Temas como a loucura andavam em voga, e não eram poucos os teóricos que defendiam teses sobre a maior incidência de casos num país mestiçado. Com a chegada dos primeiros pacientes ao Hospício de Pedro II, transferidos sobretudo da Santa Casa da Misericórdia, o cotidiano passou a estruturar-se. A organização da construção separava, antes de mais nada, os homens (que ficavam na ala esquerda) das mulheres (na direita). Além disso, dividiam-se os alienados a partir de sua origem social entre aqueles admitidos gratuitamente (indigentes, escravos e marinheiros) e pensionistas (discriminados como “primeira classe”, que recebia tratamento especial, e “segunda classe”, com direito a quarto para dois internos). Os alienados eram ainda diferenciados pelo comportamento: tranquilos, agitados, imundos, afetados por moléstias acidentais ou crônicas. Bastante simples, a classificação combinava critérios que atentavam para a condição social, higiene, incidência de outras moléstias, manifestação da loucura e grau de periculosidade. Lima, anos depois, ficaria na “segunda classe”, entre os afetados por moléstias acidentais e calmos.
A capacidade de “cura” dos pacientes era, entretanto, limitada, uma vez que faltavam médicos, enfermeiros e remédios. Ademais, não existia distinção clara entre controle e tratamento. Por exemplo, de maneira indiscriminada ministravam-se banhos como tratamento e para o controle de pacientes “nervosos”. De forma também alargada empregavam-se substâncias farmacológicas (como o ópio), sangrias e purgativos. E ainda, como a loucura era considerada “doença moral”, o trabalho cumpria função primordial. As mulheres costuravam, lavavam e engomavam roupas, enquanto os homens se dedicavam à limpeza, atuando como serventes nos jardins, refeitórios e enfermarias, espaços em que arrumavam camas, varriam e lustravam os assoalhos.
Com a chegada da República, procedeu-se a uma acelerada alteração de nomes, títulos e emblemas. O “Pedro II” não ficou atrás: logo em janeiro de 1890 foi rebatizado de Hospício Nacional de Alienados e, em 1911, de Hospital Nacional de Alienados. Além disso, tornaram-se ainda mais fortes modelos como o da “teoria da degenerescência”, elaborada por Morel e difundida por Magnan, e o conceito do “organicismo”, que estabelecia a predominância dos elementos biológicos sobre os sociais. Pressupostos como esses levaram a uma mudança de enfoque com relação à loucura e à importância das determinações hereditárias. Às novas conclusões correspondiam terapêuticas originais, uma medicalização crescente e um aprimoramento desse gênero de instituição.
Não obstante, sobravam críticas ao hospital que desabonavam desde o caráter inapropriado de sua arquitetura até a falta de médicos e a superlotação. Foi justamente para atender a essa demanda represada que, em 1890, criou-se a Assistência Médico-Legal de Alienados, a qual administraria o Hospício Nacional de Alienados e as Colônias de Alienados da Ilha do Governador. O hospício passou, então, a contar com uma logística independente da Santa Casa da Misericórdia. Crescia, igualmente, a autoridade do médico, que exercia uma espécie de tutela sobre seus pacientes, desbancando o poder familiar.
E foi esse tipo de estabelecimento que recebeu Lima Barreto em agosto de 1914. Ele, naquela altura conhecido do público leitor da capital federal, foi tomado como um paciente a mais, “um alienado passageiro”, sujeito ao delírio transitório do álcool. O amanuense começava a anotar, também, alucinações no seu Diário. Via monstros pelas paredes e, quando isso ocorria, ficava agressivo, imprevisível: quebrava móveis e investia sobre aqueles que queriam ajudá-lo. Foi esse o argumento da família justificando a internação, a qual, mesmo assim, pegou o “paciente” de surpresa. Se a imagem de boêmio lhe “caía bem” e compunha a representação de um escritor avesso a convenções e bom-mocismos, o descontrole ia na contramão do seu intuito consciente ou não: o de projetar-se como uma “persona literária”, um testemunho crítico dessa República das Letras.
O medo maior de Lima devia ser imaginar que sua história repetia o que os prognósticos deterministas apontavam: não se escapava da origem e dos estigmas hereditários. Era esse o receio dele diante da loucura do pai, e foi provavelmente esse o temor que sentiu ao acordar no hospital, já sóbrio e mais atento à sua situação. A explicação era a de sempre: tudo o entediava. A casa, a repartição com “ambiência militar”, a vida pessoal sem graça, o pai que delirava com “a ironia dos loucos de Shakespeare” e a secretaria onde se sentia “deslocado e em contradição”.
Certo dia, depois de uma semana dedicada à bebedeira, o romancista achou melhor ficar em casa descansando. Foi quando teve a primeira alucinação, descrita por seu irmão Carlindo. Lima pedia a ele que enxotasse um gato enorme que insistia em ficar embaixo da mesa, quando não havia bicho algum na casa. Em outra ocasião, era uma turma de vagabundos que ameaçava invadir sua intimidade. Aquietou-se novamente para dizer em seguida que agora eles faziam serenatas, e que Carlindo podia deixar que entrassem.
Daquela vez, a família chamara o dr. Braule Pinto, médico de João Henriques, que diagnosticou “alucinações alcoólicas. Coisa passageira”. Mesmo assim, aconselhou os irmãos a providenciarem a remoção do amanuense para outro local. Era sua opinião que as inquietações do filho poderiam provocar piora no estado do pai, já muito comprometido. Além disso, em seu delírio, o romancista atirava objetos contra paredes imaginárias ou na direção dos seresteiros que dizia ouvir. Lima foi enviado, então, para a residência do tio, Bernardino Pereira de Carvalho, em Guaratiba, mas a medida não surtiu o efeito esperado. Os fantasmas viajaram com ele para o interior, e o escritor dizia ter se deparado com policiais na porta da casa. Gritava, ainda, que o tenente Serra Pulquério estava ali para prendê-lo por causa de sua fé no anarquismo e de seu ataque a Hermes da Fonseca.
