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Bebida, boemia e desânimo:
a primeira internação

Desgraçado nascimento tive eu! Cheio de aptidões, de boas qualidades, de grandes e poderosos defeitos, vou morrer sem nada ter feito.
Lima Barreto, Diário íntimo

 

Retrato retirado da ficha de internação de Lima Barreto no Hospício de Alienados do Rio de Janeiro, em 1914.

 

Lima chamou Numa e a ninfa de seu “romance da vida contemporânea”.1 Lá havia de tudo: mau uso da política, escândalos da vida privada, muita anedota e escárnio para todos os lados. O livro, além de ser à clef, era um relato de encomenda — no caso, de um jornal. Carecia ter “chave e código” para entender os bastidores da narrativa, e, se existia denúncia, tinha de ser velada. Afinal, o ganha-pão de Lima continuava a ser o funcionalismo público, e o autor manifestava escrúpulos e até mesmo certa preocupação: não queria chocar (demais) os seus patrões.

Numa e a ninfa nunca foi considerado um grande romance, mas servia para confirmar os pendores de Lima, que ficaria cada vez mais associado a um estilo tido, na época, como panfletário. Ele estava se tornando uma espécie de “amanuense crítico da sociedade”, uma voz dissonante da nova geração a denunciar as falácias sociais, culturais e políticas da Nova República. Por isso, como mostra Francisco de Assis Barbosa, sem ser uma obra fundamental Numa e a ninfa marca uma guinada importante na carreira do escritor e confirmava uma orientação literária.2

No entanto, como biografia não é projeto evolutivo ou avenida sem bifurcações, também no caso desse autor não há somente uma direção a seguir. Lima sofria com muitas das questões que criticava. Sofria por denunciar, sofria por sua “origem” — termo usado por ele para definir suas marcas étnicas e de classe —, sofria com receio de padecer dos males que denunciava. Por isso, e na conta de tantas ambiguidades, nem mesmo na roda de amigos mais íntimos manifestava padrões de sociabilidade estáveis. Faltava aos encontros, deixava reuniões antes do combinado e, por vezes, simplesmente sumia. Além do mais, ia virando um solteirão e quase um celibatário. Mantinha relações fortuitas, frequentava o que na época se chamava de “casas da vida”, mas não se conhecem histórias de amores assumidos nem de namoradas fixas; comentava em seu Diário que tivera apenas uma, aos dezesseis anos.

H. Pereira da Silva, em artigo para a revista Carioca, narra um fato que escapa em geral às demais biografias. Segundo ele, a família fez questão de esconder que Lima teria acalentado uma única relação mais duradoura com Leonor, uma mulher branca sobre a qual não temos mais informações, a não ser que lhe correspondeu no afeto. O escritor a teria pedido em casamento mas recebera uma negativa da família dela. Atribuiu-a logo à sua cor, e a humilhação da recusa, de acordo com amigos próximos, data do mesmo momento em que o amanuense começou a beber com mais frequência.3

O fato é que não encontramos muitos registros amorosos na vida do escritor. Em seu Diário íntimo, por exemplo, no dia 5 de janeiro de 1908, ele narra a visita feita à casa de um amigo (M… A…) que vivia “amancebado com uma rapariga portuguesa” de cerca de 24 anos. Lima expressava incompreensão quanto àquele tipo de relação; o colega quase não dormia por lá, parecia ter outras amantes e ainda mantinha “um sócio na mulher”.4 Continua Lima dizendo que certo dia foi ter com o amigo. Como não o encontrasse em casa, entabulou conversa com a moça. A sensação descrita por ele, de encanto com a possibilidade de estar a sós com uma mulher, é bem reveladora de sua pouca experiência. “Em começo, tive uma alegria de devasso — quem sabe? — que passou depressa e felizmente. Ela sentou-se na minha frente, fumei desesperadamente e conversei. Nunca estive tão bem. Tenho vinte e seis anos e, até hoje, ainda não me encontrei com uma mulher de qualquer espécie de maneira tão íntima, de maneira tão perfeitamente a sós; mesmo quando a cerveja, a infame cerveja, me embriaga e me faz procurar fêmeas, é um encontro instantâneo, rápido, de que saio perfeitamente aborrecido e com a bebedeira diminuída pelo abatimento.”5

Na correspondência trocada com Noronha Santos, muitas vezes o tema da bebida e da dificuldade com as mulheres retornava. Em carta enviada no dia 21 de julho de 1908, além de reclamar da “letra detestável” de Lima, Noronha conta uma experiência que tivera na cidade de Lorena. Ele fora levado à casa de uma “dama” chamada Candinha, que tinha, segundo ela mesma dissera, quinze anos. Era realmente “muito menina, com um ar triste e cansado, a fala arrastada dos paulistas; isto num quarto lúgubre onde esta flor recebia os altos funcionários […] e a jeunesse dorée de Lorena”. O amigo de Lima reconhecia que a coisa toda fora “humilhante”: “Imagina que eu fiquei deitado com ela uns vinte minutos […] e saí de lá como tinha entrado!”. O confrade da Floreal reconhecia mais: “por pouco que eu seja dado a estas coisas, estava naquela ocasião com desejo de mulher”.6

