Os capítulos 24 e 25 d’O capital apresentam uma nítida mudança de tom, conteúdo e método. Para começar, eles vão de encontro ao pressuposto central do resto do livro, estabelecido no capítulo 2, em que Marx aceita o mundo teórico de Adam Smith de trocas atomísticas realizadas no mercado; nesse mundo, a liberdade, a igualdade, a propriedade e Bentham reinam de tal modo que todas as trocas de mercadoria ocorrem num ambiente não coercitivo de instituições liberais em perfeito funcionamento. Smith sabia perfeitamente bem que esse não é o modo como o mundo realmente funciona, mas aceitou-o como uma ficção conveniente e convincente sobre a qual ele podia erigir uma teoria econômico-política normativa. Marx, como vimos, leva tudo isso em conta para desconstruir seu utopismo.
Usando desse estratagema, Marx foi capaz de mostrar, como vimos no último capítulo, que, quanto mais próximos estivermos de um regime de mercado livre, mais nos veremos confrontados com duas importantes consequências. A menor delas é que a estrutura descentralizada, fragmentada e atomística que evitaria que um poder singular dominasse e manipulasse o mercado dá lugar a um poder capitalista cada vez mais centralizado. A concorrência tende sempre a produzir monopólio e, quanto mais feroz a concorrência, mais rápida é a tendência à centralização. A maior das consequências é a produção, de um lado, de imensas concentrações de riquezas (em particular da parte dos capitalistas centralizadores) e, de outro, de uma crescente miséria, exploração e degradação da classe trabalhadora.
O projeto neoliberal dos últimos trinta anos, fundado no utopismo liberal, confirmou as duas tendências previstas por Marx. É claro que, nos detalhes, há uma grande dose de divergência, tanto geográfica quanto setorial, mas o grau de centralização do capital que ocorreu em várias esferas foi avassalador, e há um reconhecimento geral de que as imensas concentrações de riqueza que ocorreram no ponto mais alto da escala de riqueza e renda jamais foram tão grandes como agora, enquanto as condições de vida das classes trabalhadoras do mundo inteiro estagnaram ou se deterioraram. Nos Estados Unidos, por exemplo, a proporção da renda e da riqueza concentradas nas mãos do 1% mais rico da população dobrou nos últimos vinte anos, e a do 0,1% mais rico triplicou. A proporção de renda entre os diretores executivos e os trabalhadores assalariados médios, que era de 30:1 nos anos 1970, passou para mais de 350:1 em média nos últimos anos. Onde quer que a neoliberalização tenha sido desenfreada (como no México e na Índia a partir dos anos 1990), novos bilionários entraram para a lista da Forbes das pessoas mais ricas do mundo. O mexicano Carlos Slim é hoje uma das pessoas mais ricas do mundo, e ele alcançou essa posição na esteira da neoliberalização que ocorreu no México no início dos anos 1990.
Marx chegou a essas conclusões contraintuitivas desconstruindo, em seus próprios termos, as teses dos economistas políticos clássicos. Mas também usou criticamente suas poderosas abstrações para penetrar a dinâmica real do capitalismo e revelar as origens das lutas em torno da duração da jornada de trabalho, das condições de vida do exército industrial de reserva e coisas do gênero. A análise do Livro I pode ser lida como um relato sofisticado e condenatório de que “não há nada mais desigual do que tratar desiguais como iguais”. A ideologia da liberdade de troca e da liberdade de contrato nos ludibria a todos. Fundamenta a superioridade e a hegemonia moral da teoria política burguesa e sustenta sua legitimidade e seu suposto humanismo. Mas, quando as pessoas entram nesse mundo livre e igualitário das trocas mercantis com dotes e recursos diferentes, mesmo a menor desigualdade, para não falar da divisão fundamental da posição de classe, aprofunda-se e transforma-se com o tempo em enormes desigualdades de influência, riqueza e poder. E isso, quando somado a uma centralização crescente, contribui para a inversão devastadora de Marx da visão smithiana do “benefício de todos” que deriva da mão invisível do mercado. Isso esclarece o conteúdo de classe daquilo que, por exemplo, caracterizou os últimos trinta anos de globalização neoliberal. O resultado em Marx é uma crítica feroz das teses da liberdade individual que fundamentam a teoria liberal e neoliberal. Esses ideais são, na visão de Marx, tão enganadores, fictícios e fraudulentos quanto sedutores e cativantes. Os trabalhadores, como observa ele, são livres apenas no duplo sentido de ser capazes de vender sua força de trabalho para quem quiserem, ao mesmo tempo que são obrigados a vender essa força de trabalho para viver, porque foram libertados e liberados de todo e qualquer controle sobre os meios de produção!
O que os capítulos 24 e 25 d’O capital fazem é analisar como esse segundo tipo de “liberdade” foi assegurado. Somos obrigados a enfrentar o uso predatório, violento e abusivo do poder que se encontra nas origens históricas do capitalismo, quando ele liberou a força de trabalho como uma mercadoria e eliminou o modo de produção anterior. Os pressupostos que dominaram o argumento em todos os capítulos anteriores d’O capital são abandonados com consequências brutais.
O capitalismo, como vimos, depende fundamentalmente de uma mercadoria capaz de produzir mais valor do que aquele que ela tem, e essa mercadoria é a força de trabalho. Como Marx observa numa passagem d’O capital:
A pergunta sobre por que esse trabalhador livre se confronta com ele na esfera da circulação não interessa ao possuidor de dinheiro, que encontra o mercado de trabalho como uma seção particular do mercado de mercadorias. E, no presente momento, ela tampouco tem interesse para nós. Ocupamo-nos da questão teoricamente, assim como o possuidor de dinheiro ocupa-se dela praticamente. Uma coisa, no entanto, é clara. A natureza não produz possuidores de dinheiro e de mercadorias, de um lado, e simples possuidores de suas próprias forças de trabalho, de outro. Essa não é uma relação natural e tampouco uma relação social comum a todos os períodos históricos. Mas é claramente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econômicas, da derrocada de toda uma série de formas anteriores de produção social. (244)
A acumulação primitiva diz respeito às origens históricas desse trabalho assalariado, assim como à acumulação nas mãos do capitalista dos recursos necessários para empregá-lo.
Os capítulos 24 e 25 tratam, portanto, da questão central da transformação da força de trabalho em mercadoria (ou, de modo mais geral, da formação da classe trabalhadora). A versão burguesa dessa história, contada por Locke e Smith, é a seguinte:
Numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa e, por outro, um bando de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais [...]. Deu-se, assim, que os primeiros acumularam riquezas e os últimos acabaram sem ter nada para vender, a não ser sua própria pele. E desse pecado original datam a pobreza da grande massa, que ainda hoje, apesar de todo seu trabalho, continua a não possuir nada para vender a não ser a si mesma, e a riqueza de poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham deixado de trabalhar. (785)
Essa história descreve uma transição gradual e pacífica do feudalismo para o capitalismo. Mas “na história real”, diz Marx,
o papel principal é desempenhado pela conquista, pela subjugação, pelo assassínio para roubar, em suma, pela violência. Já na economia política, tão branda, imperou sempre o idílio. Direito e “trabalho” foram, desde tempos imemoriais, os únicos meios de enriquecimento, excetuando-se sempre, é claro, “este ano”. (786)
Isso acontece porque
o processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte, mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ela aparece como “primitiva” porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde. (786)
Em termos factuais, os métodos da acumulação primitiva “podem ser qualquer coisa, menos idílicos [...]. E a história dessa expropriação está gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo” (786-7).
