13.

Um libertário anarquista:
solidariedade é a palavra1

Os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões.
Lima Barreto, Os bruzundangas

A minha alma é de bandido tímido.
Lima Barreto, Correio da Noite

 

Capa do periódico anarquista A Vida de 21 de dezembro de 1914.

 

Enquanto não emplacava na literatura, o autor de Isaías Caminha ia se impondo no cenário da capital como um cronista aguerrido, que jamais deixava escapar a oportunidade de chocar seus leitores. Segundo o historiador Nicolau Sevcenko, Lima preocupava-se em demonstrar total independência diante de qualquer corrente política organizada, recusando categorizações rígidas que lhe restringissem a autonomia de pensamento.2 Nadava contra a corrente e gostava de repisar sua atitude, repetindo com frequência, e sempre que podia, aquelas que eram suas grandes implicâncias. O futebol, por exemplo, costumava ser ótimo pretexto para reprovar tudo. “O Rio não dá nada. O football veio matar o pequeno interesse que ele tinha pelas coisas nobres do espírito humano […]. A pouca literatura que sai nos jornais daqui é linda por [sic] alguns e aborrecida para quase todos […] As bibliotecas vivem às moscas; os museus, os concertos, as exposições de pintura, os arrabaldes pitorescos não têm nenhuma frequência; mas nos domingos e dias feriados, não há campo de football por mais vagabundo que seja, onde não se encontre uma multidão…”3

Deve ter sido, em parte, o seu comportamento “do contra” — contra a literatura de sucesso, o Estado, a patriotada e os estrangeirismos — que levou o escritor a se aproximar do anarquismo e das novas correntes libertárias, as quais bateram na porta do país já nas décadas de 1900 e 1910.4 Embora tenha sempre evitado se filiar, abertamente, a grupos ou clubes anarquistas, assim como evitou aderir a ações mais diretas, Lima se encantou com essas teorias que inflamavam colegas de geração e passou a veiculá-las em muitos de seus artigos. Ao que tudo indica, foi Domingos Antônio Ribeiro Filho, militante anarquista e companheiro de repartição, quem primeiro “doutrinou” o amanuense. Domingos já trabalhava na Secretaria da Guerra quando Lima foi contratado, e os dois devem ter se aproximado em tal contexto. Afinal, tinham objetivos semelhantes na vida: nenhum deles pretendia se eternizar naquela função pública e ambos aspiravam vencer na vida como escritores.

Domingos era autor de O cravo vermelho, romance escandaloso publicado em 1907, que, como já tivemos oportunidade de comentar, não fizera grande sucesso. Na função de jornalista, fora, em 1903, secretário do semanário A Avenida, outro periódico de vida curta. Foi também um dos fundadores da revista Floreal, em 1907, ao lado de Lima, Curvelo de Mendonça e Elísio de Carvalho. Conhecido por suas opiniões libertárias e sua simpatia declarada pelo anarquismo, Ribeiro Filho era um misto de boêmio com revolucionário.5

Exaltado por definição e uso, Domingos tinha sido florianista radical na adolescência, pegando em armas para defender o governo na época da revolta de 1893. Depois disso, e até o fim da vida, foi anarquista convicto e partidário das ideias de Kropótkin, cuja doutrina tratou de divulgar em palestras, cafés e por meio de artigos publicados em jornais da capital. Também tomou parte do grupo Esplendor dos Amanuenses e frequentou o Café Papagaio. Mesmo assim, e a despeito de serem colegas de repartição, companheiros de bar e até vizinhos em Todos os Santos, os dois manifestaram sempre certa incompatibilidade literária.

Na Floreal de número 3, Lima criticou duramente o romance O cravo vermelho, afirmando que nele faltava literatura. Na edição seguinte do periódico — por sinal, a derradeira —, foi a vez de Domingos replicar, defendendo seu livro. Argumentou que detestava “a nossa moral”. Esse jogo continuaria até mesmo depois da morte de Lima. Escrevendo em 1938 sobre o criador de Policarpo na revista Visão Brasileira, Domingos afirmou “estranhar” aqueles que “queriam fazer dele um gênio”. E acrescentou: “Lima Barreto não foi um revolucionário, não foi um acomodado, não foi um cabotino, tinha os pés, as mãos e a cabeça amarrados ao liame de um terrível complexo. Tinha — coisa interessante — caráter e coração: um e outro […] serviram para ponderar e equilibrar suas ambições. É que ele via, arrepiado, a ascensão de uns tantos escritores, por uma escada de frases feitas, versos frouxos e conceitos de tonelada e meia, até a consagração acadêmica. Entretanto — terrível complexo — a revolta de Lima Barreto nunca passou da ironia”.6

O comentário é ambíguo: elogia e desaprova ao mesmo tempo. Lima não seria exatamente um revolucionário e era vítima de seu “complexo”. A verdade, porém, é que Domingos era de fato um romancista sofrível, mas um bom cronista e ótimo contador de casos. Tanto que escreveu na Careta durante dezessete anos, usando na maior parte das vezes o pseudônimo Dierre Effe.7 Foi ainda redator na Fon-Fon e n’O Tico-Tico, sempre advogando princípios da democracia e atacando o fascismo. A crítica literária Lúcia Miguel Pereira o definiu como um “anarquista visionário” e um dos escritores de cunho social do início do século.8 Já seu colega de militância Astrojildo Pereira o caracterizou como um escritor menor em muitos sentidos; “pequenino de estatura, muito feio, e o narigão recurvo”.9 Explicou mais: que Domingos se constituía logo, e em qualquer grupo, na figura central, graças a seu “espírito em fulguração permanente. Era na verdade um conversador admirável, e escrevia como falava, com a mesma abundância e o mesmo encanto”.10 Pode-se imaginar, pois, a voltagem da dupla. Domingos, muito falastrão, e Lima, mais recatado. Este desfazendo dos romances do amigo, que por sua vez o censurava por sua pouca modéstia e por seu “complexo”.

Mas ambos se viam como gauches. Em carta a Lima, Domingos afirmava que ia pouco à Don Quixote por ser contra a “pilhéria inócua”. Segundo ele, ainda, “a revista tem uma botica e não vive sem a receita”.11 Bem ou mal, foi Domingos quem introduziu o autor de Triste fim nas rodas anarquistas, a despeito de não o considerar um “revolucionário”. Nesses ambientes, Lima conheceria Pausílipo da Fonseca. Nascido em Pernambuco, Pausílipo chegou adolescente ao Rio, assentando praça num batalhão para, tempos depois, ingressar como adido na Escola Militar. Era um nacionalista exaltado, florianista rubro. Contudo, desligado da escola em 1897, em meio ao quadriênio de Prudente de Morais, foi deportado para o Mato Grosso, juntamente com setenta colegas. Na época, o florianismo mais lembrava um movimento de esquerda, de perfil nacionalista, centralizador, que apostava no progresso e na urbanização. Talvez por isso a turma de colegas tenha apoiado esse movimento, que, apesar da curta duração, gerou grande entusiasmo. Lima era diferente. Por causa do seu pai, abominava tudo que envolvesse adesão ao florianismo. Declarara certa vez que detestava o dono do jornal A Noticia, Manuel Jorge de Oliveira Rocha, o Rochinha, só por ele ter apoiado abertamente a Floriano. Conta o folclore da época que, como Lima tivesse passado a noite bebendo com o poeta P. B., que foi acusado de ter tomado parte no assassinato da esposa em Niterói, foi intimado a depor. Quando as autoridades lhe perguntaram se o réu já havia manifestado intenção de matar alguém, ele respondeu que sim. “— E o senhor não lhe perguntou quem era esse ‘alguém’? perguntou o juiz.” Respondeu Lima: “— Não, apenas o aconselhei: Se você quiser matar alguém, escolha o Antônio, da Noticia?”. “Antônio” era o pseudônimo que Manuel Rocha utilizava na seção de poemas humorísticos do mesmo jornal.12

Se Lima tinha sempre o deboche pronto, já Pausílipo era figura séria. Retornou à capital apenas em 1899, quando publicou um pequeno volume intitulado Mártir pela fé. O “ensaio literário”, dedicado “à memória de Floriano Peixoto”, foi um retumbante fracasso. Desgostoso com sua sorte, o rapaz passou a se dedicar à vida de imprensa, iniciando suas atividades como operário gráfico nas oficinas de O Paiz. Teve, a partir de então, uma carreira ascendente: tornou-se compositor, depois revisor, repórter e redator.13 Segundo testemunhas, Pausílipo era um tipo simpático, brilhava como orador e tinha uma voz impactante. Não demoraria a trocar suas convicções nacionalistas pelas ideias anarquistas, atuando em semanários libertários, a exemplo de Novo Rumo e A Greve. Por volta de 1904, ganhou destaque como fundador e principal organizador de um Partido Operário Independente,14 e logo depois aderiu aos grupos anarquistas. Com o tempo, porém, sua combatividade de jornalista panfletário se atenuou. No Correio da Manhã, foi promovido a repórter e cronista político. Designado representante do jornal no Senado, acompanhou, nessa função, Rui Barbosa nas excursões que este realizou a São Paulo e Minas Gerais por ocasião da Campanha Civilista.15