Se Noronha realmente não era dado a mulheres ou à prostituição, não sabemos. O fato é que, animado pelo tema, Lima responde ainda no dia 27 do mesmo mês. Comenta a passagem do amigo pela Candinha e aproveita para falar de suas experiências. Escreve que estivera no High Life, onde tomara “dois pifões” e ficara até as seis da manhã. Foi quando se achegaram à mesa duas francesas e, no fim da noite, a Marieta Bicicleta. Lima explica que dali em diante só “deu gafe”, e acabou achando tudo muito “idiota, besta, sem resultado e sem prazer”; sentiu nojo de si próprio.7

Tudo se passava como se ele e o amigo não se interessassem muito por relações desse tipo, apesar de aparentemente recorrerem a elas vez por outra. Aliás, no episódio da Marieta Bicicleta, Lima refere-se não apenas a essas profissionais, mas ao ambiente reinante nesses clubes: “Esses repórteres, essas fêmeas, esses rufiões, mais ou menos disfarçados, já me enchem de nojo. Eu tenho mesmo nojo de mim mesmo que me meto com eles. Acho muito melhor a minha casa familiar do que essa farândola doida de porres, vagabundas e clubes de baccara. […] Tenho firmes tenções de me retirar dessa infâmia toda. Não já, porque a minha vontade não é das mais fortes, mas em breve”.8

Lima também mostra suas ambivalências em outra missiva endereçada a Noronha Santos. Dessa vez, ele conta que bebeu com Pausílipo no High Life até as três da madrugada e, ao vê-lo jogando, teve ímpeto de imitá-lo: “O tinir das fichas, as fêmeas, aquela febre, todo esse aspecto especial do jogo interessou-me e tentou-me. Dei mesmo cigarros às fêmeas. É uma das coisas que mais gosto de ver, é uma fêmea fumando. Aquelas vagabundas de cigarro à boca tinham um ar mais espiritual, uma fisionomia mais rejuvenescida”.9

Essas são cartas íntimas e, portanto, menos autocensuradas. Não obstante, vemos como Lima oscilava: referia-se às prostitutas de forma excitada e ao mesmo tempo muito agressiva. Parece antes um voyeur em meio aos fregueses e às “fêmeas”. O excesso de bebida também não devia ajudar no território da sexualidade. De fato, Lima tinha passado a beber demais — a toda hora —, e era descrito pelos amigos como alguém que estava sempre tombando pelas mesas e seguindo de bar em bar. Transformava-se num andarilho, já que atravessava a noite procurando um local para tomar sua “parati”. Ia virando um homem mais parrudo, macilento, de coloração baça. Queixava-se de dores nas juntas, apareciam-lhe vermelhidões no rosto, transpirava cachaça, e seu cabelo estava permanentemente ensebado. Ao que tudo indica, o costume vinha do pai, que gostava de um bom trago. Porém, nessa altura, João Henriques não saía mais de casa e Lima pouco ficava por lá. O hábito, antes social e realizado na companhia dos confrades, agora se tornava um vício, cumprido de maneira solitária e cada vez mais descontrolada.10 Muitas vezes Lima caía na sarjeta e era achado dormindo pelas ruas, a roupa toda amassada. Seus amigos contavam que ele desaparecia com frequência.11 Nesses momentos, encontrava-se com as “fêmeas” ou as ficava observando. O termo não é aleatório: mostra que se tratava de relações fortuitas, pautadas ora pela “necessidade” ora por certo desinteresse rápido.

Mas nem sempre era a bebida que explicava as “escapadas” do escritor. Assis Barbosa descreve um episódio que teria ocorrido no Carnaval de 1906 ou 1907, quando mais uma vez Lima simplesmente evaporou. Tempos depois, teria confessado a Antônio Noronha que resolvera deixar a animada turma no momento em que passara um rancho cantando o famoso “Vem cá, mulata!,/ Não vou lá não/ Vem, ó meu doce de coco,/ Que você me mata,/ Ou me deixa louco”. Composta em 1902, a letra de Arquimedes de Oliveira converteu-se em grande sucesso nos Carnavais subsequentes, e sobretudo naquele de 1906, quando foi gravada. Seriam da autoria de Bastos Tigre os seguintes versos, acrescidos à música nesse mesmo ano: “O Democráticos, gente jovial,/ Somos fantásticos do Carnaval”. Lima segredou ao amigo que aquele dito lhe penetrou “nos ouvidos como um insulto”: lembrara de sua mãe e tomou o convite ali contido como se fosse para ela. A atitude era coerente com a postura que manifestara no primeiro número de Floreal, de 25 de outubro de 1907, quando clamava “para afastar das fanfarras”, justamente, o “Vem cá, mulata”.12

Com certeza o mal-estar não era apenas fruto de idiossincrasia pessoal. “Mulatos e mulatas” foram sistematicamente apresentados no teatro e na literatura do século XIX como personagens potencialmente perigosos, a despeito de serem considerados “passíveis de salvação”.13 A imagem ficaria ainda mais forte e seria reiterada após a abolição da escravidão. Nessa época, a representação desses personagens ficaria associada à prática da malandragem e da gatunagem, enquanto para as mulheres guardaria uma conotação de incitação ao sexo. Estereótipo herdado da sociedade escravocrata, a imagem da “mulata” se agarraria indelevelmente à noção de desejo e de facilitação sexual. Como se a culpa fosse da vítima, não de seu algoz.