A visão de Marx, radicalmente diferente da de Smith e Locke, levanta questões interessantes. Em primeiro lugar: o capital comercial e financeiro e a usura são formas antediluvianas ou ainda desempenham um papel ativo, independente do capital de produção, do capital industrial etc.? Anteriormente, Marx observou que “tanto o capital comercial como o capital a juros são formas derivadas”, ao mesmo tempo que “tornar-se-á claro por que elas surgem historicamente antes da moderna forma basilar do capital” (240). Isso implica que a transição do feudalismo para o capitalismo ocorreu em estágios em que o capital comercial e o capital usurário abriram o caminho para o capital de produção (ou industrial). O papel que essas formas anteriores de capital desempenharam na dissolução da ordem feudal está, portanto, aberto à investigação. Em segundo lugar: isso significa que, uma vez que o capitalismo passou pela acumulação primitiva, e uma vez que a pré-história acabou e surgiu uma sociedade capitalista madura, os violentos processos que ele descreve tornam-se insignificantes e desnecessários ao modo como o capitalismo funciona? Essa é uma questão à qual retornarei mais adiante. Mas é bom tê-la em mente, enquanto prosseguimos.
Na versão de Marx da acumulação primitiva, todas as regras da troca mercantil expostas anteriormente (no capítulo 2) são abandonadas. Não há reciprocidade nem igualdade. Sim, a acumulação do dinheiro está lá, bem como os mercados, mas o processo real é diferente. Trata-se da expropriação violenta de toda uma classe de pessoas do controle sobre os meios de produção, primeiro por meio de ações ilegais e, por fim, como a lei de cercamento na Inglaterra, pela ação do Estado. Adam Smith, é claro, não queria que o Estado fosse entendido como um agente ativo na vitimação da população e, por isso, não podia contar uma história da acumulação primitiva em que o Estado desempenhasse um papel crucial. Se as origens da acumulação do capital se encontram no aparato e no poder estatal, qual é o sentido de defender políticas de laissez-faire como um meio fundamental para aumentar o bem-estar nacional e individual? Por isso, Smith, e a maioria dos economistas políticos clássicos, preferiu ignorar o papel do Estado na acumulação primitiva. Houve exceções. James Steuart, observa Marx, compreendeu que a violência estatal era absolutamente fundamental para a proletarização, mas assumiu a posição de que era um mal necessário. O livro de Michael Perelman, The Invention of Capitalism [A invenção do capitalismo][1], fornece uma excelente explicação sobre como a acumulação original ou primitiva foi tratada na economia política clássica.
A principal preocupação de Marx nos capítulos 24 e 25 é esmiuçar a história da acumulação primitiva do século XVI em diante e investigar como esses processos foram postos em movimento. É claro que ele admite prontamente que a “história [da expropriação da terra] assume tonalidades distintas nos diversos países e percorre as várias fases em sucessão diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropriação se apresenta em sua forma clássica” (787-8).
Devemos entender por “clássica” que essa expropriação foi um modelo de transição para o capitalismo que o mundo inteiro teve de seguir? Mais tarde, Marx negou essa interpretação e afirmou que via a Grã-Bretanha apenas como um exemplo, apesar de especial e pioneiro. Mais uma vez, essas questões são controversas, e teremos de retornar a elas. O modo como pensamos sobre elas tem relevância para outra questão importante, porém largamente negligenciada: é necessário passar pela acumulação primitiva e pela longa história do capitalismo para chegar ao socialismo?
Os itens do capítulo 24 são relativamente curtos e ordenados numa sequência com claras implicações. Vejamos alguns de seus pontos mais importantes. O primeiro item trata da expropriação da população agrícola, bem como do processo igualmente importante de dissolução dos laços dos vassalos feudais. A apropriação da terra foi o meio principal para expropriar o campesinato, mas a liberação dos vassalos se deveu muito ao modo como o poder do dinheiro começou a ser exercido na, e sobre a, ordem feudal (por exemplo, pelo capital comercial e pela usura). “A nova nobreza era uma filha de sua época, para a qual o dinheiro era o poder de todos os poderes” (790). Nos Grundrisse, Marx é bem mais explícito. Lá, ele mostra como o dinheiro dissolve a comunidade tradicional e, ao fazê-lo, torna-se ele mesmo a comunidade. Assim, passamos de um mundo em que a “comunidade” é definida em termos de estruturas de relações sociais interpessoais para um mundo em que prevalece a comunidade do dinheiro. O dinheiro, usado como poder social, conduz à criação de grandes latifúndios, criações de ovelhas e coisas do gênero, ao mesmo tempo que a troca de mercadorias prolifera (uma ideia muito presente nos capítulos iniciais sobre o dinheiro e a troca em geral). A comunidade tradicional não capitula sem lutar e, ao menos nos estágios iniciais, o poder estatal tenta preservar aquilo que, mais tarde, E. P. Thompson chamaria de “economia moral” do campesinato contra o poder nu e cru do dinheiro.
Mas o poder estatal cede gradualmente por duas razões. Em primeiro lugar, porque o Estado depende do poder do dinheiro e torna-se, assim, vulnerável a ele. Em segundo lugar, porque o poder do dinheiro pode ser criado e mobilizado de um modo que a legislação estatal tenha dificuldade de detê-lo. Sob Henrique VII, aprovaram-se leis que tentavam conter o processo de monetização e proletarização. Mas o poder cada vez maior do incipiente capitalismo demandava, ao contrário, “uma posição servil das massas populares, a transformação destas em trabalhadores mercenários e a de seus meios de trabalho em capital”. Um “novo e terrível impulso ao processo de expropriação violenta das massas populares foi dado, no século XVI” e, depois disso, a resistência da ordem social tradicional começou a ruir (792). Em vez de as ilegalidades do poder do dinheiro assumirem uma liderança subversiva, o Estado se alia a esse poder e começa a apoiar ativamente os processos de proletarização. Essa tendência se consolida, diz Marx, com a Revolução Gloriosa de 1688, que:
conduziu ao poder, com Guilherme III de Orange, os extratores de mais-valor, tanto proprietários fundiários como capitalistas. Estes inauguraram a nova era praticando em escala colossal o roubo de domínios estatais que, até então, era realizado apenas em proporções modestas. Tais terras foram presenteadas, vendidas a preços irrisórios ou, por meio de usurpação direta, anexadas a domínios privadas. [...] O patrimônio do Estado, apropriado desse modo fraudulento, somado ao roubo das terras da Igreja [...], constitui a base dos atuais domínios principescos da oligarquia inglesa. (795-6)
Sobre essa base, formaram-se alianças de classe novas e mais poderosas. “A nova aristocracia fundiária era aliada natural da nova bancocracia, das altas finanças recém-saídas do ovo e dos grandes manufatureiros, que então se apoiavam sobre tarifas protecionistas.” Em outras palavras, formou-se uma burguesia constituída por uma ampla aliança entre capitalistas rurais, comerciais, financeiros e manufatureiros. Eles curvam o aparato estatal à sua vontade coletiva. O resultado é que a “própria lei se torna, agora, o veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes arrendatários também empreguem paralelamente seus pequenos e independentes métodos privados”.
