O capítulo 8 apresenta uma estrutura e um estilo diferentes daqueles dos capítulos precedentes. É leve quanto à teoria, mas carregado de detalhes históricos. E também invoca categorias abstratas que ainda não foram apresentadas. Isso acontece porque o foco de Marx aqui é a história da luta de classes em torno da duração da jornada de trabalho. Já mencionei o complexo entrelaçamento dos argumentos lógicos e históricos n’O capital, e, na maioria dos casos, afirmei ser mais seguro optarmos pelo argumento lógico. Aqui, porém, o que importa é a narrativa histórica – embora não seja desprovida de importância teórica. Encontramos nesse capítulo uma profunda teorização da natureza do tempo e da temporalidade sob o capitalismo e, ao mesmo tempo, vemos com mais clareza por que o modo de produção capitalista é necessariamente constituído pela luta de classes e se move no seu interior.
Marx começa lembrando que há uma enorme diferença entre a teoria do valor-trabalho e o valor da força de trabalho. A teoria do valor-trabalho trata do modo como o tempo de trabalho socialmente necessário é incorporado nas mercadorias pelo trabalhador. Esse é o padrão de valor representado pela mercadoria-dinheiro e pelo dinheiro em geral. O valor da força de trabalho, por outro lado, é simplesmente o valor daquela mercadoria vendida no mercado como força de trabalho. Embora seja uma mercadoria como outra qualquer em certos aspectos, ela também tem algumas qualidades especiais, de caráter histórico e moral. Uma distinção falha entre o valor da força de trabalho e a teoria do valor-trabalho pode acarretar graves equívocos.
“Partimos do pressuposto”, diz Marx, “de que a força de trabalho é comprada e vendida pelo seu valor”, e de que seu valor, “como o de qualquer outra mercadoria, é determinado pelo tempo de trabalho necessário à sua produção” (305). Este equivale ao tempo de trabalho consumido para produzir as mercadorias necessárias à reprodução do trabalhador num dado padrão de vida. Marx supõe que esse valor seja fixo, apesar de sabermos (assim como ele) que está em constante mudança, dependendo do custo das mercadorias, do grau de civilização e das condições da luta de classes no país.
Os trabalhadores adicionam valor às mercadorias no processo de trabalho até criar o equivalente exato do valor de sua própria força de trabalho. Suponhamos, diz Marx, que isso ocorra depois de seis horas de trabalho. O mais-valor surge porque os trabalhadores trabalham além da quantidade de horas necessárias para reproduzir o valor equivalente de sua força de trabalho. Quantas horas extras eles têm de trabalhar? Isso depende da duração da jornada de trabalho. Essa duração não pode ser negociada no mercado como uma forma de troca de mercadorias, em que o equivalente é trocado pelo equivalente (como ocorre com os salários). Não é uma quantidade fixa, mas fluida. Pode variar de 6 a 10, 12 ou 14 horas, com um limite de 24 horas – o que é impossível, em virtude do “limite físico da força de trabalho” e do fato de que “o trabalhador precisa de tempo para satisfazer as necessidades intelectuais e sociais [...]. A variação da jornada de trabalho se move, assim, no interior de limites físicos e sociais” (306).
Marx imagina então uma discussão fictícia entre um capitalista e um trabalhador. O capitalista, como comprador da força de trabalho, diz que tem direito de usá-la pelo tempo que puder. Afinal, como capitalista, ele é “apenas capital personificado” (lembramos que Marx fala de papéis, não de pessoas). “Sua alma é a alma do capital”, e este “tem um único impulso vital, o impulso de se autovalorizar, de criar mais-valor”. O capital, diz Marx, “é trabalho morto, que, como um vampiro” – e nesse capítulo temos muitos vampiros e lobisomens, a léguas de distância dos modos usuais da teorização político-econômica –, “vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga”. Se o trabalhador faz pausas ou diminui o ritmo de trabalho, “furta o capitalista [...]. O capitalista se apoia, portanto, na lei da troca de mercadorias. Como qualquer outro comprador, ele busca tirar o maior proveito possível do valor de uso de sua mercadoria” (307-8).