Outro personagem importante da imprensa e do movimento anarquista da época era José Oiticica, que havia estudado com Lima no Colégio Paula Freitas, na Tijuca, no ano de 1896, durante o preparatório para a Politécnica. Desde 1912, ele se declarara anarquista. De acordo com John W. F. Dulles, o primeiro contato de Oiticica com o movimento operário anarquista se deu em 1903, e ele logo se distinguiu como orador nas reuniões de sindicatos operários. Era descrito como um homem incansável e de vastos conhecimentos, que costumava apresentar uma extensa preleção da filosofia anarquista “com o intuito de educar e elevar moralmente os operários”.16

Professor do Colégio Pedro II desde 1917, Oiticica participou da insurreição anarquista de 1918, no Rio, sendo considerado o principal articulador e líder político da tentativa frustrada de tomada de assalto do Palácio do Catete, em novembro daquele ano.17 Foi durante essas atividades, em que difundia o anarquismo, que Oiticica conheceu Fábio Luz, romancista de 54 anos que já pregava a doutrina havia mais de dez, e associou seu nome ao dele. Formado em medicina, o escritor exercia a função de inspetor escolar no Distrito Federal. Era no Centro de Estudos Sociais, fundado no Rio em 1914, que figuras como Oiticica e Luz palestravam em agitadas sessões nas noites de sexta-feira.18

Vários dos intelectuais até aqui citados circulavam pelos grupos anarquistas, tomavam parte no movimento operário e também participaram, em 1904, do projeto de Elísio de Carvalho de criar uma Universidade Popular,19 o qual envolveu, entre outros, Fábio Luz, José Veríssimo, Domingos Ribeiro Filho, Evaristo de Morais, Manuel Bonfim e Rocha Pombo.20 Se a experiência durou poucos meses, a iniciativa ficaria durante muito tempo na memória.21

Lima conviveu com essa turma desde os idos de 1903. Encontravam-se nos animados cafés do centro, onde debatiam política, literatura, anarquismo, e falavam mal dos que, diferentemente deles, não se reuniam em torno de uma mesa de bar. Datam também desse período as diversas manifestações do escritor favoráveis ao movimento dos trabalhadores organizados, que, sobretudo no Rio, começava a ser veiculado por jornais operários e uma imprensa de perfil mais independente.

Na própria Limana existiam algumas obras sobre anarquismo, muitas vezes citadas em suas crônicas. Entre elas, constava a versão francesa do livro Ajuda mútua, de 1902, do anarquista e geógrafo russo Piotr Kropótkin (1842-1921).22 Numa análise que parte do reino animal e chega até as sociedades humanas, Kropótkin mostra de que maneira as várias espécies conseguem superar situações adversas e sobreviver por meio da colaboração, defendendo assim a ideia de ajuda mútua como um fator de progresso. O livro significava uma resposta ao darwinismo social e opunha-se à aplicação mecânica das leis da natureza aos homens, além de estudar os problemas sociais daqueles tempos, conclamando a revolução.23 Significava também um apego ao “naturalismo” que supunha que toda a produção, até mesmo a agrícola, acabava por perpetuar a escravidão dos homens e de outros animais. Propunha, portanto, que a humanidade vivesse apenas do que a natureza provia.24

Foi no pequeno jornal A Quinzena Alegre, criado por Bastos Tigre, que Lima se referiu, mais diretamente, a suas primeiras experiências com grupos libertários. Na crônica “Os galeões do México”,25 ele descreveu o ambiente formado nos primeiros anos de 1900, quando esse círculo de jovens intelectuais boêmios e menos abastados se reunia nos cafés localizados nos arredores do largo de São Francisco, tendo a estátua de Bonifácio como “tribuna”. Da rede participavam alguns dos colegas de Lima da Politécnica, jornalistas e amanuenses; mas nenhuma moça entrava na roda. Eram os mesmos de sempre: Bastos Tigre, Antônio Noronha Santos, Pausílipo da Fonseca, Carlos Viana, Domingos Ribeiro Filho, entre outros. Nessas ocasiões, enquanto os demais declamavam, Lima basicamente escutava.26

O grupo procurava imiscuir-se nos novos debates, contribuindo com artigos na grande imprensa e colaborando em periódicos menores, além de lançar pequenos veículos de divulgação,27 que incluíam o jornalismo militante, associado ao anarquismo e ao movimento sindical dos trabalhadores. Juntos, imaginavam um país diferente e, segundo eles, obrigatoriamente mais libertário do que aquele em que viviam.

Guerra, anarquismo e radicalização

Se Lima não dependia de seus artigos para sobreviver — portanto, em tese, podia escrever o que bem entendesse —, tampouco se sentia livre, na condição de funcionário público, para criticar o Estado, ao menos nas páginas da grande imprensa. Tal atitude é ainda mais evidente quando comparada à de colegas mais diretamente envolvidos na militância política, que entenderam o novo momento como um tempo de “conversão”. Por conta dessa atitude, parte significativa do grupo dedicou-se de corpo e alma a atividades políticas nos sindicatos e partidos operários. Já a participação de Lima seria bem mais tímida.

A atmosfera política esquentava a olhos vistos. Em 1906, reuniu-se o I Congresso Operário Brasileiro e foi fundada a Confederação Operária Brasileira (COB).28 Dois anos mais tarde, a COB criou seu próprio jornal, A Voz do Trabalhador,29 no qual Lima colaboraria tempos depois. Data também dessa época a formação mais robusta do operariado nacional, resultante do novo parque industrial brasileiro e da entrada acelerada de imigrantes europeus. E, se não foram os imigrantes os únicos nem os maiores responsáveis pelos movimentos grevistas, é certo que tiveram grande influência, sobretudo no que se refere à introdução das ideias anarquistas no país, especialmente a partir da década de 1890. Italianos, espanhóis, portugueses e muitos brasileiros aderiram ao movimento, constituindo a mais importante corrente de organização e mobilização política dos operários por mais de trinta anos.30

Dos anos 1860 em diante, com o aparecimento das tecelagens de algodão, a indústria concentrou-se cada vez mais na Região Centro-Sul do Brasil e, a partir de 1880, já se notavam índices de aceleramento no nosso parque industrial, acompanhado por uma demanda crescente de mão de obra: entre 1880 e 1884, foram abertas 150 fábricas; em 1907, esse número saltou para 3410; e, em 1929, 13336 novos estabelecimentos absorviam um total de 275512 trabalhadores.31 A base social dessa classe operária vinha das migrações inter-regionais e da imigração europeia, principalmente italiana. Durante o período, São Paulo consolidou sua vocação de centro industrial, destacando-se em particular a indústria têxtil, bem como a presença estrangeira. Em 1912, 60% dos operários têxteis paulistanos eram italianos, provenientes de Nápoles, Vêneto, Sicília e Calábria. A imigração italiana ajuda a esclarecer, assim, a associação de trabalhadores brasileiros com o anarquismo — força política bastante hegemônica no movimento operário da Itália —, pelo menos em São Paulo e no Rio de Janeiro.32 Afinal, como reza a boa tradição revolucionária, um anarquista vindo daquele país, ao imigrar, transformava-se logo num missionário dos ideais libertários. O importante é que as filosofias dessas organizações desembarcaram na bagagem de imigrantes italianos, e também na de espanhóis e portugueses. Estes, por sinal, assumiram papel decisivo na orientação política do movimento operário que crescia igualmente em Minas Gerais. Definiam-se como anarquistas, pois se aglutinavam em torno do objetivo de criar uma sociedade sem Estado ou partidos, formada por comunidades autogeridas, e cujo cotidiano seria orientado pelos princípios da liberdade, da livre experimentação, da solidariedade e da fraternidade.

No Brasil os anarquistas se organizaram entre as classes operárias por meio de associações de luta e de reivindicação — voltadas para a melhoria das condições de vida do trabalhador e do seu acesso à educação. Criaram também periódicos próprios para divulgar suas ideias. Além de A Voz do Trabalhador, a partir da segunda metade da década de 1910 eram várias as publicações ligadas a esses grupos. A Lanterna circulou em São Paulo entre 1901 e 1916, dirigida por Benjamin Motta e Edgard Leuenroth. O Amigo do Povo, lançado em 1902, pertencia a Neno Vasco, Edgard Leuenroth e Giulio Sorelli. A Greve, jornal carioca de 1903, era controlado por Elísio de Carvalho. E havia outros; no Rio de Janeiro: A Guerra Social (1911); A Vida (1914); Na Barricada (1915); O Debate (1917); Spartacus, O Jerminal e Voz do Povo (1919); e em São Paulo: A Terra Livre (1905, transferido para o Rio em 1907) e A Plebe (1915).

