Queimei os meus navios; deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras.
— Lima Barreto, Diário íntimo
é sempre mais difícil/ ancorar um navio no espaço
— Ana Cristina Cesar, “Recuperação da adolescência”, em A teus pés
A caricatura de Alvarus brinca com a imagem de Lima Barreto nos últimos anos de vida. Os traços denunciam as rugas e o envelhecimento precoce, 1972.
Toda conclusão carrega consigo um ar de confissão. Neste caso, porém, ela não apresenta um diapasão mais pessoal ou intimista. Tampouco tenta explicar ou justificar a narrativa. Minha intenção aqui é retomar impasses que foram se apresentando desde que comecei a escrever o livro, bem como revelar “as costelas” — conforme gostava de dizer o escritor — não só desta biografia, mas também da própria história da recepção de um pensador como Lima Barreto.
Na verdade, qualquer biografia reserva a seu autor algumas armadilhas. A primeira delas é tentar “inventar” trajetórias contínuas e ordenadas. Se é preciso “vestir os sapatos do morto”, como sugere o historiador e diplomata Evaldo Cabral de Mello,2 também não vale a pena transformar nossos personagens em exemplos de coerência ou em protagonistas de plantão.
Em segundo lugar, como somos de certa maneira muito marcados por histórias de vencedores, não raro procuramos personagens que se distinguiram, ou então tentamos converter os nossos em figuras de proa, acima de qualquer contexto. Fora de seu tempo; adiante de seu tempo. Não por acaso, a própria definição do gênero chamado “biografia” colou-se à historiografia do século XIX. O modelo pedia mais; que se transformasse a vida privada do personagem numa grande homenagem; um caso particular de raro sucesso e fortuna. Histórias de reis, príncipes, papas e governantes eram com frequência encomendadas àqueles que se dispusessem a dignificá-los, elevando-se, como decorrência, a pátria em que viviam. A biografia nascia, assim, “oficial”, pois dedicada exclusivamente a engrandecer.
Há, ademais, um terceiro lugar nessa lista de escorregões. Com relativa angústia, mas com o intento de “defender” nossos biografados, acabamos por criar heróis — verdadeiros paladinos em sua coerência — e poucas vezes permitimos que apareçam suas ambivalências.3 Daí surgem biógrafos que se comportam ora como “advogados de defesa” ora como autores de quase romances, tão ficcionalizadas resultam as narrativas.
Claro que existe certo exagero nessa lista, mas, ainda assim, essas são arapucas comuns ao gênero. Isso sem esquecer da tentação que sentimos de “preencher vazios”. Ou seja, criar informações suplementares, ou pouco comprovadas, com o intuito de completar lapsos e partes da trajetória que os documentos insistem em não trazer ou explicar. Por essas e por outras é que biografias nem sempre são “a prova dos nove”.4
Não é o caso de aqui resumir a história do gênero;5 muito menos o de mencionar exemplos e autores que conformariam, garanto, um batalhão.6 Basta apenas dizer que, talvez por conta dessa sua origem contenciosa, durante algum tempo as biografias sofreram uma espécie de interdição, ou foram consideradas “desautorizadas”, ao menos por uma parcela de determinada historiografia. O ato de escrever biografias já parecia conter, em si, um gesto conservador, quando não démodé.
Também não seria o caso de colocar o gênero sob escrutínio: criticá-lo ou a ele rasgar elogios. O certo é que escrever sobre uma vida implica interrogar o que os episódios de um destino pessoal têm a dizer sobre o mundo e as coisas públicas. Implica também jogar um facho de luz sobre o sentimento do tempo e o modo como esse sentimento foi vivido, estabelecendo conexões entre eventos e nosso personagem. Vale, portanto, muito mais revelar impasses que fazem parte de toda biografia. Por exemplo, é quase um consenso a percepção de que o biógrafo, depois de alguns anos estudando seu biografado, costuma identificar-se, e profundamente, com ele. E assim se deu com a recepção de Lima Barreto por Francisco de Assis Barbosa, responsável não só pela primeira história, completa e detalhada, da vida do criador de Policarpo, como pela organização de toda a sua obra, a qual, na década de 1950, andava um tanto esquecida.
