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Lima entre os modernos1

Mais do que qualquer outra atividade espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a que me dediquei e com que me casei; mais do que ela nenhum outro qualquer meio de comunicação entre os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio, teve, tem e terá um grande destino na nossa triste Humanidade.
Lima Barreto, “O destino da literatura”

Capa do n. 1 da revista dos modernistas paulistanos: Klaxon, maio de 1922.

 

No ano de 1921, a doença do pai de Lima se agravou muito. João Henriques definhava a olhos vistos: cada vez mais alheio a tudo, vivia isolado em casa fazia um bom tempo. Apesar da relação ambivalente que continuava a manter com a vizinhança, a família e sobretudo com o pai, o escritor andava inquieto. Acusava o irmão mais velho, Carlindo, de furtar livros e pequenos objetos para vender. Tinha medo de que seu dinheiro acabasse, que não fosse dar conta das despesas com o médico e com um futuro enterro, que parecia iminente. Preocupava-se também com o próprio destino. A aposentadoria não chegava a cobrir os gastos familiares, e seus livros e artigos não rendiam muito. Em seu Diário só existia lugar para pensamentos negativos: “A minha casa me aborrecia, tão triste era ela! Meu pai delirava, queixava-se, resmungava […]. De resto, tinha horror à vizinhança, e, por isto […], procurei sempre entrar em casa ao anoitecer, quando todos estavam recolhidos. […] Coisas de maluco”.2 Diante de tanta contrariedade, bebia e escrevia alucinadamente.

E Lima vivia só para a literatura. Enfim, por mais que guardasse carinho e até identificação na tarefa diuturna de cuidar do pai doente, havia também evidente distância cultural; aliás, um deslocamento semelhante ao que o escritor sentia em relação a seus conhecidos em Todos os Santos. Por isso, permitiu-se confessar no Diário: “Só eu escapo!”.3

Além do mais, se já era amigo, de longa data, da bebida e se acostumara a andar embriagado pelas redondezas, depois de tantos anos de excesso o álcool drenou suas forças. Sua decadência física passou a ser comentada até pelos amigos, segundo os quais Lima permanecia longos intervalos calado, por vezes desaparecia dos cafés e das redações, do centro. Vivia mais recolhido, pois se cansava fácil e mostrava-se abatido fisicamente. Sua velhice precoce era visível, seu cabelo, a crer no relato do confrade escritor Enéias Ferraz, embranquecera completamente. Mesmo em casa mantinha comportamento semelhante: de vez em quando ficava silencioso e com o olhar perdido; então a irmã, preocupada, colocava um cálice de parati a seu alcance.4 Desde que deixara o Hospício Nacional, e já sem ter que cumprir o horário fixo do emprego, passava parte do tempo vagando sozinho pelos cantos da cidade, às vezes como seu Gonzaga de Sá — espécie de andarilho filosófico —, às vezes totalmente ébrio, sem dar pelos outros nem por si. Em não poucas ocasiões os amigos o encontraram caído inconsciente numa calçada. Nesses momentos Lima se igualava a tudo que não queria ser: um desconhecido coberto pelo anonimato circunstancial da bebida.5 Alguns colegas inventaram para ele apelidos como Esmolambado e Hálito de Onça, outros contavam que andava “fedendo a cachaça” e que, em certas ocasiões, parecia um mendigo. Corria a história de que, ainda no hospício, Lima teria dado dez tostões a um camarada, João Barafunda, e lhe pedido que fosse comprar alguma coisa para que ambos comessem uma refeição melhor do que a servida na instituição. João, também romancista, tinha estado internado com ele e recebera alta havia pouco, portanto conhecia os meandros do estabelecimento. O conhecido teria retornado com nove tostões de cachaça e um pão, ao que o criador de Policarpo obstou: “Pra que tanto pão?”.6

Apesar da decadência e do cansaço físicos, Lima fazia questão de manter vasta correspondência com seus pares, especialmente escritores de gerações mais novas, espalhados por vários estados. Muitos deles continuavam a enviar-lhe cartas e originais, à espera de sua avaliação — e, quem sabe, bênção —, e nunca ficavam sem resposta.7 Em seu acervo pessoal podem ser encontradas missivas de Agripino Grieco,8 Mário Sette,9 Leo Vaz,10 Gastão Cruls,11 Murilo Araújo,12 Adelino Magalhães,13 Alberto Deodato,14 Olívio Montenegro,15 Carlos Süssekind de Mendonça, Pascoal Carlos Magno,16 Ranulfo Prata17 e tantos outros. Estranho pensar que, nos dias de hoje, a maior parte desses nomes, muitos deles vinculados a esse modelo social de literatura, é pouco reconhecida. Se até hoje são nomes destacados em seus estados de origem por conta do prestígio intelectual que mereceram, eles parecem ter ficado, e não por obra do acaso, fora do cânone modernista que ganhou força nos anos 1920 e deixou de lado muitos literatos que se lançavam no mesmo momento.

