Limana:
a biblioteca do Lima1
Se eu pudesse […] se me fosse dado ter o dom completo de escritor, eu havia de ser assim um Rousseau, ao meu jeito, pregando à massa um ideal de vigor, de violência, de força, de coragem calculada, que lhe corrigisse a bondade e a doçura deprimente.
— Lima Barreto, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá2
Ex-líbris de Lima Barreto. O desenho é de Correia Dias e foi datado do ano de 1914.
Em sua casa, no subúrbio tranquilo de Todos os Santos, Lima mantinha uma generosa biblioteca, motivo de muitos comentários no bairro. Para a vizinhança curiosa, que passava na calçada e podia observar o interior do aposento, devia parecer estranho aquele amontoado de prateleiras cobertas por inúmeros livros, revistas e manuscritos.
A biblioteca funcionava como quarto e escritório do escritor e, de tão frequentada por seu proprietário, ganhou nome e intimidade. Era a Limana, de “Lima” e de “mana”: espécie de irmã, em termos carinhosos. Ele se referia ao recinto como a uma amiga e, nos momentos em que permanecia em casa, praticamente morava por lá. Não gostava de sua residência, sobretudo por conta do comportamento cada vez mais “aluado” e dos uivos do pai. No Diário, Lima adverte seu hipotético leitor: “Se essas notas forem algum dia lidas, o que eu não espero, há de ser difícil explicar esse sentimento doloroso que eu tenho de minha casa, do desacordo profundo entre mim e ela”. O abismo entre ele e os irmãos aumentava. Era até próximo de Evangelina, porém dos irmãos Carlindo, detetive de carreira e guarda-civil, e Eliézer, funcionário da Central do Brasil, parecia a cada dia mais distante. “Entre eu e eles”, dizia, “há tanta dessemelhança, tanta cisão, que eu não sei como adaptar-me.” Tampouco se adaptava à vizinhança, que achava aborrecida. Por isso, seu refúgio, quando não estava no centro do Rio, ia mais e mais se resumindo àquele local isolado, quieto, por vezes empoeirado, mas onde podia usufruir da companhia dos livros.
Lima aludia à sua própria biblioteca, como se para homenageá-la, ao descrever aquela de seu mais famoso personagem, Policarpo Quaresma. “O major entrou para um aposento próximo, enquanto sua irmã seguia em direitura ao interior da casa. Quaresma despiu-se, lavou-se, enfiou a roupa de casa, veio para a biblioteca, sentou-se a uma cadeira de balanço, descansando. Estava num aposento vasto, com janelas para uma rua lateral, e todo ele era formado de estantes de ferro. Havia perto de dez, com quatro prateleiras, fora as pequenas com os livros de maior tomo.”3 O ambiente lembra muito a Limana, cuidadosamente descrita pelo escritor num documento datado de 1917, em que ele relaciona seus livros, estante por estante, prateleira por prateleira. Mas as coincidências não se restringem às prateleiras da biblioteca. Até parece que Quaresma era “dono” dos livros de Lima: “Quem examinasse vagarosamente aquela grande coleção de livros havia de espantar-se ao perceber o espírito que presidia a sua reunião. Na ficção, havia unicamente autores nacionais ou tidos como tais: o Bento Teixeira, da Prosopopeia; o Gregório de Matos, o Basílio da Gama, o Santa Rita Durão, o José de Alencar (todo), o Macedo, o Gonçalves Dias (todo), além de muitos outros […]. De História do Brasil […] os cronistas, Gabriel Soares, Gândavo; e Rocha Pita, Frei Vicente do Salvador, Armitage, Aires do Casal, Pereira da Silva, Handelmann (Geschichte von Brasilien), Melo Morais, Capistrano de Abreu, Southey, Varnhagen, além de outros mais raros ou menos célebres. Então no tocante a viagens e explorações, que riqueza! Lá estavam Hans Staden, o Jean de Léry, o Saint-Hilaire, o Martius, o príncipe de Neuwied, o John Mawe, o Von Eschwege, o Agassiz, Couto de Magalhães e se se encontravam também Darwin, Freycinet, Cook, Bougainville e até o famoso Pigafetta, cronista da viagem de Magalhães, é porque todos estes últimos viajantes tocavam no Brasil, resumida ou amplamente. Além destes, havia livros subsidiários: dicionários, manuais, enciclopédias, compêndios, em vários idiomas”.4
As bibliotecas de Quaresma e de Lima parecem uma só, e isso não é fruto de mera coincidência. As obras discriminadas em Triste fim faziam parte da coleção privada do escritor, e vice-versa. Na verdade, sua bibliografia de predileção, depositada nas prateleiras da Limana, era mencionada constantemente em seus romances e nas crônicas de jornal. Neles, não raro o autor se vangloriava de sua boa formação, tal qual Quaresma: “Sentado na cadeira de balanço, bem ao centro de sua biblioteca, o major abriu um livro e pôs-se a lê-lo à espera do conviva. Era o velho Rocha Pita, o entusiástico e gongórico Rocha Pita da História da América Portuguesa”.5
Por vezes, incomodado por algum vizinho ou familiar, Quaresma interrompia a leitura, mas logo retornava a ela: “Após uma hora ou menos, voltava à biblioteca e mergulhava nas revistas do Instituto Histórico, no Fernão Cardim, nas cartas de Nóbrega, nos anais da Biblioteca, no Von den Stein e tomava notas sobre notas, guardando-as numa pequena pasta ao lado”.6 Os vizinhos do personagem, tal como os de Lima, estranhavam esse santuário feito de livros. Basta tomar novos trechos do romance para ter certeza: “Aquele Quaresma podia estar bem, mas foi meter-se com livros… É isto! Eu, há bem quarenta anos, que não pego em livro”,7 diz o general Albernaz em conversa com o menestrel Ricardo Coração dos Outros.
Outras bibliotecas existiam na obra de Lima, no entanto nenhum de seus “donos” guardava tal afeição por elas ou desse modo com elas se identificava. O marido de Olga, afilhada de Quaresma, por exemplo, até comprava seus volumes, mas não os consumia como o protagonista do livro. O herói transformou a “sala da frente do alto porão” em biblioteca, cujas paredes eram “forradas de estantes que gemiam ao peso dos grandes tratados”. Ia para lá à noite, quando “o sono não tardava a vir ao fim da quinta página… Isso era o diabo!”.
Não há como esquecer, também, da biblioteca de Meneses, em Clara dos Anjos: “Fizera uma pequena biblioteca de engenharia mecânica […]. Dessa biblioteca, nunca se separou; e, conquanto já bebesse, com o tempo, os desgostos e a miséria atraíram-no mais para o álcool, e o furor de beber o tomou inteiramente. A toda hora, naquele casebre dos subúrbios, onde morava com a irmã e o palerma do sobrinho, ele esperava, adivinhava, construía uma catástrofe que lhe devia cair sobre os ombros; e essa visão de uma próxima catástrofe na sua vida entibiava-lhe o ânimo, descoroçoava-o e pedia-lhe para afastar — a bebida”.8
Bebida e livros, ou o contrário, eram os principais vícios do escritor. Do primeiro ele não se orgulhava; do segundo, sim, e muito. Tanto é verdade que investiu na criação de seu próprio ex-líbris, encomendado a um bom desenhista. Correia Dias era um artista recém-chegado ao Rio, mas já bastante reconhecido nos meios em que Lima circulava. Português de nascimento, atuava como ilustrador, cenógrafo, escultor, quadrinista, gravurista de jornais e artista gráfico. Dias alcançou tamanho sucesso em seu país de origem que chegou a manter uma espécie de página publicitária para oferecer seus serviços: caricaturas, ilustração, vitrais, cerâmicas, pirogravura, marcenaria. Na época em que resolveu mudar para o Brasil, fazia parte de um grupo modernista em Coimbra que propunha a ruptura radical com o naturalismo. A cena era de grande efervescência cultural, e os artistas daquele meio estampavam suas gravuras na capa dos mais importantes jornais locais. A proeminência de Correia lhe valeu o posto de diretor artístico da revista O Gorro, considerada um marco na história da arte em Portugal. Chegou à América em 1914, trazendo na bagagem uma boa centena de trabalhos acumulados para expor e vender.9 Sua fama cruzou o oceano junto com ele, e isso o levou a ser recepcionado por escritores e intelectuais, que começaram a introduzir sua arte nos principais jornais e revistas do Rio, entre eles A Manhã, A Epoca e o Diario de Noticias. No ano de 1922, o artista conheceu Cecília Meireles e com ela se casou. O enlace virou, inclusive, tema de notícias e de muita fofoca social. Correia Dias, entretanto, passou a manifestar os primeiros sinais de depressão e foi diagnosticado com neurastenia — a mesma doença do pai de Lima, que seria mais tarde atribuída igualmente ao filho.
O escritor há de ter entrado em contato com Dias quando da chegada deste ao Brasil, uma vez que o seu ex-líbris é de 1914 e contém uma referência ao local de produção — Rio — logo abaixo do desenho. Ao que tudo indica, trabalharam no mesmo período no jornal A Epoca e, nesse contexto intelectual, quem sabe se identificaram na crítica que ambos professavam ao naturalismo. Por fim, é provável que tenham frequentado os mesmos circuitos sociais, mais conectados às novas tendências literárias e artísticas do momento.
