Capa da revista A Illustração Brazileira e detalhe das ilustrações que acompanham o conto “Miss Edith e seu tio”.

 

Prometeram mandar as malas no dia seguinte, e a dona da pensão, “tão comovida e honrada estava com a futura presença de tão soberbos hóspedes”, que nem lhes falou em pagamento. “Radiante, certa da prosperidade de sua pensão […] d. Sinhá, no carinhoso tratamento da Angélica, penetrou pelo interior do casarão adentro com um demorado sorriso nos lábios.” Escolheu uma mesa especial para os ingleses: tio e sobrinha. Só no dia seguinte, pela manhã, na hora do almoço, eles foram vistos. “Entraram sem descansar o olhar sobre ninguém; cumprimentaram entre os dentes…” Todos ficaram também silenciosos, as conversas barulhentas cessaram como se de todos “se tivesse apossado a emoção que a presença dos ingleses trouxera ao débil e infantil espírito da preta Angélica”. Acharam neles “não sei o quê de superior, de superterrestre; deslumbraram-se […]. Não se ligaram a ninguém na pensão e todos suportavam aquele desprezo como justo e digno de entes tão superiores”.51

Se tal compreensão era partilhada de forma geral na pensão, para Angélica “a coisa tomara feição intensamente religiosa”. Tanto que levava chocolate até a porta do quarto da menina sem jamais interrompê-la. “Em uma dessas manhãs […] com grande surpresa sua, a preta não a encontrou no quarto. […] Onde estaria? Farejou um milagre, uma ascensão aos céus, por entre nuvens douradas; e a miss bem o merecia, com o seu rosto tão puramente oval e aqueles olhos de céu sem nuvens… Premida pelo serviço, Angélica saiu do aposento da inglesa; e foi nesse instante que viu a santa sair do quarto do tio, em trajes de dormir. O espanto foi imenso, a sua ingenuidade dissipou-se e a verdade queimou-lhe os olhos. Deixou-a entrar no quarto e, cá no corredor, mal equilibrando a bandeja nas mãos, a deslumbrada criada murmurou entre os dentes: — Que pouca-vergonha! Vá a gente fiar-se nesses estrangeiros… Eles são como nós… E continuou pelos quartos, no seu humilde e desprezado mister.”52

“Miss Edith e seu tio” deixa evidente a crítica ao fascínio dos estrangeiros e nosso “complexo de vira-latas”. Entretanto, a nota normativa fica por conta do desencanto de Angélica. As mulheres, fossem brasileiras ou estrangeiras, eram raramente santas. Lima, no Diário, reforça o argumento ao referir-se à sua relação difícil com as moças. Em 1905: “Amores… Aborrecimento comigo… Falta de dinheiro… […] Não há moças bonitas. Só velhas e anafadas burguesas. Turcos mascates e suas mulheres também […]. Cais do beira-mar. Travessa do Maia. ‘Ei-la.’ Número 22. Que doçura de fisionomia. Pálida. Calma. Cílios poucos. Não há nela nem revolta, nem resignação. Interessa-me. Queria-a para minha mulher. Mas eu… Ah! Meu Deus! Há de ser sempre isso. Há uns tempos a esta parte, vai se dando uma curiosa coisa. Na rua, nos bondes, nos trens, eu me interesso por certas moças e às vezes por cinco minutos chego a amá-las. Procuro-lhes a moradia. Passo duas, três vezes pela porta timidamente, gauchement — onde me levará isso?”.53

O tímido amanuense parecia interessar-se pelas moças mais claras, como Miss Edith e Cló, mas se sentia sem jeito — talvez deslocado. Em 1907, anota: “Mulher bonita é que não falta nesta vida; o que falta é a mulher de que a gente goste”.54

Bebidas e mulheres: “uma tecla sensível”

