Esse conjunto de documentos visuais guarda um elemento comum: neles, como se pode ver, a figura de Francisco de Assis Barbosa vai se misturando com a de Lima Barreto.
Ao fundo está o Pão de Açúcar, ao centro, uma pilha com vários títulos de Lima Barreto, à esquerda, Francisco de Assis Barbosa já com o fardão da Academia.
Mais uma caricatura. Dessa, perdemos a pista de origem ou data. Mas ela homenageia, com certeza, a publicação da obra completa de Lima Barreto, em 1956. Afinal, nela aparecem os exatos dezessete livros da coleção, empilhados à direita do personagem caricaturado, com os títulos bem legíveis. Ao fundo está o Pão de Açúcar, indicando o local de origem do biógrafo e também do biografado. Numa das mãos, Assis Barbosa traz a sua biografia, e na outra uma placa em que se lê: “Tô com o Lima e não abro”. É evidente a associação entre Barbosa e a obra que ele ajudou, e muito, a difundir. Há, porém, uma segunda possibilidade. A roupa que o biógrafo usa lembra o fardão da ABL, instituição para a qual foi eleito em 1970 (e tomou posse no ano seguinte). Se o biografado não conseguiu entrar na casa de Machado de Assis, seu biógrafo, sim, o fez, e deveu muito, como ele próprio reconheceu, a Lima.
Todo esse percurso lembra o que o historiador francês Pierre Nora chamou de “lugares de memória”. Segundo ele, até mesmo um depósito de arquivos, que guarda uma aparência puramente material, só se transforma num lugar de memória se a imaginação o investir como tal.51 Qualquer objeto, qualquer documento — um testamento, uma certidão de casamento ou de nascimento, uma foto ou um desenho —, só ganham sentido se incluirmos neles nossas lembranças e afetos.
“Lugares de memória” nascem e vivem, portanto, a partir do sentimento e da emoção, e é possível dizer que nunca surgem espontaneamente. Ou seja, acabamos por ritualizar algumas memórias, não todas. Aliás, se tentássemos guardar todas as nossas lembranças, elas seriam basicamente inúteis. Somos nós que damos sentido às recordações e, em geral, é a história que se apodera delas, as seleciona, e assim lhes confere certo significado de perenidade. Não só lembramos, como fazemos questão de esquecer, também. Por isso, os “lugares de memória” vigoram quando o simples registro passageiro cessa de existir; ou seja, quando suspendemos a lembrança do dia a dia e resolvemos dar a ela um lugar mais fixo e estabelecido. Nesse momento, ela deixa de ser mera reminiscência, para ganhar um valor simbólico e sentimental.
Arquivos não são, pois, apenas arquivos. Sejam eles privados ou públicos, dizem muito a respeito dos desejos de seus proprietários. Carregam consigo as intenções de seus idealizadores, bem como armazenam e organizam as suas memórias. Mais ainda, a cada vez que uma coleção muda de mão, novas possibilidades de sentido vão sendo adicionadas. Dessa maneira, não há nada de acidental naquilo que guardam e no modo como o guardam.52
É evidente que o arquivo de Francisco de Assis Barbosa continha muito do que afetou e impactou a sua biografia sobre Lima Barreto: imagens do pai, da mãe e do avô do escritor. Imagens de Lima junto (e separado) dos colegas na foto da turma da Politécnica, folhetos como O Papão — uma brincadeira impressa dos tempos de Hermes da Fonseca —, rascunhos de notas e de contos, a lista de quem foi à missa do ex-amanuense e o cartão de pêsames da família.