O ex-líbris de Lima traz, em estilo art nouveau, um corpo de leão com motivos egípcios a adorná-lo, tal qual uma esfinge alada. A imagem faz referência ao enigma da esfinge, que tanto combina com Lima e sua vida. “Na estrada de Tebas, Édipo encontrou a Esfinge, que lhe propôs um enigma tremendo. Se o não decifrasse, seria devorado como os outros. Decifrou-o, e foi o mais desgraçado dos homens…”.10 Na mitologia grega, a Esfinge foi a criatura enviada para, entre outras atribuições, punir o povo de Tebas, que desagradara aos deuses. Por isso, nada lhes mudaria o destino de viver desgraçados pelo mundo.11 Dias inspirou-se também na convenção egípcia, ao introduzir uma cabeça humana (coberta com o nemes), e com isso agregou à imagem o valor da sabedoria.12
Não há como saber se Correia Dias conhecia profundamente os “enigmas” de Lima. O importante é que caprichou na alegoria, introduzindo asas que lembram motivos da Antiguidade. O desenho não parece finalizado; é antes um rascunho reconhecível nos traços pouco precisos, e tem no alto a palavra “Amplius!” — “Mais”, em latim. O texto que abria os trabalhos da Floreal foi incorporado como introdução à coletânea de contos do escritor — Histórias esonhos, de 1920. Aliás, Lima aparentemente guardava especial apreço por esse tipo de documento de geração, no qual defendia a entrada de novos gêneros na literatura nacional. Por isso mesmo, pode ter comentado com o artista português não só o termo latino como as projeções que gostaria de ver impressas no seu ex-líbris. E nada como vincular o “desenho” que definia a Limana a seu texto “Amplius!”.13 Era nele que o autor procurava explicar, não sem pretensão, o que julgava serem as novas regras do jogo da literatura. Propunha também o fim dos formalismos, o tributo à oralidade e uma literatura de cunho social; sempre por contraposição ao que chamava de vogas esteticistas e “academicistas” do seu período. Conforme sintetizou o crítico Antonio Candido, ao definir as principais tendências literárias de tal contexto, essa seria “uma literatura satisfeita, sem angústia formal, sem rebelião nem abismos. Sua única mágoa é não parecer de todo europeia; seu esforço mais tenaz é conseguir pela cópia o equilíbrio e a harmonia […]. É o que se poderia chamar naturalismo acadêmico, fascinado pelo classicismo greco-latino…”.14
Antonio Arnoni Prado também ressalta o caráter militante da literatura de Lima, destacando outro texto de perfil semelhante. Trata-se de “Os samoiedas”, que saiu em Os bruzundangas, quando o escritor decretou guerra ao que chamava de apatia intelectual dos literatos da Livraria Garnier. Na opinião de Lima, a geração que o precedeu cultivava, pois, regras fúteis, pautadas “nas aparências, na falsa vocação literária, na ausência de originalidade, na sede de glória, na mediocridade de concepção, na linguagem empolada e delambida e no apego excessivo às normas”.15
Já Alfredo Bosi situa a literatura de Lima no período que ficou conhecido, a posteriori, como pré-modernismo. A caracterização fora criada por Tristão de Ataíde16 para designar o período brasileiro que vai do princípio do século XX até a Semana de Arte Moderna. Mas, se escritores como Coelho Neto e Afrânio Peixoto foram pré-modernistas apenas no sentido cronológico, pois segundo um critério estético mais rigoroso seriam antes antimodernistas, remanescentes de uma “cultura realista parnasiana”; Lima se situaria em “nível mais alto e mais próximo da renovação modernista”. Nesse sentido, teria ficado no meio, e “entre” gerações, e por isso mereceu o prefixo “pré-” apenas por uma conotação temporal e de anterioridade.17 Mas a própria caracterização de “pré-modernismo” não passaria no escrutínio de novas gerações. Flora Süssekind, por exemplo, chama a atenção para como o período ficou em geral associado a uma simples “diluição das tendências estéticas anteriores”, ou “como prefiguração de um modernismo vindouro”. E acrescenta ela: “é como se só fosse possível compreendê-la, neste período, como pré ou pós alguma coisa. Enquanto vampirização diluidora de marcas e estilos anteriores ou ‘embrião’ de traços modernistas futuros”.18
Seja lá o ângulo literário que se for selecionar, o contraste com o ex-líbris da Limana é evidente. Apesar de incluir o famoso dístico — “Amplius!” —, e de introduzir um estilo art nouveau, o desenho de Correia Dias não lembra o tom combativo da literatura preconizada pelo escritor. Aliás, a referência é à mesma voga da Antiguidade que Lima tanto gostava de ironizar.19 De toda maneira, encomenda é encomenda, e o ex-líbris sinaliza, ao menos, o desvelo que o amanuense guardava para com o seu acervo. Ele era sua esfinge.
Aliás, o orgulho que manifestava diante de sua biblioteca talvez explique a motivação para, durante o ano de 1917, relacionar, pessoalmente, os títulos que dela faziam parte. Assinou a relação como Afonso Henriques de Lima Barreto e discriminou os volumes com a seguinte anotação de próprio punho: “Inventário. Este livro é destinado a inventariar as obras existentes na minha pequena biblioteca. O catálogo farei depois, por intermédio dele. Rio de Janeiro, neste lugar de Todos os Santos, em primeiro de setembro de mil novecentos e dezessete”. E ainda acrescentou uma N. B. (uma nota biográfica ou bibliográfica), atestando: “A coleção chama-se ‘Limana’”.20
Sua alta estima pela coleção fica, também, flagrante no inventário que realizou, dividindo-a por estantes (quatro) e prateleiras (cinco na primeira e na quarta estante, quatro na segunda e duas na terceira). Separou ainda as obras impressas — os livros “em cima das estantes e das mesas” — dos “manuscritos e originais”. No total, o escritor contabilizou oitocentas peças.21
Como Quaresma, Lima vangloriava-se de suas obras mais gerais — livros de historiadores brasileiros, de viajantes, os dicionários e as gramáticas. Próximos dessa prateleira, que lhe devia servir para a consulta cotidiana, ficavam o exemplar de Cours delittérature française, de Charles André, sempre referido por ele, e As grandes invenções, de Louis Figuier, presente que ganhou de d. Teresa Pimentel do Amaral como prêmio de aplicação nos tempos da escola primária. Aí se juntam, pois, dois critérios: afeto e uso. Os primeiros livros eram “pau para toda obra”, e o escritor os acionava invariavelmente, quando trabalhava em romances e também em crônicas e reportagens. Já o segundo era o livro da meninice, que ali ganhava lugar de troféu.
Bem perto de sua escrivaninha restavam, ainda, os exemplares de Balzac e Le Bovarysme, de Jules de Gaultier, bem como exemplares da finada revista Floreal: nesse caso, mais exatamente na primeira prateleira da quarta estante. Essas eram as obras que permaneciam, respectivamente, na segunda e na quarta estante, ao alcance das mãos. Proximidade era ali sinônimo de predileção e carinho.
Os livros que compõem a Limana em 1917 não parecem estar dispostos em ordem cronológica, temática ou pelo nome ou sobrenome de seus autores. Apenas os “manuscritos e originais” — obras de Lima, e sempre com suas devidas anotações — foram organizados por autoria. Lá estavam Clara dos Anjos, em cujo manuscrito ele acrescentou a anotação “romance meu (inédito e incompleto). 1904”; Recordações do escrivão Isaías Caminha, “romance meu (publicado em 1909, a 1a edição; em 1917, a 2a ed.)”; Policarpo Quaresma, “romance meu (publicado no Jornal do Commercio, ed. da tarde, 1911; e em livro, 1916)”; Numa e a ninfa, “romance meu (publicado em A Noite, em 1915; e em fascículos, em 1917)”; e mais: “V Originais Publicados; VI Originais a Aproveitar; VII Papéis vários; VIII Originais a Organizar; IX Originais a Aproveitar; X Numa e a ninfa (em provas revistas)”.
O escritor organizava seus próprios textos em cadernos especiais, que continham a etiqueta “Retalhos de jornal”. A eles juntava artigos diversos com recortes das publicações estrangeiras que assinava. Nesses escritos, inclusive, é clara a preocupação de colecionar tudo que fosse publicado sobre a questão racial.22 Por exemplo: um dos artigos arquivados intitulava-se “Questão das raças nos Estados Unidos”, e saíra no Jornal do Commercio de 23 de junho de 1905. Outro, do Figaro, tinha por título “L’École Normale des nègres”. Um terceiro tratava de um manual, o Histoire de la littérature grecque, de Alfred e Maurice Croiset. Lima com certeza gostou do que leu, tanto que adquiriu a obra, que faz parte da Limana sob o número 215, bem como recortou um esquema de termos relacionados à cor negra na Antiguidade.
Mas esse não é o tema exclusivo dos “Recortes” de Lima. Ali ele reuniu artigos sobre violência cometida contra mulheres, crônicas acerca da cidade do Rio e resenhas que tratavam das obras de sua autoria. Por fim, lá estão seus cadernos de anotações e toda a correspondência pessoal — aliás, não se tem notícia de que tenha deixado sem resposta uma carta sequer. Como se vê, o escritor, à sua maneira, cuidava da própria memória; se não era premonição, sem dúvida significava zelo com sua carreira na literatura.
Lima conservou também vários jornais e revistas de sua predileção. A Fon-Fon de 1907 (em que ele acrescentou “onde está a minha colaboração”) foi encadernada em um volume. Já a Revue Philosophique, a Revue de Paris e a Revue des Deux Mondes foram classificadas em lotes. As publicações anarquistas: La Flamme, Na Barricada, A Vida, ficavam juntas num dos “amarrados” da coleção.23 O amanuense guardou igualmente, na quarta prateleira da segunda estante, o Manual do aprendiz compositor, de Jules Claye, traduzido e editado por João Henriques. O volume devia lembrar a Lima um pai ainda ativo, empreendedor, com muitos sonhos, e diferente daquele que então se encontrava recluso, isolado pela loucura.
Na Limana, os idiomas da maior parte das obras são o português e o francês. Podem ser encontrados apenas poucos livros em italiano ou espanhol. Mas fica evidente que seu proprietário dominava a língua de Rousseau. Além dele, outros clássicos franceses dividiam espaço naquele recinto, como Rabelais, Diderot, Voltaire, Victor Hugo, Chateaubriand, La Fontaine, Flaubert, Balzac e Anatole France, cujo modelo literário (e combativo politicamente) era, com frequência, evocado por Lima. Ali havia ainda volumes de Cervantes, Dante, Schopenhauer, Nietzsche, Camões, Shakespeare e Eça de Queirós, de quem o escritor se dizia seguidor. Seu apreço aos russos está também representado pelos livros de Dostoiévski, Tchékhov, Turguêniev e Tolstói. Essa era a “galeria íntima” de Lima, os nomes que declinava como “seus”. Era neles que se espelhava, e a “boa” localização de sua coleção nas prateleiras funcionava como sinalizador forte das suas preferências.
A biblioteca contava também com um vasto acervo das obras de teóricos do determinismo racial, filosofia que, como temos destacado, o autor condenava. Lá estava uma seleta do pensamento racial da época, e Lima parecia acreditar que era preciso “conhecer” para melhor “combater”. Por isso guardava volumes de G. Le Bon, Haeckel, Buckle, Topinard, Gobineau, Morel, e Théodule Ribot,24 autor de L’Hérédité psychologique, tema que preocupava muito o escritor. Obras de divulgação de Darwin, Névrose, Morel, Determinismo y responsabilidad, Hamon, e Le Préjugé des races, de J. Finot, também faziam parte do acervo.
Uma vez que o autor de Policarpo Quaresma se mantinha informado acerca das teorias que desprezava, não parece ocasional o fato de ele preservar textos de João Batista de Lacerda (1846-1915), diretor do Museu Nacional por longo tempo e um dos mais conhecidos teóricos brasileiros a defender a tese do necessário branqueamento da nação. Havia na Limana um livro dele intitulado Fastos do Museu Nacional e uma réplica do polêmico discurso “Sur Les Métis au Brésil” (Sobre os mestiços do Brasil), que o cientista proferiu no Congresso Universal de Raças.
Trecho de um recorte encontrado na Limana e que se refere à “divisão racial” encontrada entre os povos de origem africana.