A bebida também não ajudava. Lima tomava os primeiros tragos logo de manhã e se mantinha com aquele ar distante o dia todo. A embriaguez não contribuía para a sociabilidade, e nesse caso é difícil distinguir causa de efeito. Por vezes, ele ficava desagradável, falava demais, transpirava muito e, se já não conseguia se relacionar com os amigos, o que dizer da relação com o sexo oposto. Em 1908, escreve: “Tomei um ‘pifão’ uma noite e andei experimentando o meu inglês com alguns. Foi um fiasco”. No mesmo ano, comenta que as mulheres agora “têm outros amigos, com o consentimento deles […]. Os costumes estão desse modo, permitem já a poliandria. Há muita falta de delicadeza e beleza nas nossas coisas. Aborreci-me!”. A verdade é que Lima não tinha jeito para se aproximar das mulheres e por isso se “aborrecia”.55 Em 1911, anota no Diário: “Timidez diante das mulheres de alta-roda, donde gosto pelas raparigas airadas”.56 Ou ainda, em 1917: “Quando se está perto de uma mulher, ou dizemos asneiras, ou nos calamos”.57

O episódio mais revelador desse tipo de atitude, que se tornava padrão, ocorreu quando Lima era jovem e começava na vida de amanuense. No dia 6 de novembro de 1904 ele foi à ilha do Governador pagar algumas dívidas do pai. Na volta, na estação de São Francisco, “estava triste”. Diz ele que, ao embarcar, invadiu-o “tão grande melancolia”, que resolveu descer à cidade. “Que seria?”, escreve. “Foi o vinho?” E admite: “Sim, porque tenho observado que o vinho em pequenas doses causa-me melancolia; mas não era o sentimento; era outro, um vazio n’alma, um travo amargo na boca, um escárnio interior. Que seria?”.58

Exemplos de ilustrações e legendas, claramente apelativas, que constavam do livro do professor Hermeto Lima, publicado no ano da internação de Lima Barreto: 1914.

 

A vida do rapaz era invadida pela bebida, e ele recorria à mesa de bar “com gosto”. No entanto, sempre procurava, e encontrava, toda espécie de motivos para explicar a melancolia e sua necessidade de beber. Foi nessa ocasião, inclusive, que encontrou um colega que passeava com a esposa e que fez questão de lhe tocar na “tecla sensível” dizendo: “— Vê, ‘seu’ negro, você me pode vencer nos concursos, mas nas mulheres, não”.59 A ladainha vai repetindo-se. A “tecla sensível”, nos termos do escritor, os fatos que lhe traziam “vazio n’alma”, tinham a ver com sua origem e sua impossibilidade de conquistar as mulheres que desejava. Talvez mais brancas que ele; quiçá de costumes mais “aristocráticos”. Assim como Clara amava Cassi, que lhe parecia “superior” na cor e na condição social, Lima considerava que a sua formação e recursos pessoais de nada valiam, pelo menos diante das “moças”.

Ante os infortúnios, bebia. Bebia por medo, pela falta de amigos, por não encontrar a rapariga certa, para fugir da “desgraça doméstica”, por causa de seu emprego. E bebia porque bebia, porque gostava de beber. No Diário do ano de 1914, ele resume seu permanente estado de embriaguez como uma forma de escapismo: “A minha casa me aborrece. O meu pai delira constantemente e o seu delírio tem a ironia dos loucos de Shakespeare. Meus irmãos, egoístas, queriam que eu lhes desse tudo o que ganho e me curvasse à Secretaria da Guerra. O que me aborrece mais na vida é esta secretaria. Não é pelos companheiros, não é pelos diretores. É pela sua ambiência militar, onde me sinto deslocado e em contradição com a minha consciência […] É o meu pesadelo, é a minha angústia. Tenho por ela um ódio, um nojo, uma repugnância que me acabrunha. Queria ganhar menos, muito menos, mas não suportar aqueles generais […]. Demais, o meu feitio é tão oposto àquela atmosfera de violência, de opressão, de bajulação, que me enche de revolta. Não sei o que hei de arranjar para substituir aquilo, e a minha gana de sair de lá é tão grande, que não me promovem, não me fazem dar um passo à frente. Eu fiz parte do júri de um Wanderley,60 alferes, e condenei-o”.61

