inflacionar, ainda mais, o clima de burla e farsa presente no romance. Nele, Bogóloff era de fato um tratante: “Anos passei dentro dos meus ‘indecentes sonhos’ de quimeras e justiça e fraternidade, e eles se fizeram tanto mais fortes quanto eu lia a mais não poder, com a fúria de vício, com febre e terríveis anseios. Inutilizei-me”.23
O dr. Bogóloff queria ser agricultor. Só que acabou descobrindo que bom mesmo era ser doutor, então decidiu aproveitar-se do seu diploma: “No Brasil, é um título que dá todos os direitos, toda a consideração, mesmo quando se está na prisão […] Louro, doutor e estrangeiro, ias longe!”.24 E, com tanta sabedoria, o doutor russo logo se acostumou aos “hábitos da terra”. Bem informado, foi virando mestre na malandragem local e passou a dispensar lições sobre política para os residentes locais: “Mandam os batalhões, chamam os adversários de gatunos, proclamam-se honestos e fazem-se presidentes, governadores, custe o que custar”.25
Mas os folhetins, que iam saindo paralelamente aos capítulos de Numa e a ninfa publicados em A Noite, não fizeram muito sucesso. Lima parecia ter pressa demais. Aliás, nesse período foram divulgados, como informa Assis Barbosa, outros folhetos de autoria do escritor, que traziam o mesmo ar de broma. Datam ainda desse momento os folhetins publicados na revista O Riso, que eram picantes até nos títulos: O Chamisco ouO querido das mulheres e Entra, senhór!… Não se sabe muito mais sobre eles, apenas que, por terem sido impressos em papel barato, provavelmente se desfizeram com a ação do tempo.26 A primeira história trata das peripécias de um conquistador inveterado, e a segunda relata as memórias de uma cortesã estrangeira, como mostra o acento estampado no título.27 O conteúdo considerado, na época, pornográfico28 (ou “de sensação”) deve também ter selado a sorte desses textos.
O que importa é que tal conjunto de folhetins desferia críticas duras ao despreparo e à corrupção dos políticos nacionais, assim como trazia situações indecorosas envolvendo-os e às elites locais. Não por coincidência, descontinuou-se a publicação de todos esses experimentos de Lima. Os enredos não fechavam, as provocações eram muito localizadas e atingiam de perto figuras bem situadas na sociedade. Alguns deles foram inclusive incorporados ao romance Numa e a ninfa, como é o caso dos folhetos “Fiz-me, então, diretor de Pecuária Nacional” e “Como escapei de ‘salvar’ o Estado dos Carapicus”. O mesmo ocorreu com Bogóloff, que simbolizava um exemplo pronto do bovarismo praticado na terra. Para a descoberta de crimes sabia fazer “deduções com verniz científico”, ou virara “barão”, porque “os brasileiros estão sempre dispostos a ver no estrangeiro bem-vestido um fidalgo; e nos pobres, um animal desprezível”.29
Datados demais, esses textos seriam vencidos pelo tempo. A Epoca de 18 de setembro de 1912, por exemplo, publicou matéria crítica acerca de Aventuras do dr. Bogóloff, na qual o articulista as define como mais do mesmo. “Lima Barreto, mais uma vez, ou melhor, como sempre, estigmatizou toda essa nossa burocracia, eivada de tanto pedantismo científico.” Poucos dias depois, o jornal A Noite trazia outra nota sobre o barão russo chamando atenção: “Os nossos tipos políticos são estudados em posições curiosas, em flagrantes ridículos”.30 Enfim, enfatizava-se muito a autoria e as referências, mas pouco a qualidade literária dos textos.
