11.

Cartada forte e visionária:
fazendo crônicas, contos, e virando Triste fim de Policarpo Quaresma

Brancos, pretos, mulatos, caboclos, gente de todas as cores e de todos os sentimentos, gente que se tinha metido em tal aventura pelo hábito de obedecer, gente inteiramente estranha à questão em debate, gente arrancada à força aos lares ou à calaçaria das ruas, pequeninos, tenros, ou que se haviam alistado por miséria; gente ignara, simples, às vezes cruel e perversa como crianças inconscientes; às vezes, boa e dócil como um cordeiro, mas enfim gente sem responsabilidade, sem anseio político, sem vontade própria…

Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma

Ah! A Literatura ou me mata ou me dá o que peço dela.
Lima Barreto, Diário do hospício

 

Caricatura de Lima Barreto que acompanhava a entrevista do jornal A Época, em 18 de fevereiro de 1916.

 

A passagem pelo hospício parece ter dividido a vida de Lima em duas. De um lado, o evento foi-lhe tão traumático que viraria tema de crônicas, contos e romances. De outro, ele parecia resolvido a não se deixar abater, ao menos no que se referia ao seu compromisso com a literatura. O álcool entrara em seu cotidiano, o que explica os constantes pedidos de licença médica no trabalho e as internações episódicas. Começou nos cafés e confeitarias, passou depois aos bares; destes foi aos botecos e botequins, até chegar nas tendinhas, quando não ficava jogado nas calçadas. Conforme costumava dizer, ia “enxaguando a cachaça no chope”.1 Trazia o hálito dos alcoólatras, a camisa e o colarinho sujos, o chapéu de palhinha encardido, a barba por fazer, os sapatos furados, o cabelo desgrenhado e o andar cambaleante.2 Nessa altura, Lima parecia disposto a abrir mão de tudo por um trago: emprego, encontros com amigos, compromissos importantes, relações íntimas. Se eram muitos os sinais de descontrole, não se pode afirmar que o escritor tenha se convertido numa vítima passiva da bebida. Ao contrário, nesses mesmos anos se tornou cada vez mais produtivo; aparecia na imprensa com frequência e preparava-se para publicar, primeiramente como folhetim, seu livro de maior fôlego: Triste fim de Policarpo Quaresma. Além da produção febril, seu esforço em ser reconhecido era evidente, o que se demonstra por um investimento direto em sua profissionalização, inclusive por meio de vinculação a algumas associações de classe.

Em 25 de junho de 1913, os jornais noticiam sua integração à comissão de organização das festas em homenagem a Olavo Bilac.3 Em 1914, foi eleito secretário junto à nova administração da Caixa Beneficente dos Funcionários da Secretaria da Guerra.4 Já em 1916, seu nome constava como parte de um “Centro Carioca” que, “sem fins políticos”, visava “promover os interesses da cidade e defender os direitos dos cariocas”.5 O escritor parecia se concentrar, ainda mais, em organizações que articulavam jovens autores, os quais, por motivos diversos, estavam fora da Academia Brasileira de Letras. Em 1911, por exemplo, seu nome constava na lista dos intelectuais e escritores que apoiavam a iniciativa do jornal A Imprensa para a fundação da Academia Livre de Letras ou Academia dos Novos. O objetivo era reunir “distintos intelectuais cariocas e demais representantes pelos estados”, e, entre os citados, apareciam Emílio de Meneses, Rocha Pombo,6 Mário Pederneiras, Pedro do Couto, Osório Duque Estrada. Lima era um dos trezentos nomes da lista, e recebeu três votos.7

Apesar de, no final do processo, não ter sido selecionado para compor a relação dos seletos “10 Acadêmicos Livres”, o importante é que se empenhou, e muito. Em março de 1913 foi a vez de Lima participar ativamente do concurso, organizado pela revista Fon-Fon, para eleger o Príncipe dos Poetas Brasileiros. Seu nome não só fazia parte da lista de votantes do certame, no qual se sagrou vencedor Olavo Bilac, como o escritor estava na recepção de confraternização ao poeta.8

No dia 18 de junho de 1914, o jornal O Paiz informava sobre a recente organização para literatos, e lá estava Lima animando a iniciativa. Tratava-se da Sociedade Brasileira dos Homens de Letras, que se definia desta maneira: “Sem número limitado de sócios, sem intenções de academia […] com o fim de reunir utilmente todos os intelectuais do país, desta capital e dos estados, tratar da propriedade literária etc.”.9 Vale notar a insistência no “sem”, e o fato de que a sociedade não tinha “intenções de academia”. Não existiam, nesse caso, limites de vagas, sendo 108 sócios fundadores, entre eles Coelho Neto, Emílio de Meneses, Goulart de Andrade, Raul Pederneiras, Mário Pederneiras, Elísio de Carvalho, Augusto Shaw Ferreira, Bastos Tigre, Osório Duque Estrada, Luís Edmundo, José do Patrocínio Filho e Domingos Ribeiro Filho.10

Alguns nomes constavam de outras entidades semelhantes, como o grupo da Academia Livre de Letras, mencionado acima. Tal evidência reforça a certeza da atitude combativa dos jovens escritores, que pareciam conscientes das dificuldades de sua profissão, bem como reagiam à “estabelecida” Academia Brasileira de Letras. No conto “Agaricus auditae11 (publicado originalmente na primeira edição de Histórias e sonhos, 1920), Lima faz referência a uma Academia dos Esquecidos, e destila ironia sobre o fato de esse estabelecimento definir-se como um instituto científico e de pesquisa. O personagem principal da história, Alexandre Ventura Soares — um bacharel em ciências físicas e naturais que, por ser concursado no Museu de História Natural, conseguiu uma viagem para a Europa —, escreve uma memória para concorrer a uma vaga nessa academia, requisito necessário para se casar com a filha de seu vizinho, o desembargador e presidente da mesma instituição. Por meio da figura de Alexandre, o autor se refere sarcasticamente à Escola Politécnica; ataca evolucionistas, como Darwin e Haeckel; e ainda desfaz do racismo científico, citando Louis Agassiz.

O desembargador oferece a seguinte explicação acerca das virtudes dessa bela Academia dos Esquecidos: “Mas… acontece que os senhores não conhecem bem o Brasil, senão saberiam que existe uma academia respeitável e egrégia, não só pelos vários ramos de ciências naturais nela cultivados, como também pelo número de sábios mortos e vivos a ela pertencente […]. É de admirar!”.12 A relação de Lima com a Academia era, assim, marcada pela ambivalência. Queria nela entrar, mas desfazia dela. Por isso a chamava de “cemitério das letras e dos literatos” e seus membros de “cadáveres bem embalsamados”.13

Por outro lado, a participação dele nesse tipo de associação, em boa parte de vida curta, representava um indicador forte do amadurecimento de uma nova geração de escritores brasileiros que passavam a debater problemas próprios da sua profissão, como as condições de veiculação do produto literário ou a criação de uma política de distribuição de direitos autorais.14 Por isso, na segunda década do século XX, ensaiou-se no Rio de Janeiro uma série de articulações corporativas, nas quais o tema mais propriamente editorial se vinculou ao propósito de definir o status da categoria, assim como visou discriminar e assegurar o formato e o futuro dessa classe profissional.

A iniciativa não vingou. No entanto, a proposta de constituir, em 1914, a Sociedade Brasileira dos Homens de Letras, inspirada não mais no modelo da Sociedade Literária Goncourt, fundada em 1902, mas no da Société des Gens de Lettres parisiense,15 defensora dos direitos autorais dos escritores, teve um pouco mais de sobrevida. Lima mostrou tal interesse no projeto, que foi dele a ideia de adquirir o livro A festa literária: Por ocasião de fundar-se na capital do Império a Associação dos Homens de Letras do Brasil, datado de 1883. A obra, que constava da sua biblioteca privada, a Limana, narrava a experiência encabeçada pelo advogado, político e jornalista Franklin Távora (1842-88), ainda durante o Segundo Reinado. O objetivo era criar uma associação que pudesse congregar os escritores na “defesa da classe”.16

Aliás, o grupo de 1914 definia-se como “herdeiro” das tentativas antes ensejadas, uma vez que seu propósito era basicamente o mesmo: reverter a frágil situação do mercado editorial local e lograr uma troca mais equitativa. Ou seja, em vez de só discriminar direitos para o editor e deveres para o autor, passava-se a priorizar uma profissão que fosse, como dizia a proposta da nova sociedade, “honestamente remunerada”. Nos seus estatutos, a Sociedade Brasileira dos Homens de Letras distinguia sua “organização e fins”: “a união dos homens de letras do Brasil; a defesa direta de seus interesses profissionais e econômicos, morais e sociais […]; a organização de uma sociedade editora”. Entre “suas atribuições” estavam: facilitar aos sócios a publicação de trabalhos literários e artísticos; adquirir livros e todo material que pudesse contribuir para a instrução profissional dos mesmos; realizar cursos, congressos e festas de arte; influir junto aos poderes da República para que fossem votadas e aplicadas leis de interesses literário e artístico; realizar acordos com sociedades congêneres do exterior; fomentar a fundação de sociedades estaduais da mesma natureza; animar a crítica; fiscalizar a propriedade literária e a artística de autores estrangeiros; e publicar uma revista mensal.