Lima refere-se aqui ao episódio, por nós conhecido, da Primavera de Sangue, e ao júri que condenou os militares pelo assassinato de estudantes que se manifestavam contra Hermes da Fonseca em 1910: “Fui posto no índex. […] Enfim, a minha situação é absolutamente desesperada, mas não me mato. Quando estiver bem certo de que não encontrarei solução, embarco para Lisboa e vou morrer lá, de miséria, de fome, de qualquer modo. Desgraçado nascimento tive eu! Cheio de aptidões, de boas qualidades, de grandes e poderosos defeitos, vou morrer sem nada ter feito. Seria uma grande vida, se tivesse feito grandes obras; mas nem isso fiz”.62

E justificava o vício: para não se aborrecer, para não ter que enfrentar o descompasso entre suas “aptidões” e “boas qualidades”, assim como para poder lidar (ou esquecer) de seus “poderosos defeitos” e frustrações. Bebia chope, uísque, cachaça, para afastar o abismo que devia enxergar entre si e os amigos, os colegas de repartição, as mulheres, a família, os vizinhos. Depois do episódio da Primavera de Sangue, sentia-se ainda mais isolado dos demais profissionais da Secretaria da Guerra, que lhe censuraram abertamente a atitude, na qualidade de colega e funcionário público. E havia seu pai, de todo alienado, que se deixava ficar numa cadeira num mutismo absoluto, só quebrado pelos momentos em que delirava, via coisas, e passava a berrar e a uivar.

Por essas e por outras, Lima se sentia e parecia cada vez mais deslocado. A roupa sempre manchada, o sapato desgastado, e placas de suor que lhe marcavam a camisa e colavam o cabelo à cabeça. Sofria com o tédio da repartição, com sua vida literária que não decolava, e com sua situação pessoal: poucos amigos, sem namoradas, e com uma família que ele precisava prover. A bebida, para Lima, transformava-se ao mesmo tempo numa espécie de evasão para a sua profissão, que o entediava, e daquele mundo que insistia em não dar certo.

O paciente da ala Pandemônio: “Andei porco, imundo”

Lima não escolhia mais lugar, dia da semana ou horário para beber. Acabaria internado pelo próprio irmão em 1914, sendo obrigado a afastar-se da repartição. Essa não foi, aliás, a primeira vez que se viu forçado a ausentar-se do trabalho por motivo de saúde, mas a terceira. Em 3 de novembro de 1910, por exemplo, a junta médica do Ministério da Guerra concedeu a ele licença por três meses, com o diagnóstico de “impaludismo”; ou seja, malária. Lima havia contraído a moléstia ainda menino, quando morava na ilha do Governador. Por lá, a doença, que ocasiona febres, suadouro, fraqueza e muito mal-estar, era quase endêmica.

Quanto ao segundo afastamento, datado de 20 de novembro de 1911, atestava “reumatismo poliarticular, hipercinese cardíaca”, com a recomendação de que o “doente” ficasse noventa dias em recuperação.63 Esses são sintomas comuns do uso continuado do álcool. Lima, apesar de no dia a dia negar o mal que o hábito lhe fazia, é mais direto em seu Diário: “De há muito sabia que não podia beber cachaça. Ela me abala, combale [sic], abate todo o organismo, desde os intestinos até à enervação. Já tenho sofrido muito com a teimosia de bebê-la. Preciso deixar inteiramente. […] Tinha levado todo o mês a beber, sobretudo parati. Bebedeira sobre bebedeira, declarada ou não. Comendo pouco e dormindo sabe Deus como. Andei porco, imundo”.64

Problema maior que esse, só mesmo o seu lar: “Ia para a cidade, quando me senti mal. Voltei para casa, muito a contragosto, pois o estado de meu pai, os seus incômodos, junto aos meus desregramentos, tornam-me a estada em casa impossível. Voltei, porque não tinha outro remédio”.65 As coisas definitivamente não iam bem. Mas ficariam pior quando em 1914 Lima deu entrada no Hospital Nacional de Alienados.66

