Clara dos Anjos e as cores de Lima1
Mesmo sem conhecer a língua e desprovido de intérprete, eu podia tentar penetrar em certos aspectos do pensamento e da sociedade indígenas: composição do grupo, relações e nomenclatura de parentesco […] vocabulário das cores […] têm com frequência propriedades comuns que os situam a meio caminho entre o vocabulário e a gramática.
— Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos
Havia simples marinheiros; havia inferiores; havia escreventes e operários de bordo. Brancos, pretos, mulatos, caboclos, gente de todas as cores e todos os sentimentos, gente que se tinha metido em tal aventura pelo hábito de obedecer.
— Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma
O negro é a cor mais cortante.
— Lima Barreto, O cemitério dos vivos
Caricatura de Lima Barreto feita por Hugo Pires e encomendada por A Cigarra, 1919.
Foi no ano de 1919 que saiu na revista A Cigarra a hoje famosa caricatura de Lima Barreto. Era só uma caricatura, e para uma publicação de menor porte, mas, diante da absoluta carência de imagens de Lima, a figura do “malandro” acabou virando sua marca registrada. Fundada por Gelásio Pimenta em 1914, e voltada para as transformações culturais de São Paulo, A Cigarra era bastante direcionada ao sexo feminino. A despeito disso, contava sobretudo com colaboradores homens, alguns ilustres, como Guilherme de Almeida, Oswald de Andrade e Monteiro Lobato. Pode-se supor que teria partido deste último a iniciativa de encomendar ao artista Hugo Pires uma charge do escritor carioca. Esse foi o ano do lançamento do livro Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, e Lobato, como editor moderno que era, devia estar interessado em divulgar nos meios paulistanos a figura do mais novo autor de seu catálogo.
Na caricatura, Lima aparece ao mesmo tempo semelhante a sua imagem usual e diferente dela. Semelhante, pois o desenho mostra um homem “de tez de cor pronunciadamente azeitonada”, para ficarmos em seus termos, com expressão irônica e vestes de boêmio da capital. Definir-se de origem africana — num país que buscava tornar invisível seu passado, bem como a cor social predominante em seu território — não era postura fácil de sustentar. O desenho não só apresenta, portanto, seu “melhor retrato”, como inclui o tema mais recorrente na obra do autor: sua origem afro-brasileira. Sorriso nos lábios, chapéu-panamá na cabeça, sapato caprichado, colete e gravata, cabelo carapinha, Lima é definido no ângulo em que mais se reconhecia: irreverente e distinto dos escritores de “toilette”, do “ninho de medalhões e perobas”, expressões incluídas por Lobato na carta que endereçara ao carioca, alisando-lhe o ego.
No entanto, no traço esperto de Hugo Pires, a aparência de Lima por certo estava diferente daquela que ele tinha então. Não há como negar o bom trabalho do caricaturista, até porque, como vimos, eram e são escassas fotos disponíveis do escritor. Pires deve ter se inspirado nas imagens dos jornais da época, quando publicaram matérias sobre o julgamento dos militares que saíram às ruas em apoio a Hermes da Fonseca e acabaram assassinando um estudante.2 Nelas, o júri pode ser visto, em destaque, assim como a figura do seu secretário: o “nosso amanuense”. Fato inusitado, daquela feita ele se vestiu com apuro, com o propósito de se apresentar bem no evento: usou terno completo e colete, cabelo arrumado e sapato da moda.
Talvez o chargista tenha optado por combinar a veste alinhada com o lado boêmio do escritor. Naquela altura, não era segredo para ninguém, sobretudo no meio literário, como Lima se achava alterado pelo uso recorrente da bebida. Precocemente envelhecido, com as maçãs do rosto inchadas, desgrenhado, terno meio roto, seu aspecto não condizia com a expressão de sucesso e de ironia que acompanhava seu porte elegante no trabalho de Pires. Na vida real, em vez do homem com imagem bonachona que salta do desenho de A Cigarra, encontramos um Lima cada vez mais fechado em seu quarto/escritório e concentrado em seus projetos.
Página inteira do jornal A Cigarra, 1919.