Já na parte relativa aos “sócios e seus deveres”, estabelecia-se que o número seria ilimitado mas nunca inferior a sete, podendo integrar a sociedade todos os homens de letras e aqueles que desempenhassem funções de natureza intelectual. As regras eram, porém, um tanto cerceadoras, a ponto de “nenhum sócio poder realizar contratos ou arranjos particulares com casas editoriais, empresas teatrais ou diretores de companhias, quando esses atos” fossem de encontro às convenções “celebradas entre estas [sic] e a Sociedade”. Os sócios também não poderiam “vender a propriedade de suas obras, sem prévio assentimento da diretoria, valendo a infração deste artigo pela eliminação definitiva sem direito de regresso”.17

Regras não faltavam, mas o mesmo não se pode dizer das atividades editoriais. Em compensação, abundavam as sociais. No dia 15 de junho de 1915, o jornal O Paiz noticiou que se iniciariam “as festas organizadas pela Sociedade Brasileira de Homens de Letras, para a fundação do patrimônio social”.18 Com esse intuito, no dia 19 daquele mês, um sábado, no salão do Jornal do Commercio, realizou-se às dezesseis horas “uma Hora Literária”, na qual se leram “poesias e trechos de prosa” de escritores brasileiros, seguida de “uma Hora Musical, uma Hora dos Caricaturistas, uma Hora Dramática”. Em julho ainda, ocorreria um grande festival, no Teatro Lírico, “com a representação dos Deuses de casaca”. A mesma sociedade promoveria uma sequência de conferências, como a proferida pelo dr. Edmundo Gutiérrez, um intelectual colombiano que vinha percorrendo os países da América do Sul com o objetivo de aproximar “seus diversos centros de cultura”.19 O fato é que a instituição foi ganhando forma e, em 10 de julho de 1915, a revista A.B.C. reproduziu um discurso de seus idealizadores, com a mesma verve e retórica tão criticadas por escritores como Lima, que, entretanto, fazia parte do club: “A Sociedade Brasileira de Homens de Letras apareceu como um exército vitorioso pisando gloriosamente um território conquistado ao adversário depois de leal e curta peleja. […] Entre os seus desígnios sagrados figura a intenção de pôr termo aos dissídios pessoais entre os homens de espírito, juncando assim de flores odoríferas o terreno sáfaro onde antes só urzes brotavam…”.20

Julgando-se missionários, os membros da sociedade queriam também um lugar no “Parnaso” e, para isso, defendiam estratégias de grupo. E, enquanto o Olimpo não vinha, a instituição realizava jantares no Jockey Club, como o que foi noticiado pela Revista da Semana no dia 7 de agosto de 1915, e que incluiu palestras, festas animadas, saraus artísticos, assim como debates acerca dos estatutos da sociedade. O próprio Lima, a despeito de ser sócio, em artigo de 10 de julho do mesmo ano tratou de mostrar que não tinha esperanças nesse tipo de associação. “Não acredito na realização do sonho encantador da SBHL porque estou convencido de que no Brasil não existem aspirações literárias, e sim ambições pessoais demarcadas. Todos querem subir e olvidam que é possível chegar ao alto da escada sem dar encontrões nos companheiros de jornada.”21

Lima era sempre assim: integrava-se e se isolava, tudo ao mesmo tempo. Bastos Tigre também se referiu à associação, chamando a atenção para o papel de seu principal organizador: Olavo Bilac. Segundo ele, “seus desígnios eram precipuamente econômicos”. Mesmo assim, o colega de Lima lamentou o fato de a ideia não ter ido em frente: “É que, se hoje nos queixamos da exiguidade dos proventos do trabalho intelectual, naqueles evos do começo do século, a coisa era pra lá de pior. Jornais e revistas não remuneravam a colaboração literária. Os editores faziam favor em publicar livros, dando alguns exemplares de presente ao autor. E nada mais”. Esse era, de acordo com Bastos Tigre, o movimento de “Resistência dos Estivadores da Pena”, e não causou espanto ter naufragado antes mesmo de efetivamente começar.22

A instituição teve vida curta, mas, enquanto foi ativa, configurou-se principalmente como uma entidade promotora de conferências e atividades sociais, em que se buscava animar os meios literários. No entanto, é forçoso reconhecer que a movimentação promovida pela sociedade colaborou para dar maior visibilidade ao tema, bem como para ampliar os círculos literários.23 Já Lima, de personalidade tímida, a despeito de ter se esforçado para frequentar certames como esses, que lhe permitiam mover-se com mais facilidade na lógica de sua classe profissional, também por vezes desdizia dessas instituições. Ainda assim, continuou a tomar parte desse tipo de associação, além de publicar mais do que nunca e em progressão geométrica.

Foi nesse período, por exemplo, que começou a atuar numa série de revistas, aprofundando sua inserção como cronista crítico da cidade. De 1910 a 1915, participou de vários noticiosos, como Correio da Noite, Gazeta da Tarde, O Copacabana, O Fluminense, A Falladora, A Voz do Trabalhador, e das revistas Careta, Ordem e Progresso, O Theatro, A Estação Theatral, Revista Americana, O Rio-Nú, Annaes da America, A Epoca, A Águia, Illustração Brasileira. Os locais, os periódicos e as orientações eram distintos, mas Lima era sempre ele mesmo: desfazia dos políticos, dos costumes, das instituições. Em 1910, por exemplo, publicou o conto “A cartomante”,24 na revista cívico-literária Ordem e Progresso, que pertencia a um “núcleo de distintos oficiais inferiores do Exército”.25 Retomou, então, um tema forte do momento, quando a ciência procurava se impor diante das várias formas de prever o futuro, buscando dominá-lo. Cartomantes continuavam a ser, porém, uma coqueluche naquela cidade dada a tantos modernismos, e o escritor devia querer afirmar-se, nesse momento, como voz crítica e cética. No conto, o narrador queixa-se das “atrapalhações de sua vida”, acusa “mandinga de algum preto”, e resolve gastar seus últimos réis numa cartomante. Qual não é sua surpresa quando descobre que “a pitonisa” era sua própria mulher. Brincando com os preconceitos de época, ele inclui a cor (preta) e a prática (da mandinga) como elementos definidores dos grupos e costumes considerados avessos à ciência, mas mostra como, no limite, nada se restringia a apenas um grupo social.

De 8 de abril até 20 de maio de 1911, o autor publicou “Uma coisa puxa a outra”,26 n’A Estação Theatral do Rio de Janeiro. Tratava-se de uma série de três artigos em que Lima avaliava “o arrendamento do Teatro Municipal” e discutia a vida teatral local, a despeito de confessar seu afastamento desse tipo de ambiente. Afinal, ele se vestia mal e achava-se “sofrivelmente binocular, para acotovelar as elegâncias que se premem nos nossos teatrinhos”. Aí estava Lima, que não se sentia bem nas suas vizinhanças, mas também ficava desconfortável nos lugares mais elegantes.

Nos dias 4 e 25 do mês de maio, assinou a coluna “O Teatro Nacional: males, preconceitos e remédios” para a revista O Theatro. No texto, explicou por que seria essa a única revista dedicada ao gênero, e arriscou um argumento político. Este era um país, escreve ele, “em que só a política, a política da hora presente, domina, e só as questões atinentes a esta interessam e arrastam os espíritos”. Crítico, continuou afiançando que no Brasil a riqueza apenas provinha dos “cargos chamados de confiança”, e “sabemos perfeitamente que todas essas coisas só se arranjam, umas mais outras menos, com a influência política”. E prossegue: “E é por não podermos esperar nada do comércio, da indústria, muito pouco da agricultura, nada das letras […] O drama, a comédia, a tragédia (esta então!), têm que por força se imiscuir nessas questões morais e sociais […] O povo do Brasil não quer saber disso, absolutamente não quer: ou por inferioridade mental ou porque não veja nas tentativas até agora feitas nada que se assemelhe à sua vida cotidiana”.27

Fica fácil perceber como, independentemente do tema, tudo desaguava em crítica à política local. Lima dedicou, nesse contexto, uma série de artigos ao teatro brasileiro, tratando de empresários, autores, atores, gêneros de literatura dramática e tudo que envolvia a arte. O cronista ainda aproveitava o espaço que tinha na Revista Americana para divulgar contos e histórias que, com o tempo, foram ganhando maior notoriedade. Lá ele publicou, em 10 de novembro de 1910, o conhecido conto “A nova Califórnia”, sobre uma cidade inteira que começou a desenterrar os mortos devido à notícia falsa de que era possível fazer ouro com seus ossos. Em 27 de maio de 1911, provocava com “Ele e as suas ideias”,28 que saiu em O Fluminense. Dessa vez, o conto trata da sina de um homem comum mas com “a mania de ter ideias” que, por causa da falta de meios e de apoio dos poderes públicos e da imprensa, deixou de realizar. Nada mais próximo de Lima, e mais diferente também, ao menos na sua autorrepresentação. No mesmo dia 27, a peça Casa de poetas,29 de sua autoria, foi publicada em A Estação Theatral. O texto ironizava a figura do “poeta célebre” que provinha de uma família de classe média urbana e que andava apenas à caça de prestígio.

O conjunto impressiona em função da tonalidade crítica. Lima era contra vogas literárias, contra a ganância, e acusava a falta de espaço para os “verdadeiros” escritores ingressantes. Além do mais, esses e outros textos de época comprovam como a bebida não interrompia a sua atividade. Ao contrário, ele se construía como um personagem da cidade: boêmio, “encachaçado”, como costumava dizer, mas presente e alerta. Seu renome era tal que, em 27 de julho de 1912, O Rio-Nú trouxe uma crônica intitulada “Notas… verdadeiras e falsas, recolhidas e em circulação”, que desenvolvia um suposto diálogo entre os amigos Domingos Ribeiro Filho e Lima Barreto. O debate em si não é muito revelador, uma vez que, de forma nada original, traz as mesmas repreensões que Lima dirigia seguidamente à imprensa.30 Mostra, no entanto, que o escritor de Todos os Santos se tornara figura pública no Rio, a ponto de constar de uma conversa imaginária criada pelo jornalista da revista.