Os trabalhadores, ao contrário das máquinas e de outras formas de capital constante, podem reagir. Sabem que têm essa propriedade chamada força de trabalho e é de seu interesse conservar esse valor para uso futuro. O capitalista não tem o direito de sugá-la diariamente, abreviando assim a vida laborativa dos trabalhadores. Diz o trabalhador:
“Isso fere nosso contrato e a lei da troca de mercadorias. Exijo, portanto, uma jornada de trabalho de duração normal, e a exijo sem nenhum apelo a teu coração, pois em assuntos de dinheiro cessa a benevolência. [...] Exijo a jornada de trabalho normal porque, como qualquer outro vendedor, exijo o valor de minha mercadoria.” (308)
Note que tanto os trabalhadores quanto os capitalistas tomam suas posições de acordo com as leis da troca. Ao contrário do que esperaríamos de um pensador revolucionário, Marx não prega a abolição do sistema de salários, mas quer que ambos, trabalhadores e capitalistas, concordem em obedecer à lei fundamental da troca: equivalente por equivalente. A única coisa que importa é saber quanto de valor de uso (capacidade de incorporar valor nas mercadorias) o trabalhador cederá ao capitalista. Marx faz isso porque, como enfatizei, um dos objetivos principais d’O capital é desconstruir as proposições utópicas da economia política liberal clássica em seus próprios termos. “O capitalista exerce seus direitos como comprador quando tenta alongar ao máximo a jornada de trabalho.”
E o trabalhador faz valer seu direito como vendedor quando quer limitar a jornada de trabalho a uma duração normal determinada. Tem-se aqui, portanto, uma antinomia, um direito contra outro direito, ambos igualmente apoiados na lei da troca de mercadorias. Entre direitos iguais, quem decide é a força. E assim a regulamentação da jornada de trabalho se apresenta, na história da produção capitalista, como a luta em torno dos limites da jornada de trabalho – um luta entre o conjunto dos capitalistas, i.e., a classe capitalista, e o conjunto dos trabalhadores, i.e., a classe trabalhadora. (309)
Assim, após 309 páginas, chegamos à ideia da luta de classes. Finalmente!
Há aqui uma série de questões que exigem esclarecimento. A aceitação, por ambos os lados, de uma noção de “direitos” é uma declaração de fato que diz respeito à hegemonia das noções burguesas de direitos. Marx, porém, mostra imediatamente que o problema da duração da jornada de trabalho não pode ser resolvido com um apelo a direitos e às leis e legalidades da troca (um argumento paralelo a seu ataque contra o conceito proudhoniano de justiça eterna). Questões desse tipo só podem ser resolvidas por meio da luta de classes, na qual a “força” decide entre “direitos iguais”. Essa descoberta tem ramificações no entendimento da política do capitalismo contemporâneo. Em tempos recentes, houve um aumento considerável de rights talk [conversas sobre direitos] e investiu-se uma quantidade enorme de energia na ideia de que a promoção de direitos humanos individuais é um caminho (se não o caminho) para moldar um sistema capitalista mais humano. O que Marx mostra aqui é que muitas questões importantes, postas em termos de direitos, não podem ser resolvidas se não forem reformuladas em termos de luta de classes. A Anistia Internacional, por exemplo, lida suficientemente bem com direitos políticos e civis, mas tem dificuldade para estender seus interesses à esfera dos direitos econômicos, porque não há como resolvê-los sem tomar partido, ou a favor do capital, ou a favor do trabalho. Percebemos aqui o cerne do argumento de Marx. Não há como julgar “imparcialmente” entre direitos iguais (ambos com a chancela da lei da troca). A única coisa que podemos fazer é lutar pelo nosso lado do argumento. Por isso, esse capítulo termina com uma observação bastante cética sobre um “pomposo catálogo dos ‘direitos humanos inalienáveis’” (374), em oposição ao que podemos conseguir com a luta de classes.
“Força”, nesse contexto, não significa necessariamente força física (embora esta seja necessária em certos casos). A ênfase desse capítulo recai antes na força política, na capacidade de mobilizar e construir alianças políticas e instituições (como sindicatos) para influenciar o aparelho estatal, que tem o poder de legislar a jornada de trabalho “normal”. Para Marx, há oportunidades que podem ser aproveitadas ou perdidas, dependendo das contingências da situação política e das relações de força que estão em jogo. A técnica aqui é similar àquela que foi apresentada com tanto brilhantismo em O 18 de brumário, em que Marx analisa como Luís Bonaparte chegou ao poder na esteira da fracassada Revolução de 1848 em Paris. O material apresentado nesse capítulo lança uma luz especial sobre a trajetória de Marx em busca de uma teoria do modo de produção capitalista, articulada com uma compreensão profunda dos processos de transformação histórica das formações sociais capitalistas efetivamente existentes. Os resultados da luta de classes não são determinados de antemão.
A introdução da luta de classes marca uma ruptura radical com os alicerces da teoria econômica clássica e contemporânea. Ela muda radicalmente a linguagem em que a economia é descrita e altera seu foco. Em cursos introdutórios de economia, é pouco provável que a duração da jornada de trabalho seja tratada como uma questão importante. Isso também não era discutido na economia política clássica. No entanto, a história foi palco de uma luta monumental e permanente em torno da duração da jornada de trabalho, da semana de trabalho, do ano de trabalho (férias pagas) e da vida de trabalho (a idade de aposentadoria), e essa luta perdura até hoje. Isso constitui claramente um aspecto fundamental da história capitalista e uma questão central no modo de produção capitalista. De que adiantam teorias econômicas que ignoram tal aspecto?