Imediatamente após o falecimento de Lima Barreto, no ano de 1922, não foram poucos que renderam homenagens ao escritor em notas e artigos. Muitos desses textos repisavam o talento do autor, mas foram raros aqueles que deixaram de enfatizar a condenação da boemia. Em O Pharol de 4 de novembro de 1922, a elegia não escondia o julgamento negativo: “Boêmio, levou uma vida desordenada, que por certo prejudicou a sua produção mental, que seria mais vigorosa se o escritor não esbanjasse o talento, o espírito e a saúde no gênero de existência que levou e que foi o resultado do seu altivo desprezo pela sociedade moderna”.7
Há até menções paradoxais. Justo Lima, com a solene birra que tinha do futebol, recebeu uma distinção da Liga Suburbana de Football, que resolveu realizar em ata “um voto de pesar pelo falecimento” dele e “oficiar à sua família”.8 O fato é que boa parte da imprensa carioca cobriu a morte de Lima Barreto. A Gazeta de Noticias, o Jornal do Brasil, O Paiz, o Correio da Manhã, O Jornal, O Pharol, a Careta e a A.B.C. publicaram logo no dia 3 de novembro obituários e matérias fúnebres que lamentavam a morte do escritor, estampando sempre a mesma foto. Nela, ele aparece bem-arrumado: cabelo penteado, terno alinhado, camisa social e gravata com nó bem-feito.
A.B.C., 4 de novembro de 1922
A matéria mais alentada saiu na Careta de 9 de dezembro de 1922, revista em que Lima atuou durante longo tempo. Esse foi também o texto mais pessoal e o único a não repetir, burocraticamente, os demais. Começava lastimando a morte de uma “das mais fortes individualidades” da literatura nacional, e caracterizando o autor como um “espírito insubmisso” mas de “grande coração”. Com o objetivo de melhor definir o personagem, a revista reproduzia, acompanhada de um desenho que pouco combinava com a mensagem, uma frase de sua autoria retirada de Histórias e sonhos: “O que nos dá o senso da vida na sua significação real e alevantada é a desgraça”.9
Três dias depois, a Careta ainda incluiu, na seção “Folhetins”, um texto cujo título chama atenção: “O boêmio imortal”.10 Boêmios não tinham por hábito frequentar a Academia Brasileira de Letras, e a expressão destilava provocação. A história vinha assinada pelo escritor gaúcho Garcia Margiocco, redator da revista.11 Na crônica, Margiocco reproduzia um diálogo que teria ocorrido entre ele e um colega no Dia de Finados. A conversa centrou-se, justamente, no falecimento repentino de Lima Barreto. “Soube assim, por esse amigo […] que o anarquizado e irrequieto romancista brasileiro havia morrido serenamente como um burguês honesto no seu leito impoluto de homem puro.” Coberta de alusões, a definição dava seu recado, procurando enquadrar o escritor na hora de sua morte. Mas o artigo não parava por aí. Retornava ao mês de outubro daquele ano, quando supostamente o autor de Policarpo Quaresma teria conversado com o colega da Careta acerca de suas “criações novas”.
Nessa circunstância é que Margiocco haveria tomado a liberdade de perguntar a Lima sobre a bebida. Rindo, o escritor teria reagido rápido: “A cachaça não faz mal a ninguém, o que está estragando a nossa literatura é a burrice…”. Ato contínuo, se despediu do amigo e caminhou “firme e sorridente entre as mesas cheias de fregueses em direção ao tosco balcão como um pobre pároco de aldeia dirigindo-se por entre modestos fiéis ao altar em que diz o seu sagrado ofício”.
Careta, 9 de dezembro de 1922.
A imagem era tão recorrente que parecia não mais poder ser apagada. Não havia como se referir à literatura de Lima sem associá-la à bebida. E pior: sem vincular a conduta do escritor a seus “antecedentes históricos”. O texto citado prossegue afirmando que ele não era, porém, “o boêmio por degenerescência, vítima portanto de males ancestrais; tampouco por ideal, como os das épocas românticas”. Em pleno século XX, numa revista como a Careta, a questão da hereditariedade ainda pesava, até porque era necessário mencioná-la e assim contrapor-se a ela. Era a prisão de Lima; a sua “diferença de origem” em meio a uma pretensa igualdade republicana.