Tal tipo de percepção escorregará para a literatura de Lima, mas na chave oposta. Basta lembrar a figura da “mulatinha pobre” de “seios empinados”, Clara dos Anjos. A protagonista do romance permanecia reclusa em Todos os Santos, protegida pelo pai e pela mãe, que procuravam resguardá-la das vilanias do mundo. O nome selecionado também não é coincidência: ela é clara no nome e dos anjos na intenção. Seduzida por Cassi, um modinheiro que só era branco na régua e compasso dos subúrbios pois morava no Rocha, Clara acaba grávida, solteira e prostituída na primeira referência ao texto, ainda no Diário do ano de 1903, e abandonada na última versão, em conto de 1920 e livro póstumo.14 Os desenlaces podiam ser diferentes, mas o argumento continuava basicamente o mesmo. Clara perde a inocência quando descobre a vida.

Não é coincidência, também, o fato de o livro ser dedicado à memória da mãe do autor e contar com uma epígrafe de João Ribeiro que diz: “Alguns as desposavam [as índias]; outros, quase todos, abusavam da inocência delas, como ainda hoje das mestiças, reduzindo-as por igual a concubinas e escravas”.15 A verdade é que Clara constituía quase uma versão feminina de Isaías Caminha, o alter ego confesso de Lima, só que com um destino menos “feliz e acomodado”, digamos assim. Ela representava ainda uma homenagem à mãe do escritor, e especialmente à avó, que foi escravizada, viveu como concubina e cujos filhos nunca tiveram a paternidade reconhecida.

É a ancestralidade, a história familiar de Lima, que ajuda a explicar a ojeriza que o escritor sentia pelas modinhas, bem como sua insistência em desfazer de certos modinheiros. Na festa em que fora convidado a tocar, Cassi usou da letra de uma modinha para declarar que “a razão de sua desgraça” era Clara. Ainda incluiu no repertório uma música que intitulou “Na roça”, pautada num poema de Gonçalves Crespo, e que declamava: “Mostraram-me um dia na roça dançando/ Mestiça formosa de olhar azougado”. A composição, chamada “Canção”, datava de 1870, mas o suposto de Lima mantinha-se presente em sua época: a despeito do fim do sistema escravocrata, brancos continuavam a se entender como feitores em relação não apenas ao trabalho dos afrodescendentes como ao corpo das mulheres e filhas destes. Conforme diziam os versos de Crespo: “Que viva mulata!/ Por ela o feitor/ Diziam que andava perdido de amor. […]/ Sorria a mulata,/ Por quem o feitor/ nutria quimeras e sonhos de amor”. Lima tinha, pois, seus motivos para não gostar desse tipo de música, e das suas letras.16

No romance, a hora da modinha simbolizava o momento em que Clara dos Anjos se submete ao moço branco. Por isso, ele a fascina como feitor, e como poeta representante do lirismo popular modinheiro. O escritor guardava, podemos ver, verdadeira repulsa pelos cantores de modinhas sentimentais, as quais, segundo ele, carregavam “todo um arsenal de simulação amorosa”.17 Além disso, devia sofrer com a imagem das “mulatas” presente na literatura nacional. Por exemplo, Manuel Antônio de Almeida, em Memórias de um sargento de milícias, de 1854, descreve a mulata Vidinha como a própria desordem: uma mulher “que se pode apenas amar, sem casamento nem deveres […], onde todos se arrumam mais ou menos conforme os pendores do instinto e do prazer”.18 Com seus dezoito a vinte anos, ela possuía olhos muito pretos e vivos, dentes alvíssimos, uma fala descansada, doce e afinada. Outro personagem famoso dessa mesma galeria é Rita Baiana, que ocupa parte fundamental em O cortiço de Aluísio Azevedo, que talvez Lima tenha lido. Publicado em 1890, o romance detém-se na história dessa “mulata” que acaba se insinuando na vida do imigrante português Jerônimo e destrói seu casamento com a mulher de nome significativo, Piedade. O cortiço, entendido como uma espécie de laboratório social, é devastado por um incêndio, e depois refeito de maneira “civilizada” e livre das “degenerações” que vinham da mistura e dos tempos da escravidão.19