Ele parecia ter urgência em definir o tipo de literatura que fazia e na qual acreditava; tinha ânsia de organizar seus escritos;3 andava apurado para publicar as obras que restavam guardadas na Limana. Depois do lançamento de Gonzaga de Sá, entrando o ano de 1920 estava acertada a edição de Os bruzundangas, prometida pelo editor Jacinto Ribeiro dos Santos. O trabalho se achava, porém, atrasado: tudo fora combinado fazia mais de três anos, e, por enquanto, nada de sair o livro. Feiras e mafuás, outra coletânea de artigos, havia sido entregue ao mesmo editor, com a observação do autor de que o original estava “pronto a sair”.4 Francisco Schettino, dono de uma pequena editora e amigo de Lima, resolveu ajudá-lo, e preparava Bagatelas e Marginália. A Gianlorenzo Schettino Livraria Editora, situada na rua Sachet, 18, posteriormente travessa do Ouvidor, era novata no gênero, além de contar com poucos recursos. Por isso, o livro tardava. Segundo o autor, eles eram pouco competentes e, ademais, morosos. Em carta a Almáquio Cirne — um jovem escritor que, em 1920, publicara uma crítica positiva sobre Numa e a ninfa na revista Illustração —, Lima reclamava do fato de que seus editores faziam corpo mole, e, quando realizavam algo, era a “trouxe-mouxe, às pressas, de forma que a obra sai mal impressa”, “feia, errada, até empastelada”.5 Por sinal, não poucas vezes o criador de Policarpo se desculpou pelos erros que encontrou em suas várias edições. Dizia invejar os livros de outros escritores, mais cuidados e profissionais que os seus. No entanto, entre não publicar e publicar mal, preferia ir em frente.
Em 1920, viria a público a coletânea Histórias e sonhos, reunindo os contos escolhidos pelo escritor e lançados pelo editor e impressor Schettino. O próprio Lima, mais uma vez desgostoso com o resultado final da edição, tratou de, na errata, explicar: “Durante a impressão deste livro, por motivos totalmente íntimos, foram atormentadas as condições de vida, tanto da do autor, como da do seu amigo [Antônio Noronha Santos] que se encarregou da revisão das respectivas provas”.6 Com efeito, Noronha — sempre o Noronha — resolvera ele próprio revisar as provas do livro em virtude das condições de saúde instáveis do autor. Mesmo assim, o amigo não era um profissional de livros, e o resultado não saíra a contento, conforme lamenta Lima.
A despeito dos problemas editoriais, o livro foi bem recebido pela crítica jornalística — entendido como uma amostra da “literatura original de Lima Barreto”. Na RevistaSouza Cruz de fevereiro de 1921, a coletânea de contos era saudada com o seguinte comentário: “Espírito sereno na melancolia de sua revolta contra as injustiças do mundo, Lima Barreto é o piedoso amigo dos humildes, o intérprete compassivo das desventurosas almas nascidas para as delicadezas do sonho e condenadas pelo egoísmo social, às durezas da vida, entre a ignorância e o trabalho. Poucos escritores terão, como Lima Barreto, tão exata visão das condições do meio brasileiro, aprendido pela sua argúcia mental, na complexidade de confusos antecedentes históricos em conexão com os fatores contemporâneos, sob a pouco estudada influência de uma natureza que parece deprimir e deveras exaltar o indivíduo”.7 Na resenha, Lima era considerado “excepcional”, mas não se esqueciam de seus “antecedentes históricos” e das condições que o deviam “deprimir” e “exaltar”. Mais ainda, Histórias e sonhos era recebido como uma obra que trazia “o sentimento da terra” e a “compreensão do povo”, tudo com “ironia” e “piedade”. Nessa e noutras matérias Lima vai sendo definido como escritor do meio brasileiro, das almas excluídas. Segundo o comentarista, sua obra era devotada “à justiça e à verdade”, no “retratar das humildades infelizes”, e aí estaria uma definição embaixo da qual ele assinaria. Havia muito sonho aliado à desventura; melancolia combinada com revolta.
Entre as histórias que Lima selecionou para a coletânea, estavam episódios picantes de Os bruzundangas e alguns de seus contos prediletos: “O moleque”,8 que narra a falsa acusação de um crime; o terrível “Cló”,9 em que uma mulher branca se disfarça de “Negra Mina” e canta de forma sensual “Mi compra ioiô! Mi compra ioiô!”; e “A biblioteca”.10 Neste último texto, o escritor trata da sina de Fausto Fernandes Carregal, dono de uma imensa biblioteca da qual nunca tivera coragem de se desfazer. Entretanto, com a chegada da velhice, passara a recear que, tão logo falecesse, ela seria liquidada por sua gananciosa família. É com essa conclusão em mente que o proprietário opta por incendiá-la. Não é preciso ser vidente para adivinhar que esse era um dos temores que o criador de Policarpo também acalentava com relação à sua coleção particular. Sempre que podia, dava um jeito de mencionar — em sua ficção e textos jornalísticos —, ora a estranheza que a Limana causava no bairro, ora (ainda) a desconfiança com que eram vistos todos aqueles que liam em demasia.