Desse modo, o roubo sistemático da propriedade comunal se estende por todo o período, com destaque para o amplo cercamento das terras comuns. A “violenta usurpação dessa propriedade comunal, em geral acompanhada da transformação das terras de lavoura em pastagens, tem início no final do século XV e prossegue durante o século XVI” (796). Fortuitamente, tais circunstâncias deram origem a uma importante literatura nostálgica sobre a perda da antiga ordem. Esse era o mundo de Oliver Goldsmith e das elegias de Gray sobre a destruição de uma suposta alegre Inglaterra[a]. Marx escolhe um exemplo posterior, o caso espetacular da expulsão dos habitantes das Terras Altas escocesas, onde os camponeses foram expulsos pouco a pouco de suas terras até o fim do século XIX. Ele critica a hipocrisia da duquesa de Sutherland, que, enquanto expulsava as pessoas das Terras Altas por um processo quase legal, recebia “em Londres, com grande pompa, a autora de A cabana do pai Tomás, Harriet Beecher Stowe, a fim de exibir sua simpatia pelos escravos negros da república americana” (802, nota 218)
Diz Marx, em resumo:
O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Tais métodos conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente livre. (804)
A questão sobre o que todas essas pessoas expulsas de suas terras fariam é tratada no item 3. Em geral não havia emprego para elas; então, ao menos aos olhos do Estado, tais indivíduos se tornavam vagabundos, mendigos, ladrões e assaltantes. O aparato estatal respondia de um modo que perdura até nossos dias: criminalizando e encarcerando, tratando-os como vagabundos e praticando contra eles a mais extrema violência. “Assim, a população rural, depois de ter sua terra violentamente expropriada, sendo dela expulsa e entregue à vagabundagem, viu-se obrigada a se submeter, por meio de leis grotescas e terroristas, e por força de açoites, ferros em brasa e torturas, a uma disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado.” A violência da socialização dos trabalhadores ao aparato disciplinar do capital é nítida. Mas, com o passar do tempo, “a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador”. Uma vez formado o proletariado, segundo o que Marx parece dizer, a muda coerção das relações econômicas cumpre sua missão, e a violência flagrante pode passar a segundo plano, pois as pessoas foram socializadas à situação de trabalhadoras assalariadas, como portadoras da mercadoria-força-de-trabalho. Mas “a burguesia emergente” continua a necessitar do “poder do Estado” para regular os salários e evitar qualquer tipo de organização coletiva dos trabalhadores (a legislação antissindical e o que foi chamado na época de Combination Laws, leis que proibiam associações e até mesmo assembleias de trabalhadores) (808-9). Esse foi um apoio crucial, observa Marx, para a consolidação do regime liberal (fundado nos direitos de propriedade privada).
Já no início da tormenta revolucionária, a burguesia francesa ousou despojar novamente os trabalhadores de seu recém-conquistado direito de associação. O decreto de 14 de junho de 1791 declarou toda coalizão de trabalhadores um “atentado à liberdade e à Declaração dos Direitos do Homem”. (812)
A legalidade burguesa é usada desse modo muito específico para inibir os potenciais poderes coletivos do trabalho.
O item 4 examina a gênese dos arrendatários capitalistas. Marx conta uma história muito simples sobre como os bailios primeiro se tornaram meeiros e depois arrendatários passando, então, a pagar renda fundiária (em dinheiro) aos senhores rurais. Esse processo de monetização e mercantilização deu impulso a uma “revolução agrícola” no campo, permitindo que o capital utilizasse o solo de determinada maneira. O capital circulava através do solo, da natureza, exatamente do mesmo modo que circulava através do corpo do trabalhador como capital variável. O impacto dessa revolução agrícola, diz Marx no item 5, teve dois lados: liberou não só uma grande quantidade de trabalho, mas também meios de subsistência que antes eram consumidos diretamente na terra. Ele mercantilizou a oferta de alimentos. O mercado para bens e mercadorias cresceu, em parte porque menos pessoas podiam subsistir por sua própria conta. O resultado foi a expansão das trocas e o crescimento do mercado. Enquanto isso, o capital destruiu grande parte dos negócios subsidiários artesanais e domiciliares não apenas na Índia, como também na Grã-Bretanha. Isso levou à criação de um mercado doméstico mais forte e maior. O crescimento do mercado interno na Grã-Bretanha a partir do século XVI foi, segundo Marx, um elemento importante no desenvolvimento do capitalismo.
Isso nos conduz, no item 6, à gênese do capitalista industrial, que assumiu o papel de protagonista que antes era desempenhado pelo capital comercial, pelo capital usurário, pela bancocracia (capital financeiro) e pelo capital fundiário. Desde o início, essa mudança estava estreitamente ligada ao colonialismo, ao comércio escravagista e ao que ocorreu na África e nos Estados Unidos. No feudalismo havia muitas barreiras para a transformação da quantidade cada vez maior de capital monetário em capital industrial. “O regime feudal no campo e a constituição corporativa nas cidades” inibiram o desenvolvimento industrial baseado no trabalho assalariado, mas “essas barreiras caíram com a dissolução dos séquitos feudais e com a expropriação e a parcial expulsão da população rural”. Contudo, como prediz Marx,
A nova manufatura se instalou nos portos marítimos exportadores ou em pontos do campo não sujeitos ao controle do velho regime urbano e de sua constituição corporativa. Na Inglaterra se assistiu, por isso, a uma amarga luta das corporate towns[b] contra essas novas incubadoras industriais. (820-1)
Na Grã-Bretanha, o capitalismo industrial se desenvolveu naquilo que hoje chamaríamos de áreas não cultivadas [greenfield sites]. Centros econômicos como Norwich e Bristol eram altamente organizados, e era muito difícil enfrentá-los politicamente e conter o poder das guildas. Nas regiões não cultivadas não existiam aparatos regulatórios para detê-lo – não havia uma burguesia citadina ou guildas organizadas. Por isso, a maior parte da industrialização britânica ocorreu em antigos vilarejos, como Manchester (todas os centros algodoeiros eram originalmente pequenos vilarejos). Leeds e Birmingham também começaram como pequenos vilarejos comerciais. Esse padrão de industrialização difere daquele de outras regiões, embora continue a valer a regra de que, sempre que possível, o capital gosta de se deslocar para lugares ermos. Quando a indústria automobilística japonesa se transferiu para a Grã-Bretanha nos anos 1980, ela evitou as regiões mais sindicalizadas e instalou-se em áreas abertas a novos desenvolvimentos, onde as companhias podiam agir com liberdade e construir o que bem quisessem (com o apoio do governo antissindical de Thatcher, é claro). Nos Estados Unidos, a tendência é a mesma. Encontrar espaços onde não há regulação e organização sindical continua a ser um aspecto significativo da dinâmica geográfica e locacional do capitalismo.