Era de novo o trauma do julgamento dos militares e o medo de ser “descoberto” por conta de sua simpatia pelas teorias do anarquismo. Para evitar a prisão imaginária em que se autoencarcerara, o escritor quebrou a casa do tio.71 Resultado: Carlindo, que fazia parte dos quadros da polícia, o internou no hospício. Lima jamais perdoaria o irmão, nem esqueceria da viagem que fez de Guaratiba até a praia Vermelha, misturado a delinquentes. O conto “Como o ‘homem’ chegou”,72 incluído pelo autor na primeira edição de Triste fim, de 1915, é claramente inspirado no episódio. Escreve ele: “A polícia da República, como toda a gente sabe, é paternal e compassiva no tratamento das pessoas humildes que dela necessitam. […] Naquela manhã, tinha a delegacia um movimento desusado […]. A circunscrição era pacata e ordeira. Pobre, não havia furtos; sem comércio, não havia gatunos; sem indústria, não havia vagabundos…”.
Lima passa a descrever, então, sua “masmorra ambulante” que sacolejava sem parar: “mas, no tal carro feroz, é tudo ferro […]. É blindada e quem vai nela levado aos trancos e barrancos de seu respeitável peso e do calçamento das vias públicas, tem a impressão de que se lhe quer poupar a morte por um bombardeio de grossa artilharia […]. Essa prisão […] blindada, chapeada, couraçada, foi posta em movimento; e saiu, abalando o calçamento, a chocalhar ferragens, a trovejar pelas ruas afora”.73
Na crônica escrita algum tempo depois do trauma que resultou da primeira internação, Lima, irônico, desanca as práticas da polícia, que, “sem ter o que fazer”, prende inocentes. Os paralelos autobiográficos são evidentes: Fernando, o personagem central, morava com o pai nos arredores da cidade, era acusado de bebedeira renitente ao lado de amigos vagabundos, e passava o tempo vendo estrelas. Se Lima não contava estrelas, tinha hábitos boêmios, faltava ao trabalho e queria mesmo era viver da sua literatura, o que para muitos não passava de sinal de ócio e preguiça. No mesmo dia em que publicou o conto, escreveu em seu Diário que a vida na secretaria era seu pesadelo. Há um salto temporal, exatamente no contexto da internação, e no dia 13 de julho o escritor volta ao seu ofício: “Noto que estou mudando de gênio. Hoje tive um pavor burro. Estarei indo para a loucura?”. Novo salto e uma anotação sem data: “Estive no hospício de 18-8-14 a 13-10-1914”.74
“Angústia” e “pesadelo” são termos que definem bem a sensação de Lima. Afinal, em sua biblioteca pessoal havia uma série de livros acerca das teorias da degeneração, segundo as quais indivíduos miscigenados carregariam “vícios” das duas raças que os formavam. Estabelecia-se assim uma correlação clara entre origem e doença mental, e, se a loucura não tinha uma única raça, “negros e mestiços” estavam mais predispostos a ela. Henrique Roxo, médico do manicômio onde Lima foi internado, em pronunciamento no II Congresso Médico Latino-Americano (1904), asseverava que “negros e pardos” deveriam ser considerados como “tipos” que não evoluíram; retardatários entre nós. De acordo com ele, se todos carregam uma “tara hereditária”, a desses grupos era “pesadíssima”. Não deixava de incluir argumentos sociais para explicar o aumento no número de casos, culpando a abolição “repentina” e o crescimento das cidades. Por conta disso é que tais indivíduos teriam maior propensão para a vadiagem, o alcoolismo e demais distúrbios mentais.
Conforme sabemos, Lima conhecia a loucura de muito perto, pelo menos desde 1902, quando seu pai foi considerado “neurastênico” e nunca mais voltou à razão. Já no hospício o escritor conviveria com pacientes semelhantes a João Henriques ou àqueles que conheceu na ilha do Governador. Ao lado da sua ficha de internação, são muitas as que contêm nomes e rostos preservados pelas fotos em preto e branco — hoje meros desconhecidos —, cada interno carregando seus dramas pessoais, descritos nos pequenos relatos que mencionam brigas, manias políticas, agressividade, criminalidade, fanatismo religioso, alcoolismo, ciúme e uma vasta gama de experiências, todas classificadas com o mesmo rótulo forte e generalizante. A loucura parece ser o contrário da ordem e da normalidade, uma corruptela para designar exagero, agitação, periculosidade, ou, como mostra Castel, “um excesso que é falta”.75
O conjunto das fichas traz um universo de certa maneira recorrente: os internos, em sua maioria, são descritos como “brasileiros”; entre os poucos estrangeiros, mais portugueses e espanhóis. Divididos por cor — “brancos, pardos ou negros” —, também tinham a profissão anotada. As mulheres foram em sua totalidade definidas como “domésticas”, enquanto os homens, em sua maior parte, genericamente como “trabalhadores”, ou, quando não é esse o caso, como comerciantes e ainda estivadores, mecânicos, tipógrafos, pedreiros, alfaiates, serralheiros, carregadores, um chofer e dois empregados públicos; entre eles Lima Barreto.