O cronista azedo da cidade: crítica social, política e cultural

Além de crítico da cidade, membro da confraria Esplendor dos Amanuenses e da Academia dos Esquecidos, literato do grupo dos Novos e boêmio por vocação, Lima começava a assumir-se abertamente como anarquista. Em 15 de maio de 1913, no jornal A Voz do Trabalhador, órgão da Confederação Operária Brasileira, publicou “Palavras de um snob anarquista”.31 No artigo, descrevia as simpatias pelo anarquismo que já havia manifestado em texto para a Floreal, deixando claros seus posicionamentos políticos. Logo no início do texto, o escritor provocava: “Por ocasião da passagem do 1o de Maio, os grandes jornais desta cidade, bem ou mal, tiveram que tratar da questão social. Alguns, com aquele jeito furta-cor tão interessante para um zoologista, enquanto na primeira ou segunda página defendiam uma futura oligarquia atacando outra, na quarta ou quinta faziam panegíricos dos operários etc. etc.; outros, com mais franqueza, ao dia seguinte, atacavam os anarquistas”. Guardando para si uma posição diversa daquela dos “grandes jornais”, dos periodistas com “jeito furta-cor”, ou das oligarquias locais, Lima filiava-se ao operariado e, de quebra, ao anarquismo. E encerrava: “Os anarquistas falam da humanidade para a humanidade, do gênero humano para o gênero humano, e não em nome de pequenas competências de personalidades políticas”. O artigo vinha assinado por “Isaías Caminha”, e tinha estilo e dicção de seu autor e personagem. Se Isaías confrontava a imprensa burguesa, Lima usava o anarquismo como instrumento para se contrapor ao “jornalismo snob”.

Careta, 13 de setembro de 1919. Ilustração que acompanha a crônica “Nós! Hein?”.

 

Lima gostava de se definir como “outro”: outro no jornalismo, outro em suas preferências políticas, outro ainda (e sobretudo) quando se referia ao funcionalismo público. Vale a pena, nessa direção, lembrar de um texto curto que saiu na revista Careta, intitulado “Nós! Hein?”.32 Chama atenção o recurso ao “nós”, usado aí, como veremos, como pura ironia: “nós” é na verdade “eles”. Lima começa a narrativa da seguinte maneira: “Quando eu fui amanuense da Secretaria de…, contava-me um amigo”. Borrando a fronteira da ficção e da não ficção, do conto e da crônica pessoal, o autor apresenta um amigo narrando a história desse funcionário que era tido como “empregado vagabundo, relapso”, e mais, “poeta e boêmio”. Por conta de tantos “atributos”, acabou preterido em todas as promoções que surgiram. No início da história, o personagem principal exaspera-se, mas com o tempo se conforma com a situação. O diretor da instituição era o conselheiro Flores Telles, o qual, considerado velho já nos tempos do Império, transformara-se no funcionário público mais antigo da República. Não tinha faltas nem licenças. Entrava às dez e saía às três.

Ocorre que, nesse ambiente, o amanuense ficcional de Lima deu um jeito de se reinventar: especializou-se em fazer discursos (longos e tediosos), muitos deles enaltecendo o seu diretor. E eis que a história apresenta nova reviravolta: com a morte do chefe, coube ao “dedicado” funcionário redigir “alguma coisa no livro do ponto” sobre seu superior. E o texto ganhou vida própria; foi lido no Senado, publicado no Diário do Congresso, e tudo com grande sucesso. Agora, o desenlace: no dia seguinte ao enterro, quando o amanuense chegou ao escritório, atrasado como de hábito, foi logo cumprimentado pelo novo chefe de seção, exultante com a recepção positiva do texto do empregado. Orgulhoso, saiu-se com o seguinte elogio: “Nós fizemos figura no Senado. Nós! Hein? Demos a letra! — Que disse você? — Eu!… Nada”.

Qualquer semelhança não será, nesse caso, mera coincidência, pois sabemos que Lima se queixava da falta de promoções, especialmente depois de sua atuação no julgamento dos militares da Secretaria da Guerra. Conhecemos também sua fama de boêmio, as ausências constantes no trabalho e o sentimento que tinha de não pertencer àquele mundo de amanuenses e funcionários públicos. Ademais, sua “letra” — a bem dizer, sua caligrafia —, como já vimos, também não o ajudava. Portanto, o personagem tem muito de seu autor, que era tão gauche como ele; ou melhor, que era assim definido e gostava igualmente de ser dessa forma apreciado.

Na época, Lima colaborava com frequência na Careta, usando os mais diversos pseudônimos: J. Caminha, Aquele, Inácio Costa, Ingênuo, Lucas Berredo, João Crispim, Puck, Flick, J., J. Hurê, L. B., Xim, Jamegão e Jonathan. Puck, por exemplo, escrevia acerca de temas candentes da cidade.33 Em 12 de fevereiro de 1910, alertava seus leitores sobre “o cupom” criado pela Companhia Jardim Botânico, que aconselhava os cidadãos a mudarem para Copacabana. O cronista aproveitava então para enumerar os problemas vivenciados pelo bairro — os ventos cataclísmicos, os mosquitos — e terminava o artigo em tom de chacota: “Enfim Copacabana é um bairro ideal. O governo devia desapropriar as casas que ali existem e constituir outras e mais meia dúzia de hotéis e oferecer tudo, gentilmente, aos argentinos”.34

Puck, como seu criador, gostava também de temas políticos. Na crônica “Os dois deputados”,35 publicada na Careta em 22 de junho de 1912, Lima comentava: “Um deputado por um dos Estados do norte, incluído na estatística da Noite entre os cavalheiros sem profissão conhecida antes de serem nomeados representantes da nação, mas que provavelmente ocupou um cargo honrado no comércio de gêneros da terra, tem apreciado extraordinariamente o Rio, que antes ele só conhecia por cartões-postais”.36

A despeito de denunciar a mania dos pseudônimos que assolava o Rio de Janeiro, Lima se valia, e muito, deles. Outro dos seus favoritos era J. Caminha ou I. Caminha. Na Careta de 10 de abril de 1915, assim escrevia Caminha na crônica “O pistolão”.37 Dr. Café, uma vez nomeado diretor do Serviço de Construção de Albergues e Hospedarias, prometera não atender aos pistolões, mas logo é procurado por um rapaz que deseja ser nomeado porteiro de um albergue na ilha do Governador. O recém-empossado diz não conhecê-lo e se teria alguma recomendação. Então mostra uma carta do senador Xisto: no dia seguinte já estava nomeado. Os nomes variavam, contudo os temas se repetiam, teimosamente.

No mesmo ano saiu “Um e outro”38 na revista de arte e literatura A Águia, publicada no Porto, sob direção do poeta Teixeira de Pascoais e do pintor Antônio Carneiro. O conto data de março, e constava não só da edição de julho-dezembro de 1913 como da primeira edição de Triste fim. Já relatamos a história, mas vale lembrá-la brevemente neste contexto e mencionar um novo trecho. Aqui ficamos sabendo sobre a sina de Lola, amante de Freitas e que tem um caso com um chauffer. Lima fazia questão de escrever o termo no idioma original, de modo a destacar a ironia e a importância desse tipo de símbolo social. Lola era mulher vaidosa, julgava a todos e se achava superior: “Que as vagabundas comuns morressem, vá! Que as criadas morressem vá! Ela, porém, ela que tivera tantos amantes ricos; ela que causara rixas, suicídios e assassinatos, morrer, era uma iniquidade sem nome! Não era uma mulher comum, ela, a Lola, a Lola desejada por tantos homens…”.39

A moça saiu de casa com o plano de pedir um chapéu novo ao Freitas. Tencionava também “comprar um mimo e oferecê-lo ao chauffeur […], o seu último amor, o ente sobre-humano que ela via coado através da beleza daquele ‘carro’ negro, arrogante, insolente, cortando a multidão das ruas orgulhoso como um Deus”. Na imaginação dela, ambos, chauffeur e “carro”, não se separavam um do outro: a seu dispor tinha “a força e a velocidade do vento […] O automóvel, aquela magnífica máquina, que passava pelas ruas que nem um triunfador, era bem a beleza do homem que o guiava; e, quando ela o tinha nos braços, não era bem ele quem a abraçava, era a beleza daquela máquina que punha nela ebriedade, sonho e a alegria singular da velocidade […] A vida de centenas de miseráveis, de tristes e mendicantes sujeitos que andavam a pé, estava ao dispor de uma simples e imperceptível volta no guidão; e o motorista, aquele motorista que ela beijava, que ela acariciava, era como uma divindade que dispusesse de humildes seres deste triste e desgraçado planeta”.

Automóveis eram ainda relativamente raros nas vias locais e contavam com dificuldades adicionais, pois as ruas esburacadas não haviam sido idealizadas para veículos de tal porte e velocidade. Sua chegada ao Rio de Janeiro coincidiu com o contexto de modernização da cidade no fim do século XIX e início do XX, uma vez que a abertura de novas ruas e avenidas favoreceu sua circulação. Estima-se que entre 1891 e 1907 tenham sido importados cerca de seiscentos carros, enquanto, entre 1908 e 1913, entraram no Brasil 9915 veículos particulares. Uma coisa puxa a outra e, com a criação de um mercado direcionado às elites nacionais; com o surgimento de importadoras e de fábricas de peças; com o incremento da demanda de mecânicos, cresceu também a necessidade de chauffeurs.40

No meio desse processo acelerado, os veículos logo se converteram em ícones de status e distinção, mesmo que não fossem da propriedade do seu condutor. Daí a inerente associação entre o chauffeur — pois nem ao menos ficamos sabendo o nome dele — e seu carro. Daí também a correlação entre a função e o lugar de “amante”. Hora de voltar para a Lola, que agora aparece pedindo dinheiro ao marido, o Freitas, com a desculpa de que com ele ajudaria a filha que morava na Espanha. Ela subiu então a rua do Ouvidor, parou na loja de joias pensando no que compraria para “o amante chauffeur”: “Um anel? Já lhe havia dado. Uma corrente? Também já lhe dera uma. Parou numa vitrine e viu uma cigarreira […]. Achou-a maravilhosa, entrou e comprou-a sem discutir”. Tomou o bonde “cheia de satisfação”, e foi ver “seu chauffeur”. O romance já durava seis meses, e eles se encontravam secretamente numa casa discreta e limpa, bem frequentada, sempre “cheia de precauções para que os frequentadores não se vissem”. O escritor esmera-se em descrever o momento em que os dois entram no quarto; ela toda carinhosa e o chauffeur sem retribuir as carícias. “Nele, o amor não tinha prefácios, nem epílogos; o assunto ataca-se logo.”41

No auge do ato dá-se, então, o fatal diálogo. O chauffeur havia decidido deixar o emprego para trabalhar com um táxi. Lola quase desmaiou; a sensação que teve foi a de receber uma “pancada na cabeça. Pois então, aquele Deus, aquele dominador, aquele supremo indivíduo descera a guiar um táxi, sujo, chacoalhante, mal pintado, desses que parecem feitos de folha de Flandres. […] em um instante, em um segundo, de todo se esvaiu […]. Não era mais o mesmo, não era o semideus, ele que estava ali presente; era outro ou antes era ele degradado, mutilado, horrendamente mutilado. […] Deitou-se a seu lado com muita repugnância, e pela última vez”.42

Fim de romance. Esse era o tipo de relacionamento que Lima gostava de descrever: mesquinho e sem amor. Aí está o outro lado, mas o mesmo, do conto que já mencionamos, “Miss Edith e seu tio”, quando o que parecia uma inocente relação entre tio e sobrinha, ambos estrangeiros e distintos, logo vira uma “pouca-vergonha”.43 Lola ou Edith, ingleses e brasileiros, tinham os mesmos padrões de relacionamento, e eram destituídos dos valores que Lima parecia apregoar, pela negação ou pela insistência.