Enfim, diferentemente do lugar social preenchido pela antiga figura da mãe preta no interior da família patriarcal, o da “mulata” é definido por sua sensualidade. Da literatura ao cancioneiro popular, ela concentra vários estereótipos raciais: independente e mais autônoma, ela é tratada como traiçoeira, sensual e insinuante, convertendo-se em símbolo das experiências pré- ou extraconjugais do homem branco. Nos versos de uma canção do fim do século XIX, fica claro como ninguém a ela resiste ou controla, nem mesmo a República: “Fui ao Campo de Santana/ Beber água na cascata,/ Encontrei o Deodoro/ Dando beijos na mulata./ A mulher do Deodoro/ É uma grande caloteira,/ Mandou fazer um vestido,/ Mas não pagou a costureira”.20

Há muito de humor nesse cancioneiro nacional. Mas piada só tem graça quando não é explicada e quando inverte, e assim reforça, pressupostos de época.21 Afinal, termos como “mulata” não permanecem apenas pela lógica adormecida do passado: são reanimados na história do presente. No fim do XIX e começo do XX, logo após a abolição da escravidão no país, afro-brasileiros, libertos, ex-escravizados ganhavam a liberdade jurídica, mas não a igualdade biológica. Como temos visto, datam desse período teorias deterministas raciais que entendiam as raças humanas como espécies distintas, e os “mestiços” como degenerados, “raças” de cujos “estigmas” a prostituição fazia parte. Não parece coincidência o fato de o médico Nina Rodrigues publicar no mesmo momento artigo sobre o “hímen rompido das mulatas”. Pautado em tal “evidência científica”, o dr. Nina avaliava, e desqualificava, as queixas das “mulatas violentadas” que ele examinava.22

A reação de Lima à letra da modinha não é, assim, um desabafo isolado. Ele conhecia de cor esses modelos, a ponto de ironizar-lhes as decorrências em seu Diário: “Vai se estendendo, pelo mundo, a noção de que há umas certas raças superiores e umas outras inferiores, e que essa inferioridade, longe de ser transitória, é eterna e intrínseca à própria estrutura da raça. Diz-se ainda mais: que as misturas entre essas raças são um vício social, uma praga e não sei que coisa feia mais”.23

E a coisa era feia mesmo. O termo “mulato”, de origem espanhola, vinha de “mulo” — animal híbrido, produto do cruzamento do cavalo com a jumenta. Desse uso genérico, o nome passou a conceito, ligado aos “filhos mestiços das escravas” que coabitavam com seus senhores e deles engravidavam. Portanto, vista ainda por outro ângulo, fica cada vez mais evidente a aversão de Lima à associação das “mulatas” com certos comportamentos sexuais. Não há como esquecer que ele próprio era neto de uma escravizada, e que sua família fora toda formada a partir de uma relação nunca assumida formal e consensualmente pelo senhor da casa. É possível que tal situação esclareça a história pregressa do então amanuense, sua constante referência carinhosa à avó, bem como o constrangimento que sentia diante das mulheres; sobretudo as brancas. Isaías Caminha costumava explicar sua timidez dizendo: “sempre fui assim diante das senhoras”, qualquer que fosse “a sua condição”. E continuava: “desde que as veja num ambiente de sala são todas para mim marquesas e grandes damas”.24

Bastos Tigre também comenta a maneira recatada de Lima se portar, e como jamais ouvira dele nenhuma pornografia, nem mesmo a mais corriqueira, estivesse ele como estivesse. Era tímido nessa área.25 Pouco narrava histórias com mulheres e, quando o fazia, ora descrevia prostitutas ora as transformava em “meninas-moças” ilibadas. Essa era afinal a situação de Lima quando Cecília — pois esse era o nome da amante de seu amigo — o convidou para jantar. Até então não passava de uma “mulher da vida”; “com aquela palidez mate das prostitutas um tanto diminuída; simples de inteligência, não tem quatro ideias sobre o mundo, aceita o seu estado, acha-o natural, não deita arrependimentos, tem vontade de empregar as elegâncias que aprendeu com as francesas dos grandes bordéis em que andou”.26

No entanto, a primeira impressão logo se desfaz, e Lima se encanta pela moça; ela vira logo uma “princesa”. Prontamente o teria convidado para entrar, transformando aquela tarde num momento inesquecível: conversaram das seis e meia às dez horas, “inocentemente”. Escreve ele que a olhava com “seu olhar pardo, em que há o tigre e a gazela, de quando em quando, e ela, sempre, constantemente, me envolvia com o seu olhar azul, macio e sereno, que lhe iluminava o sorriso de afeto, eterno e constante, espécie de riso da natureza fecunda e amorável por uma manhã límpida e suave de maio, quando as flores desabrocham para frutos futuros”. Olhos pardos e olhos azuis anunciam uma diferença de “origem”, que virou, no relato do rapaz, não um abismo, mas uma ponte, ao menos naquela situação, evidentemente idealizada pelo escritor.27