Não obstante, passo a passo a reputação de Lima ia se consolidando nos jornais da capital. Mais ainda, o cronista começava a se confundir com seus personagens: era cáustico e fora da curva como eles. Quem valia mais, ficção ou realidade? Começava a ficar difícil apostar, uma vez que ambas faziam parte da mesma obra e de forma inseparável. Como mostra Antonio Candido, a pergunta é inútil no caso da literatura de Lima Barreto, que era mesmo um “ator social”.31
Fechando o romance. Numa volta para a cama; tudo em nome da nação
Numa e a ninfa foi concluído em 1915. Ácido como os folhetos que Lima andava publicando na época, nesse romance ele desferia ataques para todos os lados, e invariavelmente em tom de deboche. De um lado, mostrava como os brasileiros não deveriam se contentar com a imaginação dos estrangeiros a respeito do nosso país: “Há quem pense que daí não advém mal algum; que a representação de um país na imaginação de outro povo há de ser sempre inexata”.32 De outro, mostrava como os nativos locais se habituavam, muito facilmente, a uma verdadeira política de invisibilidade em relação à população afro-brasileira: “Outra fonte de irritação para esses espíritos diplomáticos estava nos pretos. Dizer um viajante que vira pretos, perguntar uma senhora num hall de hotel se os brasileiros eram pretos, dizer que o Brasil tinha uma grande população de cor, eram causas para zangas fortes e tirar o sono a estadistas aclamados […] Hão de concordar esses cândidos espíritos diplomáticos que o Brasil recebeu durante séculos muitos milhões de negros e que esses milhões não eram estéreis; hão de concordar que os pretos são gente muito diferentes [sic] dos europeus […]. Os diplomatas e jornalistas que se sentiam ofendidos com a verdade tão simplesmente corriqueira, esqueciam tristemente que por sua vez a zanga ofendia os seus compatriotas de cor; que essa rezinga queria dizer que estes últimos eram a vergonha do Brasil e seu desaparecimento uma necessidade”.33
Voltando a um tema que explorava com rara perseverança e sensibilidade, Lima introduzia com ironia a noção da “transparência” dos afrodescendentes; isso a despeito de eles corresponderem à maior parte da população nacional. Segundo o autor, era como se, atuando em várias profissões subalternas, tais “elementos” acabassem transparentes diante das elites, que preferiam negar seu passado e a história presente, ou então apostar no desaparecimento progressivo desses seus cidadãos.
É por isso que Lima punha na conta dos viajantes o “esforço” em mencionar os “negros”, mesmo que fosse para destacar seu futuro “sumiço”. Segundo ele, os viajantes “tinham sempre o cuidado de dizer que não havia mais febre amarela e o preto desaparecia. Um houve que teve intensas alegrias quando não viu negros no porto de Santos e levou essa novidade ao mundo inteiro”.34 Mais uma vez, o escritor não se deixava contaminar pelos relatos, pela voga dos modelos raciais ou pelas teorias estrangeiras que viam na mestiçagem uma doença ou nos prognósticos do branqueamento uma boia de salvação.
Por essas e por outras, Lima andava na via oposta, uma vez que tais teses eram então amplamente difundidas, e quase oficiais, naquele contexto. Basta lembrar que em 1911 o Brasil enviara uma delegação para participar do Congresso Universal de Raças, em Londres. O chefe do grupo brasileiro era o então diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda, que defendeu uma tese intitulada “Sur Les Métis au Brésil” (Sobre os mestiços do Brasil) cujo objetivo era justamente mostrar que em três gerações — por efeito da natureza ou da ação dos homens — o Brasil seria definitivamente branco.35
Sempre muito bem informado sobre os modelos de discriminação existentes nos Estados Unidos, Lima mostrava, por contraposição, a atenção dispensada por diplomatas e viajantes estrangeiros às teorias que apostavam na existência de diferenças biológicas entre os homens: “Os nossos diplomatas […] quiseram apoiar a sua vaidade em uma filosofia qualquer; e combinaram as hipóteses sobre as desigualdades de raça com a seleção guerreira, pensando em uma guerra que diminuísse os negros do Brasil. Não podendo organizar uma verdadeira reserve for the blacks, decretar cidades de residência, estabelecer o isolamento yankee, pensaram na guerra em que morressem milhares de negros, embora ficando as negras a parir bebês brancos. […] Há inequívocas manifestações desse espírito nos jornais e fora deles; e elas indicam perfeitamente esse pensamento oculto, esse tácito desejo dos nossos homens viajados e influentes”.36
Anúncios da revista O Riso de dois romances de “conteúdo adulto”, conforme se dizia à época, de autoria de Lima Barreto.
Leitor crítico das teorias raciais, muito preocupado com o que ocorria no Sul dos Estados Unidos em termos de segregação, Lima registrava que as medidas, apesar de não oficiais, mantinham padrões herdados dos tempos da escravidão. Vem, aliás, dessa época a verdadeira ojeriza que o escritor manifestaria contra os norte-americanos e a sua condenação à maneira como eles maltratavam os “irmãos de cor”.