Nas fichas de observação, a partir de pequenos detalhes percebe-se o diálogo difícil e hierarquizado que se entabula entre doente e médico. De um lado, o paciente buscava chamar para si alguma singularidade. De outro, muitas vezes era obrigado a deixar-se classificar com base numa situação alheia à sua vontade mas que por lá unia a todos. Se o diagnóstico apresentava variações — alcoolismo, epilepsia, psicose periódica, paralisia geral, delírio episódico, demência senil, debilidade mental, esclerose cerebral, sífilis cerebral ou simplesmente psicose dos degenerados, isso quando os termos não vinham seguidos por um ponto de interrogação —, o tratamento era bastante usual, resumindo-se à prescrição de purgativo, ópio e tônicos calmantes.
Lima, em seu Diário do hospício, anotaria a “humilhação” que sentiu logo na chegada ao estabelecimento, quando se viu transformado num “mulato”.76 Pouco adiantou, nessa hora, seu conhecimento crítico do darwinismo racial. Sobraram o desânimo e certo fatalismo, presentes nas anotações do Diário ainda no ano de 1904: “A capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori. A ciência é um preconceito grego; é ideologia”.77
Interno no ano de 1914: loucura por todos os lados
Aquele que entrar na biblioteca do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, localizada nos fundos do campus da praia Vermelha, ao lado do edifício onde funciona o Instituto Psiquiátrico Philippe Pinel, e pedir o Livro de Observações do ano de 1914 se deparará com um documento encadernado, repleto de questionários com conteúdo-padrão, respondidos ou em parte vazios, e de fotos em branco e preto seguidas de curtas descrições.
O documento gera impacto, tal a intimidade nele revelada sobre certos personagens cujos nomes e feições parecem ter se perdido na pátina do tempo. Um deles, lá internado no dia 18 de agosto, com certeza se destaca em meio à massa de desconhecidos: o escritor Afonso Henriques de Lima Barreto, então com 33 anos. Ele aparece trajando o uniforme de detento que estampa um carimbo com o nome de sua seção: Pandemônio. Não há como saber a razão oficial da escolha do designativo. “Pandemônio” tem origem no inglês pandemonium, por meio do radical grego pân, “todo”, acrescido de daímon, “demônio”, também do grego. Tal neologismo foi criado pelo poeta inglês John Milton (1608-74), no seu Paradise Lost, para designar o palácio de Satã. É ainda a denominação da capital imaginária do Inferno, significando “tumulto”, “balbúrdia”, “confusão”. O nome da seção era tão forte que deve ter motivado o autor a começar a escrever, ali mesmo, um livro intitulado O cemitério dos vivos, totalmente embasado em sua internação.
Na foto incluída em sua ficha, Lima apresenta o rosto um pouco inchado, olheiras, e no olhar a resignação de quem perdeu temporariamente o controle dos próprios atos. Sabemos que não era um paciente qualquer. Fora contratado em 1914 para escrever uma crônica diária no Correio da Noite e desde 1911 colaborava na Gazeta da Tarde, onde publicara o conto em forma de sátira política “Numa e a ninfa” e seus dois fascículos das Aventuras do dr. Bogóloff.
Além disso, e como veremos, na ocasião da internação, Lima já havia publicado, na forma de folhetim, seu romance satírico de maior fôlego, e no qual depositava grande esperança de sucesso: Triste fim de Policarpo Quaresma. Lançado entre agosto e outubro de 1911 na edição vespertina do Jornal do Commercio, Triste fim retornava aos tempos de Floriano e ressuscitava os dias vividos na ilha do Governador, quando o pai de Lima, atuando na administração das Colônias de Alienados, viu sua propriedade ser invadida por militares insurretos nos idos de 1893; contexto em que se inicia a Revolta da Armada. O movimento parece assumir papel quase simbólico na existência do romancista, uma vez que significa a sua entrada no mundo adulto e o surgimento dos receios com relação a João Henriques. Não é possível imaginar que o jovem teria a capacidade de prever a doença futura do pai, e menos ainda as suas próprias “fraquezas” — para ficarmos com os termos dele. O certo é que, por meio da denúncia de uma situação pública, o romance vai anunciando as falácias presentes na vida privada do escritor.
Ademais, se até então Lima jamais havia sido internado, seus problemas começariam a ficar mais reincidentes. A internação chegou em péssima hora; quando o escritor procurava transformar “Policarpo Quaresma” em livro. Também não conseguiu deixar na ficha do hospício a classificação que mais lhe agradava e que, em seu entender, o definia: escritor. Era um “funcionário público”, e só. A tensão é nítida. Enquanto o notário parece preencher burocraticamente as fichas, pode-se perceber o esforço dos internos em especificar a profissão e assim ganhar um lugar diferenciado naquela instituição cuja tendência era jogar a todos na mesma grande vala comum da loucura. Lima queria ser classificado como escritor, contudo ficou registrado apenas (mas pelo menos) como funcionário público. A profissão que tantas vezes ironizou, naquele momento se tornou o instrumento certo para defender sua exceção.
Também causa estranheza a indicação da “cor branca”. De um lado, ela contraria o que a imagem evidencia: a pele azeitonada e o cabelo pixaim. De outro, nega aquilo que o autor tanto defendia: ele se definia como um “escritor de origem africana”, que fazia uma literatura muito voltada para os costumes e sofrimentos dessas populações. Aí está mais uma prova da maneira perversamente brasileira de negociar com a cor. É difícil especificar o responsável pela atribuição: o funcionário zeloso em “branquear” alguém que, como ele, trabalhava para o Estado, ou o próprio escritor que, quiçá, achou por bem associar, naquela circunstância, sua profissão à cor social branca? Quem sabe tenha sido mesmo o notário, que pensou haver praticado um ato de bondade, uma vez que eram vários os casos de pacientes classificados como brancos desditos pelas fotos. Quem sabe tenha sido Lima que, no afã de sair dali, recorreu ao subterfúgio da cor, até porque internos brancos tinham mais chances de ver diminuídas suas penas.