Lima se enternece com as palavras de Cecília: “Senhor Barreto, M… não está. O senhor janta e depois vai-se embora, não é?”. Na opinião deslumbrada do autor, a frase fora dita com “singeleza” e “espontaneidade”, como se a jovem fosse “uma donzela ou uma senhora casada”. A imagem que o romancista criou, então, foi a de uma moça “meiga, simples, ignorante e um tanto obstruída de inteligência, que um vendaval de miséria trouxe para esta África disfarçada […] aproveitada essa diminuição pela concupiscência dos patrícios que lhe atiraram à grande prostituição, acenando-lhe com a riqueza e a fortuna, que ela não alcançou, talvez porque fosse fundamentalmente boa”.28

De amante fria do amigo ela vira, pois assim Lima quer que ela seja, “boa, doce, sem arrependimento, mas a desejar um casamento que a nobilite e eleve”. O escritor declina seu grande modelo literário, Dostoiévski, e o romance Recordações da casa dos mortos, para concluir, a partir de Cecília, que a nossa humanidade é melhor. “Essa rapariga que viu bordéis, ladrões, estelionatários, rufiões e jogadores; que se meteu em orgias; que certamente se atirou a desvios da sexualidade, aparece-me cândida, ingênua e até piedosa.”29 Com sua pequena quilometragem amorosa, Lima sem dúvida exagera; vê nos olhos azuis de Cecília uma Maria Madalena e se apaixona: “Há não sei que separação entre o seu passado e presente e a sua alma verdadeira, que tenho um delicioso bem-estar em vê-la”. Passa a comentar a conversa que tiveram, e que acabou resvalando em assuntos de jogo e de mulheres. “Ela bebeu mais que de hábito, e houve um instante que ela me disse, ao tomar um copo de vinho, cheia daquela espontaneidade que dominou a entrevista toda: — Eu não posso viver sem gostar de alguém.”

E arremata o escritor: “Como a prostituição me parece sagrada; se não fora ela, esta minha mocidade, órfã de amor, de carinho de mulher, não teria recebido esse raio louro de um sorriso e de um olhar, para me recordar esse misterioso amor que se sofre, quando se o tem, e se padece, quando se não o tem”. Assim termina: “Chove… Vou para a cadeira de balanço. Vou fumar e sonhar…”.30 A opinião apaixonada não demorou, porém, a se dissolver. Lima teria voltado à casa do amigo no dia 24 de janeiro de 1908 e sua impressão seria totalmente outra. “Por falar nela, voltei lá na penúltima quinta-feira. Não trouxe nenhuma convicção. A conversa foi falsa. M… estava lá, com toda a sua burrice e falta de poesia.”31 A representação elevada se desfazia como castelo de areia, com um Lima muito oscilante em suas ideias a respeito do sexo oposto.

Numa nota do Diário datada de 21 de janeiro de 1918, o tema do desejo diante das mulheres de seus conhecidos retorna. “Eu beijei por uma ou duas vezes […]. Isto foi há dias e eu estava esquentado. Se aquela ocasião fosse propícia, talvez consumássemos o ato. Ela é casada com um demônio de um inferior da Marinha, estúpido a roçar na idiotice […] Tem dois filhos. A E. não é uma beleza, mas é farta de carnes e tem aquele capitoso das caboclas, quando moças. Foi sempre ela quem me provocou. Naquele dia, eu fui adiante… O que eu queria dizer é que, agora, quase um mês passado, eu não tenho nenhum interesse em continuar a aventura. Não lhe tenho amor, não me sinto atraído por ela, por isso não encontro justificativa em mim mesmo para arrastá-la, como se diz, a um mau passo […] (Morreu no fim do ano e o G. também. Gripe).”32

O fato é que Lima sonhava romances cálidos, mas, definitivamente, não tinha traquejo e isso mexia com ele. O escritor Modesto de Abreu diz ter presenciado o romancista exercendo grande fascínio sobre as mulheres, e que uma ocasião o vira numa festa “cercado das mais belas donzelas”. E acrescenta: “era muito simpático o Lima”.33 Tudo não passa, porém, de suposição, e o certo é que o autor de Isaías Caminha sofria e reconhecia seu deslocamento social também nessa área. Aliás, se sua imagem, como cronista e romancista, era a de um escritor radical e crítico, no que se refere à sexualidade ele se mantinha acanhado, inibido e evitava palavrões. Na breve anotação de 7 de março de 1917 do Diário explica que passara a frequentar a Livraria Garnier, onde ia jogar conversa fora com os colegas. Termina o relato refletindo: “Não me entendem ao certo e procuram nos meus livros bandalheiras, apelos sexuais, coisa que nunca foi da minha tenção procurar ou esconder. Chamam-me de pudico. Ora bolas!”.34

Pode-se dizer que Lima se sentia “estrangeiro” onde quer que estivesse. Em primeiro lugar, seu grau de formação levava-o a se apartar dos vizinhos de Todos os Santos. O escritor gostava de reconhecer sua educação e dela se gabar, e assim guardava certa quilometragem dos personagens que tão bem descrevia. Em segundo lugar, na sua roda de amigos boêmios conservava uma separação cautelar, ainda mais quando se tratava de “socializar com as moças”. Conhecia demais aquilo que chamava de “limitações” trazidas pela cor que estampava em sua pele, ou ao menos mantinha esse tipo de obstáculo bem delineado quando tentava medir-se ou medir os outros.