Com a autoridade de quem detém um segredo, Margiocco contava ainda sobre uma conversa mais íntima que tivera com Lima na sede da Careta. Segundo o cronista, o colega mal o encontrara e já se saíra com uma confissão: a de que se preparava para “veranear”. Estranhando o comentário, por conta da falta de recursos do criador de Isaías Caminha, o redator da revista indagou-lhe a respeito da “estação” que escolhera. “O Hospício”, foi sua resposta. Tempos depois o teria encontrado novamente, dessa vez na saída da Livraria Garnier, cheio de livros nas mãos. Repetiu a pergunta e ouviu: “Aquela gente do Hospício está toda maluca”. Num texto repleto de lugares-comuns, oferecendo aos leitores o que estes desejavam previamente ler, Margiocco repisava estereótipos que marcaram toda a vida de Lima, e dos quais ele não se libertara nem mesmo na hora da morte. Conforme afirma o crítico Henry Louis Gates Jr. numa obra que traz uma série de biografias de afrodescendentes, essa seria uma “representação comum” do que significa “ser um homem negro” e carregar consigo o “fardo da representação”.12 Uma memória feita de muitas lembranças mas de silêncios também.
É fácil notar que, ao menos no contexto imediato a seu falecimento, a vida de Lima parecia mais forte que a obra dele. Ou melhor, a condenação ao comportamento do escritor sobrepujou a avaliação de sua arte — e ele permaneceu, durante quase trinta anos, numa espécie de vácuo literário. Lima nasceu em 1881, ano de lançamento em livro de Memórias póstumas de Brás Cubas, e morreu em 1922, ano da Semana de Arte Moderna.13 Ficou bem no meio do caminho entre os acadêmicos e o modernismo. Bateu-se a vida toda com a sombra de Machado de Assis: reconhecia a importância da obra do Bruxo do Cosme Velho, mas de seu projeto institucional guardava reservas. No entanto, a questão era, como vimos, mais complexa: se criticar a ABL consistia num de seus esportes prediletos, ele nunca deixou de tentar fazer parte da instituição; apesar de no íntimo saber que não se adequava aos modelos sociais lá preconizados.
Revelador, nesse sentido, é o artigo de Coelho Neto publicado no Jornal do Brasil em 5 de novembro, quatro dias após a morte de Lima. Intitulado “A sereia”,14 o texto devolvia a ironia com que o escritor de Todos os Santos sempre havia se referido ao acadêmico, usando, porém, da alegoria clássica. Fiel a seu estilo e à mania grega de que Lima tanto debochava, Coelho Neto voltou à história da Odisseia, mais particularmente ao famoso episódio do canto sedutor das sereias que buscavam fisgar Ulisses, para fazer uma metáfora (óbvia) do “vício” que contaminou o colega — mas não ao autor da crônica. Remeteu-se à cena em que Ulisses põe cera nos ouvidos a fim de evitar o encantamento das sereias. Relatou então a atitude do herói, o qual pede que o amarrem ao mastro do navio, de onde só deveria ser desatado quando longe daquela “ilha sortílega”, e concluiu: “Não fosse a inflexibilidade da campanha e o chefe arguto teria pago com a vida a imprudência, não só ele como todos que o acompanhavam, vítimas, que teriam sido, da sedução melodiosa das filhas de Aqueloo”.
Coelho Neto vai narrando a lenda, e explica que existiria uma sereia especialmente perigosa; aquela que fazia mais vítimas na “Mocidade”. E chega ao desenlace moral à sua maneira: “Essa sereia terreal dá pelo nome de Boêmia. Ninguém a vê, todos, entanto, a ouvem e guiam-se-lhe pela voz. […] Afeta mil metamorfoses, todas as seduções”. Seria ela que, dirigindo-se “à porta das espeluncas tavolageiras, cochichando aos que passam o chamariz do vício”. Entraria ainda na “mesa sórdida das tascas […] desbragadamente e convidando todos a acompanharem-na”. “E assim”, escreveu ele, “satanicamente, com ilusórios prazeres, vai destruindo vidas, estiolando caracteres, apagando em cérebros privilegiados o sagrado lume que esplendera, por vezes, em clarões de genialidade.”
Com seu estilo empolado, Coelho Neto não poupa o adversário nem sequer na morte. Usando de um tom de confissão, contou ele que, quando estreou nas letras, “a Boêmia era a princesa musageta”. Dramático, explicou que o “desvairo era a norma do viver. Ter casa, para quê, se havia o teto do céu, constelado de estrelas? Horas de refeição, isso era para a burguesia”. Fazendo referência a seu início de carreira, mas desfazendo daqueles que se mantêm no “vício”, o acadêmico acrescentava que a figuração do poeta previa sujeitos livres e que aparecessem em público com “trajes miseráveis […] os olhos assonorentados, e o nidor de estômago vazio”. Devia também ter sido fichado por casos de polícia, e por evitar a elegância, ter “cabeleiras leoninas”, “fundilhos remendados”, e não frequentar os salões.