As tendências eram muitas, mas poderiam ser aglutinadas em duas correntes majoritárias. Os anarcossindicalistas, predominantes em São Paulo, apostavam nas associações como principal espaço de atuação política. Já os anarco-comunistas viam na insurreição o caminho de ação revolucionária. Todos estavam de acordo num aspecto: apenas por meio da ação operária, direta e autônoma, seria possível abolir o capitalismo e instaurar um novo regime de justiça social.33

O período de 1906 a 1908 ficaria marcado pelo crescimento acelerado do número de greves. A classe operária reagia às péssimas condições de trabalho — não havia restrição de idade nem tempo máximo de jornada diária —, além de lutar por melhores salários e pela criação de órgãos de representação, como sindicatos e partidos. Seus membros tornaram-se, pois, novos protagonistas na vida pública do Brasil. Entre 1900 e 1920, estouraram cerca de quatrocentas greves mobilizadas em torno da reivindicação por melhores condições de trabalho e de vida. Demandava-se o aumento salarial, a proteção ao trabalhador, a redução da jornada de trabalho e o direito de organização. Outros movimentos tinham natureza explicitamente política, a exemplo das greves contra a Primeira Guerra Mundial (1914-18) e em solidariedade às lutas internacionais dos operários.

Na primeira década do século XX, greves menores ocorreram nos grandes centros industriais. Em 1901, trabalhadores das pedreiras localizadas no Rio de Janeiro reivindicaram redução da jornada de trabalho de doze para oito horas; em São Paulo, no mesmo ano, houve mobilizações de sapateiros, tecelões e vidraceiros. No Rio, a primeira grande manifestação grevista foi deflagrada em 1902, envolvendo uma fábrica de sapatos. Em 1903, também na capital federal, eclodiu a primeira greve geral multiprofissional, que arregimentou pintores, gráficos, chapeleiros e trabalhadores de outros setores. Em 1904, nova greve, coordenada por funcionários da Companhia Docas de Santos, e apoiada pelos gráficos de São Paulo e pelos marítimos do Rio de Janeiro. Em 1906, uma greve ferroviária irrompeu em São Paulo, motivada pelos abusos cotidianos sofridos pelos operários locais e pela redução de salários. Em 1907, houve a primeira greve geral em São Paulo, pela defesa da jornada de oito horas, difundindo-se para outras cidades do estado, como Santos, Ribeirão Preto e Campinas. A agitação tomou conta das indústrias de alimentação, da metalurgia, e alcançou sapateiros e gráficos, chegando a atingir 20 mil operários. No entanto, a despeito do claro crescimento do movimento grevista, num país de tradição clientelística e pouco afeito à esfera pública de representação essas manifestações eram alvo de repressão sistemática. Vários imigrantes foram deportados sob a alegação de serem “anarquistas e baderneiros”, e muitos trabalhadores brasileiros acabaram presos pela mesma razão.

As crises de 1910 e 1913, o desemprego, a redução nas horas de trabalho e o prolongamento da jornada explicam o recrudescimento do movimento anarquista. Em 1917, a greve atingiu de 50 mil a 70 mil operários no Rio de Janeiro, e em São Paulo chegou à maioria da população trabalhadora. Os resultados práticos não foram imediatos, mas a repercussão ampliou a mobilização dos trabalhadores e a formação dos futuros sindicatos.34 O clima andava quente e, entre 1919 e 1920, ocorreram 64 greves só na capital de São Paulo, e mais catorze no interior. O Primeiro de Maio de 1919 congregou de 50 mil a 60 mil participantes no Rio, entre trabalhadores industriais, líderes anarquistas e simpatizantes do comunismo. Em São Paulo, calcula-se um perfil semelhante, incluindo têxteis, sapateiros, gráficos, padeiros, metalúrgicos e operários. Na capital federal, entre 1890 e 1920 realizaram-se 316 greves.35

O movimento também espelhava e não perdia de vista acontecimentos internacionais, como a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa. Conforme mostra Assis Barbosa, em 1914, quando a guerra começou, surgiu no Rio a revista mensal A Vida, dirigida pelo engenheiro e jornalista Orlando Correia Lopes, que fazia doutrinação à base de Karl Marx, Faure, Hamon e outros. Além de ser assinante dessa publicação e de Na Barricada — ambas de vida efêmera —, Lima se posicionou com firmeza contra o conflito mundial. No artigo “Sobre a guerra”, que saiu no Correio da Noite de 19 de dezembro de 1914 e foi depois incluído em Marginália, o escritor investiu contra o militarismo germânico e o que chamou de “orgia militar, a que a Alemanha desde muito se vinha entregando”.36 Qualificando tal regime de “crime contra a liberdade, contra a independência”, aproveitou para atacar o serviço militar obrigatório — seu pomo da discórdia desde os tempos da Politécnica. Arriscou até prognóstico: o de que aquele sistema tinha seus dias contados e que “os homens que criam o futuro poderão agir”.37

Lima não era bom de previsões, e o militarismo alemão, assim como a guerra, ainda iria durar muito. De toda forma, se ele chegou a aderir à Liga dos Aliados, acabou distanciando-se dela para se aproximar dos grupos anarquistas. No artigo “São capazes de tudo…”, publicado em Bagatelas já depois de terminado o conflito internacional, comentava ele que no “começo da contenda europeia” tinha garantido sua adesão à “Liga pelos Aliados”. Porém, depois que tudo “desandou” e que a instituição tomou a forma de um “escritório de anúncios de carnes frigorificadas, e outros gêneros de primeira necessidade”, teria retirado seu apoio.38 Segundo o autor, a organização teria descambado numa mera sociedade musical e dançante, ou em clube dramático, recreativo e literário. Em tom exaltado, dizia ainda que, a despeito de não se considerar patriota, “querendo mesmo o enfraquecimento do sentimento de pátria”, continuava desejando a derrota da Alemanha, a qual sempre julgara “retardada politicamente”.39

Mas seu fito era mesmo reclamar, e muito, da posição do Brasil no certame. De acordo com ele, o país, que só entrara na guerra por causa do lucro do café, deveria ter se mantido neutro. Lima era contra a guerra e, a partir da sua posição pacifista, aproveitava para retornar à sua conhecida agenda política: atacou os “espertalhões fartos que chamam todos os mais de vagabundos”40 e nomeou como alvo novamente Rio Branco — o qual se metera no Itamaraty e fizera com que a nação se “endomingasse”. Não esqueceu também de desfazer dos Estados Unidos, que, em seu entender, “se opuseram oficialmente, durante muito tempo [a] que a Espanha fizesse a emancipação da escravatura em Cuba”.41 A condenação do escritor era irrestrita: à Alemanha, à “burguesia” da Liga dos Aliados, aos norte-americanos e ao Itamaraty. Um tema levava a outro, um pretexto a outro ainda, e suas opiniões radicalizavam-se. Ele se dizia cada vez mais contrário ao patriotismo, o que combinava com as críticas contidas em Triste fim e com as crescentes simpatias que demonstrava diante das organizações anarquistas.

Interessante lembrar a maneira com que Lima definia os aliados: “escritório de anúncios de carnes frigorificadas”. Ao que tudo indica, o escritor ia dando um jeito de unir vários de seus temas em torno de uma única causa: o anarquismo e a necessária solidariedade diante de toda a humanidade, mas frente à natureza, também. É por mais esse ângulo que se pode entender seu ataque constante à violência que circundava as mulheres, e também sua postura contrária ao assassinato inútil de animais. Segundo a antropóloga Nádia Farage, existiriam implicações importantes neste engajamento. Nos escritos dessa época, a narrativa em forma de fábula ou alegoria, carregava um claro objetivo didático. Animais apareciam como protagonistas ou personagens secundários, mas sempre guardando posição afetiva e não raro sujeitos a todo tipo de arbitrariedade. Basta lembrar da crônica “O Estrela”, datada de 1921, e da qual já tratamos aqui quando relatamos a tristeza do menino Lima diante do assassinato de seu “boi de carro, negro, com uma mancha branca na testa” na ilha do Governador. Vale lembrar também do conto Manel Capineiro, de 1915 e que saiu na revista Nova Era. Nele, o tema central gira em torno da relação profunda que se estabelece entre o trabalhador e seus animais de carga. Isso sem esquecer do maior vilão criado pelo escritor, Cassi, que enganou Clara dos Anjos, e que se dedicava a criar galos de rinha. Galos que iriam morrer e matar também. O autor de Policarpo, que era leitor de Kropótkin e de Tolstói, devia se pautar no conceito de “apoio mútuo”, e seus escritos só poderiam significar fábulas de solidariedade, formas de manifestação das críticas naturalistas ao capitalismo. Nesse contexto a recusa ao consumo de animais vinculava-se, pois, ao pacifismo pós-Primeira Guerra Mundial.42

