A Última Hora, jornal em que, como vimos, Assis Barbosa trabalhava na época, cobriu amplamente e encheu de elogios a nova publicação. Numa das matérias, chamou a atenção para os três irmãos de Lima. Evangelina formara-se professora, como a mãe, porém se dedicava às classes de piano. Com um estilo bastante apelativo, o periódico afirmava que ela “não quis casar-se” e que perdera “toda a mocidade, como enfermeira do pai” durante “os longos anos da doença, de 1903 a 1922”.31 Nos fins de semana podia ser encontrada na igreja, tocando órgão. Não há como ter certeza, pois seu nome completo não aparece destacado na matéria, mas bem que poderia ser a mesma Evangelina que dava aulas gratuitas a trezentas crianças no Centro Patriótico 13 de Maio. Se fosse, teria partilhado das posturas de Lima, que sempre defendeu “seus irmãos de cor”, como costumava chamá-los. Em 1952, curiosamente, ela adquiriu um terreno na ilha do Governador, local que conhecia bem — dos tempos de infância. Morreu no ano de 1956.

O irmão Carlindo fez parte da Guarda Civil por mais de trinta anos. Trabalhou como detetive e investigador, mas seu nome acabou sendo associado a casos de “improbidade” referentes a um espancamento promovido por policiais e a uma acusação de falsificação de passagens da Central do Brasil. Com o tempo, e conforme contam alguns dos amigos de Lima, passou a secretariar a obra do irmão escritor.

Eliézer, o caçula, atuou desde jovem como funcionário da Central do Brasil, onde começou como cabineiro e mais tarde foi promovido a condutor. De um jeito ou de outro, a família se encontrava na Central. Faleceu no ano de 1961.

Homenagens à família de Lima Barreto por ocasião do lançamento da biografia. À esq., o irmão Carlindo, que atuava como espécie de secretário do escritor. Última Hora, Rio de Janeiro, 4 de novembro de 1952.

 

Logo depois da publicação da biografia, o então editor da Brasiliense, o historiador Caio Prado Jr.,32 que já declarara considerar Lima o “maior romancista brasileiro”, disse que o julgava, também, “ignorado” e “incompreendido”.33 Talvez por isso mesmo tenha decidido retomar o projeto de edição das obras completas do autor, e chamou Assis Barbosa para organizar o conjunto de escritos, entre romances, contos, crônicas, correspondências e documentos até então esparsos. Barbosa, por sua vez, convidou Manuel Cavalcanti Proença34 e Antônio Houaiss35 para ajudar na tarefa.36

Francisco de Assis Barbosa esmerou-se em cuidar de toda a obra de Lima. Mais: não se limitou a devolver ao público os seus romances; também estabeleceu os diários, que até então não passavam de notas perdidas nas várias cadernetas pessoais do escritor; fez a sistematização da sua correspondência e deu a ela a forma de dois livros; e organizou coletâneas de ensaios. Não contente, escolheu, como vimos, os prefaciadores dos diferentes volumes, de maneira a gerar uma rede de intelectuais que sustentassem o autor; tudo no ano de 1956, quatro anos depois da publicação de sua biografia, fundamental numa época em que ninguém dava muita bola para o criador de Policarpo Quaresma. O projeto era de monta e visava reviver Lima Barreto e sua literatura.

Assis Barbosa assinou a introdução do primeiro volume, dedicado ao romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, e assim inaugurou a coleção. Os demais prefaciadores também impressionam: o escritor e crítico Alceu de Amoroso Lima, cujo pseudônimo era Tristão de Ataíde, com Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá; o historiador Sérgio Buarque de Holanda, com Clara dos Anjos; a crítica literária Lúcia Miguel Pereira, com Histórias e sonhos; Oscar Pimentel, com Os bruzundangas; Olívio Monteiro, com Coisas do Reino do Jambon; o jornalista, escritor e crítico Astrojildo Pereira, com Bagatelas; o filólogo e crítico Antônio Houaiss, com Artigos e crônicas: Vida urbana; o colega do escritor, crítico literário e ensaísta Agripino Grieco, com Artigos e crônicas: Marginália; o romancista e crítico M. Cavalcanti Proença, com Impressões de leitura; o antropólogo e sociólogo Gilberto Freyre, com Diário íntimo; o escritor e crítico literário Eugênio Gomes, com O cemitério dos vivos, que incluía Diário do hospício; e o bom amigo de Lima, Antônio Noronha Santos, fez o posfácio da Correspondência I e, sob o pseudônimo de B. Quadros, da Correspondência II. Também recolheu ensaios de autores influentes mas que, naquela altura, já haviam falecido, como o do historiador, crítico e embaixador Manuel de Oliveira Lima, que escreveu sobre Triste fim de Policarpo Quaresma; o do filólogo, historiador e jornalista João Ribeiro, que ficou com Numa e a ninfa; e artigo do professor, ensaísta e político Jackson Figueiredo, com Feiras e mafuás.37