Sem abandonar sua opinião negativa com relação aos grandes jornais, os quais, segundo ele, eram máquinas de fazer dinheiro e davam “fortunas” a seus proprietários,37 Lima não esquecia da situação dos indígenas, retratados ironicamente em Numa e a ninfa como bêbados e inadaptados aos costumes estrangeirados da capital. Eles seriam “homens da selva, pouco habituados às regras e preceitos das salas […]: embriagavam-se de cair e caíam pelos jardins, dormiam familiarmente com o rosto para o céu estrelado, como filhos das brenhas que eram”.38
A personagem d. Florinda Seixas foi inspirada em Leolinda Daltro, professora primária que ficou conhecida na época por sua atuação como indigenista e pela luta que travou em prol da implementação da educação laica e profissional para os índios no país. Ela foi também uma das fundadoras do Partido Republicano Feminino em 1910 e pioneira na defesa dos direitos das mulheres.39 E é justamente a proeminência de Leolinda que Lima parece não perdoar. Assim, ao descrever a personagem d. Florinda, o escritor afirma que esta tentava, em vão, empregar “seus esforços de domadora ou civilizadora para impedir tão indecente caboclismo”. Em certa passagem do livro, ele narra que o maior empenho da professora era ensinar seus discípulos “selvagens” a comportar-se bem na “civilização”. Muito empenhada nessa sua “missão”, numa cena que se passa num “bufê”, ela teria sido vista dizendo a expressão “Tupaná penê cotê!”. Já os “caboclos respondiam, amuados como crianças teimosas: ‘Quelo bebê! Quelo bebê!’. E sacudiam a juba de cima dos olhos, das bordas dos copos e os bebiam às dúzias cheios de cerveja. Gostavam mais de whisky”.40
Usando do recurso ao itálico no intuito de atrair a atenção para a introdução de termos em inglês ou francês, e assim acentuar o lado postiço da situação, Lima insiste na aula pública de guarani promovida por d. Florinda, logo subvencionada pelo governo. O episódio renderia muito: o escritor conta que a professora “tinha muitos caboclos”, mas estimava sobremodo um chamado Tupini: “um índio alto com uma cabeleira de apóstolo”.41 Tupini vai então assistir à lição ao lado de d. Florinda. Ela inicia a sessão asseverando que o guarani é a língua mais antiga, mais bela do mundo; e exemplifica: “— Meus senhores, vejam só esta frase: amané saçu enacá pinaié. Sabem o que quer dizer? […] O peixe vive no mar. — Tá elado — gritou Tupini”. D. Florinda volta-se então para o índio e responde em guarani: Puxiguera che aicó. Ele reage com um sonoro “tá elado”. A professora insiste: “Emu mameara cê lecê — que quer dizer: minha noiva é bonita”. Tupini replica devagar mais uma vez com seu “tá elado”.42
Na tentativa de deslegitimar, pois, os conhecimentos da mestra, o escritor multiplicou a anedota. Segundo ele, d. Florinda criaria associações e sociedades com tribos “Mundurucus, Caiapós, Omaguas, Pataxós Kaingangs, Tamoios, Carijós, Charruas, Xavantes”, além de outras entidades representadas por “comissões vestidas a caráter, tendo os respectivos estandartes: folhas de palmeiras, de bananeiras, remos de canoas, capivaras empalhadas. Ao centro vinha o conhecido Tupini, de cocar e enduape, arco e flecha ao lado, pernas nuas, coxas nuas, peito nu e braços nus — o rei da floresta brasileira que marchava”.43
É possível notar nesse trecho um primeiro esboço à crítica que Lima faria em breve no seu livro Triste fim de Policarpo Quaresma, quando voltaria ao tema do nosso nacionalismo tupiniquim. De acordo com o escritor, essa não passava de uma mera artificialidade, que emprestava um lustro dos povos locais mas que simplesmente os desconhecia, desprezava e deixava morrer nas selvas. Seria assim com Tupini e d. Florinda, e seria assim, também, com o major Quaresma, que tentaria em vão impor o tupi-guarani como língua nacional e acabaria sendo acusado de louco.