O ambiente se radicalizava, porém, e em sentido contrário. Já Lima, nos livros, crônicas e artigos, ia tornando mais evidentes as suas posições. Num momento dado a novos nacionalismos, desacreditar da pátria, ou ao menos das demonstrações de ufanismo, deveria chocar os leitores cívicos — que participavam de chás beneficentes em nome da Cruz Vermelha — e irritar os chefes do amanuense, reunidos na Secretaria da Guerra. Se até então, devido ao emprego, Lima se contivera diante do novo quadro político, daí em diante soltou suas amarras, e cada vez mais. Na carta que endereçou a um amigo, denunciava a Alemanha, mas também cerrava fogo contra a ideia de pátria: “A pátria me repugna […] porque a pátria é um sindicato, dos políticos e dos sindicatos universais, com os seus esculcas em todo [o] mundo, para saquear, oprimir, tirar couro e cabelo, dos que acreditam nos homens, no trabalho, na religião e na honestidade. Essa gente explora esse sentimento sobrevivente como os padres sinceros exploram a beatice das mulheres ou a hipocrisia dos homens”.43 A definição kropotkiniana de amparo e seus argumentos pacifistas hão de ter penetrado profundamente no anarquismo do escritor, e em sua interpretação acerca do momento em que vivia. Em seu texto intitulado Congresso Pamplanetário, ele avalia a proeminência que os Estados Unidos ganharam depois da guerra, o saldo de rapinagem que o conflito mundial legou e a frágil paz que o mundo experimentava. É com ironia que denuncia, ainda, a exploração, aprisionamento e caça de animais, e o papel vil dos homens, definidos como predadores; em tudo contrários às espécies sociáveis.44

Enquanto o grosso da opinião pública andava tomado por gestos emotivos, que vinculavam os bons valores ao amor incondicional à pátria, Lima se insurgia e pregava pelo pacifismo universal, apoio mútuo e solidariedade diante de qualquer espécie. Mas os humores andavam em direção oposta. Essa foi a época, por exemplo, de uma nova campanha pelo serviço militar obrigatório, que se justificava exatamente pelo “amor à pátria”. O escritor não pouparia esforços para demolir a iniciativa e, como bem se pode imaginar, os diretores da secretaria não ficaram nada felizes com os ataques desferidos na imprensa pelo funcionário de uma de suas seções. Ao contrário, sabia-se que os dirigentes da repartição em que Lima trabalhava apoiavam Olavo Bilac, o qual, professando um “amor irrestrito” à “educação cívica da mocidade”, iniciou uma campanha pela obrigatoriedade do serviço militar. Tal empreitada resultou, inclusive, na criação das Linhas de Tiro de Guerra — instituição militar encarregada de formar soldados e cabos de segunda categoria (ou seja, reservistas) para o Exército. A novidade era conciliar instrução militar com trabalho e estudo, num acordo firmado entre as prefeituras e o Comando da Região Militar. Não por coincidência, esse foi também o contexto de entrada do escotismo no Brasil, com toda a sua indumentária, gritos de guerra, gestos militarizados e exaltações patrióticas.

O cronista, por seu lado, mantinha a coerência; afinal, desde a juventude se mostrara contrário a manifestações cívicas dessa natureza. Comentamos aqui que ele abandonara, ruidosamente, a Federação de Estudantes quando colegas ameaçaram introduzir o serviço militar obrigatório na moção do grupo. Agora, e em tal ambiente militarizado, o tema mais parecia questão de honra. Tanto que anos depois, no dia 9 de abril de 1921, o escritor publicou na A.B.C. um artigo, intitulado “Educação física”,45 em que afirmava ser preciso combater “esse monstruoso e imbecil serviço militar obrigatório”, e dizia não se conformar com a ideia de que o “fim da civilização seja a guerra”. Tampouco podia crer numa República que não passava de um “feroz sindicato de argentários cúpidos, com os quais só se pode lutar com armas na mão”.46

Mais um elemento importante: a mesma revista divulgou, na ocasião, o protesto do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos acusando o governo paulista de invadir casas, maltratar crianças e mulheres e realizar prisões ilegais. Os boatos corriam soltos e o governo de Altino Arantes foi responsabilizado pela expulsão de líderes anarquistas considerados mentores da greve.47 De fato, a partir de outubro de 1917, São Paulo capitaneou uma espécie de “caça às bruxas” contra lideranças operárias e militantes anarquistas.48 Segundo a imprensa, nove grevistas teriam sido embarcados à força no navio Curvelo e sumariamente deportados, sem que seu pedido de perdão fosse sequer avaliado pelo Supremo Tribunal.49 Lima reagiu com rapidez e firmeza à situação, escrevendo em O Debate do dia 13 de outubro de 1917. Alegava ele que no Supremo Tribunal estava “realizando-se toda essa vergonha, todo esse rebaixamento da independência dos magistrados, perante o povo ‘bestializado’, calado de medo ou por estupidez, esquecido de que a violência pode, amanhã, voltar-se sobre um qualquer de nós, desde que tal sirva à plutocracia paulista e ela o exija”.50

Nesse mês, o Brasil preparava-se para declarar guerra à Alemanha, em retaliação ao torpedeamento do navio mercante Paraná, afundado por um submarino pertencente ao Reich em 5 de abril de 1917. O tema era delicado e a reação do governo ao episódio fora devidamente adiada, até que no dia 18 de outubro outra embarcação — Macau — foi atingida. Era o quarto afundamento de navio mercante brasileiro, e o então presidente Venceslau Brás não tinha mais como postergar uma resposta oficial: enviou mensagem ao Congresso e decretou a guerra. Mas tal atitude foi tímida diante do tamanho da reação dos grupos anarquistas, que promoveram novas e ruidosas manifestações. Da sua parte, Lima aproveitou a ocasião para, mais uma vez, deixar evidente sua posição contrária aos Estados Unidos. Novamente nas páginas de O Debate, proclamaria seu antagonismo a esse país, discriminando dois problemas fundamentais: o “preconceito contra os negros” e o “imperialismo econômico”.51

O escritor não cessava de publicar, e aumentava o número de periódicos em que atuava como colaborador. Também continuava bebendo muito. No seu Diário, em 1917, anotou: “Hoje, depois de ter levado quase todo o mês passado entregue à bebida, posso escrever calmo. O que me leva a escrever estas notas é o fato de o Brasil ter quebrado a sua neutralidade na guerra entre a Alemanha e os Estados Unidos, dando azo a que este mandasse uma esquadra poderosa estacionar em nossas águas. A dolorosa situação dos homens de cor nos Estados Unidos não devia permitir que os nossos tivessem alegria com semelhante coisa, pois têm. Néscios. Eu me entristeço com tal coisa, tanto mais que estou amordaçado com o meu vago emprego público. A escolher, sim senhor, eu preferia mil vezes a Alemanha. Não posso dizer nada e nada direi; mas aqui fica o meu protesto mudo”.52

Nos dias de hoje, soaria estranho o fato de um escritor humanista apoiar a Alemanha em lugar dos Estados Unidos; mesmo na época, assim deve ter parecido. Sobretudo porque, publicamente, e até então, Lima havia criticado sem rodeios o militarismo alemão e o pendor daquela nação para a guerra. Contudo, sua posição ambivalente pode ser, de algum modo, explicada. Em primeiro lugar, tais opiniões são da ordem do privado e constavam só de seu Diário. Além disso, e talvez mais importante, o autor avaliou mal a força germânica. Mesmo assim, já no contexto de 1917 era possível estimar o papel do militarismo alemão e o significado de uma guerra como aquela. Vista como o primeiro conflito mundial, ela introduziu o conceito de guerra total, com a violência sendo associada à nova era industrial. Esse foi também o começo da era das guerras consideradas terroristas, por conta do uso de gases asfixiantes pelos alemães e das bases submarinas. Portanto, desconfiança por parte do amanuense devia existir. Entretanto, em tal situação, e pelo menos na lógica íntima do Diário, o fundamental parecia ser o repúdio aos Estados Unidos e a solidariedade com os afrodescendentes daquele país.