O papel do sistema colonial e do comércio escravagista não pode ser ignorado, pois foi por meio deles que a burguesia cercou e subjugou os poderes feudais. Há uma forte corrente de opinião que vê as plantations das Índias Ocidentais no começo do século XVIII como um estágio pioneiro da organização de trabalho em larga escala, como aquelas que reapareceram mais tarde nos sistemas fabris da Grã-Bretanha: “Tais métodos, como, por exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal” (821). Todo tipo de tática foi usado para extrair riqueza das populações colonizadas. “Entre 1769 e 1770”, por exemplo, “os ingleses fabricaram um surto de fome por meio da compra de todo arroz e pela recusa de revendê-lo, a não ser por preços fabulosos” (822-3). Todos esses métodos
lançaram mão do poder do Estado, da violência concentrada e organizada da sociedade, para impulsionar artificialmente o processo de transformação do modo de produção feudal em capitalista e abreviar a transição de um para o outro. A violência é a parteira de toda sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência econômica. (821)
Mas não podemos entender esse papel crucial do Estado como força organizadora e como promotor do sistema colonial sem reconhecer a importância tanto da dívida nacional quanto do sistema de crédito público como meios pelos quais o poder do dinheiro pode começar a controlar o poder do Estado. A fusão do poder do dinheiro com o poder estatal a partir do século XVI é assinalada pelo advento de um “moderno sistema tributário” e de um sistema internacional de crédito (826). Os “bancocratas, financistas, rentistas, corretores, stockjobbers [bolsistas]” etc. que povoavam esse sistema passaram a desempenhar importantes funções de poder (825). O sistema colonial permitia que “os tesouros espoliados fora da Europa diretamente mediante o saqueio, a escravização e o latrocínio” fossem levados “à metrópole”, onde “se transformavam em capital”, ao mesmo tempo que a dívida pública se tornava “uma das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva” (824).
Sistema colonial, dívidas públicas, impostos escorchantes, protecionismo, guerras comerciais etc., esses rebentos do período manufatureiro propriamente dito cresceram gigantescamente durante a infância da grande indústria. O nascimento desta última é celebrado pelo grande rapto herodiano dos inocentes. (827)
Esse “massacre” surgiu da necessidade de encontrar e mobilizar força de trabalho suficiente em áreas distantes das cidades. Marx cita John Fielden: “O que mais se requisitava eram dedos pequenos e ágeis. Logo surgiu o costume de buscar aprendizes (!) nas diferentes workhouses paroquiais de Londres, Birmingham e outros lugares” (827). E Marx prossegue: “Enquanto introduzia a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para a transformação da economia escravista dos Estados Unidos, antes mais ou menos patriarcal, num sistema comercial de exploração”, e com isso estimulava o comércio escravagista, que estava sob o domínio dos britânicos. “Liverpool teve um crescimento considerável graças ao tráfico de escravos. Esse foi seu método de acumulação primitiva” (829). Foi necessário um imenso esforço para
trazer à luz as “eternas leis naturais” do modo de produção capitalista, para consumar o processo de cisão entre trabalhadores e condições de trabalho, transformando, num dos polos, os meios sociais de produção e subsistência em capital e, no polo oposto, a massa do povo em trabalhadores assalariados, em “pobres laboriosos” livres, esse produto artificial da história moderna. (829)
Se o dinheiro “vem ao mundo com manchas naturais de sangue numa de suas faces”, conclui Marx, “o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés” (830).
Os processos de expropriação, afirma Marx no item 7, são tão longos quanto brutais e dolorosos. O feudalismo não acabou sem luta. “A partir desse momento, agitam-se no seio da sociedade forças e paixões que se sentem travadas por esse modo de produção.”
[O feudalismo] tem de ser destruído, e é destruído. Sua destruição, a transformação dos meios de produção individuais e dispersos em meios de produção socialmente concentrados e, por conseguinte, a transformação da propriedade nanica de muitos em propriedade gigantesca de poucos, portanto, a expropriação que despoja grande massa da população de sua própria terra e de seus próprios meios de subsistência e instrumentos de trabalho, essa terrível e dificultosa expropriação das massas populares, tudo isso constitui a pré-história do capital. (831)
Essa pré-história “compreende uma série de métodos violentos” que levam ao “mais implacável vandalismo” (831). Mas, uma vez em movimento, os processos do desenvolvimento capitalista assumem sua própria lógica distintiva, inclusive a da centralização. “Cada capitalista liquida muitos outros. Paralelamente a essa centralização, ou à expropriação de muitos capitalistas por poucos, desenvolve-se a forma cooperativa do processo de trabalho em escala cada vez maior, a aplicação técnica consciente da ciência, a exploração planejada da terra” (832).
Isso ocorre à medida que se forma o mercado mundial e, com ele, o “caráter internacional do regime capitalista”. Disso também emerge a revolta da classe trabalhadora,
que, cada vez mais numerosa, é instruída, unida e organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital se converte num entrave para o modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem um grau em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. O entrave é arrebentado. Soa a hora derradeira da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados. (832)
Há, no fim das contas, uma enorme diferença entre “a expropriação da grande massa da população” por uns poucos usurpadores e a expropriação de uns poucos usurpadores pela grande massa da população.
Esse chamado às barricadas da revolução é a retórica do Manifesto Comunista, que retorna para influenciar o conteúdo político d’O capital. Trata-se de uma afirmação política e polêmica, que certamente havia de proporcionar a uma obra impressionante como esta, de tão profunda análise, animada por um espírito tão revolucionário, um capítulo culminante.
Isso nos leva ao último capítulo [capítulo 25], um capítulo curioso, que contraria a retórica messiânica do capítulo precedente e oferece uma série de reflexões sobre a teoria da colonização. Além disso, ele trata não da experiência colonial real e dos prognósticos das lutas revolucionárias anticoloniais (a expropriação dos senhores coloniais pela massa do povo colonizado), mas das teorias da colonização elaboradas por um homem chamado Wakefield, que nunca figurou entre os grandes economistas políticos de todos os tempos e escreveu seu livro sobre colonização enquanto cumpria pena na prisão de Newgate por tentar seduzir a filha de uma família rica. Na prisão, Wakefield achou-se em companhia de prisioneiros prestes a ser enviados para a Austrália, e isso, é claro, levou-o a pensar sobre o papel da Austrália no esquema geral das coisas. Ele sabia pouco do que estava acontecendo na Austrália, mas viu algo que Marx considerou de grande importância, porque significava uma refutação esmagadora de Adam Smith. Wakefield reconheceu simplesmente que podemos levar para a Austrália todo o capital existente no mundo (dinheiro, instrumentos de trabalho, materiais de todos os tipos); no entanto, se não conseguirmos encontrar trabalhadores “livres” (no duplo sentido da palavra!) para trabalhar para nós, não podemos ser capitalistas.
Em suma, Wakefield “descobriu que o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas, intermediada por coisas” (836). Era difícil encontrar trabalhadores na Austrália; na época, eles tinham acesso fácil à terra e podiam se sustentar como produtores independentes. O único meio de assegurar a oferta de trabalho, e assim preservar as perspectivas do capitalismo, era o Estado intervir e pôr um preço de reserva na terra. Esse preço de reserva tinha de ser suficientemente alto para assegurar que todos que fossem para a Austrália tivessem de trabalhar como assalariados até poupar capital suficiente para ter acesso à terra. Wakefield considerava que o sistema agrário nos Estados Unidos (o Homestead Act) era aberto e livre demais, e isso aumentava muito o preço do trabalho (o que, como vimos anteriormente, levou à rápida adoção de inovações que poupavam trabalho). Como Wakefield predisse corretamente, os Estados Unidos teriam de recorrer às táticas brutais da pré-história do capitalismo se quisessem que o sistema continuasse vivo no país. A luta entre o “trabalho livre” na fronteira e o controle crescente da política agrária por interesses privados (em particular as ferrovias), assim como a retenção das populações imigrantes como trabalhadores assalariados nas cidades, eram aspectos vitais da acumulação.