Não há como saber. No entanto, vale a pena recorrer à detalhada “inspeção geral”, constante do livro de “observações clínicas”.78 Nela, estabelece-se novo diálogo tenso entre Lima e o funcionário. Na primeira parte do laudo, o diagnóstico é claro e não permite prever nenhum debate: “O nosso observado é um indivíduo de boa estatura, de compleição forte, apresentando estigmas de degeneração física. Dentes maus; língua com acentuados tremores fibrilares, assim como nas extremidades digitais”. De imediato, chamam atenção duas palavras fortes no vocabulário da época: “estigmas de degeneração”. “Estigma” vem da terminologia da antropologia criminal de Lombroso, termo muito aplicado pelos médicos locais que, à semelhança da Escola Tropicalista Baiana, estudavam as associações entre as raças mestiças, a criminalidade e a loucura. “Estigma” supõe a existência de traços rígidos, fixos e essenciais, vinculados às raças, entendidas como fenômenos naturais e finais. Supõe, ainda, a ação da hereditariedade como fator determinante no comportamento das populações. Mais “degradada” era, não obstante, a situação das “raças mistas”, sujeitas a todo tipo de “degeneração”. Portanto, se Lima podia ser branco na cor social, parecia “não tão branco” no diagnóstico.
O procedimento seguia a orientação do hospital e do professor Henrique Roxo, que em 1901 defendeu a tese Duração dos atos psíquicos elementares nos alienados. Roxo substituiu seu orientador, Teixeira Brandão, na direção do Pavilhão de Observação do Hospital Nacional de Alienados e criou nova técnica para exame de “suspeitos de alienação”. Segundo o médico, se o questionário-padrão deveria ser fixo, já o diálogo que se estabelecia com o paciente precisava responder à especificidade de cada caso clínico. Ou seja, o funcionário era premido a anotar os dados físicos do enfermo — estatura, idade, cor, estado civil —, caracterizar sua fisionomia e passar na sequência ao “estado geral”: calmo, agitado, triste, alegre, concentrado, disperso. Só depois disso é que se dava início ao “diálogo”.
Conforme o manual local, considerava-se essa primeira fase fundamental para definir “traços degenerativos e/ou marcas deixadas pelas alucinações”.79 A etapa seguinte, porém, era “mais objetiva” e visava elucidar os dados antropométricos do paciente: crânio, face, orelhas, nariz, olhos, cavidade bucal. Objeto de grande atenção eram também os órgãos genitais, o fígado, o coração, o estômago e os intestinos. Por fim, vinha uma etapa tida como “mais subjetiva”, uma vez que tinha o propósito de preencher os dados anamnéticos, as condições de vida do ou da paciente. No caso, Roxo recomendava que o funcionário ganhasse a confiança deles, deixando-os falar mais livremente.80 Em suma, o objetivo era anotar a fisionomia dos doentes — considerada a “janela do caráter” —, o temperamento, a medida do crânio e as maneiras de expressão (mutismo ou fala abundante). Anotavam-se ainda as tendências intelectuais e emotivas dos internos, julgando-se o “excesso” sinal de loucura. Excesso religioso era logo interpretado como fanatismo; e condenavam-se prontamente pendores elevados pela política, e em especial pelo anarquismo.
Chamados de “loucos morais”, os anarquistas eram classificados como doentes mentais. O professor Álvaro Fernandes, da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, mostrava, em 1898, que o anarquista era o tipo de louco moral por excelência, “nascendo da luta social, da desarmonia entre o capital e o trabalho”.81 Franco da Rocha, diretor do Juqueri, havia defendido em 1904 tese semelhante, estabelecendo correlações entre “loucura moral e radicalismo revolucionário”. Pode-se imaginar o temor de Lima; daí a insistência em nada declarar sobre suas simpatias políticas. Esse é, portanto, quase um diálogo de surdos, em que o paciente busca omitir dados de sua vida, e o atendente procura criar um ambiente amistoso para incitá-lo “a falar”.
Os “inquéritos de entrada” continuavam com os exames de “sensibilidade e motilidade”, que no caso de Lima se mostraram na “íntegra”. Já o exame de “reflexos” deixou a desejar, “com as pupilas” não se sensibilizando “à luz, reagindo lentamente à acomodação”. Devia ser um dos efeitos da embriaguez recente. No Diário do ano de 1908, o escritor já mencionava sua “mania do suicídio” e como a bebida se tornara constante na vida dele.82 O mesmo Lima claramente deprimido aparece, como vimos, no Diário no dia 20 de abril de 1914: “O maior desalento me invade. Tenho sinistros pensamentos. Ponho-me a beber, paro”.83
Alcoolismo era considerado — juntamente com tuberculose e sífilis — um dos fatores mais frequentes de “degeneração”, com graves consequências. Conforme alardeava o livro do dr. Cláudio de Sousa, de 1906: “Entre os demais fatores da nossa degeneração três ocupam o primeiro lugar e disputam entre si a sorte da nossa raça: a tuberculose, o alcoolismo e a sífilis!”. Nitidamente elevado em seu tom, o livro conclamava a “repressão moral e legal do vício”, sendo a reclusão em hospício indicada para prevenir que o ébrio do presente se transformasse no louco do futuro. O problema encontrava-se, pois, no presente e no futuro, uma vez que, como asseverava o médico, “desta geração deve vir uma outra, com estigmas de embriaguez hereditária, acesso maníaco, paralisia geral”.84 O professor de direito Hermeto Lima, em livro de 1914, corrobora as opiniões acima, espalhando o mesmo tipo de “alerta” contra a epidemia da bebida. Escreve ele: “o Rio de Janeiro, mais talvez do que outro qualquer centro populoso, contribui com o álcool como fator do crime e como elemento para encher as prisões das delegacias e os asilos de loucos”.85 De forma exaltada, o autor discrimina todos os perigos envolvidos na “doença da bebida”, assim como inclui imagens acerca das ameaças que a sociedade sofria.