Seguindo esse mesmo tipo de interpretação, no artigo “O nosso caboclismo” Lima afirma: “Uma das manias mais curiosas da nossa mentalidade é o caboclismo. Chama-se isto a cisma que tem todo o brasileiro de que é caboclo ou descende de caboclo […]. A mania, porém, percorreu o Brasil; e, quando um sujeito se quer fazer nobre, diz-se caboclo ou descendente de caboclo”.44 E o escritor não deixava de ter razão: se os indígenas eram exaltados nos romances e nos compêndios, no dia a dia a história era outra. Como mostra a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, “no século XVI os índios eram ou bons selvagens para uso na filosofia moral europeia, ou abomináveis antropófagos para uso na colônia. No século XIX eram, quando extintos, os símbolos nobres do Brasil independente, e quando de carne e osso, os ferozes obstáculos à penetração que convinha precisamente extinguir”.45 Se os indígenas funcionavam como representação nacional, na prática não existiam políticas para ampará-los ou mesmo inseri-los adequadamente.
Por isso, em Numa e a ninfa, Lima brinca com os pressupostos dos políticos falastrões, para quem os indígenas não passavam de inimigos internos, retardatários da natureza que deviam ficar bem longe da “civilização”. Nesse livro em especial, ele caçoa do “ressurgimento do sentimento republicano e nacional”, quando se multiplicam as manifestações de “severidade patriótica” e de artificialidade na produção do “alto simbolismo filosófico e patriótico”.46
Hora de voltar ao casal central do romance e ao escândalo que ficava reservado para o desenlace da trama. Ao mesmo tempo que a política pública desconhecia “a estima e a popularidade”, também na esfera do privado as coisas não iam bem. Mas assim seguia o cotidiano: enquanto Ninfa/Edgarda se concentrava cada vez mais em bem informar seu marido, o qual sofria de “sua irremediável preguiça mental”, Numa acomodava-se. Pois nem ao menos os autores que ela citava ele era capaz de ler e compreender. “A sua atonia de inteligência requeria uma artificial alimentação intelectual e esta ainda não havia sido inventada.”47
O final do romance reservava, porém, um tapa forte na política, nos valores da família e do casamento. Lima andava estudando as ideias do anarquismo, e são conhecidas as críticas dessa teoria política à instituição do matrimônio. Mero negócio, este era considerado uma fonte de tristezas e padecimentos. É certo que podiam ser encontradas, na época, posições diversas sobre amor, casamento e família na própria literatura anarquista. Contudo, em geral elas acabavam sendo críticas à interferência do Estado e da Igreja na vida e nas relações privadas, como também ao modelo patriarcal. De acordo com boa parte desses intérpretes, o matrimônio apenas restringia a liberdade individual da mãe e da criança. Bakunin, por exemplo, acreditava que o casamento religioso e civil deveria ser substituído pelo “casamento livre”; ou seja, por um contrato segundo o qual ambas as partes vivessem voluntariamente juntas e compartilhassem responsabilidades, inclusive a tarefa de criar e educar os filhos. A anarquista e feminista Emma Goldman encarava o matrimônio como uma convenção social, um aprisionamento das mulheres, uma castração sexual ou até uma forma de prostituição. Na palestra “Casamento e amor”, publicada em Anarchism and Other Essays (1910), ela declarava que “casamento e amor não têm nada em comum […] são antagônicos um ao outro”.48 E o caso dos protagonistas do livro de Lima confirmava esse tipo de tese. O casamento de Numa com Ninfa não passava de um bom “negócio”; aliás, reconhecido e admirado por todos. Na superfície, tudo corria bem: os cônjuges andavam de braço dado e comportavam-se como enamorados. Na reclusão do lar, no entanto, a despeito de serem “sempre cordatos um com o outro”, e de Ninfa dedicar-se a escrever os discursos do marido, pouca intimidade existia. O fim do romance retoma, assim, a temática anarquista dos hábitos familiares frustrados e a explode por dentro: nada seria “normal” na suposta rotina de um “lar burguês”.
Mas vamos colocar um ponto-final nessa história. Certa feita, Numa retorna para casa e encontra Ninfa, como sempre, às voltas com os livros na biblioteca. Ele chega profundamente amuado por conta do fiasco que fizera ao falar de improviso. Ao saber disso, em vez de consolar o marido, Edgarda queixa-se: “Que imprudência!”. Diante da reação intempestiva da esposa, Numa, aos prantos, confessa que falara no palanque por apenas cinco minutos, mas gaguejara demais. Um desastre!