“O que nos interessa”, escreve Marx,
é apenas o segredo que a economia política do Velho Mundo descobre no Novo Mundo e proclama bem alto, a saber, o de que o modo capitalista de produção e acumulação – e, portanto, a propriedade privada capitalista – exige o aniquilamento da propriedade privada fundada no trabalho próprio, isto é, a expropriação do trabalhador. (844)
O governo deve conferir à terra virgem, por decreto, um preço artificial, independente da lei da oferta e da demanda, que obrigue o imigrante a trabalhar como assalariado por um período maior, antes que possa ganhar dinheiro suficiente para comprar sua terra e transformar-se num camponês independente. (842)
Esse, diz Marx, é o “grande segredo” dos planos de Wakefield para a colonização, mas é também o grande segredo da acumulação primitiva. Esses planos tiveram uma influência considerável no Parlamento britânico e afetaram a política agrária. “É altamente característico que o governo inglês tenha aplicado durante muitos anos esse método de ‘acumulação primitiva’, expressamente prescrito pelo sr. Wakefield para seu uso em países coloniais” (843).
Marx usa essa teoria colonial para refutar a teoria smithiana da acumulação original ou primitiva. Mas há algo mais em jogo aqui, algo que pode ser de profunda relevância para o argumento e a estrutura d’O capital como livro. No prefácio da segunda edição, Marx menciona sua relação com Hegel e diz: “Critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana há quase trinta anos” (91). É quase certo que ele se refira à sua longa Crítica da filosofia do direito de Hegel. Nela, ele parte do parágrafo 250 da exposição de Hegel. Mas o conteúdo dos parágrafos precedentes é surpreendente. Sem qualquer advertência ou teorização prévia, Hegel inicia uma discussão das contradições internas do capitalismo. Ele observa a “dependência e a agonia da classe ligada” a um certo tipo de trabalho, processos que levam ao empobrecimento generalizado e à criação de uma turba de miseráveis, ao mesmo tempo que “produz, do outro lado da escala social, condições que facilitam imensamente a concentração desproporcional de riqueza em poucas mãos”. A linguagem é muito similar à do capítulo 23 d’O capital, em que Marx fala da acumulação de riqueza num polo e da miséria, da faina e da degradação no outro polo, ocupado pela classe trabalhadora. “Por isso, torna-se evidente”, observa Hegel, “que, apesar de um excesso de riqueza, a sociedade civil não é rica o suficiente [...] para evitar a pobreza excessiva e a criação de uma multidão de miseráveis”. Diz ainda:
Essa dialética interna da sociedade civil a leva – ou leva de todo modo uma sociedade civil específica – a avançar para além de seus próprios limites e a buscar mercados, e com eles seus meios necessários de subsistência, em outros países, que são deficientes nos bens que ela produz em excesso ou, de modo geral, são industrialmente atrasados.
Uma “sociedade civil madura” é levada assim à atividade colonizadora, “por meio da qual ela oferece a uma parte de sua população um retorno à vida em bases familiares num novo país e garante para si mesma uma nova demanda e um novo campo para sua indústria”[2].
O que Hegel chama de “dialética interna” produz níveis cada vez maiores de desigualdade social. Além disso, como ele diz num de seus adendos, “contra a natureza o homem não pode reivindicar nenhum direito, mas, uma vez que a sociedade está estabelecida, a pobreza assume imediatamente a forma de um mal cometido por uma classe contra a outra”[3]. Essa dialética interna, fundada na luta de classes, leva as sociedades civis a buscar alívio numa “dialética externa” da atividade colonial e imperialista. Não está claro se Hegel acredita que isso resolverá o problema interno. Marx, porém, está seguro de que não. A expropriação dos expropriadores, exposta no penúltimo capítulo [capítulo 24] d’O capital como resultado último da dialética interna, não pode ser contraditada por práticas coloniais que apenas recriam em escala maior as relações sociais do capitalismo. Não pode haver uma solução colonial às contradições de classe internas do capitalismo e, nesse mesmo sentido, não pode haver um ajuste espacial às contradições internas. O que hoje chamamos de globalização é simplesmente, como nos lembram a todo instante, um ajuste temporário que “resolve” os problemas no aqui e agora, projetando-os para um terreno geográfico maior e mais amplo.
Há uma variedade de questões levantadas pela análise de Marx da acumulação primitiva que requer comentário. Para começar, é importante reconhecer e apreciar o caráter inovador e pioneiro dessa análise. Nunca ninguém havia feito isso de modo tão sistemático e ordenado. Mas, como costuma acontecer com teorias inovadoras, essa é um pouco exagerada e trata superficialmente de uma série de questões. Desde então, historiadores e historiadores econômicos realizaram uma enorme quantidade de pesquisas sobre a transição do feudalismo para o capitalismo. Provavelmente seria consenso que a história contada por Marx é parcialmente verdadeira em alguns pontos. Houve, de fato, vários momentos e incidentes de extrema violência nessa geografia histórica. E é inegável o papel do sistema colonial, inclusive da evolução das políticas agrárias, trabalhistas e tributárias aplicadas nas colônias. Mas também houve exemplos de acumulação primitiva que foram relativamente pacíficos. As populações eram menos forçadas a sair da terra do que atraídas pelas possibilidades de emprego e pelas perspectivas de uma vida melhor oferecidas pela urbanização e pela industrialização. A transferência voluntária para as cidades de populações inteiras, que deixavam para trás as condições precárias da vida rural em busca de altos salários, não era incomum (mesmo sem aqueles processos de expropriação da terra a que Marx se refere e dos quais há evidências históricas suficientes). A história da acumulação primitiva é, portanto, muito mais nuançada e complicada em seus detalhes do que aquela que Marx conta. E, em sua dinâmica, houve aspectos importantes que Marx ignora. Por exemplo, a dimensão de gênero é reconhecida hoje como altamente significativa, porque a acumulação primitiva acarretou muitas vezes uma perda radical de poder das mulheres, a redução delas à condição de propriedade móvel e o reforço das relações sociais patriarcais.
Marx, porém, delineou os traços gerais da revolução industrial e agrícola, dos processos de proletarização, mercantilização e monetização necessários ao surgimento do capitalismo. Sua análise estabeleceu uma linha para todas as discussões futuras e isso já é suficiente para fazer dela uma intervenção criativa. Ela nos recorda dramaticamente a violência originária e as lutas ferozes que deram à luz o capitalismo, uma violência que subsequentemente a burguesia tentou negar e esquecer, apesar de vivermos até hoje com suas marcas.