Nesse ano de 1917, declinava em seu Diário, mas de forma mais humorada, as mesmas cantilenas contra os ianques. “Minha irmã acaba de chegar da rua (sete e meia da noite) e me traz a notícia de que um grande prédio em construção no largo do Rossio acaba de desabar, matando quarenta operários. O antigo prédio era uma arapuca colonial, mas […] resistia impavidamente. O novo ia ser uma brutalidade americana, de seis andares, dividido em quartos, para ser hotel: Hotel New York (que nome!), um pombal, ou melhor: uma cabeça de porco. Somos de uma estupidez formidável. O Rio não precisa de semelhantes edifícios. Eles são desproporcionados com as nossas necessidades e com a população que temos. Com pouco mais, o seu construtor adquiria os prédios vizinhos e faria coisa decente, proporcional, harmônica com a nossa vida e os nossos gostos. Mas a mania de imitarmos os Estados Unidos leva-nos a tais tolices. Uma casa dessas, servida por elevadores […] é sempre uma ameaça para os que a habitam. Em caso de desastre, de acidente, os pequenos elevadores não a poderão esvaziar, a sua população. Mas os americanos… É o que eles chamam progresso. Fresco progresso!”53 Divertido, ele critica o que denomina “brutalidade americana”, motivado apenas pelo nome do novo hotel.

No seu entender, o lugar não passava de uma “cabeça de porco” — referência direta às edificações existentes no Rio que abrigavam muitas famílias num espaço exíguo, popularmente conhecidas como “casas de cômodo”. Já o Cabeça de Porco era um famoso cortiço situado bem no coração da capital federal. Seu nome vinha da figura de um suíno que sobressaía na entrada do local, disposta num grande portal em arcada. O termo pegou e descontextualizou o “bicho”. Eram várias as histórias que circulavam em torno do Cabeça de Porco, e os jornais, muitas vezes com exagero, estimavam sua população em 4 mil pessoas. Verdade ou não, esse era reconhecidamente o maior cortiço da cidade, mais parecendo um labirinto que se estendia da rua Barão de São Félix até a pedreira dos Cajueiros, no morro da Providência.

Em 1893, o então prefeito Barata Ribeiro determinou sua demolição, que custou a terminar. De toda maneira, na época em que Lima escrevia tal comentário em seu Diário, o Cabeça de Porco era antes uma lenda urbana — sinonimizava o modelo de habitação coletiva de má qualidade —,54 e a comparação, clara: tanto os edifícios norte-americanos quanto os cortiços eram “desproporcionados” à nossa realidade.

Lima já havia publicado no Correio da Noite de 13 de janeiro de 1915 uma matéria no mesmo tom, mas daquela vez o tema era a Biblioteca Nacional. Contava que deixara de frequentar a instituição, sobretudo depois que ela se mudara “para a avenida e ocupou um palácio americano”. E assim se definia: “A minha alma é de bandido tímido e, quando vejo desses monumentos, olho-os, talvez, um pouco, como um burro; mas, por cima de tudo, como uma pessoa que se estarrece de admiração diante de suntuosidades desnecessárias. […] O Estado tem curiosas concepções, e esta, de abrigar uma casa de instrução, destinada aos pobres-diabos, em um palácio intimidador, é das mais curiosas. Ninguém compreende que se subam as escadas de Versailles senão de calção, espadim e meias de seda; não se pode compreender subindo os degraus da Ópera, do Garnier, mulheres sem decote e colares de brilhantes, de mil francos; como é que o Estado quer que os malvestidos, os tristes, os que não têm livros caros, os maltrapilhos […] avancem por escadarias suntuosas […]?”.55

A favor das mulheres, mas contra a campanha do feminismo

Acusando a “empáfia da atual” biblioteca, desvendando sua alma de “bandido tímido”, Lima aproveitava para denunciar, ainda, o pouco uso do acervo. Ao descrever os livros mais consultados, já que um tema leva a outro, o escritor brinca com o fato de apenas duas pessoas terem procurado livros em guarani. E acrescenta: “Será a d. Deolinda Daltro? Será algum abnegado funcionário da inspetoria de caboclos? É de causar aborrecimento aos velhos patriotas, que só duas pessoas procurassem ler obras na língua que, no entender deles, é a dos verdadeiros brasileiros. Decididamente este país está perdido… Em grego, as obras consultadas foram unicamente duas, tal e qual, como no guarani; e, certamente, esses dois leitores não foram os nossos professores de grego, porque, desde muito, eles não leem mais grego…”.56 Voltando a uma temática cara a seu personagem Policarpo, ele não perdoava algumas figuras do tipo de Leolinda de Figueiredo Daltro, a quem chamava de Deolinda, professora feminista e indigenista, fundadora, juntamente com a escritora Gilka Machado, do Partido Republicano Feminino. Aliás, em 1917 ela lideraria uma passeata exigindo o direito ao voto das mulheres, tema com o qual Lima não parecia lidar muito bem.57

Na verdade, tratava-se de um movimento que ganharia importância crescente na capital. Naquele momento, porém, o feminismo foi liderado, majoritariamente, por uma cúpula advinda das classes médias e mais altas, que, de certa maneira, deixaram um pouco de lado as reivindicações de mulheres trabalhadoras e operárias. A luta concentrou-se, então, na paridade de direitos, sobretudo no que dizia respeito ao voto e ao acesso a posições profissionais mais qualificadas, e menos nas condições de trabalho ou do sufrágio.58 As novas feministas reclamavam agora o direito de serem úteis à pátria e de deixarem de ficar presas à esfera doméstica e do lar.

De toda forma, e a despeito das divisões internas, o certo é que o movimento organizado de mulheres começava a aparecer na imprensa, com demandas que iam da igualdade de oportunidades educacionais e profissionais à emancipação política.59 Lima, por seu lado, era como jogo de somar: os temas iam se acumulando na sua agenda; nunca eram esquecidos. Por isso, ele percebeu logo a ambivalência que se instaurava no seio do movimento, separando as mulheres mais pobres, e suas reivindicações, daquelas provenientes de classes mais abastadas. E esse era o caso de Leolinda Daltro; presidente do Partido Republicano Feminino, fundado no ano de 1910, ela virou alvo privilegiado de ataque do escritor de Todos os Santos. Segundo ele, uma “das manias mais curiosas da nossa mentalidade é o caboclismo”, e a feminista representava um caso “excepcional” nesse sentido. E dá-lhe ironia: “D. Deolinda acaba de se apresentar candidato [sic] a intendente da cidade do Rio de Janeiro. Nada teria a opor, se não me parecesse que ela se enganava. Não era do Rio de Janeiro que ela devia ser intendente; era de alguma aldeia de índios. A minha cidade já de há muito deixou de ser taba; e eu, apesar de tudo, não sou selvagem”.60

Muito sarcástico, o artigo desfaz do “caboclismo” de grandes figuras nacionais — de José de Alencar a Rondon —, voltando sempre a “Deolinda”. Na crônica “O feminismo em ação”, o escritor provoca: “Eu, que sou antifeminista, à vista do que está acontecendo, me julgo completamente satisfeito”.61 Em “Uma nota”, repisa o argumento: “Mas, não é só do sufragismo de Dona Daltro que vem meu riso íntimo; é também de outras feministas. Os senhores devem ter reparado que a nossa religião feminista, mal nasceu, cindiu-se. Há diversas seitas e cada qual ferozmente inimiga da outra”.62 Enfim, nada lhe escapava, nem a divisão de classes presente no seio do movimento de mulheres.

Nesse meio-tempo, Lima seria envolvido numa confusão, por conta do caso da srta. Rebelo Mendes.63 A Epoca de 11 de outubro de 1918 publicou um artigo desancando o escritor e destacando sua posição ambivalente em relação às mulheres.64 No texto, intitulado “Denúncia contra o chanceler?”, foi a vez de a ironia trocar de lado. Alegava-se que a candidata Mlle. Castro Rebelo se sagrara vitoriosa em concurso público para uma vaga na Secretaria das Relações Exteriores, que dezenas de funcionárias já haviam sido nomeadas e que, mesmo assim, o “sr. Lima Barreto” fizera uma denúncia ao Judiciário tentando anular a indicação. A matéria terminava de forma forte, acusando o autor de “continuar no exercício de seu emprego no Ministério da Guerra, do qual está procurando conseguir aposentadoria com dez ou doze anos de serviço”.65 Aí estava uma forma de vingança dissimulada.

Como se vê, dessa vez a acusada (ou quem a defendia) não deixou a calúnia sem resposta. E o próprio Lima tinha teto de vidro. Em primeiro lugar, estava se tornando mais famoso por causa das controvérsias em que se metia e de sua constante vigília no que se referia à distribuição de postos por favoritismo. No caso, o argumento era semelhante. Mas há mais fumaça nessa fogueira. Ele mesmo, como temos visto, naquela altura já havia se ausentado do trabalho algumas vezes, conseguindo licenças médicas recorrentes, e não era segredo sua batalha pela aposentadoria precoce.