E lá vem o desfecho previsível: “Venceu, por fim, a decência e nesse dia a Boêmia sofreu o primeiro golpe, começando a desprestigiar-se e deixando as ruas centrais da cidade pelos becos e a parte urbana pelos subúrbios”. Não há como ignorar o endereço fixo a que se remetia o material de Coelho Neto. Era Lima o artista embriagado; com entradas em hospitais e manicômios por conta da bebida; que andava a cada dia mais maltrapilho, além de, detalhe nada desimportante, diferentemente dos demais, viver nos subúrbios. Mas faltava ainda a espécie de “homenagem fúnebre”. “Infelizmente, porém, a terrível sereia não se deu por vencida e continuou a procurar talentos para seduzir. Uma das suas últimas vítimas foi esse grande Lima Barreto — e aqui repito o que, em vida do romancista, disse na Academia Brasileira. Esse escritor pujante […] era um boêmio de gênio. Nunca se preocupou com a felicidade […]. Romancista dos maiores que o Brasil tem tido — observando com o poder e a precisão de uma lente, escrevendo com segurança magistral, descrevendo o meio popular como nenhum outro, Lima Barreto, assim como se descuidava de si, da própria vida, descuidou-se da obra que construiu, não procurando corrigi-la de vícios da linguagem, dando-a como lhe saía da pena fácil, sem a revisão necessária, o apuro indispensável, o toque definitivo, de remate que queria a obra d’arte.”15 A ironia é que Lima, que em vida tanto ansiara entrar para a ABL , ganhara direito a discurso (um pouco torto, é certo) na instituição apenas na morte. Só assim podia chegar até o “Olimpo das letras”: pelo contra, como vivera. Era o insubmisso, o desarrumado, o escritor inconveniente, o “boêmio talentoso” mas vencido por seu “vício”.
Lima também passava a ser assumido pela crítica como um autor “entre”: entre gerações, entre gêneros, entre grupos. Não se identificava com seus vizinhos de Todos os Santos, mas também não dominava totalmente os padrões de sociabilidade que vigoravam em boa parte dos círculos literários cariocas. Se não se adequava aos padrões das gerações que imediatamente lhe antecederam, nem aos daquelas com as quais convivia, tampouco parecia coadunar-se com o estilo das novas vogas literárias, que faziam barulho entre os jovens paulistanos. O autor de Policarpo Quaresma considerava “os moços de São Paulo” adeptos demais das vogas futuristas e legítimos representantes das novas elites burguesas e industriais. Já os modernistas paulistanos, ao menos nesse primeiro momento, reservaram a Lima o mesmo tipo de aversão que guardavam com relação ao grosso da produção literária que vinha do Rio de Janeiro, e o julgaram conservador demais. Um regressista que não admitia a entrada dos novos costumes, vogas artísticas e literárias ou hábitos urbanos.
Engraçado pensar que foi Oswald de Andrade, um dos líderes da Semana de 22, quem escreveu que, no Brasil, “o contrário da burguesia não era o proletário — era o boêmio!”.16 Se não tivesse havido uma espécie de rompimento, quase prévio, entre Lima e os modernistas paulistas, quem sabe tal definição do futuro autor do “Manifesto antropófago” não sugerisse uma aproximação com o grupo carioca, do qual Lima era parte integral. Lá estavam eles, sócios da desditosa confraria Esplendor dos Amanuenses, mais gauches, críticos, atentos ao que chamavam de “a realidade social”, sempre com muito humor e reunidos em volta de uma garrafa.
Embora Lima se encaixasse muito bem na definição de Oswald, e seu projeto literário seguisse de alguma forma o compasso das bandeiras dos novos modernismos que surgiam no país, ele acabou no limbo nesses inícios da década de 1920, que ficaram para a história da literatura como um “pré-algo”, no sentido de serem “quase” um período e não outro — pré-modernos, por exemplo —, ou então caracterizados por um termo, por essência, bastante indefinido: belle époque.17 Já na nova régua literária, agora calculada pelos modernos, o criador de Clara dos Anjos deixaria de ser identificado aos “novos”; passaria a lembrar, até por questões geracionais, os “velhos”. Talvez sua morte prematura, que se deu justamente no carregado ano de 1922 — quando foi fundado o Partido Comunista do Brasil, estourou a Revolta dos 18 do Forte, ocorreram a Semana de Arte Moderna e as comemorações do Centenário —, tenha impedido um futuro diferente. Mas essas são histórias do se, as quais não vale a pena explorar.