Era um time de peso. Mas, se a intenção de Assis Barbosa era elevar a obra de Lima, ele não tinha como controlar autores desse calibre, e o tom dos artigos variou, e muito. Por exemplo, já conhecemos o prefácio que o historiador Sérgio Buarque de Holanda escreveu para Clara dos Anjos. Nele, o antigo editor da Klaxon elogiava Lima, mas incluía algumas reservas. Dizia que entre os atributos do escritor de Todos os Santos não estaria o “trato da literatura de imaginação”.38

Também João Ribeiro, ao prefaciar Numa e a ninfa, lamentava o que chamou de “defeito grave” do autor: o pouco acabamento das obras. “Falta sempre a chave da abóbada que ele carpenteja excelentemente”, concluía. Para o historiador, os personagens desapareciam de repente, como que “desfaleciam”. Reclamava ainda da falta de “estilização” do livro, pois todos os envolvidos deveriam restar “sob um véu mais diáfano, evitando nomes conhecidos”.39

Assis Barbosa e dois irmãos de Lima Barreto inauguram uma biblioteca em sua homenagem. Ao fundo, o retrato do escritor. Jornal do Brasil, 15 de março de 1953

 

O velho amigo de Lima Barreto, Noronha Santos, no posfácio de um dos volumes dedicados às correspondências, aderiu ao coro e lamentou: o “álcool o encobriu como uma cortina de fumaça”. Contou que, certa vez, um alto funcionário do jornal O Estado tentara pagar seus artigos em “limonadas, no intuito declarado de regenerá-lo. A regeneração falhou”. Para Noronha, por trás do “panfleto” e do “coup de pistolet, disparado para forçar a atenção, se desenrolava a tragédia do homem de cor, túnica envenenada de que Lima não conseguiu libertar-se até à morte”.40

A crítica literária Lúcia Miguel Pereira conjeturou: “É preciso não esquecer, entre os fatores do desequilíbrio de Lima Barreto, a angústia causada pelo vício que não tinha forças para dominar”. Destacava, na galeria de figuras humanas de Clara dos Anjos, Leonardo Flores, que, segundo ela, era “uma caricatura do seu criador”. Também esse personagem devido “ao álcool e desgostos íntimos […] não era mais que uma triste ruína de homem”.41

Assis Barbosa convidou nada mais nada menos que Gilberto Freyre para escrever a introdução do Diário de Lima. Dessa vez, o projeto e a intenção não tinham como levar a bom resultado. O intelectual pernambucano, no ano de 1956, quando redigiu e datou o prefácio, andava muito empenhado em seu projeto de lusotropicalismo e na difusão do modelo de uma mestiçagem brasileira “democrática” — que se converteria “numa esperança para um mundo dividido”.42 Por isso, evidentemente não gostou muito do material que leu.43 Definiu Lima como “ressentido de ser mulato”, e censurou “seu saber desordenado e como ele próprio boêmio”. Julgou-o “desajustado a sofrer constante e intensamente de seu desajustamento de mulato pobre”, bem como tentou achar algum reconhecimento do escritor diante do que chamava de “bom padrão racial” existente no Brasil. Para tanto, Freyre separou e deslocou um trecho do Diário, do dia 2 de fevereiro de 1905, em que Lima dizia haver “um grande sentimento liberal, com certas restrições, em favor dos negros”.44 Na citação que fez, o antropólogo cortou o trecho em que o criador de Policarpo falava em “certas restrições”, pinçando o que mais convinha à sua teoria.

Claramente pouco confortável na posição, Freyre ainda afirmou que Lima era “homem de sensualidade quase de moça”, e que lhe faltou “a certeza” encontrada por Machado. Era o velho Fla-Flu literário que ressurgia com a volta de Lima Barreto ao mundo editorial, além de um ligeiro comentário maledicente. Segundo Freyre, o escritor de Policarpo Quaresma, “por ser pobre”, não teve oportunidade de se transformar em “mulato sociologicamente branco”, como “o igualmente negroide evidente” — embora bem “mais claro de pele” — Machado de Assis, ou ainda “como o quase negro Juliano Moreira, médico ilustre casado com alemã branquíssima”. Aí ficavam expostos preconceitos de um contexto que condenava a atitude de Lima de não disfarçar sua origem; e, ao contrário, destacar os problemas advindos com o longo e inacabado processo do pós-escravidão. E o antropólogo de Apipucos vai terminando seu texto com o estilo saboroso que o consagrou, dizendo que Lima era como “personagem de romance russo desgarrado nos trópicos”. Categórico, reiterou que nossos “preconceitos [eram] menos de raça do que de classe”. Era Freyre sem tirar nem pôr, mas vestido num terno tão justo que lhe tolhia os movimentos. O criador de Isaías Caminha não combinava com o Brasil que o pernambucano imaginava e desenhava como nação. Era o oposto disso: escancarava exclusivismos sociais, e mostrava que o problema era de classe, sim, porém de raça (também).