É curioso notar que Lima teve o cuidado de manter o folheto em sua coleção. Esse foi o documento oficial apresentado pelo governo brasileiro; único país da América do Sul convidado a participar, entre 26 e 29 de julho de 1911, do encontro internacional realizado em Londres. O cientista fora financiado pelo então presidente, o marechal Hermes da Fonseca, e contara com o apoio científico de seu assistente no Museu Nacional — o então jovem antropólogo Roquette-Pinto.25 João Batista de Lacerda se formara em medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro e era autor de pesquisas na área de fisiologia e microbiologia. No Museu Nacional, fora chefe do Laboratório de Fisiologia Experimental e subdiretor da Seção de Antropologia, Zoologia e Etnografia. Atuou também como diretor dessa instituição, além de ter sido presidente da Academia Nacional de Medicina. Lacerda era, pois, a pessoa certa no lugar certo. Afinal, combinava diversas especialidades e, ademais, abordava com suas teorias as “potencialidades e limites” de uma “nação de raças mistas”, como o Brasil.
E no convite do certame científico já ficavam claros os propósitos eurocêntricos do congresso: “Os brancos, cuja consciência desperta com a ideia do dever, convidam os negros e os amarelos, seus irmãos, a estreitar mais liames de amizade”. Além das palestras específicas dadas pelos diferentes representantes de cada país convidado, ocorreram durante o encontro várias apresentações de temas considerados “candentes”, como “O problema da raça negra nos Estados Unidos”, “A posição mundial do negro e do negroide”, “O destino da raça judaica”, “A consciência moderna e os povos dependentes” e “As raças sob o ponto de vista sociológico”. Como se vê, apesar de o século XX já ter começado fazia certo tempo, os modelos continuavam a dever bastante às teorias deterministas do XIX, as quais defendiam a ideia de que as raças eram fenômenos ontológicos e finais. É nesse sentido que a participação do Brasil no congresso chamou muita atenção. Afinal, ainda naquele momento, o país era conhecido como um “laboratório racial”; o mais acabado retrato do “cruzamento extremado de raças”; um exemplo de “degeneração” obtida pelo “efeito perverso” da mistura.
João Batista de Lacerda e seus colegas de geração conheciam de perto os métodos da antropologia física e moviam-se no espaço demarcado pelas teorias do darwinismo social, que condenavam a mestiçagem. Segundo eles, se era possível “prever do que cada raça seria capaz”, já os resultados do cruzamento racial permaneciam como incógnitas. Além do mais, nesse período imperava o pan-americanismo de Bolívar, agora combinado com a Doutrina Monroe (o “monroísmo”, nos termos de Lacerda), que implicava imaginar um modelo único para todo o continente americano. O padrão era dado pelo Estado norte-americano, e o delegado faria força para distanciar-se do que chamava de a “anarquia” das demais repúblicas latino-americanas. Por isso mesmo, caprichou na tese da “paz reinante no Brasil” e no argumento da distância que o país mantinha de seus vizinhos. Mas era necessário defender o mais difícil: de acordo com Lacerda, a mestiçagem brasileira seria (apenas) transitória e benéfica, não deixando no futuro rastros ou pistas. E mais: era preciso demonstrar como nos portávamos de maneira diversa, até em relação aos Estados Unidos. Se por lá grassara um sistema escravocrata violento, no Brasil o processo teria sido mais “pacífico”. Por fim, o diretor do Museu Nacional argumentava que, enquanto na América do Norte vigia uma ampla gama de preconceitos, por aqui a característica marcante seria a ausência de padrões de exclusão. Como se vê, bem no começo do século, Lacerda defendia uma espécie de “melting pot tupiniquim”, diferenciado do resto do mundo; se não plantado no presente, ao menos projetado para o futuro.
De problema, o cruzamento racial convertia-se em solução, e o enviado oficial apostava num tipo de mestiçagem redentora, lograda a partir de algumas políticas públicas concernentes à imigração. Acreditava também nas certezas da ciência e na “seleção dos mais fortes”. A tese era abusada: em um século, e após três gerações, seríamos brancos. Lacerda havia chegado a tal conclusão com base nos dados do colega Edgar Roquette-Pinto, que por sua vez trabalhara com as estatísticas oficiais de 1872 e 1890. Segundo o antropólogo, os dados oficiais mostravam que a população negra e indígena vinha declinando e que o embranquecimento da população era “fato cientificamente observado”.26
Lacerda escrevia como “profeta” para seu tempo, e pode-se imaginar a contrariedade de Lima diante disso. O escritor se declarava, com frequência, hostil aos Estados Unidos por causa da discriminação aos “irmãos de cor” por lá praticada, assim como desdenhava do “imperialismo cultural” dos gringos. Não obstante, mantinha um exemplar da brochura em sua biblioteca. Resta lembrar um detalhe da publicação. Não foi por mero acaso, ou apenas para “ilustrar” seu artigo, que na abertura o cientista incluiu a tela A redenção de Cam, do pintor acadêmico espanhol Modesto Brocos (1852-1936). O trabalho do artista havia sido concluído em 1895; portanto, alguns anos antes do texto de Lacerda. Mas este deve ter pinçado a tela, pois pretendia, por meio dela, mostrar o processo “depurador” que ocorreria no Brasil. A legenda da obra não deixa dúvidas: “O negro passando a branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças”.
O cientista traduzia a pintura em termos próprios, conferindo-lhe uma interpretação darwinista racial. Além disso, imprimia-lhe uma noção de evolução de mão única: se a avó era “preta retinta”, a mãe já trazia traços “suavizados”, enquanto o filho, localizado no centro da composição, e fruto do casamento com um branco (possivelmente português), tinha a aparência de um europeu com seus cabelos lisos e a pele clara. A pintura trazia, ainda, uma alusão ao episódio bíblico que dá título à obra; aquele em que Noé, ao dividir o território entre seus filhos, cinde também a humanidade. No caso, porém, o processo evolutivo, “cientificamente confirmado”, redimiria a máxima bíblica: esse seria o destino (certo) do Brasil.
Mas a pintura permite uma leitura adicional, quem sabe um pouco “menos científica”. Num contexto marcado pelo catolicismo popular, uma representação como essa poderia ganhar um tom milagreiro. A velha avó, uma afrodescendente, olha para os céus e, num gesto milenarmente expresso por suas mãos, parece agradecer pela graça divina recebida. Mãe e pai, orgulhosos, observam o filho, o qual, disposto bem no centro da cena, lembra Cristo na manjedoura. Enfim, o que a ciência não resolvia, solucionava-se pela crendice.27
A conclusão do ensaio de Lacerda era insofismável: em três gerações o país ofereceria um exemplo ao mundo e já não contaria com “negros” em sua população. Não por acaso começavam a ganhar força, naquele exato momento, teorias de branqueamento que previam estar reservado ao Brasil um futuro “branco” e assim “civilizado”; compatível com os projetos de urbanização dos tempos de Hermes da Fonseca. Essa era a versão oficial, uma saída quase “laboratorial”, que levaria ao clareamento controlado da população.
Enfim, se Lima devia compartilhar das suspeitas de Lacerda no que se referia ao imperialismo norte-americano, quanto às posições relativas à mestiçagem discordava, e profundamente. Afinal, nessa altura já virara uma voz pública contra a política do apartheid que vigorava no Sul dos Estados Unidos e contra os modelos de segregação praticados naquela nação. Em seu Diário era de maneira forte que ele se manifestava: “Se a feição, o peso, a forma do crânio nada denota quanto à inteligência e vigor mental entre indivíduos da raça branca, por que excomungará o negro?”.28
A redenção de Cam, de Modesto Brocos, 1895.
Assim, ao mesmo tempo que Lima divergia dessas teorias, que tinham grande impacto na opinião pública e em sua própria vida, sentia-se obrigado a prestar atenção nelas. Aliás, esses não eram os únicos livros contrários às suas convicções que ele conservava em sua coleção privada. Reservou espaço para pensadores positivistas estrangeiros e nacionais — desde Auguste Comte até Teófilo Braga —, os quais, não poucas vezes, acusou de serem cultores de doutrinas artificiais, num caso, e importadas, no outro. Esse tipo de julgamento negativo vinha já dos tempos da Politécnica, mas nem por isso o escritor se desfez de tais obras.
O forte da Limana, no entanto, eram os livros de autores que seu proprietário efetivamente estimava. Por exemplo, os adeptos do anarquismo, doutrina que, como teremos oportunidade de avaliar, foi crescentemente adotada por Lima. Na coleção constam as obras Filosofia del anarquismo e Socialismo y anarquismo, e ainda um guia geral, Oanarquismo, de autoria de Paulo Eltzbacher, considerado um grande teórico da tradição e bolchevique ativo. A literatura realista, que o escritor tanto apreciava, tinha, como esperado, presença forte na biblioteca. Nela constam vários títulos de Balzac, alguns de Zola, outros de Flaubert, a maior parte em português, os demais em francês.
A biblioteca era também bem servida de livros sobre a Grécia, a Antiguidade, e, ainda mais, sobre a África Negra, histórias de um continente que o ex-diretor da Floreal, desde seus primeiros registros no Diário, gostava de acompanhar e nas quais buscava uma forma própria de reconstruir seu passado.
O amanuense parecia investir menos nas publicações de escritores brasileiros, ou se dava por satisfeito de segui-las, quem sabe, nas consultas que fazia à Biblioteca Nacional. Tinha romances de Raul Pompeia, como O Ateneu; obras de Cláudio Manuel da Costa; o recém-lançado D. João VI no Brasil, de Oliveira Lima; O abolicionismo, de Joaquim Nabuco; Urupês e Negrinha, de Monteiro Lobato. Entre seus livros nacionais estavam ainda os de Machado de Assis, de quem ele anotou possuir três: Memórias póstumas deBrás Cubas, Quincas Borba e Esaú e Jacó, e um de autoria do dr. Luís Ribeiro do Vale, com o título Psicologia mórbida na obra de Machado de Assis. Mais uma vez, percebe-se que a biblioteca tinha cara e jeito de seu dono. Sobre Machado de Assis, por exemplo, Lima mantinha juízos bastante ambivalentes: apreciava muito a obra do Bruxo do Cosme Velho, mas seu projeto de carreira, como veremos, nem tanto.
Lima e Machado: guerra e paz29
Não é de hoje que se trava um verdadeiro Fla-Flu toda vez que se intenta traçar comparações entre as obras de Lima Barreto e as de Machado de Assis. Apesar de Machado30 ter falecido quando Lima apenas despontava na carreira literária, e a despeito de não existirem registros de contato direto entre os dois, a crítica nacional, desde a estreia do escritor de Todos os Santos na literatura, tentou opor, e de maneira crescente, o autor de Memórias póstumas ao de Triste fim.