Se Lima nunca se vinculou ao movimento modernista, sua literatura, em muitos aspectos, bem que poderia ser incluída em qualquer manifesto dessa natureza. Era ele, também, um defensor irascível de uma literatura em diálogo com as próprias especificidades do país; um algoz da mania generalizada de importação que tomara conta dos brasileiros, e sem a devida “tradução local”; um advogado do uso de uma linguagem que incorporasse nossas origens indígenas, africanas e mestiças, assim como a forma popular.18
No entanto, e como sabemos, o pessoal da Klaxon acabou por desdenhar do criador de Isaías Caminha e, nesse descompasso, Lima virou carioca demais e associado ao tipo de literatura que se fazia “na capital” — e que o escritor tanto criticava. Justo ele, que falava mal da verborragia praticada pelos colegas e da voga grega que assolara o contexto carioca.19 O autor de Policarpo Quaresma sentia-se como um quixote das letras nacionais, um defensor de uma literatura mais brasileira e não “contaminada” pelo que vinha do estrangeiro. É certo que alegava filiação ao realismo russo, e não abria mão da influência de Eça de Queirós e Flaubert. Com seu jeito de ambivalente, era como se selecionasse o limite dos possíveis, e só acusasse de “importado” o que não lhe tocava a alma.
Em ambos os casos, e por motivos diferentes, conforme provoca o crítico literário Roberto Schwarz, nessa época o “nacional” era compreendido por “subtração” como sendo produto da mera retirada do que era estrangeiro. Para chegar a uma cultura “genuinamente brasileira”, a operação seria simples, ao menos na aparência: era apenas necessário retirar os elementos que não condiziam ou não eram considerados “originais”. “Reinava um estado de espírito combativo, segundo o qual o progresso resultaria de uma espécie de reconquista, ou melhor, expulsão dos invasores.”20 É certo que o crítico se refere ao modernismo paulista, e não a Lima Barreto, mas surpreende constatar a coincidência de certos alvos: os parnasianos, por exemplo, ou “a exterioridade ianque”, para ficarmos nos termos de Mário de Andrade.
Mais um paralelo entre autores; o autor de Macunaíma, anos mais tarde, menosprezaria o American way of life imposto pelo “irmãozão”, e que em nada combinava com a “paciência nossa tropical”. Também foi Mário quem afirmou que não existiam “negros na propaganda” do American way of life, assim como não se documentavam “negros pobres no Brasil”. Nada mais significativo do que sua “Nova canção de Dixie”, cujo manuscrito é datado de 25 de janeiro de 1944, mas a primeira publicação no Correio Paulistano foi póstuma.21 Mário desconfiou muito da chamada Colour Line Land e, apesar do convite que recebeu para conhecer o país, preferiu não ser “asfixiado” pelo abraço apertado do “Amigo Urso”.22
Mas talvez o que mais aproximasse Lima e Mário fosse o esforço de “abrasileiramento”. Essa não era uma atitude que implicava um nacionalismo irrestrito e muito menos um patriotismo ingênuo. Nem um nem outro eram xenófobos, no sentido de terem total “aversão a valores, práticas e povos estrangeiros”. Como mostra André Botelho, abrasileirar-se significava uma forma mais democrática de lidar com as histórias e as culturas; uma maneira de relacionar-se com seu próprio país a partir do “sentimento” mas também da “imaginação”.23 Nada como relembrar o ensaio de Mário de Andrade sobre Aleijadinho, aquele que, com “o dengue mulato da pedra azul, fazia ela se estorcer com ardor molengo e lento”. Na opinião do líder intelectual da Semana de 22, o escultor mineiro foi “abrasileirando a coisa lusa, lhe dando graça, delicadeza e dengue na arquitetura”. Era assim que ele “reinventava o mundo”.24
Enfim, com vinte anos de gap, os dois escritores pareceriam identificados na bronca que destilavam diante dos americanos, mas igualmente na defesa de uma certa brasilidade que vinha acompanhada e misturada de tantas influências culturais. Afinal, se Lima não escondia de ninguém que era “contra” muitas coisas — a “mania” dos brasileiros de se encantarem com tudo que se produzia fora do país, e que chamava de “a estética do ‘ferro’” que vem nos ensinar literatura por “mares nunca dantes navegados”;25 a falta de solidariedade existente no país; e a literatura mais academicista —, era também “a favor”. A favor do que dizia respeito às especificidades “bem nossas”, expressas nas religiões mistas, nos costumes locais, nas músicas populares e nas histórias retiradas de narrativas de antanho. Contudo, em geral não se é bom vidente de seu próprio momento e, nas fronteiras que distinguiam paulistas de cariocas, o antiamericanismo do criador de Numa pesou e foi entendido como sinônimo de reacionarismo e de aversão a novidades.