Mas nem todos os autores convidados levantaram maiores ou menores óbices à obra de Lima Barreto. Alceu Amoroso Lima — o Tristão de Ataíde — chamou a atenção, na introdução de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, para o período de “plena paz literária” vivido pelo escritor. Aludiu, então, à “trovoada de verão” dos modernistas, que dividiu o ambiente literário entre dois partidos: os “Novos” e os “Velhos”. De acordo com ele, por causa de seu falecimento prematuro, Lima ficara de “fora das letras do modernismo” e não “pertencia nem aos Novos nem aos Velhos”. Interessante que, sem se deter muito no livro que fora incumbido de prefaciar, Amoroso Lima, um conhecido crítico do modernismo paulista, defendeu não existir obra mais “pateticamente moderna” que a do criador de Isaías Caminha.45

Não é o caso de comentar cada um dos prefácios encomendados na ocasião; o objetivo é antes sublinhar a intenção do organizador. Assis Barbosa fez muito mais do que publicar a história de vida de Lima Barreto, o que por si só já significava um tapa de pelica na bem-posta intelectualidade brasileira, que não raro escondia o tema da cor, da raça, das diferenças e das discriminações sociais. O biógrafo acabou forçando gente famosa a ler e a comentar o autor de Todos os Santos e, assim, produzir uma renovada recepção. Com isso, também inspirou gerações que vêm retomando a obra do escritor.46

Esta (quase) conclusão é, portanto, uma forma de homenagear o primeiro biógrafo de Lima Barreto e uma tentativa de destacar os laços afetivos que, em geral, se estabelecem entre o pesquisador e seu objeto de estudo.

Hora de contar uma última história. Ainda nos anos 1990 realizei uma pesquisa sobre o imperador Pedro II na Biblioteca de José Mindlin,47 que abria com imensa generosidade a sua casa a quem quisesse estudar em seus livros e documentos. Foi nessa época que fiquei sabendo que no acervo dele existiam vários documentos que tinham pertencido a Lima Barreto ou que se referiam à sua vida. Em 2010, quando voltei ao estabelecimento, dr. Mindlin, infelizmente, não estava mais vivo, mas Cristina Antunes, a dedicada bibliotecária da coleção, continuava trabalhando por lá e começava a preparar a remoção de parte das obras para a nova sede, na Universidade de São Paulo.48

Fiquei sabendo, então, que d. Yolanda de Assis Barbosa doara a José Mindlin a coleção que pertencera originalmente ao marido dela, Francisco de Assis Barbosa, amigo próximo do bibliófilo. Naquela altura eu já pesquisava sobre Lima Barreto, e fiquei muito surpresa ao ver dispostas, na minha frente, várias pastas contendo um material pouco explorado e que não fazia parte dos documentos do autor de Policarpo depositados em pastas especiais da Biblioteca Nacional.49 Além de muitos registros pessoais de Lima — entre cartas, originais, fotos, recortes, propagandas e folhetos —, todos devidamente incluídos e creditados neste livro, encontrei algumas caricaturas do próprio Francisco de Assis Barbosa.

Nessa primeira imagem de Nássara,50 datada de 1952, vemos duas caricaturas. A do autor da biografia e a do biografado. O jornalista traz seu novo livro nas mãos. Na obra original, Assis Barbosa optou por estampar uma foto de Lima, aqui prontamente substituída por um desenho.

Francisco de Assis Barbosa carrega sua biografia de Lima Barreto. Última Hora, 16 de setembro de 1952.

 

A imagem foi publicada na Última Hora, que, como vimos, fez muito barulho quando do lançamento da biografia de Lima. No entanto, e pelo visto, um recorte mais amplo foi afetivamente guardado na coleção do homenageado: o jornalista e biógrafo Francisco de Assis Barbosa. No meio do caminho, achei também outro original de uma caricatura de Lima, de corpo inteiro. Era evidentemente um rascunho do mesmo desenho, que ficou preservado entre os documentos do jornalista.

Interessante pensar em outra matéria, que saiu no jornal Última Hora também por ocasião da publicação do livro, cujo título era “Almoçamos com ‘Lima Barreto’”. Na imagem está, por razões óbvias, Chico de Assis Barbosa.

Caricatura original de Lima Barreto encontrada no acervo de Francisco de Assis Barbosa. Ela aparece na matéria do jornal Última Hora, como capa da nova biografia.