Se não é o caso de fazer aqui uma análise estritamente literária, é importante explorar essa feição bastante reveladora da vida de Lima (e não de Machado, é claro); ou seja, perceber como ele se construiu, de certo modo, a partir das leituras e das posições que assumiu diante do presidente da Academia. A intenção não é, portanto, analisar a obra de Machado usando como régua e compasso as opiniões de Lima. Ao contrário, nosso objetivo restringe-se a esmiuçar as ideias deste último, agora destacando a posição ambivalente por ele formada em relação ao escritor que virava modelo consensual no panorama literário de sua época.
Não foram poucos os momentos em que o escritor de Policarpo Quaresma se posicionou sobre o autor de Quincas Borba. Neles, por vezes, remetia-se ao fundador da ABL de maneira explícita; noutras, de forma indireta. Restaram ainda alguns comentários de Lima aos amigos — em cartas e artigos. Isso sem esquecer a crítica literária coetânea ou imediatamente posterior à sua morte, em 1922, que tratou de exacerbar as diferenças existentes entre os dois escritores.
Ambiguidade, como temos visto, é prática recorrente na vida e na obra de Lima, que sempre adotava uma postura um pouco escorregadia quando se tratava de descrever a carreira, os amigos, os vizinhos, a intelectualidade e os jornalistas. E o mesmo se deu com relação a Machado de Assis. Apesar de ter alguns livros deste em sua biblioteca, nos artigos e nas conversas com os amigos a impressão que o escritor de Todos os Santos passava era diferente: ao contrário da suposta harmonia, a paz parecia “armada”. Estratégia, aliás, típica do criador de Isaías, que se construía na base “do contra” mas deixava nas entrelinhas sua real intenção de participar daquela República das Letras e nela se inserir. Nesse sentido, a oposição a Machado surge como uma atitude necessária para alguém que, longe das instituições oficiais, tentava imaginar projetos de inserção literária. Fosse em função de sua situação de classe, por conta da sua cor, ou por causa da literatura militante que professava, o fato é que ele parecia entender-se como “outro”, ainda mais quando comparado a Machado.
Sabemos que o autor de Quincas Borba também tinha uma “origem diferente” nessa política de eufemismos tão própria da retórica das elites brasileiras. Seus dois avós eram afrodescendentes, e ele provinha de uma família ainda mais remediada que a de Lima. Nasceu no morro do Livramento, ficou órfão na infância, sua educação foi considerada muito irregular, tendo sido aluno de escolas de qualidade inferior à das que o criador de Policarpo frequentou. Até por isso, só pôde superar suas deficiências na base da formação autodidata. Vale lembrar, ainda, que Machado trabalhou desde a adolescência como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, de onde passou à redação do Diário Oficial, inventando-se como cronista, atividade que desenvolveu em vários jornais e durante toda a sua trajetória de escritor. Já adulto, e tal qual Lima, foi funcionário público, mas, diferentemente dele, subiu na hierarquia do Estado.
É evidente que diferenças internas existiam em todos os estratos sociais, e elas estavam presentes na situação que ambos os escritores experimentaram na infância e na formação escolar. Aliás, tais diferenças acabavam por guardar e reproduzir desigualdades, inclusive de status. Machado trabalhou desde pequeno para seu sustento e da família, cujos membros — o pai e a mãe, morta prematuramente, e depois a madrasta — desempenhavam profissões e tinham ocupações manuais extremamente modestas. Já a infância e a juventude de Lima poderiam ser definidas como mais seguras e estáveis, sobretudo se comparadas à de Machado. Ele recebeu educação formal regular, não precisou trabalhar quando criança, e seus pais alcançaram posições profissionais muito bem-sucedidas — o pai foi tipógrafo e a mãe, professora, chegando a ser proprietária de um pequeno colégio para moças. Mas de alguma forma o destino de cada um deles parece ligado às diversas perspectivas abertas às populações afro-brasileiras que viveram nos tempos do Império e da Primeira República. Pois é no novo regime que o conceito de raça passa a delimitar e criar hierarquias sociais rígidas e deterministas. Uma coisa era “ser negro” no Segundo Reinado, regime que, de certa maneira, buscou invisibilizar tal distinção — bem guardada pela vigência “segura” do sistema escravocrata. Outra era advogar tal condição na República, que, junto com o sistema de classes, incluiu outros marcadores de diferença, como raça e cor. Talvez esses dados contextuais e a mudança na situação social e cultural verificada nas histórias de vida desses grupos no período da República ajudem a entender por que, com um início tão promissor, os Lima Barreto conheceram um “triste fim”. E por que, com uma origem tão mais modesta, portanto uma socialização tão mais precária, Machado conseguiu galgar postos durante o Império, embora sua ascensão tenha sido mais de status que de classe. Afinal, ele morreu funcionário público e pagando aluguel.31
Tampouco é correto alardear que Machado não se referiu à escravidão, e muito menos que foi favorável ao sistema. Ao contrário, se não existem na obra do presidente da ABL protagonistas definidos como “negros”, e se ele também nunca assumiu publicamente uma posição abolicionista ou foi adepto de uma literatura mais nitidamente vinculada a uma causa política direta, todas as vezes que circundou o tema — em seus romances, crônicas, peças de teatro, poemas, contos e documentos que produziu como funcionário público — se revelou crítico à instituição. Usou, em primeiro lugar, de dissimulação e de discursos indiretos, e com frequência da inversão de valores, para tratar do assunto. Utilizou-se ainda do recurso da ironia fina para abordar essa agenda que tomava os últimos anos do Império mas permaneceria vigente nos anos pós-abolição. Além do mais, de forma reiterada, e pelos detalhes, em diversas ocasiões — e sem o emprego da alegoria direta — ele retomava tais questões espinhosas que agitavam a sociedade brasileira. Nessa mesma direção, o crítico literário John Gledson mostrou como os dramas dos escravizados e suas batalhas apareciam numa série de colunas de Machado e por detrás dos seus vários pseudônimos: João das Regras, Lélio, Malvólio, e até Policarpo. Assim, se o escritor nunca foi panfletário, pois esse não era seu estilo, jamais deixou de expor as mazelas que envolviam o sistema.32
O crítico Eduardo de Assis Duarte, que faz amplo levantamento acerca do material presente na obra do Bruxo do Cosme Velho, explica o que seriam essas suas estratégias de “caramujo”. O termo viria do próprio Machado, que, em crônica de 1893, quando se reportava justamente à festa do Treze de Maio de 1888, declara ter entrado “no préstito, em carruagem aberta”, e que esse fora “o único dia de delírio público” que lembrava de ter visto. E assim se define: “Eu, o mais encolhido dos caramujos”.33
Dentre os inúmeros textos e documentos levantados por Duarte, algumas repetições se destacam. A censura à falsa filantropia é uma delas. No seu “História de quinze dias”, Machado conta o “ato do benfeitor” de um proprietário de uma escrava de 65 anos que “já lhe havia dado a ganhar sete ou oito vezes o custo”. O amigo “fez anos e lembrou-se de libertar a escrava… de graça. De graça! Já isto é gentil. Ora, como só a mão direita soube do caso (a esquerda ignorou-o), travou da pena, molhou-a no tinteiro e escreveu uma notícia singela para os jornais indicando o fato, o nome da preta, o seu nome, o motivo do benefício, e este único comentário: ‘Ações desta merecem todo o louvor das almas bem formadas’. Coisas da mão direita!”.34
Astrojildo Pereira, apoiado em documento de Francisco de Paula Barros, datado de 1888, também sustenta como, na Secretaria da Agricultura, e na condição de funcionário público, o escritor do Cosme Velho teria dado a liberdade a milhares de escravos.35 Já o historiador Sidney Chalhoub comprovou como, dentre os vários pareceres e respostas que emitiu para a burocracia do Estado, Machado realizou uma verdadeira “arena de luta”, fazendo valer a lei de 1871, que dava liberdade aos filhos de escravos — os ingênuos — nascidos a partir de 28 de setembro.36
Machado, funcionário público, defendeu de maneira sistemática o Fundo de Emancipação, bem como censurou a hipocrisia dos políticos e criticou os estereótipos vigentes — como o do escravo vingativo, feiticeiro e deformado, ou o da escrava sensual e abatida moralmente, que não se encaixa no modelo familiar dos senhores. Denunciou, ainda, a exploração sexual a que as escravizadas eram regularmente submetidas. Em seus contos, criou personagens como Elisa, Mariana e Sabina, que se entregavam a seus senhores tornando-se amásias e não tendo nunca relações oficializadas. Elas lembram parentes próximas das personagens femininas de Lima, e até da avó do escritor de Todos os Santos, que criou a família na base do segredo de polichinelo. Nos textos de Machado, a crítica sub-reptícia é tão aguda, que, por vezes, nem ao menos mães elas podem ser. No famoso conto “Pai contra mãe”, publicado em Relíquias da casa velha, vemos como a escravidão vai aparecendo nos intestinos do Império, por meio da figura de Cândido Neves, que vive do trabalho de prender escravos fugidos. Como as ocupações manuais eram consideradas “coisa de preto escravo”, qualquer outra função parecia, aos olhos de tal sociedade, mais digna. Até mesmo essa vil ocupação, a qual levou o personagem do conto a condenar à morte o filho de uma escravizada que ele perseguia. Grávida, de tanto correr tentando escapar das garras do seu algoz, acabou capturada e teve um aborto.37 Já Neves, com a recompensa obtida, conseguiu “libertar” seu próprio filho, que se encontrava na Roda de Enjeitados. Essas são, pois, contradições profundas; relações violentas que o escritor não abre mão de descrever, e assim tomar partido.