Retrato em branco e preto, ficha antropométrica preenchida. É dessa forma que Lima Barreto se encontra registrado no Hospital Nacional de Alienados. A instituição remontava ao ano de 1841, com o nome de Hospício de Pedro II, quando José Clemente Pereira, provedor da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, iniciou campanha pública em favor da criação de uma instituição para alienados sediada na corte. Era preciso separar os loucos dos outros doentes, e ministrar-lhes tratamento diverso em função da natureza agora reconhecida da moléstia. O tratamento da alienação não permitia, porém, divisões: “indivíduos embriagados” recebiam cuidados semelhantes aos que eram oferecidos aos demais, sendo descritos como portadores de psicose tóxica.67Havia clara associação entre alcoolismo, estados de demência e moléstias mentais. Em textos publicados entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do XX, nota-se uma diferenciação entre a loucura denominada “constitucional” e a loucura “alcoólica”; esta última seria desencadeada por uma intoxicação alcoólica, incluindo-se na categoria de “psicose tóxica”. Embora não existisse consenso quanto ao fato de ser o alcoolismo causa ou consequência das moléstias mentais, não havia divergências na afirmação de que o abuso da bebida alcoólica era capaz de produzir sintomas praticamente iguais aos manifestados pelos alienados mentais.

Esse não era, também, um diagnóstico recente. Nos Códigos de Posturas Municipais do Império, os loucos e os embriagados foram entendidos como um perigo social. O relatório de Salubridade da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro de 1839 entendia a embriaguez como uma doença de caráter “especial”. Contudo, ajuizava que, como não havia um hospício na corte, e poucos hospitais pertencentes a irmandades religiosas recebiam alienados, os médicos deveriam reunir os acometidos por esses males. Por isso mesmo, e a exemplo de outros pacientes, doentes internados em tais estabelecimentos ou no Hospital da Santa Casa da Misericórdia por causa do uso extremado da bebida eram acomodados em cubículos mal iluminados e pouco ventilados, muitas vezes compartilhando espaços com os demais alienados. Superada a crise, eram logo restituídos às famílias.68

Mas os casos de loucura e de alcoolismo aumentavam juntamente com o crescimento das cidades. E assim tomou forma a demanda para a criação de um estabelecimento especializado, o qual foi justificado em tal contexto em nome da boa “ordem das ruas”. Pautados nos modelos de Pinel, Esquirol, Frank, Dubois, entre outros, os médicos brasileiros agora preconizavam o isolamento da loucura e sua reclusão. Foi então aprovado no ano de 1842 um novo projeto, e selecionou-se o local para a construção do edifício. No dia 5 de dezembro de 1852, inaugurou-se o imponente prédio de arquitetura neoclássica, situado num lugar famoso por sua beleza natural. De lá se observava um espetáculo pungente: a baía de Botafogo, a serra dos Órgãos, as montanhas de Niterói, o Pão de Açúcar e a Urca. Lima, décadas mais tarde, e de outra perspectiva, descreveria a vista que ele tinha do interior do hospital em seu Diário do hospício: “Olho a baía de Botafogo, cheio de tristeza […] Tudo é triste”.69

Estranho paradoxo opunha a paisagem de fora à paisagem humana de dentro: internos anônimos, vagando maltrapilhos e unidos apenas por uma etiqueta comum, a loucura. Anos depois, a arquitetura do hospital seria questionada, uma vez que, segundo as novas concepções, devia-se abrir mão de construções tão grandiosas, ainda mais no caso de instituições de saúde. Arquitetos então renomados, como Domingos Monteiro, José Maria Jacinto Rebelo e Joaquim Cândido Guilhobel, foram chamados para ajudar na elaboração do projeto, atestando a relevância deste nos planos do Império, cuja política científica se voltava para a aplicação das recentes ciências e tecnologias. Originalmente, o hospital era de todo devassado, expondo o cotidiano dos pacientes, até porque consistia em ponto de visitação dominical. De 1855 em diante, porém, um gradil passou a separar os loucos do restante da sociedade. Não por acaso Lima, em seu Diário, descreveria o hospício como “frio, severo, solene…”.70