Essa era, porém, uma questão pessoal, mas não exclusiva. Na verdade, um grupo inteiro de literatos, situado entre o final do XIX e o início dos anos 1920, foi classificado, então, como “pré-modernista”, no sentido de serem “anteriores”, cronológica e evolutivamente. A crítica coeva incluía não só Lima como toda a sua confraria de intelectuais boêmios, os quais, justamente, buscavam fazer o oposto: usando da crônica social, da crítica política e da caricatura cultural, desenhavam um projeto modernista quiçá paralelo porém sediado no Rio de Janeiro. Em suma, se não vamos refazer todo o debate,26 destaquemos o mais importante, que é como a recepção imediata da obra de Lima acabou por sofrer, e muito, com esse tipo de avaliação.
Além do mais, se parte dos colegas de então o julgou como um literato sem imaginação pois muito comprometido com sua realidade imediata e o cenário que o rodeava, outros o definiram como reacionário, acusando-o de negar o progresso que vinha dos Estados Unidos ou a novidade contida nos movimentos feministas. Não faltaram também aqueles que o chamaram de boêmio em seus costumes e, assim, relaxado na arte que produzia. Enfim, descrito a partir de vários ângulos, o escritor carioca, que tanto duvidou de seu contexto político e literário, pareceu ficar cativo dele. Por trinta anos vigorou uma espécie de contrariedade, quebrada por raros momentos de retomada da obra e da própria história do autor de Isaías Caminha.
É claro que existiram referências e artigos esparsos, mas foi somente nos anos 1940 que o jornalista Francisco de Assis Barbosa — então redator-chefe da Última Hora, de Samuel Wainer,27 com passagens pelo Correio da Manhã, Diário Carioca e Folha de S.Paulo — se interessou pela história e pela obra de Lima Barreto. É dele não só a primeira e mais alentada biografia do autor, que foi lançada em 1952, como uma verdadeira estratégia de retorno do escritor carioca. Assis Barbosa tomou para si a responsabilidade de liderar a reedição dos livros de Lima, o que implicava reunir, organizar e publicar uma obra completa em dezessete volumes. Além disso, selecionou a dedo os prefaciadores de cada volume, destacando também crônicas previamente escritas, e elogiosas ao escritor de Todos os Santos. Os textos de apresentação não foram unânimes: alguns criticaram o criador de Policarpo, outros destacaram sua originalidade. De toda maneira, a empreitada teve jeito de operação de guerra.
Foto do então presidente Getúlio Vargas recebendo os irmãos de Lima Barreto no Catete. Ao fundo, Francisco de Assis Barbosa. Publicada no Diario de Noticias de 29 de maio de 1951.
Francisco de Assis Barbosa, autor de Lima
Chico de Assis Barbosa, como o jornalista era conhecido pelos amigos, arregaçou as mangas durante seis anos para realizar sua extensa pesquisa.28 É o próprio jornalista quem conta que tudo começou quando o editor Zélio Valverde29 o procurou, em 1946, com a incumbência de organizar a obra completa do autor de Policarpo Quaresma. Assis Barbosa tratou, então, de estabelecer contato com os parentes do escritor e recebeu das mãos de d. Evangelina, a irmã de Lima, uma série de documentos que haviam ficado guardados no guarda-louça da casa da família. 30
No entanto, se naquele primeiro momento o projeto de edição da obra completa fracassou, a ideia de escrever uma biografia acabou vingando. Depois de ter posto as mãos nos muitos documentos inéditos, relacionados a material literário e pessoal, o jornalista passou a escrever uma história detalhada da vida de Lima. O livro fez tamanho sucesso que mereceu resenhas de escritores como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Tristão de Ataíde e Manuel Bandeira. Foi mesmo uma consagração do biógrafo e um retorno do biografado.