A hipocrisia dos políticos e a noção vigente entre os escravocratas — de que a abolição deveria ser gradual, lenta e sem grandes convulsões, de maneira que ao fim da mão de obra escrava se sucedesse, e sem solavancos, a exploração do trabalho no campo pelos mesmos antigos proprietários — são igualmente ironizadas por Machado em seus contos e crônicas. Em 1887, pouco protegido pelo pseudônimo de Malvólio, o escritor constrói um personagem chamado Pai Silvério — certamente uma alusão às figuras de “pretos passivos” consagradas pelo livro norte-americano Acabana do Pai Tomás. Silvério vendia verduras de porta em porta, aliás, como Manuel Cabinda, amigo de Lima. Parte do poema diz: “Meu senhor, eu, entra ano,/ Sai ano, trabalho nisto;/ Há muito senhor humano,/ Mas o meu é nunca visto.// Pancada, quando não vendo,/ Pancada que dói, que arde;/ Se vendo o que ando vendendo,/ Pancada por chegar tarde”.38 Esse é também o caso do escravo Pancrácio, que se torna “livre” pouco antes do Treze de Maio, mas com a condição de continuar na casa de seu senhor. A pretensa liberdade havia de eternizar-se agora num sistema de subassalariamento.39
É possível mostrar ainda, como ensina Roberto Schwarz, que, ao realizar um deslocamento no centro de interesse da sua obra — do escravo para o senhor —, Machado teria elaborado uma fina crítica ao projeto romântico que lhe antecedeu e do qual foi igualmente contemporâneo. Ao se concentrar na elite brasileira, que se movia ao mesmo tempo em dois registros — o mais tradicional e o mais moderno —, o escritor não descurava da questão da escravidão; ao contrário, demonstrava como esse era um ponto nodal e inescapável do sistema. Aí estava, nos termos do intérprete, um “quiproquó das ideias”, a “dissonância […] que ocasionam o saber e a cultura de tipo ‘moderno’ quando postos neste contexto”. Tal processo implicaria também “continuidades sociais mais profundas”, que, na realidade brasileira, produziam a noção de favor que inseria a sociedade toda, dos mais miseráveis aos mais favorecidos.40 Nesse quesito Machado seria mestre, pois entranhou na forma literária as contradições da própria sociedade escravista brasileira.41 Encontravam-se aí seu universalismo e seu brasileirismo; seus personagens, seus enredos, seu estilo, sem dúvida todos muito diferentes, como solução literária, do que conhecemos dos escritos de Lima.42
Mas, se não faltam na obra do Bruxo do Cosme Velho referências negativas à escravidão, além de descrições miúdas e sensíveis, identificando práticas de “caboclos”, “negros” e “libertos”, não há como negar a existência de estilos e estratégias literárias diferentes dos presentes nos livros de Lima. Neste, o ataque é direto; em Machado, por meio da dissimulação que vai como que organizando a narrativa. O que parece indireto e até externo se torna “de dentro”, interno, “numa espécie de acerto de contas com as culpas da classe dominante”.43 Havia também um projeto de inserção social que acabou se mostrando bastante distinto. O Machado que Lima conheceu era aquele que fazia parte integral do sistema de distinção que então se montava, participando ativamente de tais instituições, enquanto Lima, nessa altura, ia se sentindo injustiçado e excluído de certames diante dos quais amargava altas doses de contradição.44
E, nesse jogo complexo, Lima encontrou em Machado sua maior projeção e oposição. E, como não se conhecem comentários do autor de Brás Cubas com relação ao criador de Policarpo Quaresma — o que, em termos temporais, nem ao menos seria possível —, essa é, pois, uma conversa de um lado só, uma cadeira com apenas duas pernas. O autor de Isaías Caminha começou já em 1919 a brincar com a fama do Bruxo do Cosme Velho. Na Revista Contemporânea de 10 de maio ironizou: “Nós todos temos a mania de procurar sempre a verdade muito longe. O caso de Machado de Assis é um deles. Ele e a sua vida, o seu nascimento humilde, a sua falta de títulos, a sua situação de homem de cor, o seu acanhamento, a sua timidez, o conflito e a justaposição de todas essas determinantes condições de meio e de indivíduo, na sua grande inteligência, geraram os disfarces, estranhezas e singularidades do Brás Cubas, sob a atenta vigilância do autor sobre ele mesmo e a sua obra. Penso que um estudo nessa direção explicaria melhor”.
“Uma fatia acadêmica” é o título do artigo que o escritor boêmio publicou na revista A.B.C. de 2 de agosto de 1919.45 O ensaio adquiriu certa importância para ele, tanto que foi incluído na coletânea Feiras e mafuás, cuja organização é do próprio Lima. Terminado em 1922, esse conjunto de ensaios só ganharia edição em 1953, mais de trinta anos depois da morte do escritor.
No texto em questão, ele discorre sobre sua percepção acerca da literatura de Machado, definindo quais seriam as principais diferenças (muito respeitosas, nesse caso) entre eles. Lima buscou, ainda, separar a vida da obra de Machado. Isto é, da mesma forma que discordava dos modelos de ascensão social e de institucionalização da vida literária que para ele o Bruxo representava de maneira exemplar, adotava uma posição diversa com relação à sua obra.
Vale a pena sublinhar que o artigo saiu num periódico conhecido por suas análises políticas e sociais, e foi tido como parte do que então se considerava uma “imprensa alternativa”. Por sinal, A.B.C. transformou-se, após a experiência fracassada da Floreal, na revista com a qual o escritor mais se identificou. Colaborou na publicação até o fim da vida, só tendo suspendido seu trabalho em 1o de fevereiro de 1919, pelo fato de nela se ter divulgado um texto que ele julgou ser “contra a raça negra”.46 Mesmo assim, logo voltou à rotina. O diretor da A.B.C., Paulo Hasslocher, apesar do visual caprichado, das polainas elegantes e do jeito de dândi, era conhecido por seus artigos desaforados. Era visto também como uma antítese dos literatos que se reuniam na Confeitaria Colombo e na Livraria Garnier, e talvez venha daí a sua afinidade com o autor de Isaías, e quiçá com o teor das ressalvas que ambos guardavam com relação a Machado.
Data de oito meses antes sua “Carta aberta”,47 quando Lima insistia no que considerava ser sua “missão” pessoal, bem como tornava pública sua estratégia particular de inserção nessa República das Letras. Nela, criticava severamente a imprensa, a qual, na opinião dele, só se nutria por “sujeitos premiados, agaloados, condecorados, titulados”.48 Aproveitava, ainda, para se vangloriar diante dos demais. Conforme sua própria definição, ele constituía um exemplo de escritor avesso a condecorações, ao jornalismo social e aos grupos literários estabelecidos. Machado, sim, encarnava, no seu entender, tal posição.
O fato é que, nesse momento, delineava-se um círculo paralelo e concorrente de escritores que buscavam se encaixar nas poucas instituições de consagração então existentes: revistas e jornais, academias e associações de classe. Ademais, depois da morte de Euclides da Cunha, em 1909, e da de Machado de Assis, em 1908, a Academia parecia viver de suas glórias passadas.49 Talvez até por isso, e por conta dessa espécie de entressafra, começava a ser reconhecível — a ser identificado e a se identificar — um grupo de oposição. Unidos pela confrontação, eles se julgavam críticos a tudo e a todos. Além de Lima Barreto e Antônio Noronha Santos, faziam parte do circuito velhos conhecidos deles, como Bastos Tigre, Domingos Ribeiro Filho, Curvelo de Mendonça50 e Fábio Luz. Eram colegas da extinta Floreal, mas também de ambientes semelhantes de cultura e sociabilidade.51
E, se há muita ambiguidade em tal movimento, o que existia em comum era o fato de todos pertencerem à mesma geração e filiarem-se a uma literatura engajada, bastante inspirados por autores como Tolstói, Dostoiévski, Flaubert, Balzac, Taine, Stendhal, Eça de Queirós e Renan. Esse era também um projeto de entrada no edifício cada vez mais formatado da literatura nacional.
A situação de Lima não era de todo ruim; mesmo assim, a opinião dos críticos sobre o autor oscilava. Ora o recebiam como uma voz aguda e original, ora como um escritor menor, cuja referência à realidade diminuía a imaginação. Para piorar, o momento aparentemente se inclinava mais para leitores que buscavam pouca inquietação, como comprova a famosa definição de Afrânio Peixoto, que descreveu a literatura como “ o sorriso da sociedade”. O certo é que, após a morte de Machado, a crítica parecia não encontrar outro nome que rivalizasse, para valer, com ele.
Na época, A esfinge, de Afrânio Peixoto, fez impressionante sucesso, a despeito de seu autor ter revelado que escrevera o livro às pressas, em apenas três meses, e premido pelo objetivo de ingressar na ABL. A obra, publicada em 1911, recebeu uma segunda edição um mês depois. Cerca de 11 mil exemplares foram vendidos em cinco edições (as duas últimas saíram em 1919 e em 1923). De acordo com Laurence Hallewell, esse foi o romance de maior vendagem no Brasil desde Canaã, de Graça Aranha, lançado pela Livraria Garnier em 1902.52 Mas a qualidade da obra é que não combinava com a recepção positiva, e os altos números de venda.
O Almanaque Brasileiro Garnier de 1914 traz notícia dos autores e livros publicados no período pela prestigiosa Garnier. Dentre eles, destacam-se, em primeiro lugar, obras de Machado de Assis: Esaú e Jacó em 1904; Relíquias da casa velha em 1906; e Memorial de Aires, seu último romance, em 1908. Aluísio Azevedo relançou A condessa Vesper em 1902, com boa cobertura da imprensa. Medeiros e Albuquerque ganhou edição definitiva de seu volume de poesia Mãe tapuia em 1905. O livro de poemas de Olavo Bilac foi editado em 1904, mas, a partir de então, toda a sua obra foi impressa pela Francisco Alves: Crítica e fantasia (1906), Poesias infantis (1904), Dicionário de rimas (1913), Tratado de versificação (1910), Ironia e piedade (1916).53
Outros nomes se mantinham ativos no mercado editorial. Augusto dos Anjos publicou seu único livro em vida, Eu, em 1912, numa tiragem de mil exemplares, em edição particular. Não há como deixar de mencionar o êxito crescente de um conhecido desafeto de Lima: João do Rio. Seu livro Religiões do Rio alcançou cerca de oito edições e Aalma encantadora das ruas (1908) chegou a três, sem esquecer das obras que ele publicou na Garnier, como O momento literário (1908), Vida vertiginosa, Psicologia urbana, Portugal d’agora (todos de 1911), Dentro da noite (1912) e Fados, canções e danças de Portugal (1909) — antes de passar para outros editores (Francisco Alves, Briguiet, Lello, Leite Ribeiro e Villas-Boas).54 Destacava-se igualmente outro “inimigo de plantão” de Lima: Coelho Neto, cuja produção bem poderia representar o que a crítica Lúcia Miguel Pereira chamou de livros dedicados a um “deleite do espírito tranquilo”. O escritor, que teve uma juventude boêmia e uma obra a princípio considerada promissora, logo mudou de figurino para aderir ao que na época se denominava “naturalismo acadêmico”, e ao parnasianismo, cujos autores estavam mais preocupados com a forma estetizante do que com o conteúdo, além de serem fascinados pelo classicismo greco-latino.55 E por aí o regime de contraposições se mostrava ainda mais impiedoso. Segundo Lima, Coelho Neto seria o precursor do purismo gramatical, em tudo oposto à visão militante do escritor de Todos os Santos, que advogava uma literatura pública, política e popular. Enquanto o primeiro acreditava num apego a certo orientalismo, o segundo não abria mão de uma tendência nacionalista; o que no acadêmico surgia como forma arcaizante, no criador de Isaías Caminha se traduzia como um esforço de atualização na linguagem. Por fim, e ainda de acordo com Lima, na obra de Coelho Neto, que com o tempo foi lançando uma quantidade impressionante de títulos, tudo seria rebarbativo, eloquente, excessivo; justamente o contrário do que pretendia o amanuense, que pregava por certa concisão sintética e defendia uma literatura mais oralizada.56 Mas, para desespero de Lima, os livros do acadêmico faziam muito mais sucesso que os dele. Prolixo, até 1914, quando lançou Rei negro, Coelho Neto já contava com mais de trinta obras publicadas.