Novamente no seu Diário, em 1908, o sentimento de deslocamento manifesta-se: “Mas de tudo isso, o que mais me amola é sentir que não sou inteligente. Mulato, desorganizado, incompreensível e incompreendido, era a única coisa que me encheria de satisfação, ser inteligente, muito e muito! A humanidade vive da inteligência, pela inteligência e para a inteligência, e eu, inteligente, entraria por força na humanidade, isto é, na grande Humanidade de que quero fazer parte […]. Abate-me também não ter amigos e ir perdendo os poucos que tinha. Santos está se afastando; Ribeiro e J. Luís também. Eram os melhores. Carneiro (o Otávio), o egoísta e frio Otávio, está fazendo a sua alta vida, a sua reputação, o seu halo grandioso, e é preciso não me procurar mais. Eu esperava isso tudo; mas não pensei que fosse tão cedo. Resta-me o Pausílipo, este é o único que se parece comigo e que tem o meu fundo, que ele desconhece por completo […]. Eu fico só, só com os meus irmãos e o meu orgulho e as minhas falhas”.35

Solteirão por opção ou por “falha”. Cló ou “mi compra ioiô”

Esse tipo de percepção, a certeza do que chama de “falhas”, talvez tenha afastado Lima de relacionamentos amorosos sonhados ou possíveis. Quem sabe também por esse motivo, em seus contos, tenha pretendido mostrar a realidade da prostituição que atingia sobretudo as jovens afro-brasileiras. Um dos mais duros contos do escritor intitula-se “Cló”. Editado originalmente em Histórias e sonhos, no ano de 1920, o texto fora criado anos antes, composto à mão e impresso em prelos manuais em tiragem única de 119 exemplares.36 Vinha acompanhado de ilustrações, mas as placas foram infelizmente inutilizadas. Ficou a narrativa, terrível no diagnóstico impiedoso que traz. A história transcorre numa “segunda-feira de Carnaval, quando as confeitarias têm todas as mesas ocupadas e as cerimônias dos outros dias desfazem-se, dissolvem-se”.37 Lima sabia como a sociabilidade, em especial em dias como aquele, era feita de infidelidades, a começar pelos fregueses dessa confeitaria que publicamente formavam casais de três. O personagem principal é “o velho Maximiliano”. Mestre e professor de piano, curioso, não se cansava de observar aqueles homens e aquelas mulheres “cheios de vícios” e “aleijões morais”. Como se vê, Lima importava para os contos o sarcasmo presente em seu Diário, contaminando a narração com as marchinhas de Carnaval. “Lá fora, o falsete dos mascarados em trote, as longas cantilenas dos cordões, os risos e as músicas lascivas enchiam a rua de sons e ruídos desencontrados […], um frêmito de vida e de luxúria que convidava o velho professor a ficar durante mais tempo bebendo, afastando o momento de entrar em casa.”38

Por isso, Maximiliano andava “macambúzio e isolado, embora mergulhado no turbilhão de riso, de alegria, de rumor, de embriaguez e luxúria dos outros, em segunda-feira gorda”. Jogara no “jacaré”, que não dera “e muito menos a centena”. Esse capricho da sorte roubara-lhe a “doce esperança” de resolver sua situação financeira em casa. Agora lá estava ele, “ainda em mar alto, já sem provisões quase, e com débeis energias para levar o barco a salvamento”. Não tinha como pagar “o vestido de que a filha andava precisada, para se mostrar, sábado próximo, na rua do Ouvidor, em toda a plenitude de sua beleza, feita (e ele não sabia como) da rija carnadura de Itália e de uma forte e exótica exalação sexual”.39

Da sua mesa, ele via “aquela formosa e famosa Eponina, a mais linda mulher pública da cidade, produto combinado das imigrações italiana e espanhola, extraordinariamente estúpida, mas com um olhar de abismo, cheio de atrações, de promessas e de volúpia”. O velho lente contentava-se em olhar “tudo aquilo pausadamente, com a sua indulgência de infeliz”, quando se pôs a pensar no seu lar, “onde o luxo era uma agrura, uma dor, amaciada pela música, pelo canto, pelo riso e pelo álcool”. Lembrou-se da filha, Clôdia — Cló, para a família —, “em cujo temperamento e feitio de espírito havia o estofo de uma grande cortesã com o tipo de boa educação da velha Grécia”. Lembrou-se “de sua carne veludosa e palpitante, do seu amor às danças lúbricas, do seu culto à toilette e ao perfume, do seu fraco senso moral, do seu gosto pelos licores fortes”; e, por um instante, “ele a viu coroada de hera, cobrindo mal a sua magnífica nudez, com uma pele mosqueada”. E punha-se a matutar sobre esse enigma da vida — “como é que ele tinha posto no mundo um exemplar de mulher assaz vicioso e delicado como era a filha?” —, quando se aproximou o dr. André, em quem “o ouro do aro do pince-nez reluzia fortemente e iluminava a barba cerdosa”. Era um “homem forte, de largos ombros, musculoso, tórax saliente […]; e, se bem tivesse as pernas arqueadas, era assim mesmo um belo exemplar da raça humana”. Apesar de ser um “bacharel vulgar e um deputado obscuro”, que tinha “falta de agilidade intelectual”, André era seu último amigo, o mais constante comensal de sua mesa. Político rico, “representava, com muita galhardia e liberalidade, uma feitoria mansa do Norte, nas salas burguesas; e, apesar de casado, a filha do antigo professor, a lasciva Cló, esperava casar-se com ele, pela religião do Sol”, um culto fundado havia pouco tempo por um agrimensor sem emprego.40