Mas, claro, esses não eram os temas exclusivos do escritor, que em suas crônicas jamais abria mão de tratar de assuntos públicos, digamos assim. A destruição da cidade, por exemplo. Entre dezembro de 1914 e março de 1915, ele colaboraria no Correio da Noite, periódico em que publicou uma série de artigos. Falava de política, do patriotismo (e da falta dele), da má qualidade da nossa polícia e dos problemas advindos do desmatamento da região. Em “A derrubada”,44 que saiu nesse jornal no dia 31 de dezembro de 1914, Lima descreveu a remoção das grades do Passeio Público e atacou outro assunto de sua predileção: o adversário literário Coelho Neto. Brincava ele que o escritor da ABL havia justificado a retirada das grades evocando os “gregos com o seu cânone de beleza”. E ajuizou: “Esse negócio de gregos e de beleza é coisa muito engraçada…”. Do Passeio Público o amanuense passou à análise da acelerada derrubada de árvores que ocorria na cidade como um todo: “Nos subúrbios, as velhas chácaras, cheias de anosas mangueiras, piedosos tamarineiros, vão sendo ceifados pelo machado impiedoso do construtor de avenidas”.45

É, não obstante, no Correio da Noite que Lima soltaria sua verve crítica contra as instituições da República. As delegacias viveriam “às moscas, comissários a dormir e soldados a sonhar”; políticos seriam regidos por cartomantes que entraram “decididamente na vida nacional”, e os deputados nada teriam a ver com o nobre ofício da política. Em 16 de janeiro de 1915, publicou “O novo manifesto”,46 em que, num blefe, lançava sua candidatura a deputado: “Eu não pretendo fazer coisa alguma pela Pátria, pela família, pela humanidade. Um deputado que quisesse fazer qualquer coisa dessas, ver-se-ia bambo, pois teria, certamente, os duzentos e tantos espíritos dos seus colegas contra ele. […] O subsídio, meus senhores, viria dar-me elementos para realizar essa minha velha aspiração de emparelhar-me […] Razões tão poderosas e justas, creio, até agora, nenhum candidato apresentou, e espero da clarividência dos homens livres e orientados […] para ocupar uma cadeira de deputado, por qualquer Estado, província, ou emirado, porque, nesse ponto, não faço questão alguma. Às urnas…”.47

A tônica era sempre próxima: de nada valiam os nossos representantes políticos, e ele, Lima Barreto, corporificava o outro lado — malvestido, sem pistolões e avesso às badalações da rua do Ouvidor. Talvez a crônica mais forte nesse sentido tenha sido “À margem”,48 publicada no Correio da Noite, no dia 23 de dezembro de 1914. O tema era a Revolta da Chibata, que estourara no Rio em novembro de 1910, motivada pelos maus-tratos a que eram submetidos os marinheiros de baixo escalão, e em sua maior parte afrodescendentes. Sabe-se que o líder da rebelião, João Cândido Felisberto, conhecido como o Almirante Negro, havia estado no manicômio em período próximo ao do nosso autor, mas não há como ter certeza de que tivessem se encontrado. Ao que parece, o pretexto que levou o escritor a recuperar tal acontecimento foi um artigo sobre o mesmo tema que saiu no jornal O Imparcial, “órgão da aristocracia marinheira”. Segundo o autor de Isaías Caminha, essas notícias oficiais só cobriam “de baldões os desgraçados que, em desespero de causa, se sublevaram para obter aquilo a que todos nós temos direito, a receber dos outros; sermos tratados como homens”. Em sua opinião, os castigos físicos constantes e a falta de justiça eram do conhecimento de todos, sem que nada se fizesse a respeito. E atacava: “Essa pobre gente não podia apelar para tribunais, não tinha absolutamente meios e modos de obter justiça e só um único caminho se lhe apontava: revoltar-se!”. Era por isso que ele se opunha ao Imparcial, assim como destacava a forte separação existente entre oficiais — “aqueles se julgam de raça, de carne, de sangue superior” — e marinheiros. Lima denunciava, finalmente, “o preconceito de cor” existente na Escola Naval, que para ele muito se aproximava do modelo praticado no Sul dos Estados Unidos.

Pode-se notar facilmente que, já em 1914, Lima não só tinha consciência da discriminação existente no Brasil, como andava atualizado sobre o que ocorria nos Estados Unidos. De acordo com ele, o padrão vigente consistia em disfarçar o racismo existente. Invisível no país, o preconceito era, porém, e segundo ele, escancarado em outras paragens. Na terra de “Tio Sam” é que o sr. Rio Branco,49 “que vivia a adular indecentemente a grande república da América do Norte”, teria se dado conta “do estúpido preconceito dos americanos contra a gente de cor […] Curiosa explicação!”.50 Rio Branco era atacado com constância pelo escritor, que via nele o símbolo da política “palavrosa”, e apenas encantada com os Estados Unidos e o Velho Mundo.

Por contraposição, Lima entendia-se como uma espécie de paladino, um anarquista solidário, a dizer verdades em geral mantidas no silêncio. Críticas aos políticos e à política seletiva, falta de incentivo cultural, ausência de preocupação com o meio ambiente, a desfaçatez dos jornalistas e dos literatos, eram temas da sua agenda tão seleta como urgente. A operação retórica consistia em denunciar e alardear sua própria distância de tais temas e dos setores problemáticos que, segundo ele, punham em risco a robustez da República. E, não por obra do acaso, todos esses assuntos apareceriam, de maneira mais ou menos direta, em seu livro mais importante, e que estava para ser lançado. Bovarismo, violência do Estado, elites estrangeiradas, literatos com seus barroquismos e o racismo pipocavam por toda parte nas páginas do romance. Triste fim de Policarpo Quaresma seria mesmo sua grande cartada.

Atirando longe: Policarpo Quaresma, um triste visionário51

Se a colaboração de Lima na imprensa de esparsa virava frequente, se ele já era figura tarimbada na cena cultural carioca, seu grande feito foi de fato a publicação do folhetim Triste fim de Policarpo Quaresma. Divulgado pela primeira vez na edição vespertina do Jornal do Commercio entre 11 de agosto e 19 de outubro de 1911, viraria livro no final de 1915. Mas valia a estreia nesse que era um dos mais importantes periódicos em circulação no Rio, contando com duas edições diárias. O texto de Lima apareceu na seção “Folhetim do Jornal do Commercio”, gênero que se convertera em verdadeira coqueluche na cidade, a qual, a despeito do fim da monarquia, continuava a comportar-se como se ainda existisse uma corte difundindo vogas e costumes.

Da França vinha não só a sociabilidade, como a língua franca, os costumes, e também a voga dos folhetins. Chamado de “frutinha do nosso tempo” por Machado de Assis, “folhetim-colibri” por José de Alencar, o gênero já havia sido adotado por autores como Balzac, Eugène Sue e Alexandre Dumas. Le feuilleton surgiu em meados do século XIX e ocupava o rez-de-chaussée, ou seja, o rodapé da primeira página dos jornais, e era garantia de sucesso: do periódico e do próprio autor, que passava — quando suas histórias eram bem-sucedidas — a lançar-se em voos mais altos. Por isso, o folhetim se associou à carreira dos escritores iniciantes: muitas vezes esses romances em fatias eram transformados em livros, trazendo novos leitores para os autores consagrados e facilitando o duro início dos que estreavam nas lides literárias.

No Brasil, Les Mystères de Paris de Eugène Sue apareceu no Jornal do Commercio de 1o de setembro de 1844 a janeiro de 1845, quase duplicando as vendas do noticioso. Já O guarani, de José de Alencar, surgiria na forma de folhetim durante 1856-57, sendo igualmente muito bem recebido pelo público.52 Triste fim não fugiria à regra. Foi dividido em 52 folhetins e três diferentes partes com desfechos “tristes”: o primeiro, o fim da carreira de Policarpo como funcionário público — por conta de uma petição mal compreendida em que requeria que o tupi fosse transformado em língua nacional; o segundo, a falência do sítio do herói; o terceiro, com o personagem voluntariando-se no Exército e terminando preso.