Não contente em apresentar esse “sinistro panorama” — exemplificado com dados internacionais —, Hermeto Lima ainda introduz “o número exato de casas que vendem bebidas alcoólicas em toda a cidade, chegando à seguinte cifra: 1961 vendas; 1177 botequins; 441 casas de pasto; total: 3579 estabelecimentos”. O analista também alega ter visitado vários estabelecimentos dessa natureza — em Laranjeiras, Gamboa, São Cristóvão, Caju, Engenho Novo e Cascadura — e ter inquirido sobre a quantidade de parati vendida diariamente. Seu veredito: “Nos pontos mais centrais, como a rua Visconde do Rio Branco, Saúde e Campo de Santana, obtivemos uma média de quarenta a cinquenta litros […]. Nos bairros mais afastados, como Águas Férreas, Pedregulho e Cascadura, uma média de dez a quinze litros. Consequentemente, umas por outras casas, regulam vender vinte litros por dia. Vinte litros por dia, espalhados pelos 3579 negócios que vendem parati, dão o resultado de 71580 litros”.86
Com tais dados em mente, é possível entender não só por que os casos de alcoolismo, como o de Lima, iam se revelando numerosos para as autoridades, mas também por que os que padeciam desse “mal” ficavam menos tempo recolhidos no hospital. Além do mais, faltavam leitos na rede pública. No Relatório sobre o Hospício Nacional de Alienados, de 1904, apresentado pelo dr. Juliano Moreira ao ministro do Interior, o número de internos retidos por causa da bebida parecia alarmante: “Em 1806 infelizes, observados no Hospício e colônias, 431 (328 homens e 103 mulheres), foram de psicose tóxica — ‘alcoolismo’ — o que dá a proporção de 28,8 por cento, para os homens, e 15,3 por cento, para as mulheres, sendo que a proporção geral, relativamente ao número total, sem distinção de sexo, é de 23,9 por cento”. Segundo o jornal A Noite de 14 de junho de 1913, os números eram ainda mais altos, com os casos de alcoolismo recolhidos ao Hospital Nacional chegando a 60% do total da ocupação.
Diante dessas evidências, o dr. Cunha Cruz (que atuava ainda como legista na polícia da capital) concluía que “o perigo social é imenso, pois ele não provém somente da inflexível lei da herança, mas também do sugestivo exemplo de uma conduta irregular que o progenitor alcoolista oferece aos filhos e que, é quase certo, por eles será imitada”.87 O suposto da hereditariedade era, assim, incontornável na análise dos especialistas da época. Se os indivíduos acometidos pelo vício permaneciam menos tempo reclusos, a “certeza” do retorno, sob a forma da loucura, era igualmente alarmante.
Seguindo esse tipo de orientação, na primeira internação Lima ficou apenas dois meses no hospital; dois meses que lhe custaram, porém, muito. Basta analisar o diálogo que se estabelece entre o amanuense da Secretaria da Guerra e o escrevente M. Pinheiro. Este último relata: “Todos os aparelhos (digestivo, circulatório, respiratório) parecem normais”; “o único que apresenta anomalia digna de nota é o geniturinário que apresenta uma blenorragia”, então conhecida como “esquentamento”, “purgação” ou “gonorreia”. A constatação da doença venérea representava outro sintoma de “degenerescência”, pois configurava “excesso”, “falta de regramento” e “perversão” diante de um modelo de “normalidade” cujos limites previam práticas sexuais circunscritas, prazer moderado e rechaço moral à prostituição.
Numa entrevista feita em 22 de agosto de 1914, indagou-se sobre os dados “comemorativos de família”. Lima informa, cordato, que “sua mãe morreu tuberculosa; o pai vivo, goza saúde e é robusto. Tem três irmãos fortes”. Menciona ainda que o “pai sofre neurastenia”, utilizando o termo científico de época. A síndrome gerava a incapacidade de esforço físico e uma grave perturbação de humor. Irritação, cefaleia, distúrbios do sono e dificuldade de adaptação social levavam à ocorrência de fobias e desconfiança generalizada.88 Lima, por sua vez, conhecia bem os conceitos em vigor, pois acompanhava o pai quando este ia ao médico; presenciou o processo de aposentadoria de João Henriques, e temia pela sua própria loucura. Aliás, também a tuberculose era no momento entendida como “estigma de raças degeneradas”; uma marca pesada num exame de observação como aquele.
Falta introduzir “os comemorativos pessoais e de moléstia”, a parte do exame que retomava dados da família e discriminava moléstias do paciente: “Nada informa aos antecedentes de hereditariedade […] Acusa insônias, com alucinações visuais e auditivas. Estado geral bom. Boa memória. Já teve sarampo e catapora, blenorragia, que ainda sofre e cancros venéreos”. Pode-se imaginar a quantidade e a qualidade das situações vexatórias que o escritor teve que enfrentar apenas para lidar com essa seção do questionário. Insônias e alucinações eram sem dúvida efeitos passageiros do álcool, e Lima parecia não querer associá-las a nenhuma herança biológica vinda do pai ou mesmo da mãe, ou de sua suposta “origem racial”. O romancista acabou confirmando, por fim, que sofria de outras lesões venéreas. Eram as visitas às “casas de cômodos” que deveriam explicar o “seu mal”, o seu “vício”.