O velho Maximiliano, por seu turno, não tinha nenhum pensamento definitivo sobre o caso: “não os aprovava, nem os reprovava”. Limitava-se a pequenas reprimendas sem convicção. “E se isto fazia, era para não precipitar as coisas…” Foi então que o lente convidou o deputado para passar na sua casa e dar uma olhada em sua Cló, que estava se arrumando: ela iria ao baile de Carnaval com roupa de “preta-mina”.41 Tendo ambos concordado que a fantasia deveria “ficar muito bem” nela, despediram-se e prometeram encontrar-se em breve. Isso, depois de haverem feito juras de amizade eterna, de o lente ter demonstrado ao parlamentar o descompasso econômico existente entre os dois e de o deputado ter retirado da carteira “uma bela nota, cujo valor nas algibeiras do dr. Maximiliano fez-lhe esquecer em muito a sua desdita no ‘jacaré’”. A noite caíra, mas “os cordões e os bandos carnavalescos continuavam a passar, rufando, batendo, gritando desesperadamente. Homens e mulheres de todas as cores […] de penas multicores, fingindo índios, dançavam na frente ao som de uma zabumbada africana, tangida com fúria em instrumentos selvagens, roufenhos, uns, estridentes, outros. As danças tinham luxuriosos requebros de quadris […]. Eram restos de danças guerreiras ou religiosas dos selvagens de onde a maioria deles provinha, que o tempo e outras influências tinham transformado em palhaçadas carnavalescas”.42

Ele, o dr. Maximiliano, apaixonado amante da música, deteve-se um pouco, “para ouvir aquelas bizarras e bárbaras cantorias, pensando na pobreza de invenção melódica daquela gente”.43 E, devagar, se foi pela rua, “cobrindo de simpatia toda a puerilidade aparente daqueles esgares e berros, que bem sentia profundos e próprios daquelas criaturas grosseiras e de raças tão várias, mas que encontravam naquele vozerio bárbaro e ensurdecedor meio de fazer porejar os seus sofrimentos de raça e de indivíduo e exprimir também as suas ânsias de felicidade”.44

Como fica fácil notar, Lima interrompe a trama para desfazer do Carnaval, como ritual, mas encontrar nele um escape para os “sofrimentos de raça”. Mas voltemos ao dr. Maximiliano que depois do diálogo entabulado foi direto para casa. Estava fechada, mas havia luzes na sala principal, dança e música. Lembrou-se dos cordões, dos ranchos, “das suas cantilenas ingênuas e bárbaras, daquele ritmo especial a elas que também perturbava sua mulher e abrasava sua filha”. Assim que ele entrou, a filha perguntou se tinha estado com o político, ao que o lente, “severo”, e fazendo-se de sonso, reagiu perguntando: “Que tem você com André?”. “Nada, papai”, respondeu a moça, acrescentando: “Mas ele é tão bom…”. Bem que Maximiliano tentou “apossar-se da sua respeitável autoridade de pai de família”. Mas apenas disse, frouxamente: “Você precisa ter mais compostura, Cló. Veja que o doutor André é casado e isto não fica bem”. O respeitável professor foi, porém, vencido e convencido de que a afeição da filha pelo deputado era a coisa “mais inocente e natural deste mundo”. E o jantar acabou sério e familiar, embora cerveja e vinho não tivessem faltado. Mal a refeição terminou, o dr. André se fez anunciar. Desculpou-se por não ter chegado antes, depois disse saber que “d. Clódia ia de ‘preta-mina’” e lembrara de “trazer-lhe este enfeite”. Cló agradeceu sorridente, e logo chegou a hora de se prepararem para o baile, enquanto os homens ficaram sós na sala, bebendo uísque. “André, impaciente e desatento; o velho lente, indiferente e compassivo, contando histórias brejeiras…”45