Além disso, com frequência o escritor era hostilizado por adotar posições contrárias às causas feministas. E não era para menos, já que muitos dos seus artigos desfaziam do movimento e de suas conquistas. E talvez esse seja o motivo de fundo para o tom de “Denúncia contra o chanceler?”, que, sem usar de subterfúgios, parte para o confronto direto com Lima. Mais que defender a srta. Castro Rebelo, o texto o acusa de duvidar da carreira alheia e lutar a favor de sua própria aposentadoria antecipada. Não conhecemos as implicações de tal debate. O certo é que Lima sairia chamuscado da contenda, tendo sido chamado de “despeitado” pelo jornal A Republica.66

E não se pode considerar esse um episódio isolado, muito menos injustificado. O amanuense fazia então campanhas constantes contra as vozes feministas em projeção no momento. Outro alvo de ataque era Albertina Bertha (1880-1953). Colaboradora de vários jornais da capital, Albertina, feminista declarada, defendia o voto das mulheres e a criação de uma Academia Feminina de Letras. Escreveu diversos ensaios sobre religião, política, filosofia e história, e em Exaltação, seu romance de estreia, criou uma heroína que ousava se libertar dos preconceitos da época. Pois Lima, em resenha sobre a obra, abusou da chacota: “A sra. d. Albertina Bertha é um dos mais perturbadores temperamentos literários que, de uns tempos a esta parte, têm aparecido entre nós. Muito inteligente, muito ilustrada mesmo, pelo seu nascimento e educação, desconhecendo do edifício da vida muitos dos seus vários andares de misérias, sonhos e angústias, a autora do Exaltação, com auxílio de leituras de poetas e filósofos, construiu um castelo de encantos, para seu uso e gozo, movendo-se nele soberanamente, sem ver os criados, as aias, os pajens e os guardas”.67

O criador de Policarpo não perdoava a casa aristocrática de onde proviera Albertina Bertha, que era filha do conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira e fora educada por uma preceptora alemã. Porém, se a resenha menospreza a origem e ressoa a crítica à classe social de Albertina, a princípio Lima até elogia sua coletânea intitulada Estudos. Diz ele: “Estudos é talvez mais do que o seu romance de estreia demonstrativo da originalidade do seu temperamento e do seu curioso talento, tanto mais curioso quando se trata de uma mulher e de uma mulher brasileira”.68 Mas a crítica azeda dissipava a boa vontade inicial. Lima recriminava a autora por não ter “nitidez […] clareza e coerência de ideias”. Além disso, questionando sua erudição, e sempre de maneira um pouco cínica, desautorizou o uso que ela fazia de Nietzsche para logo anunciar sua “ojeriza pessoal” pelo filósofo. Incontido, acusou Nietzsche e os esportes de serem os causadores do flagelo da guerra de 1914, e de exaltarem a brutalidade, a amoralidade e a falta de humanidade.69

Lima também aproveitava a oportunidade para voltar às suas conhecidas opiniões contrárias à prática de esportes, os quais, segundo ele, só levavam a conflitos. Colocava, na mesma cesta, Nietzsche e Albertina, para mostrar a que ponto ambos desconheciam a “humanidade”. E não economizava nos termos: “Nietzsche é bem o filósofo do nosso tempo de burguesia rapinante, sem escrúpulos; do nosso tempo de brutalidade, de dureza de coração, do make-money seja como for, dos banqueiros e industriais que não trepidam em reduzir à miséria milhares de pessoas, a engendrar guerras, para ganhar alguns milhões mais”.70 Claramente elevado em seu tom, o amanuense voltou a um autor de predileção, Herbert Spencer, que em seu livro Fatos e comentários teria previsto o papel retrógrado que o atletismo representaria no mundo. Pior mesmo apenas a “praga” do futebol, escrevia ele, que teria gestado a disseminação de “sentimentos violentos”.71

Enfim, nesse jogo de criticar e alisar, Lima voltou àquela que já estava virando uma questão de estilo: agressivo a princípio, terminava com um pedido de “desculpas à ilustre autora”, mas sem abrir mão da discordância. Finalizava afirmando que o livro de Albertina era cheio de “ideias e opiniões”. Pois, dizia ele, só tem “opiniões sinceras” quem “tem paixão”.72 O autor de Policarpo era sem dúvida ácido quando queria criticar, e considerou todos os feminismos, igualmente, “teorias importadas”. Mas eram muitos os feminismos, vários os grupos que disputavam a liderança, bem como plurais as agendas: havia grupos lutando pelo direito ao voto, pela emancipação na sociedade, pela participação no trabalho, pelo fim da exploração sexual, e assim por diante.73

De todo modo, em seu próprio contexto fica sempre mais difícil desbastar a neblina, e o escritor viu no movimento, representado por essas protagonistas, uma forma de retomar seus temas diletos. Por isso, insistiu no conflito de classes e na ideia de que se tratava de uma voga passageira. Não seria justo, no entanto, mostrar apenas essa face de Lima avessa ao feminismo. Na verdade, dizia tomar para si a defesa das mulheres mesmo quando atuava contra a campanha feminista. Paradoxal, como sempre, bateu-se, por exemplo, pelo divórcio. Opunha-se também ao casamento, partindo do pressuposto de que, se a instituição não valia a pena, era ainda pior para as mulheres, que entravam nela em condição de inferioridade. Com esse objetivo, publicou uma série de artigos sobre uxoricídios, divergindo da tese de que tais crimes acabavam sendo justificados pela lei e pela sociedade por conta da acusação de adultério. Além disso, não poucas vezes se rebelou contra a violência praticada por maridos, amantes, sogros e namorados.

Em “Mais uma vez”,74 artigo publicado na A.B.C., Lima combateu a prática que criticava desde os tempos da Floreal, aproveitando para denunciar maridos que, segundo ele, se atribuíam o direito de matar as esposas, amparados por decisões do júri que sistematicamente os absolviam. “Se a cousa continuar assim”, escreveu, “em breve de lei costumeira, passará a lei escrita e retrogradamos às usanças selvagens que queimavam e enterravam vivas as adúlteras.”75 Em tais ocasiões, virava advogado das mulheres e, dessa maneira, se dizia antifeminista: “contra tão desgraçada situação da nossa mulher casada, edificada com a estupidez burguesa e a superstição religiosa, não se insurgem as borra-botas feministas que há por aí […]. É um partido de ‘cavação’, o feminista, como qualquer outro masculino”.76 Aí estava um Lima febril, que reconhecia, porém, não ter muita quilometragem naquele departamento. Não há de ser acaso o fato de boa parte das personagens femininas que criou não ser independente nem apresentar autonomia financeira e profissional. Ao contrário, a maioria delas está sempre envolta em atividades domésticas. Elas são em geral caracterizadas como moças pobres, muitas vezes coadjuvantes, que, quando trabalham, têm pouco tempo para se dedicar a essas causas.77 Talvez por isso sua birra fosse mais de classe que de ideal.

Mesmo diante da irmã, Evangelina, Lima mostrava-se muito controlador. Anotava no Diário, por exemplo, os horários em que ela chegava em casa — “minha irmã chegou tarde; sete e meia” — e explicava que resolvera pagar-lhe um curso para que ela se formasse professora de piano. Talvez tivesse medo de que se convertesse numa Clara dos Anjos, a heroína sobre a qual ele escrevia fazia tantos anos mas que, a despeito da instrução avançada, acabou não resistindo às injustiças daquela sociedade que praticava o assédio moral, sobretudo contra moças mais pobres e afrodescendentes.

E, se o escritor de Todos os Santos era em geral um tanto prepotente no seu estilo, ao menos nesse terreno sempre demonstrou constrangimento e humildade. Num artigo para a A.B.C. de 28 de setembro de 1918, ao tratar de um novo livro de Ranulfo Prata, aludia a determinado trecho em que o autor apresentava as moças das cidades de interior a partir de sua beleza. E ponderava: “a minha experiência a esse respeito é infelizmente nula e não posso apresentar objeção de preço, mas duvido que seja assim”.78 Nessa altura, Lima já poderia ser considerado um celibatário contumaz, e ele próprio reconhecia sua pouca maturidade quando o tema era casamento. Ainda assim, não deixava de se posicionar contra a instituição (burguesa, dizia) — era a favor das esposas e noivas, mas definitivamente contra as feministas. Enfim, era mesmo um causador de (boas) polêmicas e, ao que parece, seus chefes na Secretaria da Guerra não andavam muito “orgulhosos” de sua “sincera” atuação na imprensa. Talvez por conta dessa atitude, sua carreira não decolava. Lima estreara na função de amanuense em 1903, e nela permanecera. A bem da verdade, não existiam muitas promoções na Secretaria da Guerra, mas, se analisarmos os documentos da repartição onde o autor de Isaías Caminha trabalhava, não é raro constatar substituições no cargo de chefe da seção. Percebe-se também a entrada de novos amanuenses ou contínuos. Já a situação do autor continuava a mesma; as constantes requisições de afastamento, por motivo de saúde, não devem ter ajudado no projeto de ascensão do funcionário, que, pelo jeito, nada tinha de exemplar.

Atestado do afastamento de Lima Barreto em 14 de novembro de 1910.