No laudo, Lima ainda se confessa “alcoolista imoderado, não fazendo questão de qualidade”. O cronista deve ter, porém, se destacado da média dos pacientes, com o escrevente indicando que ele estava “bem orientado no tempo e meio”. E acrescentou: “memória íntegra; conhece e cita com bastante desembaraço fatos das histórias antiga, média, moderna e contemporânea, respondendo as perguntas que lhe são feitas, prontamente. Tem noções de álgebra, geometria, geografia”. É quase possível conceber o espanto do funcionário do hospital diante da erudição de Lima, acostumado a citar fatos do passado em seus escritos. Impressionado, no relatório ele continua mencionando os autores prediletos do paciente: “Bossuet, Chateaubriand ‘católico elegante’ [sic], Balzac, Taine, Daudet”.
Nessa altura, o autor parecia estar mais no controle da situação. O funcionário escreve, ainda, que Lima “conhece um pouco de francês e inglês”, e que faz “comentários mais ou menos acertados” sobre os escritores que cita. E conclui: “em suma, é um indivíduo que tem algum conhecimento e inteligente para o meio em que vive”. No elogio vem de carona o preconceito, que dá valor ao conhecimento do interno mas lhe concede apenas certa margem de superioridade; isso quando comparado a “seus iguais”. A partir daí surge um Lima por vezes delirante, e que mistura problemas de trabalho com receios diante de sua “fé anarquista”. Quando perguntado sobre o motivo de sua internação, alega que “prepararam-lhe uma assombração, com aparecimentos de fantasmas, que aliás lhe causam muito pavor”. Passou a narrar um incidente parecido com aquele descrito pelo irmão: contou ao escrevente que o tenente Serra Pulquério, “seu amigo de pândegas”, o teria acusado de fazer panfletos contra seu trabalho. Afirmando sempre que discordava da sua internação, o amanuense alegou que fora conduzido à polícia, “tendo antes cometido desatinos em casa, quebrando vidraças, virando cadeiras e mesas”. Por isso, ele “protesta contra o seu ‘sequestro’ […] uma vez que nada fez que o justifique”.
Perseguido por seus delírios, Lima reclama da animosidade que sentia por parte dos companheiros de trabalho no Ministério da Guerra, os quais, segundo ele, o ameaçavam de represálias porque defendia doutrinas anarquistas. Dando por encerrado o depoimento, o escrevente conclui que o interno “apresenta-se relativamente calmo, exaltando-se quando narra os motivos que justificaram a sua internação”. Por fim anota, e erra no título do livro: “Tem duas obras publicadas: Triste fim de Policarpo Quaresma e Memórias [sic] do escrivão Isaías Caminha”.
Como se pode notar, o paciente Lima Barreto oscilava entre momentos mais ou menos exaltados; mais conscientes ou até delirantes. As suas simpatias pelo anarquismo deviam causar-lhe, naquela situação particular, tal incômodo, que apareciam nos momentos de menor controle. Por isso, apesar de afirmar “não ser grande escritor, nem ótimo pensador”, deve ter terminado o relato valendo-se de seu lugar na literatura, garantido pelas duas obras publicadas. A conclusão sobre a “moléstia” e seu “tratamento” é clara: alcoolismo cura-se com purgativo e ópio, medicamentos ministrados quase indiscriminadamente para outros diagnósticos.
Mas as teorias começavam a mudar. Juliano Moreira foi diretor do Hospital de 1903 a 1930, assim como da Assistência Médico-Legal de Alienados.89 Baiano, proveniente de uma família pobre e afrodescendente, ele concluiu a Faculdade de Medicina de seu estado e dedicou-se a “doenças nervosas e mentais”. Fez longo estágio, entre 1895 e 1902, em asilos da França, Itália e Alemanha. Quando voltou, e já no ano seguinte, passou a dirigir o Hospício Nacional de Alienados. Condenava a atribuição da degeneração à mestiçagem, tendo se oposto às teses do mestre Nina Rodrigues, dominantes naquele contexto. Jamais pôs em questão a “teoria da degenerescência”; discutiu seus fatores causais. Julgava que o combate ao alcoolismo, à sífilis, às verminoses, às péssimas condições sanitárias e educacionais é que deveria ser atacado, e não “os ridículos preconceitos de cores ou castas”.90 Conhecido como o introdutor da psiquiatria no Brasil, Juliano Moreira reivindicou tratamentos especiais e em locais separados para alcoólatras, epiléticos, portadores de doenças contagiosas, crianças e tuberculosos. Aliás, ele próprio sofrera de tuberculose quando jovem, e era “negro” como Lima. Sem nomear ou fazer uso direto de sua “origem”, ou mesmo dos assim chamados “estigmas de hereditariedade”, transformou-os não em travas ou obstáculos, mas em vantagens para lidar de maneira mais diferenciada e plural com a “loucura” e a “insanidade”.