Lima teve o cuidado de guardar o manuscrito que deu origem à obra: são 254 fólios escritos com sua conhecida má letra.53 No alto das folhas de almaço consta o nome da Secretaria da Guerra. Lá, o ofício de Lima era redigir atas, mas, como já vimos, ele costumava usar o tempo livre desenvolvendo seus próprios projetos literários. Para que a obra aparecesse em livro, o que só se deu em 1915, na única edição que o autor conheceu em vida, ele teve de arcar com os custos, e não obstante alegava que a publicação era pobre, cheia de erros e “gatos”. Em março de 1917, no seu Diário, o escritor anotou: “Devo unicamente ao Lima, pela impressão do Policarpo, a quantia de 442 mil-réis”.54 No ano de 1916, assim se referia à publicação: “O Policarpo Quaresma foi escrito em dois meses e pouco […] Tomei dinheiro daqui e dali, inclusive do Santos,55 que me emprestou 300 mil-réis […] Audaces fortuna juvat”.56

O autor queixava-se não só do dinheiro que despendeu, como daquele que teve de gastar para dar publicidade à obra. Apesar das lamúrias, o jornal A Epoca de 18 de fevereiro de 1916 estampou na primeira página uma entrevista acompanhada de resenha favorável ao livro. O jornalista destacava o lado “marginal” do escritor e sua origem; diversa, ao menos quando comparada a outros nomes da literatura da época. “Policarpo Quaresma é um livro comum em que pretendo mostrar a puerilidade de muitas das nossas pretensões brasileiras”, explica Lima na matéria. E o jornalista segue: “No Rio de Janeiro, não há quem não o conheça. Ele vive em todos os bairros, arrabaldes, subúrbios. […] a rua é seu elemento. Pergunta-se a qualquer pessoa: ‘Tu viste o Lima?’. Ela responderá imediatamente: ‘Vi-o […] hoje, pela manhã, jogando bilhar’. Ninguém lhe contesta a leitura, e é suposição de todos que ele a faz nos bondes, nas barcas, nos trens. […] Lima Barreto não é jovem, já passou dos trinta, mas continua cheio de mocidade e ardor. Nasceu no Rio de Janeiro […] e admira a beleza estonteante da sua cidade. Estudou engenharia e abandonou o curso. Escapou de ser doutor, como diz ele. Fez-se empregado público […] e, parece, é o desespero dos seus chefes. Procuramo-lo. Andamos de botequim em botequim, de confeitaria em confeitaria e fomos encontrá-lo em uma brasserie”.57

Com a publicação de Triste fim, a figura literária de Lima seria ainda mais lapidada. Ele era então caracterizado, e também gostava de se definir desta maneira, como um escritor boêmio, frequentador de botequins, realista por gosto, avesso ao jornalismo burguês e aos formalismos da literatura. Seus problemas na Politécnica viravam virtudes, seu ir e vir nos subúrbios uma forma de existência. A despeito de tanta contraposição, Lima jamais negava seu sonho de viver das letras. Tanto que, nessa mesma entrevista, assim resumia sua “missão”: “O fim da minha vida é as letras. Eu não peço delas, senão aquilo que elas me podem dar: Glória! […] Não quero ser deputado, não quero ser senador, não quero ser mais nada senão literato. Não peço às letras conquistas fáceis […] peço-lhes coisa sólida e duradoura. […] Eu abandonei tudo, por elas; e a minha esperança é que elas me vão dar muita coisa. É o que me faz viver mergulhado nos meus desgostos, nas minhas mágoas […] Vamos beber cerveja”.58

O imprevisto virava sorte premeditada, e Lima explicava todo o passado em função do futuro: sua glória na literatura. Por sinal, naquele momento, nada parecia amainar a expectativa do escritor, expressa também em alguns detalhes de Triste fim. Por exemplo, ele dedicou a edição de 1915 a João Luís Ferreira.59 Até aqui nada de estranho; afinal, o autor tinha por costume dedicar seus textos a amigos. Nesse caso, porém, o homenageado era da elite piauiense, estudara com Lima na Escola Politécnica e, diferentemente dele, concluíra o curso de engenharia civil, retornando a seu estado, onde se elegeu governador. João Ferreira era irmão de José Félix Pacheco, diretor proprietário do Jornal do Commercio, deputado federal, senador, ministro das Relações Exteriores, poeta, e tradutor de Baudelaire. Fácil notar que Lima se cercava de amigos tão cultos como proeminentes, e que contava com eles para alcançar projeção nas artes ao mesmo tempo que atacava a elite intelectual e política do país.

À sua maneira, o amanuense ia fazendo carreira ruidosa, com suas crônicas provocativas, contos igualmente críticos e romances bastante escandalosos. Isaías Caminha, de 1909, não fora sucesso de crítica, mas lhe conferira certa notoriedade de enfant terrible. A pecha lhe custara, contudo, muito caro. Por causa das denúncias à imprensa, definida por ele como o “quarto poder da República”, a obra mereceu, como vimos, certo silêncio dos colegas.

E Triste fim parecia seguir a mesma trilha. Comecemos pelo começo. Vale a pena iluminar a citação de Joseph-Ernest Renan, retirada de Marc-Aurèle et la fin du monde antique, que abre o livro: “Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire”.60

Renan foi um pensador cético, crítico da ciência e do seu tempo, e nesse trecho ele se refere mais explicitamente a Marco Aurélio.61 O paralelo é evidente: o imperador romano e Policarpo seriam ambos homens de espírito superior, mas mal entendidos por sua geração, motivo pelo qual não passavam de homens “tristes”. O suposto é que aqueles que se movem por bons princípios têm menos sucesso do que os que encontram razões egoístas para gerenciar sua própria vida. Além do mais, todos eles, incluindo Lima, seriam patriotas incompreendidos. A pátria que amavam era um ideal e não parecia ser a mesma dos demais habitantes de seus respectivos países.

Policarpo era um patriota paradoxal, desses que geravam estranheza, em função de seus projetos, ideias e manias. Queria, por exemplo, introduzir o tupi-guarani como língua nacional e era veementemente avesso a qualquer inovação vinda do estrangeiro. Cultor das “nossas tradições”, tomava aulas de violão, o qual considerava “genuinamente brasileiro”, e a modinha o ritmo por excelência desse instrumento. Era contra o petit-pois, que trocava por guando — uma erva da família das leguminosas —, calçava botas nacionais e só tomava parati.

Era pontual como um relógio e por isso a vizinhança estava acostumada a fiar-se na rotina dele, “sem erro de um minuto”. Pequeno, magro e sempre com seu pincenê, andava olhando para baixo. No entanto, quando resolvia prestar atenção em alguém, era como se perscrutasse a “alma da pessoa ou da coisa que fixava”. O título de major que portava era meramente honorífico, presente de amigo influente no Ministério do Interior que “lhe tinha metido o nome numa lista de guardas nacionais, com esse posto. Nunca tendo pago os emolumentos, viu-se, entretanto, sempre tratado major, e a coisa pegou”.62 A princípio protestou, mas, depois, acabou acomodando-se com a deferência.

O protagonista de Triste fim lia muito; constantemente literatura brasileira ou sobre o Brasil. Gostava de Gregório de Matos, Basílio da Gama, José de Alencar, Gonçalves Dias, e dos viajantes como Gândavo, Gabriel Soares e Rocha Pita. A lista dos seus favoritos era grande, sendo ele ainda cultor de dicionários, enciclopédias e compêndios.63 Quaresma era “antes de tudo brasileiro”; mas seu amor não era do tipo “comum”, “palrador e vazio”. Todo o seu “sentimento” era “sério, grave e absorvente”. Também não tinha pretensões políticas ou administrativas. Seu conhecimento acerca do país servia apenas para que meditasse sobre “recursos”, e pensasse em “remédios” para o Brasil.

A primeira parte do romance é tomada, pois, por essa descrição da personalidade e da rotina de Policarpo e seus amigos; sobretudo o professor de violão Ricardo Coração dos Outros; Olga, sua leal afilhada; e sua pacata irmã Adelaide, que o acompanha nas aventuras. Ela que nunca “sonhara príncipes, belezas, triunfos, nem mesmo um marido”.64 Tudo ia de forma regular, como era regular a vida do major, até que, no auge de seu patriotismo, ele resolveu fazer um ofício para o ministro defendendo a introdução do tupi como língua oficial. Publicado nos jornais, o documento virou motivo de pilhéria, e Quaresma virou um “encerramento em si mesmo”: acabou no hospício.

Até aqui temos muitos elementos a ligar Lima a seu personagem. Seu pai era assim, rotineiro como o major, e, à sua maneira, fora muito patriota. João Henriques, nos artigos que escreveu a respeito da ilha do Governador, dava conselhos sobre agricultura e também advogava que a batata que chamamos de inglesa era na verdade americana. Já Policarpo sempre se gabava das terras férteis de seu país e de como por aqui tudo dava — feijão, milho e até a batata-inglesa.

E, da mesma forma que o major, o administrador das Colônias de Alienados se ensimesmou e enlouqueceu. Entretanto, diferentemente do pai de Lima, cujo último capítulo de vida estava “sendo escrito” numa poltrona da casa de Todos os Santos, e cada vez mais distante do mundo, Policarpo permanecia cheio de planos e não se dava por vencido. Na segunda parte do livro, ele compra um sítio para onde se muda com a irmã. O lugar apresenta paralelos evidentes com a descrição que Lima deixou do seu sítio na ilha do Governador, além da semelhança no nome — o sítio do Sossego ficava no Curuzu, o de Policarpo a duas léguas de distância: perto da cachoeira do Carico (no Curuzu). Ademais, num paralelo “afetivo” com a infância do escritor, também a casa do major ficava bem no topo de uma colina.

Policarpo deixou os subúrbios, onde morava — aliás, como a família de Lima —, para se dedicar a seu novo “sacerdócio”. Longe da cidade, agora seguia outra vida junto à lavoura. Roçava a terra como João Henriques ensinara em seus artigos: arava, tirava os matos, tratava do solo até que ficasse limpo e pronto para o plantio. Era contra adubos, pois acreditava na fertilidade natural do Brasil. Mas, mais uma vez, a calmaria anunciava reviravolta. Certo dia, o tenente e escrivão Antonino Dutra foi até a casa de Policarpo para saber se ele ajudaria na festa da Conceição. Avesso a “trocas de favores”, o major negou o pedido, o que bastou para que os políticos locais passassem a prejudicar seu sonho. Taxas e impostos, que jamais haviam sido cobrados, passam a cair na cabeça do major, que ainda tirava pouco do sítio. Bem que Policarpo pensou numa reforma agrária para solucionar esses males. Porém, desanimado com as formigas que insistiam em invadir sua propriedade, o protagonista aprontou-se para nova aventura.