Assim, esse era um arquivo do arquivo. Aquilo que Assis Barbosa julgou importante reter para si, e não entregar com os demais documentos que foram doados à Biblioteca Nacional. Hoje sabemos, e por intermédio do próprio Francisco de Assis Barbosa, que os livros que compunham a biblioteca de Lima Barreto acabaram praticamente destruídos.53 A Limana foi doada pela família a José Mariano Filho, logo após a morte do escritor.54 José Mariano custeara as despesas do sepultamento não só do romancista, como do pai deste. Arcou também com a transladação dos corpos de Inhaúma para o Cemitério São João Batista. Uma matéria de jornal explica que “a família de Lima Barreto resolveu ofertar ao dr. José Mariano Filho a biblioteca do escritor, expressa nas seguintes linhas: ‘Todos os Santos, 1 de julho de 1924 — Exmo. sr. dr. José Mariano Filho — Saudações — Sendo nosso desejo enviar-lhe uma lembrança do nosso falecido irmão, Lima Barreto, tomamos a liberdade de oferecer-lhe sua modesta biblioteca, esperando que nos dê a honra de aceitá-la. Evangelina de Lima Barreto, Carlindo de Lima Barreto e Eliézer de Lima Barreto’”.55
O benfeitor parece não ter dado maior importância ao presente, que depositou numa chácara de sua propriedade em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Os livros desapareceram em sua maior parte. O próprio Assis Barbosa visitou o local e só encontrou meia dúzia de volumes em péssimo estado. Eram os últimos destroços da Limana, que restou viva somente na relação de obras feita por seu antigo proprietário, cuidadosamente, nos idos de 1917. Localizamos apenas um livro que teria pertencido à coleção de Lima Barreto, e que hoje se encontra na Biblioteca Nacional. Significativamente, era o exemplar de As grandes invenções antigas e modernas nas ciências, indústria e artes: Obra para uso da mocidade, de Louis Figuier, que a professora Teresa Pimentel tinha dado ao aluno, em 1890, e que ele guardava como um troféu de seu bom relacionamento com a mestra.
Já os papéis íntimos que estavam com d. Evangelina foram recolhidos, organizados e depois vendidos, entre 1944 e 1947, à Biblioteca Nacional, que pagou um valor aproximado de 45 mil cruzeiros pela coleção, ainda quando Rubens Borba de Moraes dirigia a instituição.56 Ali havia rascunhos, cadernos de notas e apontamentos, cartas de amigos e minutas das respostas, além de manuscritos completos de algumas das obras de Lima. Achavam-se todos num armário da sala de visitas, a qual servia também de sala de aula para as lições de piano que Evangelina ministrava às suas alunas, na modesta casa em que morava, em Inhaúma. Os papéis encontravam-se desorganizados, em consequência das sucessivas mudanças. Foi Francisco de Assis Barbosa quem tratou de sistematizá-los, junto com a paciente irmã do escritor.57
Imagens pertencentes à coleção de Francisco de Assis Barbosa que passaram a integrar a biblioteca Guita e José Mindlin e hoje se encontram na Brasiliana Guita e José Mindlin da USP. São muitos os lugares de memória.
Recorte encontrado na Limana traz a imagem da casa, hoje demolida, onde o escritor possivelmente morou.
Aí está, portanto, o desenlace dessa trama. Parte da história que a família de Lima Barreto resolveu guardar no guarda-louça. Parte da história que o biógrafo reteve para si. Parte da história que o próprio Lima julgou que valia a pena lembrar. Afinal, ele era um colecionador de si mesmo, e colocava tudo que podia na sua Limana. Era como se não quisesse deixar nada passar, como se cuidasse de sua memória, que poderia ser reconstituída por meio de recortes.
Quantos “espaços de memória” habitavam a Limana? Justamente ela, que se perdeu, mas também se achou. Enfim, essas são histórias dentro das histórias; coleções que viram outras coleções.
Tudo lembra a biblioteca do professor Peter Kien — personagem principal da obra de Elias Canetti, Auto de fé. Eminente sinólogo, sua obsessão eram, justamente, os livros. De tão vinculado a eles, no final da vida sentia saudades apenas de sua coleção de livros, do sossego e do espírito que ela continha. Dizia que em sua biblioteca moravam “Dez mil livros e, sobre cada um, um fantasma acocorado”.
O que seriam esses recortes dispersos, mas unidos pela mão de seu proprietário, o escritor boêmio Lima Barreto? Lá estão uma casa idealizada, os rascunhos da letra L, uma caricatura que ficou em forma de rascunho, o verso de um cartão-postal, um telegrama com a sua assinatura, um pedaço de um de seus contos prediletos: “A nova Califórnia”. São as assombrações e os fantasmas afetivos do próprio Lima. A sua memória, as nossas memórias.
A assombração apagou a candeia/ Depois no escuro veio com a mão/ Pertinho dele/ Ver se o coração ainda batia
— Oswald de Andrade, “O medroso”, Poemas de colonização, em Pau-Brasil