A filha irrompeu no recinto, então, “linda, fresca, veludosa, de pano da Costa ao ombro, trunfa, com o colo inteiramente nu, muito cheio e marmóreo, separado do pescoço modelado, por um colar de falsas turquesas. Os braceletes e as miçangas tilintavam no peito e nos braços, a bem dizer totalmente despidos; e os bicos de crivo da camisa de linho rendavam as raízes dos seios duros que mal suportavam a alvíssima prisão onde estavam retidos”. Ainda aproveitou para requebrar sobre as chinelas, e toda risonha sentou-se, “esperando que aquele Salomão de pince-nez de ouro lhe dissesse ao ouvido: ‘Os teus lábios são como uma fita de escarlate; e o teu falar é doce’”. A moça, “pondo tudo que havia de sedução na sua voz […], cantou a ‘Canção da preta-mina’: ‘Pimenta-de-cheiro, jiló, quibombô;/ Eu vendo barato, mi compra ioiô!’”. Ao terminar a música, balançando os quadris e apoiando as mãos dobradas na cintura, curvou-se para o dr. André e disse: “‘Mi compra ioiô!’ E repetia com mais volúpia, ainda uma vez: ‘Mi compra ioiô!’”.46

O conto fala por si, e não há por que lhe dar uma só interpretação. No entanto, ele diz muito, nesse contexto, da visão de Lima sobre as “moças”, não apenas as “mulatas”, mas sobretudo as brancas vestidas como negras. A mera escolha de uma fantasia de mina fazia da moça objeto de desejo e sedução. A ideia de “compra” lembrava alusivamente, e pelo silêncio que soava, a realidade ainda presente da escravidão. Nada escapava ao crivo moral do autor. Esse é o caso de outro conto escrito na mesma época, intitulado “Miss Edith e seu tio”.47 Localizado e datado — “Todos os Santos (Rio de Janeiro), março de 1914” —, foi publicado originalmente na primeira edição de Triste fim de Policarpo Quaresma, de 1915. O fato de o texto ter sido selecionado para tal edição mostra o quanto Lima o prezava. Trata-se de um episódio que teria ocorrido na Pensão Familiar Boa Vista, situada na praia do Flamengo. O prédio que sofrera com a urbanização do Rio, acabou recebendo outra função: do antigo sítio elegante, com muitas árvores, “só restava um tamarineiro no fundo do exíguo quintal”. A pensão era dirigida por Mme. Barbosa, “uma respeitável viúva de seus cinquenta anos, um tanto gorda e atochada, amável como todas as donas de casas de hóspedes e ainda bem conservada, se bem que houvesse sido mãe muitas vezes, tendo até em sua companhia uma filha solteira, de vinte e poucos anos por aí, mlle. Irene, que teimava em ficar noiva, de onde em onde, de um dos hóspedes de sua progenitora”.48

Lima explora, como sempre, ambientes paralelos ao conteúdo central da trama — nesse caso, a mania de casamento das moças solteiras. Ele relata que d. Irene era criteriosa na escolha dos noivos para sua filha: “Procurava-os sempre entre os estudantes que residiam na pensão, e, entre estes, aqueles que estivessem nos últimos anos do curso, para que o noivado não se prolongasse e o noivo não deixasse de pagar a mensalidade à sua mãe […]. Já fora noiva de um estudante de direito, de um outro de medicina, de um de engenharia e descera até um de dentista sem, contudo, ser levada à presença do pretor por qualquer deles”. Agora mirava os empregados públicos…49

O escritor brinca com a queda no “ideal de doutor” de Irene, que passou do direito à medicina e daí para a odontologia até aceitar um burocrata. Estavam todos nesse raciocínio quando tocou a campainha e a dona da pensão chamou Angélica — o braço direito da patroa, que atuava como cozinheira, copeira, arrumadeira e lavadeira, e exercia alternativamente cada um dos ofícios, quando não dois e mais a um só tempo — para que fosse atender. A preta, que era “sempre agradecida” à sua “sinhá”, “não ouviu […] o tinir do tímpano”. Por isso, a patroa deixou de esperar a “mansa Angélica” e foi em pessoa ver quem batia. Ao abrir a porta envidraçada, viu um casal de aparência estrangeira. Sem muitos preâmbulos, o cavalheiro foi dizendo com voz de comando: “Mim quer quarto”. Mme. Barbosa percebeu que lidava com ingleses e muito se alegrou, tanto “com a distinção social de tais hóspedes” como com a perspectiva de “extraordinários lucros”. Assim, ela mesma se pôs a apresentar os cômodos vagos. Prontamente ofereceu o melhor a eles e explicou que mandaria vir uma cama de casal, ao que o “cidadão britânico interrompeu-a, como se estivesse zangado: — Oh! Mim não é casada. Miss aqui, meu sobrinha. A miss por aí baixou os olhos cheios de candura e inocência”, e Mme. Barbosa desculpou-se, assegurando-lhes que conseguiria dois quartos vizinhos. Na escada encontraram Angélica, com seus baldes, jarros, moringues, que ficou “inebriada” com tal visão. “Ela viu […], naqueles cabelos louros, naqueles olhos azuis, de um azul tão doce e imaterial, santos, gênios, alguma coisa de oratório, de igreja, da mitologia de suas crenças híbridas e ainda selvagens.”50