Da sua parte, o autor de Policarpo Quaresma procurava incentivar os jovens colegas e de todas as maneiras; ofereceu-se, por exemplo, como fiador do novo livro de Enéias Ferraz,18 História de João Crispim, e o apresentou a seu amigo e livreiro Schettino. Na carta enviada ao rapaz, Lima recomendou que a edição fosse “modesta” e que o novato arranjasse pelo menos 500$000 dos 1:500$000 necessários para a publicação. Paternal, aconselhou-o a ir liquidando a dívida “aos poucos” e usou de autoironia: “Hás de rir-te que eu fique fiador, pois o Rio é tão nobre cidade que eu — tu bem me conheces — posso ser fiador de muita coisa. Imagina tu que moro há cinco anos em uma casa, sem carta de fiança, a 200$000 por mês. Já fiquei devendo quase um ano e já pagamos, eu e meus irmãos. Manda o calhamaço”.19

Ainda que estivesse na pior, Lima não perdia a piada. Ao que tudo indica, História de João Crispim foi mesmo inspirado no escritor de Todos os Santos. O protagonista é um andarilho incorrigível que costuma vagar pela madrugada bebendo em diferentes botequins, quase sempre na companhia de seu celibatário e solitário amigo Afonso Pina, poeta que termina por suicidar-se. Há também proximidades na descrição física, além de serem ambos, o criador de Isaías Caminha e o personagem de Enéias Ferraz, escritores e jornalistas, e de terem sido internados no hospício.

Assim, se Lima andava deprimido com o andamento de sua carreira, parecia esperançoso com as novas gerações. Em encontro com alguns desses escritores, ou nas missivas trocadas, discorria sobre sua paixão inconteste pela literatura e jamais deixava de declinar seus autores prediletos. Durante um ano inteiro correspondeu-se com um jovem chamado Jaime Adour da Câmara.20 Portava-se professoralmente diante dele, estimulando-o, fazendo críticas e sugestões. Indicava também várias obras de sua biblioteca. “Leia sempre os russos”, aconselhou, listando seus favoritos, entre os quais “Tolstói, Turguêniev um pouco de Górki; mas, sobretudo, o Dostoiévski da Casa dos mortos e do Crime e castigo.21

O “mestre” aconselhava ao “pupilo” que era “preciso arredondar mais”, que não deixasse aparecer “as costelas, o esterno”, e que as leituras fossem mais “transfiguradas por um pensamento de moço e seu”. A ideia era que as referências tinham seu valor, mas não deveriam ficar “à flor da pele”. Perguntava, ansioso, se Jaime havia recebido Socialismo progressivo ou a conferência de José Ingenieros. Os livros do médico, psiquiatra e escritor ítalo-argentino andavam em voga e faziam parte das “obras seletas” da Limana. Ele tomava parte de um grupo de tendência comunista, o Claridad,22 e professava abertamente ideias anti-imperialistas. Essa era, pois, a “turma de combate” de Lima. Tanto que, na correspondência assídua que mantinha com Jaime Adour, o autor acrescentou que iria lhe mandar mais publicações “(as baratas, bem entendido) […] sobre coisas sociais”.23

Lima defendia, portanto, diante das novas gerações, a importância da literatura solidária em que tanto acreditava. E prometia enviar exemplares de filósofos anarquistas como Kropótkin ou obras de Hamon, de Reclus, entre outros.24 Recomendava também “o ‘maluco’ do Comte e o Spencer, Introdução à ciência social e A moral entre os diferentes povos”.

Por meio dessa correspondência assídua, parecia querer criar novas redes de conhecidos e constituir herdeiros que entendessem e admirassem sua maneira de encarar a profissão de escritor. A literatura precisava ser social e se manter distante da “mania grega” que tomara, segundo ele, a capital do país; uma literatura de “recepção”, dada a “brindes de sobremesa”. Lima ia assim levando a vida: continuava a escrever suas crônicas, esforçava-se para publicar seus artigos, mas, como vimos, perdia aos poucos a luta contra a bebida. Já não controlava bem seus gestos e recorria ao álcool com mais frequência, não discriminando tipo de bebida. Passou a tomar seus tragos mais sozinho. Era visto embriagado antes do almoço, depois do almoço, no jantar e até mesmo quando se recolhia para dormir. Ia se afastando de todos, mas boa parte dos antigos companheiros também começava a não ver muita graça em estar na sua companhia. Com regularidade, nessas horas ele ficava repetitivo e inoportuno. Era um Lima mais dominado pela bebida, a qual, claramente, também agia nele cada vez mais rápido.

Viagem a Mirassol e a profissão de fé na literatura social

Foi nessa época que o escritor e médico Ranulfo Hora Prata conheceu Lima Barreto. Ranulfo era sergipano, formado pela Faculdade de Salvador, com especialização na Escola de Medicina do Rio de Janeiro e clínico reconhecido em cidades do interior de São Paulo. Era, além do mais, autor dedicado à causa dos pobres e definia sua literatura como “operária”. Acabara de publicar seu primeiro romance, O triunfo, sem grande repercussão. Ranulfo e Lima encontraram-se pela primeira vez no Hospital do Exército, onde o criador de Policarpo fora internado para se tratar de uma fratura na clavícula, consequência de mais uma noite em que vagara ébrio pelas ruas. A conversa entre o doutor e o paciente transcorreu solta, e o tema logo deixou de ser a saúde para se concentrar na literatura.

Depois da alta, Ranulfo enviou um exemplar de seu livro a Lima, que, como era de seu feitio, respondeu à remessa com uma carta elogiosa à obra. Não contente com tal gesto, aproveitou o tempo livre para ir visitar o médico no hospital. Mais animado e querendo demonstrar a leitura cuidadosa que fizera do romance, o autor carioca indagou se a protagonista da trama, Angelina, era mesmo tão bonita como aparecia descrita ali. Debochado, afirmou que as moças dos lugares que frequentava eram todas feias e desalinhadas, e que andava precisando conhecer uma mulher mais vistosa.