Por todo O capital, mas também em muitos de seus outros escritos, Marx tende a relegar os processos de acumulação primitiva à pré-história do capitalismo. Uma vez acabada essa pré-história, entra em cena a “coerção silenciosa das relações econômicas”. O projeto político de Marx n’O capital consiste em nos alertar sobre o modo como essas coerções silenciosas operam em nós, muitas vezes sem nos darmos conta, escondidas atrás das máscaras fetichistas que nos cercam. Ele nos mostra, como afirmei anteriormente, que não há nada mais desigual do que o tratamento igual de desiguais; que a igualdade pressuposta no mercado nos ilude, fazendo-nos acreditar na igualdade entre as pessoas; que as doutrinas burguesas dos direitos de propriedade privada e da taxa de lucro fazem parecer que todos temos direitos humanos; que as ilusões da liberdade pessoal e da liberdade (e como e por que agimos com base nessas ilusões, e até lutamos por elas politicamente) nascem das liberdades do mercado e do livre-comércio.
Mas há, a meu ver, um problema na ideia de que a acumulação primitiva aconteceu uma vez na história e, após concluída, perdeu a importância. Em tempos recentes, diversos comentadores, inclusive eu, sugeriram que temos de atentar para a continuidade da acumulação primitiva que aconteceu durante toda a geografia histórica do capitalismo. Rosa Luxemburgo introduziu firmemente essa questão na agenda há cerca de um século. Insistiu no fato de que pensamos o capitalismo como sendo baseado em duas formas de exploração:
Uma diz respeito ao mercado de mercadorias e ao lugar onde o mais-valor é produzido – a fábrica, a mina, o latifúndio agrícola. Vista por esse prisma, a acumulação é um processo puramente econômico, cuja fase mais importante é a transação entre o capitalista e o trabalhador assalariado. [...] Aqui, ao menos formalmente, prevalecem a paz, a propriedade e a igualdade, e a aguda dialética da análise científica [e, segundo ela, essa foi a principal realização de Marx n’O capital] era necessária para revelar como o direito de propriedade, no curso da acumulação, torna-se apropriação da propriedade de outrem, e como a troca de mercadoria se transforma em exploração e a igualdade, em domínio de classe.
Isso é, de fato, o que Marx revela tão brilhantemente até o capítulo 23 d’O capital. “O outro aspecto da acumulação do capital”, diz ela,
diz respeito às relações entre o capitalismo e os modos não capitalistas de produção, que começam a surgir no cenário internacional. Seus métodos predominantes são a política colonial, um sistema de crédito internacional – uma política de esferas de interesse – e a guerra. A força, a fraude, a opressão e o saque são praticados abertamente, sem nenhuma tentativa de disfarce, e é necessário certo esforço para descobrir, nesse emaranhado de violência política e disputas de poder, as leis inexoráveis do processo econômico.[4]
Há, sustenta ela, uma “conexão orgânica” entre esses dois sistemas de exploração e acumulação. A longa história do capitalismo está centrada nessa relação dinâmica entre, de um lado, a contínua acumulação primitiva e, de outro, a dinâmica da acumulação por meio do sistema de reprodução ampliada descrito n’O capital. Portanto, Marx estava errado, diz ela, em situar a acumulação primitiva num ponto antediluviano, numa pré-história do capitalismo. O capitalismo teria deixado de existir há muito tempo, se não tivesse se engajado em novos ciclos de acumulação primitiva, sobretudo por meio da violência do imperialismo.
Intuitivamente, muitas coisas sugerem que Rosa Luxemburgo estava certa em princípio, mesmo que não concordemos com suas conclusões específicas. Para começar, os processos específicos de acumulação que Marx descreve – a expropriação das populações rurais e camponesas, a política de exploração colonial, neocolonial e imperialista, o uso dos poderes do Estado para realocar recursos para a classe capitalista, o cercamento de terras comuns, a privatização das terras e dos recursos do Estado e o sistema internacional de finança e crédito, para não falar dos débitos nacionais crescentes e da continuação da escravidão por meio do tráfico de pessoas (especialmente mulheres) – todos esses traços ainda estão entre nós e, em alguns casos, parecem não ter sido relegados ao segundo plano, mas, como o sistema de crédito, o cercamento de terras comuns e a privatização, tornaram-se ainda mais proeminentes.
A continuidade se torna ainda mais enfática quando deslocamos nosso olhar do caso “clássico” da Grã-Bretanha para a geografia histórica do capitalismo no cenário mundial. Rosa Luxemburgo cita as chamadas Guerras do Ópio contra a China como exemplo dos processos que ela tinha em mente. Um dos maiores mercados estrangeiros para os produtos britânicos era a Índia, e os indianos podiam pagar por esses produtos, em parte fornecendo matérias-primas para a Grã-Bretanha (como Marx indica n’O capital). Mas isso não era suficiente. Assim, o ópio indiano foi cada vez mais comercializado na China em troca da prata, que podia ser usada para pagar pelos produtos britânicos. Quando os chineses tentaram controlar o comércio exterior em geral e o comércio de ópio em particular, o Exército britânico subiu o rio Yangtzé e destruiu o Exército chinês numa curta batalha para forçar a abertura dos portos. Apenas por meios imperialistas como esses, sugeriu Rosa Luxemburgo, é que se podia assegurar a acumulação de longo prazo e a realização do capital. Segundo sua obra, a continuidade da acumulação primitiva ocorreu sobretudo na periferia, fora das regiões onde o modo de produção capitalista se tornou dominante. Práticas coloniais e imperialistas foram cruciais em tudo isso. Contudo, à medida que nos aproximamos do presente, o papel das mudanças na periferia (em particular com a descolonização) e as práticas da acumulação primitiva não apenas mudam e proliferam em suas diferentes formas, mas também se tornam mais proeminentes nas principais regiões dominadas pelo capital.
Considere, por exemplo, o caso da China contemporânea. A China passou por um processo próprio de desenvolvimento, com relações mínimas com o exterior, durante o governo de Mao. Em 1978, porém, Deng Xiaoping começou a abrir o país para o exterior e a revolucionar a economia chinesa. As reformas agrícolas não só produziram o equivalente a uma revolução agrícola na produção, como também extraíram da terra uma enorme quantidade de trabalho e produção excedentes. Não há dúvida de que algo equivalente ao que Marx descreve como acumulação primitiva ocorreu na China nos últimos trinta anos. E no grau com que a abertura da China ajudou a estabilizar o capitalismo global em tempos recentes, é provável que Rosa Luxemburgo olhasse para isso e dissesse que esse novo ciclo de acumulação primitiva foi fundamental para a sobrevivência do capitalismo. Nesse caso, no entanto, os acontecimentos não foram provocados por práticas imperialistas estrangeiras, mas pelo Estado chinês e pelo Partido Comunista, que resolveu seguir uma via quase capitalista para aumentar a riqueza nacional. Isso levou à criação de um proletariado urbano amplo e mal pago, oriundo de uma população agrária, a um investimento inicialmente controlado de capital estrangeiro em certas regiões e cidades para empregar esse proletariado e ao desenvolvimento de uma rede de relações comerciais globais para comercializar e realizar o valor das mercadorias, mesmo quando o mercado interno já começava a dar grandes saltos de crescimento. É interessante notar também o papel das terras não cultivadas na China. Viu-se acontecer em Shenzhen, a partir de 1980, o mesmo que aconteceu em Manchester, que passou de um pequeno vilarejo para um sólido centro industrial em poucas décadas. O padrão de desenvolvimento em Shenzhen não é muito diferente daquele que Marx descreve, exceto que o grau de violência originário foi abrandado (alguns diriam que foi dissimulado) e o poder do Estado e do partido foi fundamental em todo esse processo. À luz desse exemplo, e do papel crucial que a China desempenhou na contínua expansão de um sistema capitalista cujo empenho era “a acumulação pela acumulação, a produção pela produção”, é difícil evitar as conclusões de que (a) algo semelhante à acumulação primitiva continua vivo na dinâmica do capitalismo contemporâneo e (b) sua existência ininterrupta pode ser fundamental para a sobrevivência do capitalismo.