 

Suas diversas licenças eram invariavelmente prescritas para noventa dias. Lima tirou uma em 1o de dezembro de 1910, logo após a atuação no júri da Primavera de Sangue, quando tentou se recuperar, em Juiz de Fora, de uma grande estafa. Na ocasião, conseguiu um afastamento para tratamento de saúde por impaludismo, que duraria até 28 de fevereiro de 1911. Em 1o de fevereiro de 1912, requisitou e obteve outra licença, para curar-se de uma crise de reumatismo poliarticular e hipercinese cardíaca. Em 1913, conseguiu novo afastamento de um mês, ficando fora do serviço da secretaria até o dia 30 de abril. Hoje, praticamente todas essas doenças seriam vinculadas ao consumo excessivo de álcool, hábito que já influenciava o cotidiano do escritor.

De toda forma, as licenças um dia acabavam, e logo Lima reassumia suas funções e o cotidiano que julgava tedioso. Também não existiam muitas novidades a animá-lo na área literária, mas ele insistia. Em 13 de maio de 1913, o jornal A Epoca publicou uma nota em homenagem ao aniversário do terceiro oficial da Secretaria da Guerra, Afonso Henrique (sic) de Lima Barreto, em que destacava o “distinto homem de letras, que receberá por esse motivo inequívocas provas de apreço dos seus inúmeros amigos e colegas”.79 Nessa altura, ele fazia parte igualmente da Academia Brasileira de Imprensa (ABI) ou “Aporeli”, como a chamava — Associação Barão de Itararé. É difícil delimitar a data de sua admissão, e mesmo a sua frequência, pois, ao que tudo indica, ele não pagava as mensalidades.80 Contudo, se as relações com profissionais da área de letras se expandiam, as “provas de apreço” na repartição — expressas em promoções, aumentos salariais ou reconhecimento de seu trabalho como escritor — não vinham, e pelo jeito não viriam tão cedo.

O perfil crítico e irônico, cada vez mais presente nos textos de Lima, tampouco ajudava a corrigir tal cenário. Ao contrário, com o crescimento do movimento operário, as notícias que chegavam da guerra, as greves que irrompiam país afora ou mesmo a penetração do anarquismo no Brasil, o autor se tornava mais e mais extremado em suas opiniões. E não é fortuito datar dessa época sua aproximação com o círculo de intelectuais mais vinculado aos novos ideais; grupos recém-formados que atuavam nos jornais mas que também começavam a se engajar em ações políticas.

Se o amanuense não era dos mais ativos, ao menos na participação militante, contribuía, é certo, como difusor das ideias e das atividades de tais setores, sem propriamente tomar parte de suas ações. Já amigos como Pausílipo da Fonseca adotaram atitudes bem mais efetivas; foi ele que fundou, em 1904, o Partido Operário Independente, inscrevendo o nome de Lima para a função de delegado do segundo diretório. O escritor, entretanto, em correspondência trocada com Pausílipo, declinou o “convite”, alegando que não tinha habilidade para aquele tipo de atuação e que, ademais, estava compromissado com o Estado, uma vez que era funcionário público. Participação mais direta, portanto, ele nunca teve. Não se furtou, no entanto, a intervir como jornalista e cronista do grupo, ou a colaborar nos jornais dedicados à causa.81 Solidariedade era e continuava sendo o seu nome.

Lima Barreto na imprensa “libertária”

Nos primeiros anos do século XX multiplicava-se o número de periódicos de tendências “anarquistas”, “libertárias”, “socialistas” ou apenas de “crítica social”. A imprensa proletária da época, conforme nota Nelson Werneck Sodré, em geral era composta de pequenos jornais, frutos de iniciativas muitas vezes pessoais ou vinculadas a grupos mais restritos. Ou seja, ao mesmo tempo que novas organizações sindicais e partidos políticos se solidificavam, tomavam forma algumas publicações de orientação semelhante, que raramente chegavam a durar um ano. Sempre às voltas com a perseguição política, com a censura e a repressão policial, esse tipo de imprensa ganhou força junto ao crescente movimento operário, e foi surfando na onda dos impactos da Revolução Russa e da ascensão dos movimentos revolucionários mundo afora.

Tal periodismo, inseparável das formas políticas de organização dos trabalhadores, constituía-se em peça fundamental para os partidos, grupos políticos e sindicatos. Esse era o caso, por exemplo, do jornal A Voz do Trabalhador, no qual Lima colaborou durante o ano de 1913. A tiragem não era baixa, ao contrário. No começo, rodavam-se 3 mil exemplares, que logo passaram a 4 mil.

A Voz do Trabalhador publicava textos e análises sobre assuntos ligados ao operariado, além de notícias gerais acerca do movimento. De uma maneira ou de outra, as páginas desses periódicos dedicavam-se à ação, mobilização e organização política mais direta dos trabalhadores, nelas predominando artigos sobre a situação dos operários, a luta por melhores condições de trabalho e salários, bem como questões relacionadas ao proletariado internacional.

Alguns dos amigos de Lima participaram ativamente da organização da Confederação Operária Brasileira e de seu jornal, entre eles Domingos Ribeiro Filho, Pausílipo da Fonseca, Astrojildo Pereira e João Crispim.82 O amanuense, ao seu feitio, manteria uma atuação mais discreta, tanto na entidade como no periódico propriamente dito. Por exemplo, na mesma página em que foi publicada uma crônica de Lima, podemos ler a seguinte nota sobre um evento realizado pela COB: “O Centro de Estudos Sociais, a nova e já ativa associação de propaganda libertária, realizou anteontem, 13, uma sessão comemorativa no Pavilhão Internacional, às quatro horas da tarde, nesta cidade. O Treze de Maio é chamado a data de libertação dos escravos. Foi o fecho ‘áureo’ da grande campanha abolicionista. Pois o Centro de Estudos Sociais com a sessão de anteontem quis mostrar ao povo que ainda está por fazer a libertação dos escravos. A lei de 88 não libertou ninguém. Os negros, e com eles os brancos, amarelos e azuis, continuaram da mesma forma escravos: escravos do capitalismo. Este é que é o grande ‘senhor’ que precisa ser abolido”.83

O diapasão da notícia era elevado, igualava homens de “todas as cores” na luta contra o capitalismo e conclamava o povo a lutar por seus direitos. Por sua vez, a crônica de Lima, intitulada “Palavras de um snob anarquista”,84 mas que ele assinou como Isaías Caminha, destoava, de certa maneira, do restante do periódico, por conta de seu estilo mais pessoal. Ao menos foi dessa maneira que os amigos do jornal reagiram ao texto. Afinal, em tempos de causas eminentemente sociais, acusou-se o escritor de interceder a favor da introdução do anarquismo no Brasil, mas sempre em termos privados e particulares. Depois de um longo e erudito arrazoado sobre o assunto, ele concluía que os anarquistas eram os únicos a falar “da humanidade para a humanidade, do gênero humano para o gênero humano”.85 Explicava ainda que apenas eles evitavam “‘esnobismos’ que dão gordas sinecuras na política e sucessos sentimentais nos salões burgueses”, e conseguiam escapar do jornalismo “emperrado no regime capitalista”.86

Enfim, é evidente que Lima concordava com a agenda da publicação. Mesmo assim, causava empáfia entre aqueles que nela atuavam. Como mostra Arnoni Prado,87 nesse período a relação entre “anarquismo” e “cultura” não era tão clara. Segundo o crítico literário, a contribuição jornalística na imprensa operária era mais limitada à denúncia e às análises políticas — um gênero que foi então chamado de “ação militante”. Pouco espaço sobrava, pois, para escritos com arroubos “literários” como contos, crônicas, poemas ou artigos de cunho biográfico.88 O fato é que, onde quer que escrevesse, Lima era sempre Lima, mais conhecido por sua literatura combativa do que por sua face de ativista político e de ações práticas. Sua ação se dava nas letras.

Como colunista colaborou ainda na revista Na Barricada, fundada em 1915 por Correia Lopes e João Gonçalves da Silva, da qual faziam parte Fábio Luz, José Oiticica, o deputado Maurício de Lacerda e o líder trabalhista Sarandi Raposo. Também publicou artigos no jornal O Debate, que, criado em 1917, teve vida curta. Esse era um periódico estritamente “operário”, cuja pauta se concentrava na denúncia de desigualdades sociais, na exploração da classe trabalhadora e no que chamavam de “imperialismo yankee”. Seu time de colaboradores revelava a articulação de um grupo de “escritores militantes”. Entre eles estavam os editores Astrojildo Pereira e Adolfo Porto, alguns jornalistas que já conhecemos, como Domingos Ribeiro Filho e José Oiticica, e, claro, Lima.89 A primeira crônica de Lima para O Debate saiu no dia 19 de julho de 1917. Intitulada “O que o ‘Gigante’ viu e me disse”,90 criticava o desembarque de soldados da Liga dos Aliados na cidade do Rio de Janeiro, recordando as outras “invasões” ocorridas na baía de Guanabara desde os tempos coloniais. O amanuense continuou a escrever para o jornal nas edições de agosto, setembro e outubro daquele ano, tratando de temas como a carestia, denunciando a entrada de ideias estrangeiras no país e as “coisas americanas”.