Em Histórias e sonhos, “Clara dos Anjos” apareceria pela primeira vez como conto. Fora assim também com “Numa e a ninfa”, publicado inicialmente como conto e mais tarde como novela. Para quem gostava de dizer que Lima era apressado em suas edições, fica claro como muitas vezes ocorria o oposto: o escritor testava seu argumento numa narrativa condensada, e só depois arriscava uma versão mais longa. Também costumava publicar a história como conto, para em seguida avaliar se ela renderia um livro. Lima não chegou a ver o romance Clara dos Anjos impresso, embora o manuscrito datasse de final de 1921 e começo de 1922. Já o conto, sim.
Dedicado a Andrade Murici, o jovem escritor paranaense protegido de Lima, “Clara dos Anjos” é ambientado nos subúrbios cariocas de Todos os Santos. A história começa apresentando o pai da protagonista que dá nome ao conto, Joaquim dos Anjos, carteiro que “não era homem de serestas e serenatas, mas gostava de violão e de modinhas”. Ele tocava flauta, “instrumento que já foi muito estimado, não o sendo tanto atualmente como outrora”. Retomando um mote literário muito seu — a crítica à elite, que preferia sempre o último produto importado ao que era moda no local —, Lima o descreve como “pouco ambicioso em música” e nas “demais manifestações de sua vida”. Nunca cobiçara muito, e se contentava com um modesto emprego público que lhe desse direito à aposentadoria e ao montepio para a mulher e a filha. Dedicava-se ao serviço de carteiro “havia quinze para vinte anos, com o qual estava muito contente, apesar de ser trabalhoso e o ordenado ser exíguo”.11
Logo que o contrataram no emprego, Joaquim comprou “uma casita de subúrbio, por preço módico”, foi pagando o resto em prestações e, no contexto da narrativa, já tinha plena posse dela. A morada era simples e lembrava muito a descrição da residência de Lima. Tinha dois quartos, um que dava para a sala de visitas e outro para a sala de jantar. Correspondendo a um terço da largura total da casa, havia nos fundos um puxadinho que servia também de cozinha. Fora do corpo da residência, ficava um barracão: era lá que se localizavam o banheiro e o tanque de lavar. Junto dele, estava também o quintal “onde cresciam goiabeiras maltratadas e um grande tamarineiro copado”.12 A descrição lembra o lar dos Barreto, e Lima ultima o conto (e o romance também) observando tudo a partir do interior de sua própria casa. “A rua desenvolvia-se no plano e, quando chovia, encharcava que nem um pântano; entretanto, era povoada e dela se descortinava um lindo panorama de montanhas que pareciam cercá-la de todos os lados, embora a grande distância.”
Era esse panorama que o escritor desfrutava sentado em seu quarto, onde passava cada vez mais tempo desde a aposentadoria precoce. A Vila Quilombo ficava no alto de uma ladeira, e dali se podia ver longe. Detalhista, Lima esmiúça a variedade de residências existentes nos subúrbios, onde até hoje se nota a contiguidade das habitações simples com outras mais bem-acabadas: por vezes uma casa “forrada de azulejos até à metade do pé-direito”; por vezes uma “chácara de outros tempos”.13
Lima se detém ainda na caracterização dos “bíblias”,14 com “seus cânticos, aos sábados, quase de hora em hora”. Segundo ele, o povo não via com hostilidade aqueles “humildes homens e pobres raparigas”. Afinal, “não eram como os padres que, para tudo, querem dinheiro”. Descrevendo de maneira leve e profunda o universo religioso brasileiro, explica que a população reagia “sem nenhuma repugnância, pois é próprio do nosso pequeno povo fazer um extravagante amálgama de religiões e crenças de toda a sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme os transes de sua existência. Se se trata de afastar atrasos de vida, apela para a feitiçaria; se se trata de curar uma moléstia tenaz e resistente, procura o espírita; mas não falem à nossa gente humilde em deixar de batizar o filho pelo sacerdote católico, porque não há quem não se zangue: Meu filho ficar pagão! Deus me defenda!”.15