Tal sacrifício pessoal foi feito num momento especialmente delicado. Era seu círculo vicioso: Lima andava cada vez mais produtivo, apesar de beber mais e mais. Bebia porque queria dar um jeito no vazio de sua vida. Bebia porque gostava de beber. “No dia 30 de agosto de 1917, eu ia para a cidade, quando me senti mal. Tinha levado todo o mês a beber, sobretudo parati. Bebedeira sobre bebedeira, declarada ou não. Comendo pouco e dormindo sabe Deus como […]. Voltei para casa, muito a contragosto, pois o estado de meu pai, os seus incômodos, junto aos meus desregramentos, tornam-me a estada em casa impossível. Voltei, porque não tinha outro remédio.”105 Seu estado, nessas ocasiões, era de total inconsciência; tanto que teve que ser acudido por Elói, que era filho de Prisciliana e seu afilhado, e sua irmã. Ele mesmo alegava não ter ideia do “que se passou”. Sabia apenas que fora socorrido por algumas senhoras da vizinhança, despertando com “equimoses nos tornozelos”.106
A impressão que se tem é que Lima combatia do jeito que podia “a vergonha” de ser visto em tal situação e de nada se recordar. Acordava sem saber onde dormira, culpava-se por vexar a família e acusava o pai de ser o culpado de seus “vícios”. Ao mesmo tempo, logo que saía desse estado, tornava a publicar, além de escrever com assiduidade cada vez maior na imprensa libertária. Boemia era uma forma de modernismo, e o escritor representava como que um resumo desse grupo.
Pois bem, hora de tratar da publicação de sua obra mais satírica à Primeira República. Bruzundanga é um país fictício com diversos problemas sociais, econômicos e culturais, em que os ricos e incautos acumulam títulos acadêmicos e têm fama de eruditos. O escritor, que era leitor de Swift, traça nesse livro um paralelo divertido com o autor de Viagens de Gulliver, centrando-se num país inexistente mas que, claro, evoca o Brasil.107 Valendo-se da figura de um visitante estrangeiro que descreve a terra exótica, Lima atingia de modo contundente as estruturas de sua própria sociedade.
Essa era a sua República da Bruzundanga. Fazendo troça com a nova República, o autor inicia a sátira contando a história de um bom rei, que até por isso foi deposto. “Quando menos se esperava, num dado momento em que se representava, no Teatro Imperial da Bruzundanga, o Brutus de Voltaire, vinte generais, seis coronéis, doze capitães e cerca de oitenta alferes proclamaram a república e saíram para a rua, seguidos de muitos paisanos que tinham ido buscar as armas de flandres, na arrecadação do teatro, a gritar: Viva a República! Abaixo o tirano! etc. etc.”108 O amanuense prossegue em seu relato, voltando à tese de que o povo assistiu a tudo “estupidamente mudo. Tudo aderiu; e o velho imperador e os seus parentes […] foram exilados”.109
Nesse clima de conto de fadas misturado à sátira política alegórica, Lima continuava explicando que uma parte da família teria, contudo, permanecido no reino, inclusive o pequeno príncipe d. Henrique. Enquanto isso, na República se gastava à solta, dando fim à atitude comedida do antigo reino. “Começou logo a construir palácios e teatros, a pôr casas abaixo, para fazer avenidas suntuosas. O dinheiro da receita não chegava, aumentou os impostos, e vexações, multas etc. Enquanto a constituinte não votava a nova Constituição, decuplicou os direitos de entrada de produtos estrangeiros manufaturados.”110 Enfim, misturando o epílogo do Império brasileiro com o início da República, Lima não conseguia esconder suas predileções. “Nunca houve tempo, em que se inventassem com tanta perfeição tantas ladroeiras legais.”111 O resultado de tanto desperdício foi a miséria do reino e a fuga do povo do campo para a cidade, atraído e iludido por salários mais altos. Por lá acabaram, porém, convivendo em casas “sujíssimas e cheias de insetos parasitas, transmissores de moléstias terríveis”.112
Em determinado momento, a sina da “triste raça da Bruzundanga” fica ainda mais delirante: o herdeiro do reino é assassinado e sucede-se uma série de “epidemias de loucuras”. As aventuras seguem em tintas apocalípticas, com as cidades se enchendo de hospícios e asilos de alienados. O sofrimento e a penúria levam à bebida, “para esquecer”; a bebida leva ao manicômio. Pode-se ver que Lima gostava, por vezes, de metáforas fáceis. Nada como explicar seus próprios temores colocando-os ora na conta dos problemas com o pai ora nas falácias da República.