O fato é que a retórica descrita com tintas alvissareiras por Afonso Celso no seu livro Oito anos de Parlamento, originalmente publicado em 1898, e no qual o antigo padrinho de Lima Barreto dava conselhos aos políticos, deve ter escapado à leitura de Numa.49 Nele, o autor recomendava aos colegas que, na hora de discursar, caprichassem nas palavras, no tom e até no volume elevado; isso para prenderem a atenção neles depositada. E prescrevia ainda mais: um deputado jamais devia acomodar-se, e tomar o púlpito por pouco tempo; melhor que usasse uma hora ou mais. Mas nosso Numa fez tudo ao contrário, e não contou sequer com os subsídios da esposa!
Agora, mais do que nunca, Numa precisava dos préstimos de Ninfa para desfazer a má impressão do dia. Só mesmo um novo discurso, e com urgência, poderia dar conta do recado. Já tranquilizada, e de forma quase maternal, Ninfa lhe pede calma e sugere que vá dormir; ela mesma iria “compô-lo completo e perfeito”. Ficaria de vigília para estudar e escrever um belo discurso na calada da noite, enquanto ele, que tinha “os nervos fatigados” e “pedia repouso”, deveria dormir a noite toda para apresentar-se bem-disposto no dia seguinte.
Numa descansa um sono reparador e, no meio da noite, desperta. Nota que a mulher não está a seu lado e se recorda do arranjo feito. Inspirado pelo amor da esposa dedicada, pensa até em desistir da política. Porém, passa a recordar o “Catete, as suas salas oficiais, o piquete, os batedores […]. Era preciso ter destaque, figurar; era preciso que o chamassem sempre de deputado, senador; tivesse sempre consideração especial. Então podia ser assim um qualquer? Subir! Subir!”.50 Acha por bem, então, ir de surpresa até Edgarda. Agradeceria a ela, lhe faria um carinho. Calça as chinelas e segue com cuidado rumo ao aposento ao lado de seu quarto. Só que quem se surpreende é ele: “Ao aproximar-se, ouviu um cicio, vozes abafadas… Que seria? A porta estava fechada. Abaixou-se e olhou pelo buraco da fechadura. Ergueu-se imediatamente… Seria verdade? Olhou de novo. Quem era? Era o primo… Eles se beijavam, deixando de beijar, escreviam. As folhas de papel eram escritas por ele e passadas logo a limpo pela mulher. Então era ele? Não era ela? Que devia fazer? Que descoberta! Que devia fazer? A carreira… o prestígio… senador… presidente… Ora bolas! E Numa voltou, vagarosamente, pé ante pé, para o leito, onde sempre dormiu tranquilamente”.51
A crítica às convenções sociais, à família, à falta de intimidade dos casais era tão oblíqua quanto a lógica “estratégica das uniões burguesas”. Além do mais, o fracasso desse tipo de união amorosa combinava perfeitamente, ao menos na perspectiva de Lima, com a classe política. Políticos, para ele, eram artistas da farsa, campeões do fingimento e da desfaçatez, e Numa cumpria o seu papel de modo exemplar. A carreira e as aparências ficavam sempre na frente. Quanto valia um casamento diante do sucesso e da glória na política? Numa era mesmo um mestre na arte do palanque.
De bovarismo em bovarismo
Nos anos 1910-11, Lima publicaria dois de seus contos hoje mais conhecidos: “O homem que sabia javanês”52 e “A nova Califórnia”.53 As narrativas de ambas as tramas retomam a questão do bovarismo, cada uma à sua maneira: javanês era língua praticamente desconhecida e bastante inútil mas que, por ser estrangeira, garantia lustro. Já em “A nova Califórnia”, a notícia falsa da descoberta de ouro no corpo dos mortos, anunciada por um viajante estrangeiro, levaria a uma corrida desenfreada em busca dos cadáveres e ao desrespeito a um ritual que dava dignidade às lembranças dos antepassados. Nos dois exemplos, sublinhava-se a crítica ao costume de adotar tudo que era importado, sem peias e sem se preocupar com as devidas traduções.
Publicado pela primeira vez na Gazeta da Tarde de 20 de abril de 1911, “O homem que sabia javanês” representa uma pérola do sarcasmo crítico de Lima. O conto se passa todo numa conversa entabulada numa confeitaria, alimentada por muita cerveja — referência, por sinal, a uma atividade que o autor desenvolvia com primor. Mas a ação ocorre mesmo na Biblioteca Nacional, outro local bastante frequentado pelo escritor. Ciente da fama de enfant gâté que ia progressivamente ganhando, Lima não economizava nos termos ao se referir ao Brasil, que chama com displicência de “imbecil e burocrático”.