Despeitado com o sucesso alheio, Lima, em carta que enviou a Monteiro Lobato alguns anos depois, no dia 4 de janeiro de 1919, comentava seu medíocre desempenho de vendas, ainda mais quando comparado a outros livros e autores. “Muito obrigado pelas referências aos meus broquéis; e, embora o João do Rio se diga literato, eu me honro muito com o título e dediquei toda a minha vida para merecê-lo. Por falar em semelhante paquiderme… Eu tenho notícias de que ele já não se tem na conta de homem de letras, senão para arranjar propinas com os ministros e presidentes de Estado ou senão para receber sorrisos das moças brancas botafoganas daqui…”. E dá-lhe ressentimento, com a manifestação de que seu livro só vendera 2 mil exemplares enquanto os de d. Albertina Bertha, feminista e alvo direto do amanuense escritor, apenas com seu livro de versos teria vendido 5 mil. E termina afirmando que isso daria “a medida da inteligência do leitor do Rio”.57
Mas, se a área de ficção andava meio morna e não decolava, incluindo-se nesse panorama a literatura do criador de Isaías, na área da não ficção o ambiente parecia mais animado. José Veríssimo, o crítico tão estimado por Lima, publicou quase sempre pela Garnier. Com exceção de História da literatura brasileira, que saiu pela Francisco Alves em 1916, os seus demais livros — Estudos de literatura brasileira (seis séries entre 1901 e 1907), Homens e coisas estrangeiras (três séries entre 1902 e 1908), Que é literatura? e outros escritos (1907) — traziam o selo da prestigiosa editora. Euclides da Cunha virou best-seller com sua primeira obra, inaugurando um estilo que misturava relato jornalístico, etnografia, história social e sociologia. Lançado pela Laemmert, Os sertões alcançou imensa repercussão, com três edições apenas no ano de 1902, e no final da primeira década do século XX continuava ditando moda.58 Joaquim Nabuco foi recebido como grande memorialista com a publicação de Minha formação em 1900, reeditado nos anos seguintes. Nesse texto, que trafega entre o ensaio e a lembrança do passado revista pela lente do presente, o abolicionista narra sua formação sentimental, intelectual e política, a qual representava também o percurso de uma elite agrária que agora se via às voltas com os novos desafios do seu tempo.59 Manuel de Oliveira Lima estreava na área de história com Dom João VI no Brasil, em 1909. Em 1910, o crítico Gonzaga Duque lançou Graves e frívolos e teve seus contos reunidos em Horto de mágoas, editado postumamente, em 1914.
Enfim, tirando-se a média entre ficção e não ficção, o ambiente literário não andava tão acomodado quando Lima, em 1909, publicou seu primeiro livro: Recordações do escrivão Isaías Caminha. Mesmo assim, não existiam consensos. Alguns anos depois, Lúcia Miguel Pereira60 confirmaria a opinião do ex-diretor da Floreal sustentando que, ao menos no decênio inicial do século XX, destacaram-se apenas dois romances: Canaã (de 1902), de Graça Aranha, e Luzia-Homem, de Domingos Olímpio, em 1903. Segundo ela, Aluísio Azevedo afogara-se no naturalismo; Inglês de Sousa andava afastado da literatura; Coelho Neto imobilizava-se com seu verbalismo.
Havia, porém, e como temos visto, muito mais do que uma geração “entre”. Na verdade, os primeiros vinte anos da República, em especial no momento que vai de 1906 a 1920, conheceram uma crescente reação, expressa por intelectuais — entre jornalistas, políticos e médicos, sobretudo oriundos das classes médias urbanas, mas também provenientes das camadas mais populares — frustrados com o frágil processo de democratização experimentado no país e ainda não propriamente reconhecidos pelo cânone literário.
Pois bem, voltemos ao pretexto para esse longo passeio pela literatura da época: o artigo de Lima para a A.B.C. intitulado “Uma fatia acadêmica”, que foi escrito em 2 de agosto de 1919, num ambiente marcado por muita expectativa e também frustração. Diz ele: “Em 24 do mês passado, a Academia Brasileira de Letras, admitiu entre os seus membros o eminente sr. Alfredo Pujol. Não houve quem maldissesse dessa escolha”.61 Lima utiliza-se de uma terceira voz narrativa para melhor criticar o evento e seus participantes. Usando de estilo caricato, define os imortais como destituídos de honestidade intelectual e sem talento. O propósito do artigo era descrever a cerimônia de recepção de um novo integrante da ABL, mas a intenção evidente era desfazer de tudo: do ritual e dos acadêmicos presentes. “Recebeu-o o sr. Pedro Lessa, ministro do Supremo Tribunal Federal, afamado jurisconsulto e, como quase todo advogado, homem de letras e, no seu caso, dos mais conspícuos. Como veem, são ambos pessoas de competência acima do vulgar, tanto nas letras como fora delas; e, se me meto, como agora me meto, entre eles, é por ser as letras uma República onde todos devem ser iguais.”62
Mantendo uma postura pretensamente respeitosa, Lima fica, porém, na fronteira do elogio com o escárnio. Mais interessante é a forma como principia o texto, brincando com “o poder de abstração” do autor do discurso, para rapidamente esquecer dele e se concentrar em Machado de Assis. No discurso de Lessa, o presidente da ABL é incluído entre os “grandes gênios”, contudo sempre distante das “crônicas ou fotografias da cidade em que nasceu”.63 O orador, afetando imparcialidade, é injusto com a obra de Machado, caracterizando-a como “literatura de abstração”. “Um escritor cuja grandeza consistisse em abstrair fortemente das circunstâncias da realidade ambiente” e cujos personagens seriam “fantoches e não almas, personagens vivos”. Já Lima discorda de Lessa, mas não com muita veemência. “Os nossos sentimentos pessoais, com o serem nossos, são também reações sociais”, definia o criador de Policarpo saindo em defesa de sua própria literatura.64 Transformando arte numa “simples álgebra de sentimentos e pensamentos” — sendo o meio, as raças e o contexto social fatores determinantes na narrativa —, Lima acusava essa (outra) literatura de ter perdido o “poder de comover” e de ter aberto mão da capacidade de mostrar “as razões de suas [das almas] dores e alegrias”. E nesse pacote o alvo principal voltava a ser Machado, que “não tinha força interior bastante para lutar e quebrar-se contra o Destino”.
Só faltava o ponto-final, e Lima o coloca quando cita de cor seus grandes mestres: Taine, Guyau, Brunetière, mas também Shakespeare, Dostoiévski, Swift.65 É evidente, e quase ingênua, a estratégia do escritor de Todos os Santos. Com o propósito de pretensamente reproduzir um discurso de posse na ABL, ele acabou por definir mais a si próprio e seu projeto do que aos demais envolvidos. Lima estaria de um lado; Machado do outro. “Machado era um homem de sala, amoroso das coisas delicadas, sem uma grande, larga e ativa visão da humanidade e da Arte”, que “gostava das coisas decentes e bem-postas, da conversa da menina prendada, da garridice das moças”. O Bruxo do Cosme Velho é transformado, assim, num literato aristocrático, das coisas em ordem, de conversa com moças, das frases decentes. Já Lima seria a nova burguesia, aberta à competição.66
Essa foi a única vez em que o escritor amanuense se referiu diretamente a Machado. Em outras ocasiões, mencionou o nome do acadêmico de maneira breve, apenas como alusão ou em meio a outros temas. Num artigo sobre Domício da Gama, escritor que se dedicava a memórias e a textos de viagem, Lima usou Machado como régua comparativa, dessa vez positiva. No texto “A casa dos espantos”, entregue à revista A Actualidade de 20 de julho de 1919, ele declinou: “O que falta no senhor Domício da Gama é força, é vigor de alma, é paixão, é necessidade de amar e de odiar”. No caso, porém, Machado passou a ser parâmetro elogioso. “Há, entretanto, uma diferença: se os sestros e as esquisitices do velho Machado tinham nascido dele mesmo, do amplo solo de sua alma dolorida; as cravinas literárias do senhor Domício haviam sido cultivadas em um pote de janela e regadas com um regador de menina de qualidade. Nasciam murchas.”67
Mas nem tudo era louvação. Machado virava “velho”, assinalando-se assim a diferença de geração entre eles. Além do mais, mesmo quando não mirava diretamente no Bruxo, Lima aproveitava para atacar outros alvos que, não por coincidência, rodeavam o círculo social do acadêmico: Joaquim Nabuco, o Itamaraty, Rio Branco, que aparecia agora descrito “como ídolo desta negralhada brasileira que quer ser latina”.68 Mas, se, ao pretensamente tratar de outros, ele visava sobretudo a Machado, ao falar de si, jamais esquecia Machado. Por exemplo, no artigo que escreveu para a Gazeta da Tarde de 28 de junho de 1911, com o engraçado título de “Esta minha letra…”69 — já mencionado neste livro —, Lima brincou com os próprios garranchos e chamou sua grafia irregular de “bilhete de loteria”.
Nessa crônica bem-humorada ele simultaneamente desfaz do fato de contar com poucos leitores e o valoriza. Aproveita, e chama a atenção para as pequenas gralhas que insistiam em aparecer nos seus textos publicados, e explicar a hostilidade que julgava cercá-lo: jogou tudo na conta de sua “sinceridade” e na sua incapacidade de silenciar acusações diante dos colegas. “Queimei os meus navios; deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras. Não quero aqui fazer a minha biografia; basta, penso eu, que lhes diga que abandonei todos os caminhos, por esse das letras; e o fiz conscientemente, superiormente, sem nada de mais forte que me desviasse de qualquer outra ambição; e agora vem essa coisa de letra, esse último obstáculo, esse premente pesadelo, e não sei que hei de fazer!”70 Numa nova guinada no artigo, sua letra se tornava metáfora para ele se contrapor ao “senhor” Machado de Assis, o “grande chanceler das letras”, “homem aclamado e considerado”. Segundo Lima, o presidente da ABL nem precisava se dar o trabalho de “mudar de letra”; já ele, “pobre autor de um livreco”, “que não sou nem doutor em qualquer história”, “tenho o dever e posso mudar de letra”.71 A ironia tem sentido expresso. Mudar de letra significava, literalmente, melhorar a caligrafia e, metaforicamente, mudar de estilo para aproximar-se do perfil de jornalistas consagrados como Alcindo Guanabara, ou de Machado.