Mas, pelo menos na ficção, a vida tomava outros rumos. Para dar conta de tanta decadência, surgiram profetas, cartomantes, práticos de feitiçaria. E dá-lhe moralismo! Embora recorresse a “casas da vida”, o escritor condena o meretrício. Em Bruzundanga, “a prostituição, clara ou clandestina, era quase geral […]; e os adultérios cresciam [devido] ao mútuo engano dos nubentes em represália…”.113 O ambiente que Lima cria, por detrás do humor, é em si devastador; os pobres, desgraçados e criminosos ocupam “casebres miseráveis, sujos, frios, feitos de tábuas de caixões de sabão e cobertos com folhas desdobradas de latas em que veio acondicionado o querosene”.114
Eis então que nos “subúrbios”, onde agora “reinava a fome”, nasce a mística de que o imperador estava para voltar, num paralelo evidente com o sebastianismo. E d. Henrique retornaria para reinar até seus sessenta anos: “aquele sábio príncipe proclamou por sua própria boca a república, que é ainda a forma de governo da Bruzundanga, mas para a qual, ao que parece, o país não tem nenhuma vocação. Ela espera ainda a sua forma de governo…”.115 Esperanças milenares, críticas à República, denúncias da pobreza e das arbitrariedades, já faziam parte da literatura libertária de Lima, mas voltavam nesse texto com ar de calamidade e estrutura de fábula e destino.
Para além desse primeiro episódio, que corresponde, digamos assim, ao mito de fundação da República da Bruzundanga, vale conferir o prefácio da obra, datado e localizado: “Todos os Santos, 2-9-17”.116 Nele, Lima oferece um comprimido de ação rápida que resume o enredo: “Na Arte de furtar, que ultimamente tanto barulho causou entre os eruditos, há um capítulo, o quarto, que tem como ementa esta singular afirmação: ‘Como os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões’”.117 Em estilo de mofa, o cronista atesta como “a Bruzundanga fornece matéria de sobra para livrar-nos, a nós do Brasil, de piores males, pois possui maiores e mais completos”.118 E Lima segue o relato dessa República, desdenhando os nobres da terra, a “nobreza doutoral”, a “nobreza de palpite”, os financistas, a política e os políticos, a falência das riquezas naturais, a Constituição local, os diplomatas, o presidente, a agricultura e seu ministro, o Legislativo, as questões da Academia de Letras, os estrangeirismos, a elite, as manifestações artísticas, a literatura e os cientistas do lugar. Um deles, por sinal, Harakashy; um javanês mestiço, amigo do narrador.
O escritor retomava assim seus temas preferidos, além de se referir a um de seus contos diletos, “O homem que sabia javanês”119 — o qual, como vimos, fora publicado em 1911 e incluído na primeira edição de Triste fim, datada de 1915. Java e o javanês viram sinônimos do conhecimento fácil e sem sentido, da erudição de lustro e vazia de significado, típica de nossos homens de letras, da nossa República e do jornalismo burguês e capitalista; conforme ele gostava de amofinar.
De uma maneira ou de outra, nesse contexto tudo parecia emocionar Lima, e profundamente. De um lado, o imobilismo da política, do jornalismo burguês, da literatura acadêmica. De outro, as novas ideias que vinham com a Revolução Russa, com o anarquismo, com os discursos de solidariedade que ganhavam corpo nas greves. Aliás, durante a greve geral que combaliu a capital do país em novembro de 1918, Lima estava de licença, recolhido no Hospital Central do Exército. No seu leito, quando se achava lúcido e mais consciente de seu estado, escreveu para a A.B.C. um artigo de solidariedade aos grevistas. Já no Diário, comentou que o chefe de polícia tinha um tipo de ideia fixa: “a) acoimar de estrangeiros os anarquistas, e exploradores dos operários brasileiros; b) debochar os seus propósitos e inventar mesmo alguns bem repugnantes e infames; c) exaltar a doçura e o patriotismo do operário brasileiro…”.120 E termina com uma espécie de utopia: “Viver às claras”.121