Na terceira e última parte do livro encontramos Policarpo de volta à cidade, e informado sobre um acontecimento que entrara de vez no cotidiano da população: a Revolta da Armada. Juntando dois mais dois, o major fez um memorial contendo suas “medidas necessárias para o levantamento da agricultura nacional” e o entregou ao marechal Floriano. Este, evidentemente desinteressado do tema, convidou o amigo a se alistar no Exército e combater contra os inimigos. Patriota, o herói aceitou o desafio e foi listado como major; o que era título honorífico agora virava realidade. A revolta passou a figurar no dia a dia de Quaresma, como entrara na vida de Lima. No fim do romance, o protagonista se desaponta com a guerra, arrepende-se de ter matado um homem, e sai ferido levemente. Quando o movimento político se encerra, ele é preso — sem ter certeza dos motivos — e termina seus dias questionando-se acerca do próprio patriotismo. Ele não passava de um “visionário”, e a “pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete”.65

Bem que Olga tentou libertá-lo, mas teve que ouvir um ajudante de ordens dizer que Quaresma era um “traidor”, um “bandido”. Concluiu que era melhor deixá-lo “morrer só e heroicamente num ilhéu” do que tirá-lo da masmorra na base dos favores. E assim se fecha, com muita emoção, a narrativa, e chega-se ao “triste fim” desse herói quixotesco nacional, o major Policarpo Quaresma.

Também no caso desse livro, Lima revelava pressa. Escrito em dois meses e meio, o romance carrega um tom de “artista impaciente”, como se um contexto nervoso invadisse as páginas da ficção.66 Coincidência ou não, Triste fim marca alegoricamente o término de um momento na carreira do autor e o início de outro: antes dele, Lima frequentava de maneira assídua rodas de escritores, jornalistas e políticos; depois dele, e com a pequena repercussão da obra — ao menos diante das imensas expectativas do autor —, a bebida fez com que ficasse menos atento a esse tipo de socialização literária, mantendo um círculo de amigos ainda mais restrito.

A obra, apesar de não ser exatamente à clef, dessa vez traduziria o ambiente conturbado de seu contexto, recuando aos idos de 1893, quando começa a Revolta da Armada. A circunstância não poderia ser mais significativa para ele, inclusive pessoalmente. Em 1890, como sabemos, seu pai, João Henriques, até então um tipógrafo bem-sucedido, foi demitido da Imprensa Nacional sob alegação de conivência com a monarquia. Foi também nesse período que acabou aceitando o emprego de escriturário das Colônias de Alienados na ilha do Governador. Conhecemos igualmente as cicatrizes profundas que a Revolta da Armada deixaria no pai e no filho. Numa crônica mais tardia, publicada no Almanak d’A Noite de 23 de maio de 1916, Lima descreve sua vida aos doze anos e como a revolta de 1893 entrou nela.

Nesse regime de falsas coincidências, nota-se facilmente que o movimento da Armada assume papel simbólico no livro e na vida do seu autor. Para Lima, significou a entrada na vida adulta, com a sucessiva mudança da família para os subúrbios cariocas. Foi também nessas vizinhanças, afastadas e conectadas da cidade, que o autor imaginou a morada de outro grande personagem — o menestrel Ricardo Coração dos Outros.

A loucura, que entraria em cheio na vida de Lima, se transformaria em personagem do romance. Ismênia, uma moça casadoira, com a fuga do noivo cairá demente. Era uma loucura mansa, essa da eterna noiva Ismênia, que, como a filha da pensionista do conto “Miss Edith e seu tio”, que descia socialmente a cada namorado que encontrava, nunca deixou de sonhar com um marido. O estado de alienação resultava da falta de perspectiva das moças e do descrédito de Lima diante do matrimônio. Ele nunca fora favorável ao casamento, seus personagens tampouco: “O casamento já não é mais amor, não é maternidade, não é nada disso: é simplesmente casamento, uma coisa vazia, sem fundamento nem na nossa natureza nem nas nossas necessidades”.67

Policarpo também será internado durante alguns meses em razão de suas opiniões radicais e “excessivas”. O protagonista se retirou no seu insulamento e ganhou um “ar de estranho a tudo, às competições, às ambições, pois nada dessas coisas que fazem os ódios e as lutas tinha entrado no seu temperamento”.68 A loucura está presente, ainda, no quartel de Floriano ou na impossibilidade de o sítio do Sossego vingar. São todos uns loucos na caserna ou aqueles que acreditam na agricultura do Brasil. Por isso, é a loucura que constrói a narrativa e confere a ela o tom de folhetim, que guarda a cada dia uma nova desventura, mais um triste fim.

Lima cria nesse romance uma galeria de tipos impagáveis. De um lado há Policarpo, “um visionário” e defensor das “coisas do Brasil”. De outro, Floriano com seu “bigode caído”, “traços flácidos e grosseiros”, “olhar mortiço, redondo, pobre de expressões”.69 É forte o contraste entre Ismênia e Olga. A primeira, frágil como o pai de Lima, logo sucumbe à loucura. Já a segunda, a afilhada de Policarpo, é a ética do major inscrita no corpo de mulher. Há ainda a contraposição entre o sempre fiel Ricardo Coração dos Outros e Genelício, empregado do Tesouro que não passava de um “gênio” na arte da “bajulação”.

Não existem vilões definitivos na obra; estão todos nas “encruzilhadas dos talvezes”, na feliz expressão do seu autor.70 Ou seja, cada um deles, e à sua maneira, pode ser bom e ruim; dadivoso e egoísta; altruísta e velhaco. O general Albernaz e o contra-almirante Caldas ostentavam seus títulos mas nunca haviam participado de batalha alguma. Dr. Florêncio “era mais um guarda de encanamentos do que mesmo um engenheiro”. E assim vamos, com cada figurante expressando os dilemas de uma modernidade aos pedaços. Ceticismo e otimismo; honestidade e contravenção; sanidade e loucura; progresso e decadência são oposições que organizam toda a obra. O que impera é a ambivalência dos personagens, que corresponde às próprias ambivalências do contexto, oscilante entre a profunda crença no futuro, o olhar saudoso para o passado e a descrença diante do porvir. O único que escapa é Floriano; ele, sim, a personificação do radicalismo e do descaminho que esperava o país. Nada tem de “talvez”.

Momento dos mais significativos é aquele em que as formigas destroem de vez o sítio do protagonista. Sem abandonar o humor, Lima retoma a frase do naturalista Saint-Hilaire quando percorreu o país nos idos de 1816 e 1822: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”. Já o sítio de Policarpo sofreria verdadeira invasão de formigas: “Quis afugentá-las. Matou uma, duas, dez, vinte, cem; mas eram milhares e cada vez mais o exército aumentava”. Esses insetos também maltrataram as colheitas de João Henriques na ilha do Governador, onde até havia uma fábrica de veneno cujo objetivo era eliminar os terríveis predadores. O “infame inimigo” não sairia da cabeça do escritor, que em “As formigas e o prefeito” contava: “Esse negócio de saúvas preocupa-me desde menino, quando o meu velho amigo Policarpo Quaresma narrou à minha infância curiosa os suplícios que elas o fizeram sofrer”.71 E tais insetos virariam obstáculo real e metafórico em diferentes relatos. Paulo Prado, em Retrato do Brasil, de 1928,72 incluiu-os entre os nossos problemas locais, e Mário de Andrade, em Macunaíma, arrematou: “Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são”.73

Portanto, não é de somenos importância o fato de as saúvas figurarem na passagem da segunda para a terceira parte do livro com seus desfechos tristes. Se na primeira Policarpo é internado por propor o tupi-guarani como língua nacional, já nesse momento a decepção viria com a terra do Brasil, onde nem tudo dá. Nem nossa “forte base agrícola”, aquela que tiraria o país de seu empobrecimento secular, salvava-se das formigas e dos políticos tacanhos. A terceira decepção estaria na própria “pátria”. O major se insurge e acaba preso na ilha das Cobras. O movimento é claro e anuncia sempre o lamento: da repartição pública para o campo; do campo para o Ministério da Guerra, os problemas se repetem. “O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara?” A pátria virava “um mito”, um fantasma do seu gabinete.74

Quaresma era assim um patriota distinto dos demais, pois sua pátria era aquela retirada dos seus livros e da sua biblioteca. Triste fim é construído, dessa maneira, a partir de uma série de desencantos: com a política e os políticos, com os livros, com o Brasil. Conforme sugere o crítico Silviano Santiago, a repetição do tema central, os núcleos reiterados, a redundância narrativa é que conferem ao livro uma clara “estética popular”.75 Há também nele uma crítica dura e teimosa ao autoritarismo e à repressão ao pensamento divergente, cujo destino só pode ser o manicômio, a prisão ou a morte. Por isso, é uma obra triste, amargurada, e que retoma o pessimismo que já ia se colando a Lima. Aqui ele vira quase uma tópica: “e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira”.76

Esse foi o livro em que Lima Barreto apostou mais. E não sem motivos. No seu Diário do mês de março de 1916, ele anotou: “Meu livro, o Policarpo, saiu há quase um mês. Só um jornal falou sobre ele três vezes (de sobra). Em uma delas, Fábio Luz assinou um artigo bem agradável. Ele saiu nas vésperas do carnaval. Ninguém pensava em outra coisa. Passou-se o carnaval e Portugal teve a cisma de provocar guerra com a Alemanha […]. E não têm tempo de falar no meu livro…”.77

Lima tinha urgência, e a recepção dos jornais ficava aquém do que ele esperava e projetava. A resenha mais importante para o escritor, e que ele chegou a ler, foi a de Oliveira Lima, escrita para O Estado de S. Paulo no dia 13 de novembro de 1916. O diplomata chamava o major Quaresma de um “Dom Quixote nacional” e fechava: “ambos são tipos de otimistas incuráveis porque acreditam que os males sociais e sofrimentos humanos podem ser curados pela mais simples e ao mesmo tempo mais difícil das terapêuticas, que é a aplicação da justiça da qual um e outro se arvoraram paladinos”. Era a tópica do patriotismo ideal que voltava nessa resenha. De resto, o livro continuava, assim como seu autor, no relativo silêncio, ao menos na régua de sua alta expectativa. Se o romance pretendia causar muita polêmica, o primeiro resultado desanimou o escritor: faltaram críticas de peso. Houve outras notas, sem dúvida, mas mais indiretas. Em A Imprensa de 20 de agosto de 1916, um jornalista defendeu a criação da Academia Livre de Letras, denunciou a exploração dos editores e aproveitou para introduzir Lima Barreto como caso exemplar da nova geração literária. Visto sob esse ângulo, Lima ia até virando modelo, “líder do grupo que se reunia na revista Floreal”, e que pedia por uma literatura engajada, inspirada por autores como Dostoiévski, Tolstói, Flaubert, Balzac, Taine, Stendhal, Eça de Queirós e Renan.