Mas essa proposição é válida em toda a parte. A violência da extração dos recursos naturais (sobretudo na África) e a expropriação das populações camponesas na América Latina, no Sul e no Leste da Ásia continuam a ocorrer. Tudo continua igual e, em alguns casos, até se intensificou, provocando sérios conflitos, por exemplo, em torno da expulsão de populações camponesas na Índia para abrir caminho para a criação de “zonas econômicas especiais” em terras não cultivadas, onde a indústria possa iniciar suas atividades em terreno privilegiado. O assassinato dos camponeses que resistiram às expulsões em Nandigram, em Bengala Ocidental, que visavam abrir caminho para o desenvolvimento industrial, é um exemplo tão “clássico” de acumulação primitiva quanto qualquer outro da Grã-Bretanha do século XVII. Além disso, quando Marx aponta o débito nacional e o sistema nascente de crédito como aspectos vitais na história da acumulação primitiva, ele está falando de algo que cresceu desordenadamente para agir como um sistema nervoso central e regular os fluxos de capital. As táticas predatórias de Wall Street e das instituições financeiras (operadoras de cartão de crédito) são indicadoras de uma acumulação primitiva realizada por outros meios. Assim, nenhuma das práticas predatórias identificadas por Marx desapareceu, e algumas até progrediram a graus inimagináveis então.
Nos dias atuais, no entanto, as técnicas de enriquecimento das classes dominantes e a diminuição do padrão de vida do trabalhador por algo semelhante à acumulação primitiva proliferaram e se multiplicaram. Por exemplo, a United Airlines vai à falência e consegue que o Tribunal de Falências reconheça que a empresa precisa se livrar de suas obrigações com aposentadorias para ser um negócio viável. Todos os funcionários da United Airlines são subitamente privados de suas aposentadorias e passam a depender de um fundo de previdência do Estado que paga taxas muito menores. Os funcionários aposentados da companhia aérea são enviados de volta ao proletariado. Há entrevistas com ex-funcionários da United Airlines em que eles dizem: “Estou com 67 anos e achei que estaria vivendo tranquilamente com minha aposentadoria de 80 mil dólares por ano, mas estou ganhando apenas 35 mil. Vou ter de voltar para o mercado e encontrar um emprego para sobreviver”. E a grande questão, a que realmente interessa, é: para onde foi o equivalente de todo esse dinheiro? Talvez não seja coincidência que, no momento em que muitos trabalhadores eram privados de suas pensões, planos de saúde e outros direitos de bem-estar em todo o território dos Estados Unidos, a remuneração de executivos de Wall Street e diretores executivos atingia níveis estratosféricos.
Considere, ainda como exemplo, a onda de privatizações que varreu o mundo capitalista a partir dos anos 1970. A privatização da água, da educação e da saúde em muitos países que os forneciam como bens públicos alterou dramaticamente o funcionamento do capitalismo (criando todo tipo de mercado, por exemplo). A privatização de empresas estatais (quase sempre por preços que permitiam aos capitalistas conseguir lucros imensos em muito pouco tempo) também acabou com o controle público sobre o crescimento e as decisões de investimento. Essa é, de fato, uma forma particular de cercamento dos bens comuns, orquestrada em muitos casos pelo Estado (como no ciclo originário da acumulação primitiva). O resultado foi um confisco dos recursos e dos direitos das pessoas comuns. E, ao mesmo tempo que houve confisco, houve essa imensa concentração de riqueza no outro extremo da escala.
Em meus livros O novo imperialismo[c] e O neoliberalismo: história e implicação, afirmei que, hoje, o poder de classe consolida-se cada vez mais por meio de processos desse tipo. Como parece ser um pouco estranho chamá-los de primitivos ou originais, prefiro chamar esses processos de acumulação de desapossamento. Argumentei que, embora boa parte desse processo tenha ocorrido nos anos 1950 e 1960, em particular por meio das táticas do colonialismo e do imperialismo e na busca predatória de recursos naturais, não havia uma grande acumulação por desapossamento nas principais regiões do capitalismo, sobretudo naquelas onde existiam sólidos aparatos social-democratas. A partir de meados da década de 1970, o neoliberalismo mudou isso. A acumulação por desapossamento se interiorizou cada vez mais nas principais regiões do capitalismo, ainda que tenha se ampliado e aprofundado em todo o sistema global. Não deveríamos ver a acumulação primitiva (como poderíamos considerar razoavelmente que é o caso na China) ou a acumulação por desapossamento (como ocorreu com a onda de privatizações nas principais regiões do capitalismo) como algo que diz respeito apenas à pré-história do capitalismo. Ela continua e, nos últimos tempos, foi revivida como um elemento cada vez mais importante no modo como o capitalismo opera para consolidar o poder de classe. E ela pode abarcar tudo – desde o confisco do direito de acesso à terra e à subsistência até a privação de direitos (aposentadoria, educação e saúde, por exemplo) duramente conquistados no passado por movimentos da classe trabalhadora em lutas de classe ferozes. Chico Mendes, o líder dos seringueiros na Amazônia, foi assassinado por defender um modo de vida contra os criadores de gado, os produtores de soja e os madeireiros que pretendiam capitalizar a terra. Os camponeses de Nandigram foram mortos por resistir à expulsão da terra contra o desenvolvimento capitalista. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil e os zapatistas lutaram em defesa de seu direito à autonomia e à autodeterminação em ambientes ricos em recursos, que são cobiçados ou dominados pelo capital. E então imagine como os novos fundos de private equity tomam as empresas públicas nos Estados Unidos, apropriam-se de seus ativos e demitem o máximo possível de funcionários, antes de levar essas empresas reestruturadas para o mercado e vendê-las por um lucro altíssimo (operação que rende ao diretor executivo do fundo de private equity um bônus astronômico).
Há inúmeros exemplos de luta contra todas essas formas de acumulação e desapossamento. Luta contra a biopirataria e a tentativa de patentear material e códigos genéticos; luta contra o uso da desapropriação compulsória para abrir espaço para empreendedores capitalistas; luta contra a gentrificação [gentrification] e a produção de sem-teto em Nova York e Londres; o modo predatório como o sistema de crédito expulsa os agricultores familiares de suas terras a fim de abrir caminho para o agronegócio nos Estados Unidos... A lista não tem fim. A acumulação por desapossamento continua a ocorrer por intermédio de uma variedade de práticas que, ao menos superficialmente, não tem nenhuma relação direta com a exploração do trabalho vivo para a produção de mais-valor, tal como aquela que Marx descreve n’O capital.