Nessa luta, que, nos termos de Lima, era travada entre “realezas”, se de um lado estava ele — um “pobre autor de um livreco”; de outro, ficavam os acadêmicos. O escritor de Triste fim aproveitava, portanto, para deixar mais claro o círculo do qual não fazia parte: “o cenáculo do Garnier” ou o “salão literário do Coelho Neto”. No artigo ele revela suas fragilidades, mesmo que à custa de muita ironia: “De manhã, quando recebo a Gazeta ou outra publicação em que haja coisas minhas, eu me encho de medo […]. Tenho vontade de chorar, de matar, de suicidar-me; todos os desejos me passam pela alma e todas as tragédias vejo diante dos olhos. Salto da cadeira, atiro o jornal ao chão, rasgo-o; é um inferno. Eu não sei mais se todos nos jornais têm boa caligrafia”.72
O recurso de Lima é paradoxal. Ele afirma que não vai citar nomes, mas os cita; diz que não fará uma autobiografia, e a faz. A letra vira, assim, caligrafia social; o tíquete de ingresso para a “corte da literatura”. Não contente, o amanuense inclui o local de onde fala (os subúrbios), brinca com o desconhecimento da elite da capital acerca dos seus arredores e ainda afirma que não consideraria a ideia do casamento por ter “consciência” de sua “fealdade”. Enfim, aí está o pacote completo: ele se sentia excluído do círculo literário consagrado, morava longe do centro, pertencia a outro grupo social e, ademais, tinha dificuldades no relacionamento com mulheres. Achava-se feio, “caboclo” e deslocado.
E, em meio a esse emaranhado de sentimentos, chama atenção a presença oculta mas recorrente de Machado. Sua sombra era tal que, por vezes, ele surgia insinuado em frases e expressões. No conto “Manifestações políticas” — publicado em 29 de outubro de 1921 —, Lima termina o texto com o seguinte diálogo: “Quem é essa gente que me aclama assim? […] Nisto um bêbedo ou um maluco, antepassado certamente de Quincas Borba, gritou bem alto: Ao vencedor, batatas!…”.73 Ao citar, sem motivo aparente, a famosa expressão de Rubião — a qual, entretanto, é originalmente do filósofo cujo nome dá título ao romance Quincas Borba, de 1891 —, o escritor acabava por se revelar. Era mesmo um leitor de Machado, como, aliás, toda a sua geração.
Mais um exemplo. Em outro bem-humorado conto, “Três gênios de secretaria”, Lima envenena a profissão de funcionário público, seu ganha-pão. Claramente autobiográfica, a sátira escancara a crítica do autor de Isaías Caminha ao parasitismo do funcionalismo. Além do mais, retorna, ainda outra vez, à questão do casamento e dos pistolões: “Pensei até em casar, não só para ter uns bate-bocas com a mulher, mas, também, para ficar mais burro, ter preocupações de ‘pistolões’, para ser promovido. Não o fiz. Casar-me no meu nível social, seria abusar-me com a mulher, pela sua falta de instrução e cultura intelectual; casar-me acima, seria fazer-me lacaio dos figurões, para darem-me cargos, propinas, gratificações, que satisfizessem às exigências da esposa”.74
O monólogo deixa às claras as ambivalências da posição de Lima diante desse tema complexo — o matrimônio ou qualquer relacionamento afetivo. Defendia ele, sempre que podia, que o casamento não passava de uma “instituição burguesa”. No entanto, por detrás do humor, a passagem concisa desnuda concepções pessoais ainda mais conflituosas. De um lado, o escritor carregava a consciência de que não podia contrair um matrimônio acima de sua classe, pois lhe faltariam atributos financeiros necessários para garantir tal tipo de união. De outro, parecia reconhecer que casar dentro de seu próprio estrato poderia significar rebaixar-se, uma vez que mostrava clarividência diante do que dizia ser sua “diferença”; ou seja, os hábitos culturais que não partilhava dentro de seu grupo social.
Ainda assim, chama atenção a hipotética reflexão que o escritor entabula entre o suposto sogro e o noivo: “O velho sogro […] arranjou-lhe o lugar de ‘auxiliar de gabinete’ do ministro. […] Adquiriu títulos literários […] e sua mulher quando fala nele, não se esquece de dizer: ‘— Como Rui Barbosa, o Chico…’ ou ‘Como Machado de Assis, meu marido só bebe água’”.75 Como se vê, Machado (e Rui também) era a referência da referência; o símbolo de uma situação social e econômica que o amanuense invariavelmente alegou não possuir (ou mesmo desejar). Identidade é construção social, marca de pertencimento e, ademais, é sempre produzida em relação e por contraste.76 Por isso, nesse caso, interessa menos denunciar como Lima e Machado guardavam histórias de infância e de início de carreira bastante semelhantes.
O que mais importa é entender como o escritor de Todos os Santos, em fragmentos ou referências soltas, vai moldando um perfil, com frequência contraposto a uma série de personagens e instituições. A ABL e o Itamaraty estavam no centro do alvo, assim como Coelho Neto, Rui Barbosa e, de maneira particularmente ambivalente, Machado de Assis. Identidades são também expedientes acionados pelos próprios agentes sociais e representam respostas políticas e sociais.77 E essa é a estratégia acionada por Lima: a despeito de se apresentar como “vítima” de seu tempo — o que, evidentemente, em alguma medida ele é —, negocia, manipula sua imagem para então se construir na contracorrente. Boêmio, representante de uma geração marcada pelo sentimento social, o criador de Isaías se construía, cada vez mais, como um anti-Machado; ou talvez outro Machado. Última observação: no ano de 1908, Lima incluiu em sua seleta coleção de “Recortes” uma pequena nota retirada do Jornal do Commercio. Ela anunciava a morte de Machado de Assis.
Cafés, fofocas e divisões literárias
Lima não vivia, porém, apenas enfurnado em sua biblioteca ou envolvido com seus textos. Sua sociabilidade era feita nos cafés e confeitarias que acabaram por definir ou devolver uma imagem do que seria o Rio de Janeiro da belle époque. Mas esses lugares eram mais que meros pontos de encontro; como vimos, funcionavam tal qual quartéis-generais para os vários círculos de escritores, aglutinando e dividindo grupos de sociabilidade.78 Os cafés frequentados por Lima, e como vimos, eram o Jeremias, o Java, o Americana e o Papagaio. Era neles que o escritor podia ser encontrado, sempre cercado, na expressão de Noronha Santos, de uma roda de rapazes “mais ou menos instruídos”, que tinham por norma evitar que a conversa recaísse na literatura. Melhor era relaxar em torno de umas garrafas e da fumaça dos cigarros. A ideia do grupo era também contrapor-se ao clima “artificialmente literário” de outros círculos e criar um retrato que em nada lembrava a “boa ordem” reinante nos demais cafés.79
Já sabemos que era no Café Papagaio que Lima desfrutava da companhia dos confrades do Esplendor dos Amanuenses, grupo que se reunia todas as tardes para discutir “coisas graves e insolúveis”. Dizem os testemunhos que foi por lá que ele passou a beber cachaça e chope e ganhou a fama de “mordedor” — qual seja, pedia um trocado para tomar o trem da Central a qualquer colega que sentasse ao lado dele. Seu salário, brincava, ia todo nos tragos.80 Faziam parte desse circuito parceiros da Floreal e outras figuras, como o médico Rafael Pinheiro, excelente orador mas abstêmio por convicção; Amorim Júnior, funcionário postal e repórter de O Paiz; Calixto Cordeiro, o K. Lixto, desenhista, ilustrador, litógrafo, professor e diretor da Fon-Fon desde 1907; e o também caricaturista Carlos Lenoir.81 Não é coincidência o fato de eles não constarem das listas de autores de sucesso da Garnier, das quais falamos há pouco.
Além dos cafés, outros pontos de encontro construíam essa geografia simbólica que distinguia filiações literárias e pessoais. As rodas literárias, por exemplo, aconteciam também nas livrarias e editoras. A mais famosa era a da Livraria Garnier, na rua do Ouvidor. Isso sem esquecer as demais, entre elas a da Livraria Laemmert — na mesma rua — e a da Livraria Azevedo — situada na rua da Uruguaiana e conhecida como o ponto dos gramáticos e dos professores. Lima não costumava tomar parte de reuniões como essas e, talvez por isso, preferia ironizar a frequência chique que as caracterizava. É de sua autoria o comentário maldoso sobre o bom comportamento de Machado. Se o Bruxo fosse encontrado pelas redondezas da rua do Ouvidor, jamais seria para entrar nos cafés. O autor de Quincas Borba fazia ponto na Livraria Laemmert e na Lombaert, e depois se tornaria habitué da Revista Brasileira, reunindo-se com sua redação — que incluía José Veríssimo, Lúcio de Mendonça, Coelho Neto, Olavo Bilac, Medeiros e Albuquerque, Rui Barbosa e Afonso Celso; o mesmo grupo que compunha a ABL. Por sinal, Afonso Celso era o filho do padrinho de Lima, e, ainda assim, não pareceu interessado em consolidar afinidades com o escritor de Todos os Santos. Enfim, com certeza a cena literária carioca era bem mais complexa. O importante, contudo, é guardar a posição central do grupo de Machado, nessa verdadeira lógica feita a partir de clubes de sociabilidade, que se afirmavam por meio do jogo entre escolas, mas também de gerações e padrões de conduta.82
Confeitarias, livrarias e editoras ajudavam, pois, a delimitar fronteiras dentro de fronteiras. Aliás, se conflitos e fofocas sempre existiram, nos anos 1910 tenderam a se fortalecer, sobretudo com o falecimento de Machado, e o surgimento de novos autores, como Lima. Mesmo assim, Machado continuava a servir de métrica para o amanuense. E, se nas publicações o autor de Isaías se mostrava respeitoso, em cartas ou comentários ele desferia críticas mais duras ao presidente da Academia.