E a instituição em que Lima se encontrava já seguia essa conduta; lá existiam, naquela altura, as seções Pinel e Calmeil, para homens, e Morel e Esquirol, para mulheres. Havia outras, reservadas a epiléticos, leprosos, tuberculosos, pacientes com doenças infecciosas intercorrentes, ficando as crianças separadas. Ainda assim, Juliano Moreira cercou-se de profissionais com especialidades diferentes, como Gustavo Riedel, Antônio Austregésilo e Henrique Roxo, já citado e que defendia a apartação de “mestiços degenerados”. O importante é que o diretor foi mudando, aos poucos, a orientação do hospital. Talvez por isso Lima, em seu Diário do hospício, revele ter gostado do médico, ao contrário do que ocorrera com Henrique Roxo, com quem diz não ter simpatizado. Achou-o “muito livresco e pouco interessado em descobrir, em levantar um pouco o véu do mistério…”.91
No gabinete de fotografia do hospício: um anônimo entre anônimos
Para além das páginas do inquérito, restariam a foto de Lima e as de tantos outros internos, que permanecem, entretanto, desconhecidos até hoje. Prática logo associada à identificação e ao registro policial — de criminosos e doentes —, a fotografia, ao mesmo tempo que ganhava estatuto artístico, assumia novo lugar como registro — das gentes, da paisagem, do cotidiano e da contravenção. Se não restam muitas fotos do escritor, daquela vez, no manicômio, a expressão revela certa humilhação de quem se vê flagrado em situação vexatória. As oscilações presentes em seu Diário, as tentativas de sair do círculo vicioso da bebida e de se afastar de seus “estigmas hereditários”, parecem “desmascaradas” pela câmera, que pretende mostrar uma imagem científica, avalizada pelos dados que acompanham a anamnese.
Se qualquer fotografia busca fixar o tempo e dá vazão a uma operação que carrega muita artificialidade e jogo de cena, nesse caso o resultado foi ainda mais perverso. Todos aqueles que são vistos nas fichas do hospício parecem unidos pelo aviltamento do uniforme, pelo incômodo da câmera, isso sem esquecer que muitos lá estavam em condições de saúde instáveis e de pouco controle. E o próprio Lima, em seu Diário do hospício, queixou-se do tratamento que recebeu: a exposição pública, as cenas de nudez, duchas coletivas, quartos superlotados e fétidos. E ele tinha razão; em matéria para o jornal A Noite de 25 de março de 1912, Rocha Pombo Filho denuncia as más condições do hospício: doentes não conseguiam consulta com os médicos; a alimentação era precária — pacientes graves comiam apenas um arroz aguado e galinha em pedaços miúdos, e os da enfermaria tomavam só leite e uma vez ao dia; a superlotação era abusiva; e grassava a falta total de atenção. Dois anos depois, no dia 16 de agosto de 1914, foi a vez de o jornal A Epoca publicar notícia acerca de uma interna violentada por um carpinteiro que prestava serviços no estabelecimento.
Mas, se as condições físicas do local estavam longe de se mostrarem adequadas, também a situação dos “colegas” de instituição incomodava demais a Lima. Ora taciturnos, ora agressivos; por vezes calados, em outros momentos loquazes; humildes ou com mania de grandeza. Essa variedade de “estados da alma” pode ser atestada no caderno do Pavilhão de Observação, onde fica guardado o registro de uma série de pacientes que, como Lima, podem ter lutado contra o anonimato. Em Diário do hospício, ou no romance incompleto Ocemitério dos vivos, o escritor relata sua experiência junto a eles e suas tentativas, todas fracassadas, de socialização.
Ao pesquisador de hoje saltam aos olhos casos semelhantes ao de Lima: os alcoolizados. Majoritários no manicômio, eles pareciam incomodar seu diretor, que defendia a criação de asilos separados para os “bebedores”. Regulares eram os casos crônicos, que vira e mexe retornavam ao local. Lima, em Ocemitério dos vivos, descreve tal rotina: “o álcool me provocava alucinações, eu incomodava os outros, metiam-me em casas de saúde ou no Hospício, eu renascia, voltava, e assim levava uma vida insegura, desgostosa e desgostando os outros”.92
E eram vários os internos que dividiam histórias semelhantes com a dele. Um bom exemplo é o de J. F., de dezoito anos, solteiro e brasileiro. Descrito como “trabalhador”, traz no seu diagnóstico a sentença: “debilidade mental e alcoolismo”.93
Já o funcionário destaca sua passividade: “Apresenta-se calmo; atitude de obediência, humor tranquilo”. Interrogado sobre o motivo da internação, J. F. alega que foi preso sem saber por quê, e o escrevente acrescenta: “tem noção de meio, não de lugar e de tempo, diz que na ilha do Governador onde morava era tido como feiticeiro e por isso um padre ia frequentemente benzê-lo; atenção e percepção regular, é de ínfimo nível intelectual, é analfabeto. Confessa hábitos alcoólicos exagerados, confessa alucinações auditivas; memória deficiente; responde às nossas perguntas com calma revelando uma deficiência intelectual”. Anota ainda que o paciente padecia de “delírios religiosos” e de uma “opressão que apareceu inesperadamente”. “Preto”, J. F. era considerado alienado, alcoólatra e feiticeiro. E, nesse contexto, “delírios religiosos” eram claros sinais de degenerescência. Seu tratamento não fugiu à regra — recebeu purgativo, poção tônica e ópio. Foi logo transferido para o hospício, e depois não há mais notícias dele.
Outro caso de alcoolismo é o de M. D., que tem 22 anos completos e é descrita como “parda”. Nas “informações adicionais” consta o seguinte comentário: “Interrogada sobre o motivo da internação diz atribuí-lo ao fato de ser julgada alienada em casa porque conversava de maneira original”; “confessa alucinações visuais, via sombras”. Cumprindo o ritual, o funcionário termina deixando a interna “falar”, porém aparentemente não dá atenção a suas explicações. É revelador o emprego do verbo “confessar”, também nesse caso, o qual esclarece que o diálogo foi realizado sob pressão. Depois de M. D. ser submetida ao exame de “inspeção geral”, o escrevente deduz que ela teria “estigmas físicos de degeneração”. Mais uma vez, mesmo desconhecendo-se os estigmas, degeneração parece funcionar como suposto prévio. Já nos “comemorativos pessoais e de moléstia”, as conclusões correspondem ao que se nota na foto: “apresenta-se calma, atitude de desânimo, humor triste”.