Triste fim também aparecia, por vezes, disperso em meio a outros assuntos. A Gazeta de Noticias de 29 de abril de 1916, por exemplo, publicou — na coluna “Binóculo” — um artigo em que uma amiga imaginava o cotidiano da outra, mas reclamava do desaparecimento dela “dos chás, do footing, das reuniões e até da própria Avenida”. Descarta algum flirt e revela que a amiga andava assistindo como espectadora aos “acontecimentos do coração e do espírito”, por meio dos livros. “Mme. Violeta”, a remetente da carta, confessa ser grande leitora e ter predileção por autores brasileiros. Afirma ela que devora textos de Albertina Bertha, versos de Gilka Machado, os poemas de Olegário Mariano e os trabalhos de filosofia de Jackson de Figueiredo.78 Por fim, menciona que andava lendo “o romance de um cavalheiro terrível, originalíssimo, mas apesar de tudo cheio de talento: Triste fim de Policarpo Quaresma”. E vai em frente: “Não lhe quero fazer a crítica deste livro […] caricatura real e habilíssima deste aglomerado tumultuoso que é a nossa sociedade”. Violeta arrisca até uma analogia da obra com Les Dieux ont soif, de Anatole France, uma vez que ambos os autores tratariam do “mesmo tema da negação: uma época idêntica de agitação e de perturbação social”. Depois de ressaltar qualidades do livro, ajuíza: “parece que se faz misteriosamente silêncio em torno dele”. E responde: “Eu penso que os livros bons devem ser elogiados, mesmo quando sejam produzidos por desafetos nossos. Que importa que o seu autor seja um impenitente blagueur se realmente tem talento?”.79

Ante as dificuldades em entender aquela inibição da crítica, Violeta aposta no perfil original do seu autor, que “não tem a habilidade em cumprimentar certos cavalheiros na rua”, além de continuar inédito nos chás elegantes, ignorar as récitas do Municipal e, durante a season, não fazer o footing. Acrescenta que ele não usaria monóculo e que “tem pelo líquido que alagou a terra no tempo de Noé uma sincera e respeitosa aversão”. E fecha: “fosse discreto, fosse elegante e, sobretudo, possuísse aquele prodigioso dom que nos dá hoje, o sucesso na vida — a mediocridade […] se assim fosse minha amiga, estou certa de que o autor do Policarpo Quaresma seria um triunfador, sous la coupole”.80

A crítica indireta e em tom de blague, com claras pinceladas irônicas em relação ao alcoolismo que acompanhava a biografia do escritor, procura explicar a tímida recepção à obra de Lima e à sua pessoa. Com efeito, naquela altura ele já era constantemente descrito como avesso ao mundo social, partidário da bebida, e uma espécie de inimigo confesso dos escritores mais badalados. A coluna, na verdade, fora escrita por Alberto Figueiredo Pimentel que, como poeta, associava-se aos círculos simbolistas. Era dele, como sabemos, o famoso dito “O Rio civiliza-se”, slogan lançado em 1904 pelo jornal Gazeta de Noticias, e que se transformou em símbolo desse Rio belle époque, dos cafés elegantes e da vida social animada. E em tal contexto literário, se o livro de Lima era elogiado, já seu autor surgia retratado como um completo inadaptado. Faltava-lhe vocabulário social.

Figueiredo Pimentel tinha também motivos particulares para ver no escritor um “adversário” ou, ao menos, um sujeito distante daqueles círculos literários e seus padrões de sociabilidade. Afinal, em 11 de janeiro de 1915, Lima escrevera no Correio da Noite uma crônica intitulada, justamente, “Com o ‘Binóculo’”, em que destruía a coluna e o colunismo social. “Julgava que essa história de pic-nics não fosse mais binocular; o meu engano, porém, ficou demonstrado. No largo da Carioca havia dois ou três bondes especiais e damas e cavalheiros, das mais chics rodas […]. Elas, as damas, vinham todas vestidas com as mais custosas confecções […], e ensaiavam sorrisos como se fossem para Versailles nos bons tempos da realeza francesa. […] O Binóculo deve olhar para esse fato; deve procurar pôr um pouco mais de proporção, de discrição nessas manifestações festivas da nossa grande roda aos cavalos de corridas […].”81

Nesse caso, portanto, a crítica à sua pessoa era até previsível. Lima não se enquadrava bem nas exigências da sociabilidade contemporânea, que ia tomando o Brasil das capitais. O que se exigia agora era um escritor mais público, mais alvissareiro também; todos atributos que não se ajustavam ao projeto de Lima nem ao patriotismo expresso por Quaresma e seu autor.

Mas o escritor ficaria particularmente aborrecido com a resenha que recebeu do jornal A Noite de 1o de outubro de 1916. Medeiros e Albuquerque, que fazia parte da ABL desde a sua fundação e já havia criticado Recordações do escrivão Isaías Caminha, publicou resenha negativa, condenando o perfil à clef dos romances de Lima. Albuquerque começava até elogiando: “O Triste fim de Policarpo Quaresma prova mais uma vez que o sr. Lima Barreto é um admirável romancista. O livro tem os melhores característicos dos bons romances; suscita, de princípio a fim, o maior interesse e desenha rigorosamente tipos, que a nossa imaginação evoca com inteira nitidez”.

O lado positivo do artigo era, não obstante, curto; muito mais intensas eram as reprovações: “O autor tem, entretanto, uma predileção, que não é de louvar: a de pôr em cena personagens conhecidos. Gosta do que os franceses chamam o romance à clef, romance em que é possível reconhecer quem o escritor quis evocar […]. No seu primeiro livro isto era ainda mais sensível. Neste, a coisa está menos visível, mais atenuada. Resta, porém, ao romancista a defesa de que, pintando o meio em que vive, nele buscou os tipos de que precisava para a sua ação. E a censura pode parecer um elogio. Mas há no sr. Lima Barreto um tal instinto de agressividade e de caricatura que, tendo reconhecido alguns dos seus personagens, fica-se com a desconfiança de que também os outros devem ser copiados — e deformados — da realidade”.82

O crítico, que até então louvara a obra, afirmando que “a ação, que é muito bem desenvolvida, prende, da primeira à última página, a atenção do leitor”, descamba para as reprovações: “Mas o sr. Lima Barreto se esquece às vezes que está fazendo um romance e abre parênteses para discutir. É como se um dramaturgo surgisse, de repente, no palco, atrapalhando a representação […] Do mesmo modo, não satisfeito de pôr em cena o marechal Floriano de um modo notoriamente injusto, o autor interrompe a ação do livro para discutir-lhe a personalidade […] É um cúmulo! Seria talvez mais justo alguém que o achasse loiro e de olhos azuis, ele que era moreno e de cabelos bem pretos…”. Enfim, a impressão que fica é a de que Medeiros até aprecia qualidades da obra. Contudo, volta sempre ao contencioso, não escondendo seu desagravo: “Mas tendo o que não se aprende, falta-lhe o que lhe será fácil de aprender: um pouco mais de correção de linguagem”.83

Lima deve ter ficado contrariado com a crítica, que talvez o tenha pegado desprevenido. Afinal, o próprio jornal A Noite, de 30 de abril de 1916, havia elogiado a obra: “Com o novo livro de Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma, dá-se um caso muito raro em livros nacionais […]. Quando se acaba de ler o Triste fim de Policarpo Quaresma sente-se um esquisito patriotismo; um patriotismo triste […]. O livro de Lima Barreto é um livro cético, mas é um livro sincero e patriótico, porque expõe ao vivo muitas das mazelas que impedem o desenvolvimento nacional deste ‘grande país sem estadistas’…”.84

O livro era cético, sincero e até patriótico; quanta diferença para a resenha acachapante de Medeiros. De toda forma, se a cobertura não teve o tamanho que Lima desejava, ou competiu com outras dedicadas a livros que saíram no mesmo período, como os de João do Rio, por exemplo, não se pode dizer que Triste fim não tenha gerado repercussão. Ao contrário, contou com várias resenhas até favoráveis. Esse é o caso de O Paiz do dia 22 de setembro de 1916, que trazia um comentário breve e não se detinha em nenhum aspecto da obra mas no fecho ajuizava: “Livro a respeito do qual se pode desde logo fazer uma afirmação, que é o seu melhor elogio: não tem banalidade”.85 Mas Triste fim não decolou. Lima atribuía o resultado pífio à sua origem social e às suas diferenças com os jornalistas e as redes literárias que o cercavam. É difícil apostar no motivo certo e único. Se não há como negar de todo a alegação do autor, é possível arriscar que, mais uma vez, as ilações ao contexto podem ter sido prejudiciais à recepção do livro. Pensar nas ciladas do patriotismo, observar com ceticismo os projetos de nacionalidade, deitar um olhar nostálgico sobre o presente ou até deixar “um triste fim” — em vez dos arremates mais grandiosos, românticos ou elevados — eram modelos que não se coadunavam com aquele momento, o qual preferia a atitude de louvação ou uma literatura menos ácida. Não se pode tampouco esquecer dos florianistas que, ainda vivos, não deviam ter gostado, como Albuquerque, das referências pouco respeitosas ao antigo presidente e à sua política.