Ademais, com o desenvolvimento dos movimentos populares, crescia em Lima a consciência da marginalização das classes mais humildes naquela República que ele considerava um patrimônio dos oligarcas e do capital financeiro internacional. Entusiasmado com as “teses maximalistas” da Revolução de 1917, passou a nutrir clara simpatia pelas causas do operariado e do anarquismo. Tais teorias do “maximalismo”91 — quais sejam: a revolução proletária na base de suas aspirações totais e não “minimalista” — logo teriam forte influência nos seus escritos para O Debate e outros periódicos. A palavra derivava de uma distinção entre “programa máximo” (que imaginava uma revolução iminente) e “programa mínimo” (concepção que se adaptava às exigências mais imediatas da conjuntura e que nem sempre era favorável à revolução). No entanto, conforme define Arnoni Prado, até mesmo nesse departamento Lima era sobretudo “um livre atirador”, em quem se misturava certo ressentimento com a percepção, um pouco desordenada, desse tipo de ideologia.92 De toda maneira, ele seguia publicando e se entendendo como um escritor solidário à causa dos pobres, um entusiasta da imprensa operária, um simpatizante do anarquismo, que via como uma forma de libertação da humanidade.

Fiel a essa filosofia, Lima passaria a publicar com constância ainda maior na revista A.B.C. Ele participava da publicação desde 1917, e manteve uma colaboração assídua até sua morte, em 1922. A A.B.C. não tinha filiação ideológica direta ao anarquismo, ou mesmo aos ideais libertários. Definia-se apenas como “um jornal crítico”. Fundada em 1915 pelo italiano Ferdinando Borla, circulava semanalmente, aos sábados. E fazia sucesso: o primeiro número chegou a vender 10 mil exemplares e foi muito comentado na imprensa local. O objetivo da publicação era “passar em revista os acontecimentos políticos da semana, de forma diferente da que se via no jornalismo”. Teve longa duração — de 1915 a 1934 —, mas nunca figurou entre os periódicos considerados da “grande imprensa”. Havia nela uma clara hierarquia de temas. O jogo político e as questões sociais apareciam sempre em destaque, enquanto a literatura e as artes, assuntos por vezes até estampados na capa, ficavam em segundo plano.

A.B.C. era tida como moderna em termos de qualidade gráfica, trazendo ilustrações na capa e em suas páginas internas. Entre seus principais colaboradores estavam justamente Lima Barreto, Astrojildo Pereira, Oliveira Lima, Agripino Nazaré, Mário Matos (1891-1966),93 Jackson de Figueiredo e Benjamin Costallat. Os temas eram bastante comuns à agenda do amanuense e não faltava espaço para ataques pessoais. Por exemplo, o primeiro número veiculou uma crítica direta a um antigo desafeto de Lima. O artigo “As superfetações dum imortal”,94 de Ferdinando Borla, diretor da revista, atingiu em cheio Paulo Barreto, então à frente da Gazeta de Noticias e mais conhecido por seu pseudônimo, João do Rio. O acadêmico, de acordo com o texto, copiava ideias alheias e detinha-se em torno do óbvio. Além do mais, Borla fez questão de desmerecer as opiniões do autor sobre o talento literário de Nilo Peçanha. Segundo ele, João do Rio, numa evidente atitude oportunista, teria definido o político como um “escritor fulgurante” somente depois de este ter assumido o governo do Rio, em dezembro de 1914. O livro de Peçanha fora publicado três anos antes, e o crítico, que deixara passar o feito literário, só então se lembrara de exaltar suas qualidades.

Enfim, Lima não poderia se mostrar mais afinado com a A.B.C. Mas o semanário combinava com ele ainda em outros aspectos, de mais largo alcance e projeção, especialmente em sua defesa aos anarquistas amotinados, presos ou desterrados durante a insurreição carioca de 1918. A revista também compartilhava com o escritor a adoção das teses maximalistas e boa parte do radicalismo que ia se impregnando à figura dele. Se na colaboração na Careta Lima dava vazão a sua verve bem-humorada, na A.B.C. ele se dedicaria às questões políticas do momento, produzindo artigos de análise. Contudo, apesar de ter um preço de capa mais baixo, a publicação tinha menos apelo popular.95 Seus temas eram em geral sérios e os artigos, mais longos, apresentavam menos humor.

Até por isso, e em função da linha editorial, nesse periódico é que Lima escreveria seus textos mais exaltados. Por exemplo, em 11 de maio de 1918 foi publicado “No ajuste de contas…”, incluído em Bagatelas, coletânea de artigos organizada pelo próprio escritor.96 Aí, o criador de Policarpo desenvolvia um libelo carbonário, inspirado pela Revolução Russa. Esse era seu manifesto maximalista. “Desde que o governo da República ficou entregue à voracidade insaciável dos políticos de S. Paulo, observo que o seu desenvolvimento econômico é guiado pela seguinte lei: tornar mais ricos, os ricos; e fazer mais pobres, os pobres.”97 Após longo balanço histórico, e depois de ter se manifestado contra São Paulo, os proprietários de terra, os burgueses e a Igreja, Lima defende o confisco estatal. “Um governo enérgico e oriundo do povo que surgiu, tem o dever de confiscar esses bens, de retalhar as suas imensas fazendas, de aproveitar os seus grandes edifícios para estabelecimentos públicos e vender, assim como as terras divididas, os prédios de aluguel que essas ordens possuem, em hasta pública.”98 O Estado deveria também suprimir os colégios de religiosos para ambos os sexos. Duro, Lima pede urgência: “cessar essa fome de enriquecer característica da burguesia que, além de todas as infâmias que, para tal, emprega, corrompe, pelo exemplo, a totalidade da nação”.99 Ele se confessa, então, a favor da poligamia, do divórcio e de várias formas de revolução social. E conclui: “Terminando este artigo que já vai ficando longo, confesso que foi a revolução russa que me inspirou tudo isso […]. ‘A face do mundo mudou’. Ave Rússia!”.100 Como se vê, se Lima não assumia funções práticas no movimento, não deixava de multiplicar as recentes ideologias que incendiavam as classes operárias e toda uma nova geração de intelectuais brasileiros. Maximalismo era uma forma de comunismo, uma filosofia entendida por vezes de forma difusa mas que representava a luta e o desejo pela igualdade.

Estamos em maio de 1918, e nada poderia ser mais diferente do que o ambiente cordato da Secretaria da Guerra. A despeito da foto comportada de amanuense estampada nas páginas da revista, o artigo era mesmo forte, decretando guerra a todas as instituições burguesas e formas de opressão. Aí estava um Lima libertário, no sentido mais amplo e abrangente do tema.

Na República da Bruzundanga

Mas, mesmo quando escrevia artigos sérios e mais cabeludos, Lima dava um jeito de fazer piada; aliás, foi na A.B.C. que, a partir de 1917, ele publicou uma série de textos satíricos, todos dedicados à República da Bruzundanga. Por sinal, nessa fase de sua vida, o escritor parecia particularmente interessado em veicular seus livros e textos e dar-lhes visibilidade. Tanto que pagou, ele próprio, a segunda edição de Recordações do escrivão Isaías Caminha. A obra, “revista e aumentada”, saiu em 1917 pela Tipografia Revista dos Tribunais, com 234 páginas. Ao mesmo tempo, o jornal A Noite pôs em circulação, numa brochura barata, mal-acabada e cheia de erros, Numa e a ninfa. Em carta a Artur Mota, Lima escreveu, com sua usual verve satírica: “O livro está, como o autor — pouco apresentável”.101

E, como já adiantamos, foi nesse ano que o amanuense entregou ao editor Jacinto Ribeiro dos Santos um novo original: Notas sobre a República das Bruzundangas.102 Vendera tudo por 70 mil-réis, “quase nada”, reclamava. Ou “para todo o sempre”, conforme constava no recibo de próprio punho.103 Sua situação financeira não era fácil, uma vez que ele contraíra dívidas para pagar a reedição de Isaías Caminha. Tinha recorrido a agiotas que circulavam pela Secretaria da Guerra e ficara devendo uma quantia acima de suas posses. Assis Barbosa conta que, se quisesse, Lima poderia até ter ganhado algum dinheiro com a republicação da obra. O Paiz, noticioso da oposição que vivia de criar polêmicas, bem que se oferecera para patrocinar a reedição do romance sob a forma de folhetim. Mas o escritor, que já havia publicado partes do livro na Floreal, recusou a oferta, alegando que seu texto era uma “obra de arte”, não sairia num jornal de vida efêmera, e muito menos para servir a interesses políticos ou econômicos. 104