M. D., como os outros, nega sua condição de alienada, mas o atendente parece não lhe dar ouvidos e sentencia: “não tem noção de tempo e lugar; atenção um tanto esvaída […] associação de ideias regular; faz uso moderado de bebidas alcoólicas, confessa alucinações visuais, via sombras, nega alucinações auditivas”. “Negra”, considerada com “ínfimo nível intelectual” e “alcoolizada”, M. D. era quase que um estereótipo ambulante: alienada porque degenerada; a consequência vem antes da causa. Seu tratamento é idêntico ao dos demais: purgativo e ópio.
Na época em que Lima esteve internado, deu entrada no hospital o ferreiro de origem italiana I. J., com 54 anos. Se o seu diagnóstico era o mesmo — alcoolismo —, já as informações mostram um quadro bastante distinto: “Diz que veio por ter tomado a comunhão depois do almoço, diz que é um grande pecado mortal é um sacrilégio que o mata […] contou-nos que há tempo, um ano aproximadamente, deflorou uma menina de nove anos a insistência dela mesma; perguntado se se arrependia de ter praticado tal ato, ficou admirado e não se absteve de perguntar-nos se de fato era esse último o pecado, arrependendo-se”.
Nos “comemorativos familiares”, novos elementos comprovam, para o escrevente, os efeitos da hereditariedade; entre eles, a morte por infecção tísica do pai e de uma filha de I. J.: todos estigmas lombrosianos. E o funcionário conclui: “É de ínfimo nível intelectual; perguntando-nos a cada passo se de fato é grande pecado o ter deflorado a pequena e se é por isso que lhe está reservado o inferno, lastimando amargamente a sorte e dizendo que ele não queria, mas que a moça o instigou; confessa hábitos alcoólicos exagerados, confessa alucinações visuais […] vive em constante perturbação de espírito”. Mais uma vez, o diagnóstico repisa o que já se sabe de antemão: trata-se de paciente com antecedentes hereditários (tísica, doenças venéreas, fanatismo religioso) a condená-lo. Já o tratamento é sempre igual: purgativo, ópio.
Como se pode notar, nem nos casos que revelam óbvio “estado de delírio” os procedimentos médicos apresentam diferença relevante. Esse é o exemplo do prontuário de A. A. C., de 34 anos, classificada como branca mas evidentemente negra. No seu diagnóstico, a sentença: “psicose periódica e debilidade mental […] sua fisionomia lembra o imbecil”.
A. A. C. tomou purgativo, calmantes e ioduretos. A ideia de “degeneração hereditária”, embora começasse a ser condenada, ainda parecia unificar a todos, transformando casos distintos em assemelhados: raças mistas apresentam estigmas comuns e todos eles levam à loucura. No ambiente psiquiátrico brasileiro, a associação entre sexualidade e doença mental era ainda muito comum. O “instinto sexual perturbado” interessava aos alienistas, e o consideravam perversão ou anomalia grave. Casos como impotência, masturbação excessiva, estupros e abusos na infância eram classificados como estigmas de loucura.
Veja-se um caso diagnosticado como histeria. E. C., “branca”, 48 anos, casada, portuguesa, ingressou no hospital em 30 de agosto de 1902. Nos “comemorativos individuais”, conta ela “ter sido sadia na sua infância […]. Na idade de catorze anos, seu organismo foi profundamente abalado sofrendo muito devido ao atentado contra sua honra, por um seu cunhado que desejou violá-la. Guarda ainda hoje ódio a este homem a ponto de adoecer quando o vê, o que muito a incomoda por ser amiga de sua irmã. […] Há três anos começaram seus sofrimentos que consistem em manifestações nervosas. Tem ataques, quando está para aparecerem estes ela sente calor na cabeça, vontade de cantar e de correr”. Segundo o funcionário, aí estaria um caso de “histeria nervosa” motivada por perturbação sexual, mais clara em mulheres que desenvolvem a histeria. Descabelada e desanimada, com um ar de profunda tristeza, E. C. parece encarar a câmera com expressão de resignação.
Esses exemplos correspondem a uma parcela ínfima dos pacientes que conviveram com Lima. Além dos internados por alcoolismo, existiam aqueles “com mania de grandeza, os sorumbáticos, os falantes, os calados, os agressivos e perigosos, os calmos e prestativos, os sifilíticos, os tuberculosos”, e toda uma gama de doentes enlaçados pela loucura e pelas concepções largas e pouco específicas de degeneração e hereditariedade. Tomar parte de tal grupo era como viver “o espetáculo da loucura”, comungar dos “desatinos dos loucos”. “O negro é a cor mais cortante, mais impressionante”, arremata o escritor. E conclui que esses eram seus “tristes companheiros de isolamento e de segregação social”.94
Já fora do hospício, bem que Lima tentaria desfazer do seu sofrimento. No conto “As teorias do doutor Caruru”,95 publicado na revista Careta de 30 de outubro de 1915, um ano após a primeira internação, o autor narra a história de um “sábio doutor”, especialista em caracteres somáticos de degenerescência, que analisa o caso de morte de um “bêbedo incorrigível, vagabundo” e conclui que o indivíduo era de fato degenerado por apresentar um pé maior que o outro. Só depois, alertado pelo servente, se dá conta de que a irregularidade não vinha da biologia, mas de um acidente prévio. Crer ou não crer (na degeneração), eis a questão.