Há, no entanto, aspectos comuns, assim como complementares, entre os dois processos, como sugere Rosa Luxemburgo – corretamente, a meu ver – ao apontar a “relação orgânica” entre eles. A extração de mais-valor é, afinal de contas, uma forma específica de acumulação por desapossamento, porque é simplesmente a alienação, a apropriação e o desapossamento da capacidade do trabalhador de produzir valor no processo de trabalho. Além do mais, para que essa forma de acumulação continue a crescer, é preciso encontrar maneiras de mobilizar populações latentes como trabalhadores e liberar mais terras e mais recursos como meios de produção para o desenvolvimento capitalista. Assim como no caso da Índia e da China, por exemplo, a criação de “zonas econômicas especiais” por meio da expulsão de camponeses de suas próprias terras é pré-requisito para a continuidade do desenvolvimento capitalista, do mesmo modo como a limpeza das assim chamadas favelas é necessária para que o capital em desenvolvimento expanda suas operações urbanas. Essa tomada de terras pelo Estado mediante desapropriação ou outro meio legal tornou-se um fenômeno disseminado nos tempos recentes. Em Seul, nos anos 1990, investidores e construtores estavam desesperados por terrenos urbanos e forçaram o desapossamento de populações que haviam imigrado para a cidade nos anos 1950 e construído suas casas em terrenos dos quais não possuíam o título de propriedade. As construtoras contrataram gangues de valentões para ir a essas regiões da cidade e destruir a marretadas as casas dessas pessoas, assim como todos os seus bens. Na década de 1990, podíamos andar por bairros de Seul totalmente devastados, pontilhados de ilhas de intensa resistência popular.
Embora tenda a considerar que a reprodução ampliada é o mecanismo por meio do qual o mais-valor é acumulado e produzido, Marx não deixa de notar as condições necessárias do desapossamento, que também redistribui recursos diretamente para a classe capitalista. Assim como Rosa Luxemburgo, penso que a acumulação por meio do desapossamento não pode ser ignorada, o confisco do direito à aposentadoria, às terras comuns e à seguridade social (um ativo que pertence a toda a população dos Estados Unidos), a crescente mercantilização da educação, para não falar das expulsões das terras e da destruição do meio ambiente, são fatores importantes para o modo como entendemos a dinâmica agregada do capitalismo. Além disso, a conversão em mercadoria de um ativo de propriedade comum como a educação, a conversão das universidades em instituições empresariais neoliberais (com enormes consequências para o que se ensina nelas e o modo como se ensina), tem importantes consequências ideológicas e políticas e é ao mesmo tempo o sinal e o símbolo de uma dinâmica capitalista que não poupa nada em sua luta para expandir a esfera da produção e extração do lucro.
Na história da acumulação primitiva descrita por Marx, houve todo tipo de luta contra as expulsões e as expropriações forçadas. Movimentos generalizados na Grã-Bretanha – os levellers e os diggers, por exemplo – resistiram violentamente. Não seria exagero dizer que, nos séculos XVII e XVIII, as principais formas de luta de classe não foram contra a exploração do trabalho, mas contra o desapossamento. Em muitas partes do mundo, poderíamos dizer o mesmo hoje. Isso nos leva a pensar qual forma de luta de classe constitui ou constituirá o cerne de um movimento revolucionário contra o capitalismo num dado lugar e num dado momento. Como desde a década de 1970 o capitalismo global não tem conseguido gerar crescimento, a consolidação do poder de classe teve de apelar com muito mais força para a acumulação por desapossamento. Foi provavelmente isso que encheu os cofres das classes altas a ponto de fazê-los transbordar. O renascimento dos mecanismos de acumulação por desapossamento foi particularmente visível no papel cada vez maior do sistema de crédito e das apropriações financeiras, em cuja última onda milhões de norte-americanos perderam suas casas por execução hipotecária. Grande parte dessa perda de recursos aconteceu nos bairros mais pobres e teve implicações particularmente sérias para as mulheres e as populações afro-americanas em cidades mais antigas, como Cleveland e Baltimore. Enquanto isso, os banqueiros de Wall Street – que nos anos prósperos ficaram imensamente ricos com o negócio – ganham bônus enormes mesmo quando perdem o emprego por causa das dificuldades financeiras. O impacto redistributivo da perda dos investimentos em imóveis de milhões de pessoas e os enormes ganhos em Wall Street aparecem como um caso contemporâneo de forte predação e roubo legalizado típico da acumulação por desapossamento.
Entendo que lutas políticas contra a acumulação por desapossamento são tão importantes quanto os movimentos proletários mais tradicionais. Mas esses movimentos tradicionais e os partidos políticos associados a eles tendem a prestar pouca atenção às lutas em torno do desapossamento e a vê-las muitas vezes como secundárias e de conteúdo não propriamente proletário, porque seu foco é o consumo, o meio ambiente, o valor dos ativos e coisas do gênero. Os participantes do Fórum Social Mundial, por outro lado, estão muito mais preocupados em resistir à acumulação por desapossamento e não é raro que assumam posições antagônicas às políticas classistas dos movimentos operários, afirmando que esses movimentos não levam a sério as preocupações dos participantes do Fórum Social Mundial. No Brasil, por exemplo, o MST, que é uma organização que se preocupa sobretudo com a acumulação por desapossamento, mantém uma relação relativamente tensa com o Partido dos Trabalhadores (PT), que tem uma base urbana e uma ideologia mais trabalhista e é liderado por Lula. Portanto, alianças mais sólidas entre eles são uma questão digna de consideração, tanto prática quanto teoricamente. Se Rosa Luxemburgo estiver certa, como acredito que está, quando diz que há uma relação orgânica entre essas duas formas de acumulação, então devemos nos preparar para ver uma relação orgânica entre as duas formas de resistência. Uma força de oposição formada por “desapossados”, seja desapossados no processo de trabalho, seja desapossados dos meios de subsistência, recursos ou direitos, requer uma revisão das políticas coletivas em linhas absolutamente diferentes. Penso que Marx estava errado em confinar essas formas de luta numa pré-história do capitalismo. Gramsci certamente entendeu a importância de construir alianças de classe entre esses dois terrenos distintos, como o fez Mao. A ideia de que as políticas da acumulação primitiva – e, por extensão, da acumulação por desapossamento – pertencem exclusivamente à pré-história do capitalismo é errada. Mas isso, é claro, você terá de decidir por conta própria.
[1] Michael Perelman, The Invention of Capitalism: Classical Political Economy and the Secret History of Primitive Accumulation (Durham, Duke University Press, 2000).
[a] “Merrie England ”: visão utópica e nostálgica da sociedade e da cultura inglesas, baseada em um modo de vida idílico e pastoral, e bastante difundida no início da Revolução Industrial. (N. T.)
[b] As corporate towns são cidades que, por privilégio real, tinham autonomia em relação ao condado e podiam eleger suas próprias autoridades, constituindo-se elas mesmas num condado (county of itself, county of a town, county corporate). (N. T.)
[2] G. W. F. Hegel, Hegel’s Philosophy of Right (Oxford, Clarendon, 1957), p. 149-52.
[3] Ibidem, p. 277.
[4] Rosa Luxemburgo, The Accumulation of Capital (Londres, Routledge, 2003), p. 432. [Ed. bras.: A acumulação do capital, 2. ed., São Paulo, Nova Cultural, 1985.]
[c] 6. ed., São Paulo, Loyola, 2012. (N. T.)