Tal posição fica particularmente clara na resposta de Lima a uma carta aberta escrita por Austregésilo de Ataíde,83 e publicada no jornal carioca A Tribuna em 18 de janeiro de 1921. Nela, o crítico estabelece comparações entre os dois autores e pende para o lado do criador de Policarpo. Já bem mais velho e muito depois da morte do Bruxo, o escritor de Todos os Santos agradece ao crítico, e afirma que, a despeito de não negar “os méritos de grande escritor”, julgava que o acadêmico sofria de “secura de alma, muita falta de simpatia humana, falta de entusiasmos generosos, uma porção de sestros pueris”.84 Orgulhoso, declara que jamais o imitou e reitera sua cantilena: “Que me falem de Maupassant, de Dickens, de Swift, de Balzac, de Daudet — vá lá; mas Machado, nunca! Até em Turguêniev, em Tolstói; podiam ir buscar os meus modelos; mas, em Machado, não! […] Creio que é grande a diferença”.85
Nessa passagem de uma correspondência privada, o autor de Triste fim não doura a pílula. Lima, por sua vez, seria o único “verdadeiro” que não se rebaixava a “palmatória” alguma. Os termos não são inocentes, já que o escritor tantas vezes se definiu como neto de escravos, e parte integrante de uma larga população afrodescendente.86 E estava dada a largada das comparações para um lado ou para o outro. Jackson de Figueiredo, em artigo publicado em 1916 em Lusitania, acusa o criador de Policarpo de ser apenas “analista que combate”. O crítico aproxima, no entanto, os dois literatos quanto ao uso do humor: Lima teria uma ironia contundente, enquanto Machado primaria pela leveza e pela intenção filosófica. Essa era a época do lançamento de Triste fim, e Jackson pende para o lado do seu autor, dizendo ser ele “mais humano e mais verdadeiro”.87 José Oiticica, por sua vez, publica, em 1916, artigo no jornal A Rua afirmando que Lima “é um Machado de Assis sem correção gramatical, porém, com vistas amplas, hauridas no socialismo e no anarquismo”.88 Já Vitor Viana,89 em 1919, no Jornal do Commercio, volta a estabelecer paralelos entre Machado e Lima. Vincula ambos à escrita dos ingleses, mas encontra no primeiro doçura e resignação, e no segundo revolta e ardor político.
Nesse ano de 1919, outros críticos — como João Ribeiro e Tristão de Ataíde — arriscam novas comparações entre os dois escritores, distinguindo-os a partir do apelo (ou não) à realidade. Não é o caso de enumerar todos os comentários, até porque a disputa continuaria por anos afora. Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, tempos depois, mais exatamente no dia 23 de janeiro de 1949, dá ressonância à castigada polêmica. Publica no Diario de Noticias um artigo intitulado “Em torno de Lima Barreto”, no qual pontifica que a obra do criador de Clara seria “inferior” à de Machado. O historiador bate duro: “A verdade é que Lima Barreto não foi o gênio que nele suspeitam alguns dos seus admiradores e nem é possível, sem injustiça, equipará-lo ao autor de Brás Cubas”. Parece não perdoar a Lima, que, bem na sua frente, teria exposto seu desapreço, em mais de uma ocasião manifestado, pela obra de Machado de Assis”.90 Lamentando o fato de o escritor amanuense ter lhe dito que considerava Machado inferior a Aluísio Azevedo, conclui o autor de Raízes do Brasil: “É muito possível que entrasse em tais manifestações menos uma convicção firmada do que o ressentimento…”. Para Holanda, se ambos os romancistas eram cariocas, separavam-se num ponto essencial. “Enquanto os escritos de Lima Barreto foram, todos eles, uma confissão mal disfarçada, os de Machado foram antes uma evasão e um refúgio.”91
Nesse segundo momento, engrossava-se um tipo de recepção que aprisionava os textos de Lima a uma avaliação que desfazia do realismo — gênero tido, então, como por demais colado à realidade. A avaliação era, porém, leviana, ao menos no que se refere ao criador de Isaías, que sempre julgou artificial esse tipo de distinção, a qual separava o autor de seu meio. Na verdade, ele próprio via a obra literária como um duplo: ela não só refletia como criava o contexto que pretendia descrever.
Mas a crítica seria severa com Lima Barreto, vinculando-o de forma imediata e negativa à sua biografia, como se não fosse possível tratar de uma sem remeter à outra, e vice-versa. Até mesmo críticos estimados pelo escritor, como José Veríssimo, voltaram-se contra ele, pedindo que deixasse de lado sua vida pessoal em prol da construção de uma obra literária: “O quadro saiu-lhe acanhado e defeituosamente composto, e a representação sem serenidade, personalíssima”.92
O certo é que tal opção literária, política e institucional por uma arte voltada para o social e definida como “militante” representou uma saída inovadora, mas ao mesmo tempo um obstáculo para a recepção coetânea e futura de Lima. E esse não seria o único “porém”. Naquele contexto, começava a se delimitar, também, um tipo de crítica que vinculava a conduta moral do escritor à sua obra.93 Taxado de boêmio, ele passava a ser considerado, como se fosse uma consequência, “desleixado”. Mas, se é certo que Lima tinha pouco tempo para “pentear” seus textos, e os entregava com rapidez, já sabemos que a bebida não o imobilizava. Ao contrário, Helio Seelnguer, que privou da sua companhia no Café Holanda, assim se lembra dele: “Bebia mais que um gambá. E ainda se fala mal dos boêmios! Como trabalhou esse rapaz!”.94
Não é o caso de pagar um tributo à embriaguez. Mas vale assinalar como vigorava certa expectativa de comportamento e de vocabulário social no Rio da belle époque que, talvez, o escritor de Todos os Santos não dominasse bem. E, se o padrão era dado pela Academia, foi contra ela que o amanuense armou seus canhões. Na mesma proporção em que ficava mais ciente de que não havia lugar para ele naquele certame, elevava a carga negativa dos adjetivos com os quais definia a instituição. Ali estavam, na sua opinião, a “velha guarda”, os “parnasianos e nefelibatas” ou, como anotou em seu Diário, uma “literatura de clube, imbecil, de palavrinhas, de coisinhas”, sem “grandeza de análise”.95
Paradoxalmente, Lima parecia precisar de “uma Academia” à qual se opor para, assim, melhor definir seu papel. Numa carta endereçada a Mário Galvão,96 apresentava-se como representante de uma nova postura, que incluía “a dor de escrever”, “essa tortura que o papel virgem põe n’alma” dos deserdados que, como ele, se atreviam a acercar-se do ofício das letras.97 Para o escritor, sua obra tomava a via oposta naquela estrada que aparentemente não padecia com curvas ou sinuosidades. Sua linguagem seria estratégia de resistência, sua luta de foice com o passado; sua batalha era contra o deleite das palavras, seu decreto de guerra dirigia-se aos velhos modelos (fossem eles quais fossem). Tratava-se, na perspectiva de seu próprio criador, de um projeto de ruptura; uma literatura rebelde e urgente,98 uma opção moral e política, quase bélica, para a escrita. Essa era a saída para aglutinar os “novos” — como se o termo geracional fosse sinônimo de inauguração de um tempo redentor.
Para Lima, tal “posição” — pois era antes um local que se afirmava em relação a outros locais e redes de sociabilidade — acabou virando registro de identidade. Talvez essa concepção explique como o autor, ao menos nos seus escritos, ia se mostrando cada vez mais identificado com os pobres, os afrodescendentes, os moradores dos subúrbios. Lá estava ele, um tanto quixotesco,99 avesso aos modismos e às corrupções de toda sorte. Nesse projeto, não cabiam muitos. “Entre nós, não há disso; nós vivemos isolados”, escreveria.100
Estamos no período da Primeira Guerra Mundial, e a experiência da Revolução Russa começaria a abalar as estruturas e as imaginações. Lima adotaria de forma mais direta o anarquismo; passaria a escrever para a revista A.B.C. com grande constância e se emocionaria com os fatos que marcaram o fim do regime tsarista na Rússia. Não deixa de ser revelador um pequeno detalhe. Foi em 1917 — o ano da Revolução — que o escritor, com sua má letra, resolveu atuar como amanuense da própria biblioteca e se pôs a relacionar obra a obra da sua coleção. A velha e boa Limana.
Vários escritores fizeram juras de amor às suas bibliotecas ou as transformaram em personagens diletas. Em outros casos, essas coleções surgem como cartões de apresentação de seus proprietários, ou representam o resumo da herança intelectual que um autor quer legar à posteridade. Bibliotecas também integraram uma série de histórias nacionais. Instaladas em grandes edifícios e formadas por livros milenares e documentos cuja data de origem se perdeu, acabaram por guardar uma imagem de estabilidade que pouco combina com seus destinos manifestos. A história mostra que tais coleções foram sistematicamente destruídas, seja por motivos naturais, seja por conta da lógica instável dos homens. Foi assim com Alexandria, que durou apenas um século e cuja destruição — e a de seus 700 mil volumes — extinguiu um imenso conhecimento acumulado na Antiguidade grega. Não por acaso, os ingleses queimaram a Biblioteca do Congresso em 1814, quando então se construiu não só um país novo, mas um acervo cultural diferente. Fenômeno semelhante ocorreu quando Monte Cassino foi bombardeada, durante a Segunda Guerra Mundial, e perdeu-se boa parte das fontes sobre a Europa medieval. Também a destruição da Biblioteca Nacional do Camboja pelo Khmer Vermelho levou consigo um estoque importante de informações sobre essa civilização.101 Isso sem esquecer a Biblioteca Nacional do Brasil, que foi apresentada como o primeiro termo de uma longa conta que pagamos a Portugal para garantir nossa independência política em 1825.102 Como se vê, a história das bibliotecas é tão antiga quanto feita de destruições e novas construções.
Bibliotecários e suas coleções também se converteram em personagens literários emblemáticos. É famosa a passagem de Dom Quixote em que um barbeiro e um cura lançam à fogueira os excomungados alfarrábios que já haviam perturbado demais a mente fraca de d. Alonso Quijano, el Bueno. Dom Quixote dormia o sono dos justos quando os desordeiros entraram no seu cômodo, onde também moravam os livros “culpados”. Logo concluíram que ali vivia uma “livraria endemoniada” e, sem mais delongas, jogaram ao fogo aquela “maravilhosa coleção”.
Recorte encontrado na Limana com anotação de Lima Barreto: “O quilombo”.
Bibliotecas guardam memórias e encantamentos, e não poucos escritores dedicaram a elas as páginas mais bonitas de seus livros. Jorge Luis Borges concluiu que, “quando se proclamou que a biblioteca guardava todos os livros, a primeira reação foi de uma felicidade extravagante”.103 E Elias Canetti, em Auto de fé, conta a história do professor Peter Kien, cuja obsessão eram os livros e sua seleta biblioteca, que lhe permitiam evitar o contato prático com a realidade que o massacrava. Ele gostava mesmo do “entrevero de espíritos, do sossego, o farfalhar reconfortante dos livros…”. Mas também a biblioteca do professor Kien ardeu, com ele dentro.104
Lima tinha uma relação parecida com sua Limana. E, com o decorrer dos anos, passou a viver cada vez mais enfurnado em seu interior. Entre os vários “recortes” que colecionou, um se destaca: a foto de uma confortável residência de campo, contendo a anotação: “O Quilombo! Minha casa no Engenho da Pedra”. O registro aparece com a data de 1917, e diz muito da atitude de Lima na época em que adotou uma espécie de nome de guerra para sua moradia. Aquela cujo teto dividia com os uivos do pai. “Será a Vila Quilombo”, escreveu ele, “para assustar Copacabana.” O padrão é, ao mesmo tempo, de desaforo e de identificação. Desaforo contra os elegantes do centro do Rio, identificação com a história dos povos escravizados.