Afinal, ataques é que não faltavam no livro. À política do passado e do presente; à falta de projetos das elites; ao fascínio pelas ideias estrangeiras; e aos nacionalismos postiços. Existia ironia até no nome escolhido para o herói da narrativa, como bem mostra Silviano Santiago.86 “Policarpo”, segundo o dicionário, significa “aquele que tem e produz muitos frutos”. Mas a vida do herói não resultou em nenhum produto digno; ele terminou só, sem descendentes, e até sem herança para deixar. Já o verbo “carpir” (que pode significar também “chorar”, “lamentar”) remeteria a outra referência existente no título da obra: “o triste fim”. “Quaresma” é igualmente palavra de mais de um sentido; num deles, designa o período de quarenta dias de jejum que termina no Domingo de Páscoa e com o sacrifício de Cristo; sacrifício entendido como ato de consagração, cujo desenlace, apesar de triste, pode fundar um pacto com uma nova sociedade. Policarpo seria assim um gênero de Cristo dessa nacionalidade tropical; um líder melancólico de um novo porvir. No entanto, não foi. Por isso tem mais de “carpo” que de Policarpo. “Quaresma” é ainda um tipo de coqueiro; essa árvore presente na representação do Brasil desde os primeiros mapas seiscentistas e que virou no século XIX , e com a pesquisa que lhe dedicaram os naturalistas austríacos Spix e Martius, símbolo da nacionalidade.87 Há quem discuta sua origem e a atribua à Ásia, mas nenhum viajante negaria a existência da espécie em toda a costa tropical. Desse modo, ela se tornou ícone maior de nosso ufanismo, e o personagem não poderia ser homenagem mais ao revés. Se ele se dedicava à agricultura do país, também se desencantou com a falta de frutos e resultados.

Difícil esquecer que em 1901 o conde Afonso Celso, filho do nosso velho e conhecido visconde, escrevia Porque me ufano do meu país a partir dos mesmos modelos “eurocêntricos”, e das pitadas felizes e esperançosas que faziam a alegria dos leitores brasileiros: “Verdadeira maravilha a uberdade da terra roxa, que o calor e a umidade bastam a fecundar”.88 Já a terra “ubérrima” do sítio de Policarpo é invadida pelas formigas, que, no limite, representam a “realidade” do país. Os “pequenos inimigos” são aqueles que acabam por destruir o sonho e a utopia.

O próprio Afonso Celso escreveu uma resenha do livro para o Jornal do Brasil de 28 de março de 1916, na coluna “Cotas aos casos”. Mais uma vez, Lima foi definido como autor do romance à clef Isaías Caminha, que “há anos produziu viva sensação em nossas rodas literárias”. Sobre Policarpo Quaresma, o conde tece elogios; afirma que é “um trabalho original e forte, muito superior ao antecedente [Isaías]…”. Aproximando o livro de Lima a Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro, Afonso Celso distingue e compara os autores. Para ele, o primeiro escritor não possuiria “o estilo fluido, cintilante e conceituoso do mestre”, nem a “docilidade, correção e aticismo” de Machado de Assis. Mas veria os “homens e coisas por um prisma semelhante ao dele”. Lima demonstrou grande satisfação com a crítica, reagindo em carta endereçada a seu autor no dia seguinte à publicação. Nela, diz não saber bem como agradecer “a bondade e a delicadeza que teve com o obscuro autor do Policarpo Quaresma”. Difícil dizer se há gratidão ou escárnio na resposta e no humilde fim da missiva: “eu não podia esconder a minha eterna gratidão”. E o escritor repisa o cumprimento: “O certo, porém, é que as palavras de Vossa Excelência, Senhor Conde, me tocaram muito e muito me alentaram para fazer coisa melhor e mais perfeita”.89

Fato é que, no livro, a ambiguidade consiste numa espécie de personagem de fundo; do título à epígrafe — de Renan — até o desfecho. Nas páginas de Triste fim, uma clara carga irônica incide sobre a sociedade brasileira e seu personagem principal, que não consegue nem sequer “carpir” e limpar sua roça, seja ela real ou metafórica: no sítio, na repartição ou no Ministério da Guerra — onde, aliás, Lima trabalhava quando entregou os originais. Ambivalência maior está, finalmente, no discurso nacionalista da ficção, que é confirmado pelos livros que Policarpo guarda, orgulhosamente, em sua biblioteca. Nada impede o alardeado “fim”: nem seus sonhos, muito menos sua profissão, seu apego à agricultura, ou os conhecimentos que arregimentara.

Não há como saber se Lima leu Bouvard e Pécuchet, livro inacabado de Flaubert, publicado postumamente em 1881.90 O que se sabe é que o amigo Antônio Noronha, em carta datada de 20 de junho de 1916, comenta com o escritor de Todos os Santos, de forma breve, certa passagem presente naquela obra, acerca da cultura do melão.91 O jeito ligeiro e alusivo com que o colega da Floreal menciona o trecho e o fato de Lima ser fã confesso do autor francês parecem provar alguma familiaridade dele com o texto. De qualquer maneira, como escreveu Silviano Santiago, salta aos olhos o paralelo entre Policarpo e os dois escriturários, amantes da ciência e que tentam de tudo um pouco — agricultura, ginástica, teologia, química e pedagogia — mas falham em todas as “artes”. A sina de Policarpo seria semelhante: major, funcionário, cientista, agricultor, historiador e geógrafo, termina falido e preso por “lesa-pátria”. A dupla de Flaubert acabaria numa casa de loucos. Já Policarpo morreria nas mãos de seus algozes, igualmente frustrado com a República que sonhou e que ruía bem na sua frente.

E não seria descabido juntar não só o pai de Lima como o próprio escritor com mais esse seu personagem de ficção: ele também se via como um paladino, uma voz isolada na República das Letras. Policarpo era ainda outro Lima, ao menos como ele gostava de se ver: “desinteressado de dinheiro, de glória e posição, vivendo numa reserva de sonho, adquirira a candura e a pureza d’alma que vão habitar esses homens de uma ideia fixa, os grandes estudiosos, os sábios, e os inventores, gente que fica mais terna, mais ingênua, mais inocente que as donzelas das poesias de outras épocas”.92

Talvez Policarpo fosse tão Quixote como Lima. Afinal, não poucas vezes o escritor se definira como avesso ao sucesso, a despeito de lutar, à sua maneira, por ele. Além do mais, se denunciava o aburguesamento de nossas instituições, usaria dessa obra para tentar a sorte na ABL. Fez uma primeira tentativa em agosto de 1917, e sua candidatura nem ao menos foi considerada.93

E Lima mais uma vez tentou se espelhar nas criaturas que ia inventando em seus livros. Isoladas, avessas às sociabilidades e ao sucesso. Em dezembro de 1914, publicou um artigo no Correio da Noite, que intitulou “O patriotismo”.94 Nele escrevia: “Nota-se, de uns tempos a esta parte, graças à crítica histórica, difundida por todas as formas e meios, que o patriotismo é um sentimento que vai morrendo. […] A pátria é uma ideia religiosa e de religião que morreu, desde muito. […] Quanto à raça, os repetidores das estúpidas teorias alemãs são completamente destituídos das mais elementares noções de ciência, senão saberiam perfeitamente que a raça é uma abstração, uma criação lógica, cujo fim é fazer o inventário da natureza viva, dos homens, dos animais, das plantas e que saindo do campo da história natural, não têm mais razão de ser. […] Entretanto, entre nós, há uma recrudescência de patriotismo […] Penso que essa gente deixou de ser absolutamente brasileira, para ser paranaense ou espírito-santense e esqueceu que Paraná, Santa Catarina, Ceará ou Mato Grosso são divisões político-administrativas do Brasil e não pátrias […] Penso eu…”.95

Era Lima ou Quaresma quem escrevia o artigo no Correio da Noite; ou seria um no outro? Afinal, em dezembro do ano de 1914 era o autor que assim definia o amor à pátria de seu personagem da ficção: “A razão tinha que ser encontrada numa disposição particular de seu espírito, no forte sentimento que guiava sua vida. Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte anos, o amor da pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa”.96

Crer ou não crer no Brasil, aí estava a questão agudamente enfrentada por Lima e Quaresma. Ser “patriota profundo” ou um cético absoluto eram duas possibilidades; duas faces da mesma moeda. Por isso, nesses anos sofridos, há em Lima certo elogio da loucura. Uma loucura produtiva, molhada de nacionalismo, ora movida por um patriotismo exaltado, ora por desilusão. No romance, o escritor vaticina: “É raro encontrar homens assim, mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na felicidade da raça”.97

No seu Diário uma frase solta mostra a potência e, ao mesmo tempo, a capacidade destrutiva de qualquer livro: “Policarpo Quaresma. Ideia que mata. A decepção. O pessimismo”.98

Ou então bastaria retomar no livro a frase que mais define o personagem central: “Você, Quaresma, é um visionário”. Talvez fosse e não fosse mais. Afinal, era Quaresma quem, decepcionado, concluía: “Nada. As terras não eram ferazes e ela [a agricultura] não era fácil como diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções…”.

Manuscrito que faz parte do Diário íntimo de Lima Barreto.

 

Decepção é tema central do livro, das crônicas, dos contos, e também da vida de Lima. Ele que tentava usar uma linguagem popular, que dava a seus textos um tom público,99 navegava contra a corrente que insistia em aterrá-lo. A sensação lembrava a de um náufrago, faltava ar.