A história é narrada em terceira pessoa. A ideia de se tornar um especialista em javanês teria surgido a partir da leitura de um anúncio, publicado no Jornal do Commercio, que tratava da importância da literatura antiga e moderna desse país. Desde então, o personagem passara a estudar a língua e se candidatara a uma vaga de professor particular. De lá até a Secretaria dos Estrangeiros o pulo foi rápido. “Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma ovação de todas as classes sociais.” Até o presidente da República o convidara para almoçar, e tempos depois o nomeara cônsul em Havana, onde estivera por seis anos e para onde pretendia voltar a fim de aperfeiçoar seus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.
No fim do conto, o narrador se diz satisfeito com sua vida, mas menciona que, se por acaso não “estivesse contente”, já sabia no que se converter: “Bacteriologista eminente”, respondeu o amigo. Não é preciso ir longe para adivinhar o alvo da comparação. Fosse qual fosse a especialização, bastava ser doutor para despertar fascínio na elite cultural, social e política do país.
Uma variante dessa disposição fácil dos brasileiros de adotarem qualquer novidade pode ser encontrada em “A nova Califórnia”. Escrito em 1910 e publicado pela primeira vez em 1915, juntamente com o romance Triste fim de Policarpo Quaresma, o conto era um dos prediletos de Lima. A história começa com a chegada de Raimundo Flamel à cidade de Tubiacanga. E, como ninguém sabia ao certo qual era o ofício do novo morador, logo foram sendo imaginadas profissões variadas: “fabricante de moeda falsa”, sábio ou químico. Por fim, descobre-se que o estrangeiro era mesmo um “grande químico”.
A história só se torna pública quando o farmacêutico de Tubiacanga é procurado pelo forasteiro. O dr. Flamel queria que o moço testemunhasse a sua mais recente descoberta: fazer ouro a partir dos ossos dos mortos. A partir de então, a cidade que era pacata passou a ser assolada por um tipo de crime “repugnante”: violavam-se sepulturas e roubavam-se corpos do Sossego, o “sossegado” cemitério local. De tocaia, a população organizou-se para surpreender os infames infratores: eram “o coletor Carvalhais e o coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara” e o dr. Flamel.54
Diante da notícia, “a desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações”. O desfecho do conto vem rápido: “De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de existência. Uma única pessoa lá não estivera, não matara nem profanara sepulturas: fora o bêbedo Belmiro. Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de parati e se deixara ficar a beber sentado na margem do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito de granito — ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram […] mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosí e o seu segredo, sob o dossel eterno das estrelas”.55
“A nova Califórnia” representa outra investida, a partir de novo ângulo, contra as vogas estrangeiras e o fascínio das ideias que vinham da ciência, as quais, não poucas vezes, levavam à “desinteligência” coletiva. Na época, Lima já escrevia contra a moda determinista que pretendia ver na loucura, na epilepsia e até na criminalidade estigmas e provas de que a mestiçagem resultava em degeneração pessoal e da própria nação. Opondo-se ao que afirmavam os cientistas de seu momento, o autor mostra que a loucura estava em todos nós: nos estrangeiros com suas crenças estranhas, e nos brasileiros que faziam delas um bom milagre para acreditarem.
É claro que o conto não se resume a acusar os brasileiros de bovaristas. A história é também um libelo contra a ganância; uma denúncia dos interesses materiais que não encontram barreiras nas sociedades modernas. A ideia de fazer “fortuna fácil” acaba por atiçar a cobiça, que, a despeito de ser universal, acha no conto em questão uma crítica ao contexto nacional; em especial ao capitalismo predatório e à ética aventureira; motes diletos do discurso anarquista.
Enfim, mais uma vez Lima fazia de sua literatura um bom pretexto para a crítica social, e nesse caso política, que é invariavelmente mais bem-acabada do que o enredo em si. Estamos nos anos 1910, e o escritor ia desfazendo dos doutores, com qualquer casaca: políticos, cientistas, farmacêuticos, grandes proprietários ou tenentes. Todos seriam presas fáceis do fascínio das hierarquias dadas pela posição social; prisioneiros de suas próprias verdades importadas. Já Lima insistia em se construir como figura na contraposição. Ele seria o boêmio que preferia ver o rio passar a aderir a modas que, assim como as águas em fluxo contínuo, correm rápido e sempre na mesma direção.