Em contrapartida, a teoria do valor de Marx conduz diretamente a essa questão central. Isso acontece porque o valor é tempo de trabalho socialmente necessário, o que significa que o tempo é essencial no capitalismo. Como diz o ditado, “tempo é dinheiro”! O controle do tempo, em particular do tempo alheio, tem de ser combatido coletivamente. Ele não pode ser comercializado. Portanto, a luta de classes tem de ocupar um lugar central na teoria político-econômica, assim como em todas as tentativas de compreender a evolução histórica e geográfica do capitalismo. É nesse ponto d’O capital que podemos começar a apreciar o “valor de uso” da teoria do valor-trabalho e do mais-valor. E, embora seja errado considerar esse argumento uma prova empírica do aparato teórico, ele certamente ilustra a utilidade da teoria para a realização de uma investigação teórica empiricamente esclarecida.
Como Marx nos guia por essa história da luta em torno da duração da jornada de trabalho? Ele começa observando que o capitalismo não é o único tipo de sociedade em que o mais-trabalho e o mais-produto são extraídos para o benefício de uma classe dominante: “Onde quer que uma parte da sociedade detenha o monopólio dos meios de produção, o trabalhador, livre ou não, tem de adicionar ao tempo de trabalho necessário a sua autoconservação um tempo de trabalho excedente a fim de produzir os meios de subsistência para o possuidor dos meios de produção” (309).
No capitalismo, porém, o mais-trabalho é convertido em mais-valor; assim, a produção de um mais-produto é um meio de o capitalista obter mais-valor. Isso fornece qualidades particulares à exploração capitalista, porque a acumulação de valor na forma-dinheiro, como vimos, é ilimitada.
Em toda formação econômica da sociedade onde predomina não o valor de troca, mas o valor de uso do produto, o mais-trabalho é limitado por um círculo mais amplo mais amplo ou mais estreito de necessidades, mas nenhum carecimento descomedido de mais-trabalho surge do próprio caráter da produção. (309-10)
Além disso, como essa apropriação ocorre numa sociedade caracterizada pelo trabalho assalariado, os trabalhadores não experimentam sua produção de mais-valor do mesmo modo como os servos e escravos experimentam o mais-trabalho (o fetichismo do mercado a esconde). Marx usa como ilustração a corveia na Europa Central. Nesse sistema, o trabalhador era forçado a ceder certo número de dias de trabalho ao proprietário da terra, de modo que a apropriação do mais-trabalho era totalmente transparente. A libertação dos servos pelo édito russo de 1831 criou uma situação em que o novo sistema de corveia, organizado sob o Règlement Organique [Regulamento Orgânico], tornou fluida e aberta a definição de jornada de trabalho. Os proprietários rurais (os boiardos) diziam que uma jornada de trabalho não é medida por um dia real, mas pela quantidade de trabalho que deveria ser realizada. Como essa exigência de trabalho não podia ser cumprida em um dia, eram necessários vários dias para completar um dia formal de trabalho, de modo que “os 12 dias de corveia do Règlement Organique [...] correspondem aos 365 dias do ano!” (313).
Encontramos em germe aqui uma ideia muito importante, que aparece diversas vezes n’O capital. A medida de tempo é flexível, pode ser esticada e manipulada para fins sociais. Nesse caso, 12 dias de trabalho se transformam em 365 dias efetivos. Essa manipulação social do tempo e da temporalidade é também um traço fundamental do capitalismo. Logo que a extração de tempo de trabalho excedente se torna fundamental para as relações de classes, a questão a respeito do que é o tempo, quem o mede e como a temporalidade deve ser entendida passa para a linha de frente da análise. O tempo não é simplesmente dado; ele é socialmente construído e está continuamente sujeito a reconstruções (basta pensar no setor financeiro e na mudança do padrão de tempo das tomadas de decisões que ocorreu nos últimos anos). No caso do Règlement Organique, o esticamento do tempo era óbvio. Os trabalhadores sabiam muito bem quanto de mais-trabalho cediam ao senhor e como o prolongamento do tempo estabelecido por uma classe dominante contribuiu para isso. Mas o objetivo das Leis Fabris na Grã-Bretanha no século XIX – o interesse principal de grande parte desse capítulo – era muito diferente: “essas leis refreiam o impulso do capital por uma sucção ilimitada da força de trabalho, mediante uma limitação compulsória da jornada de trabalho pelo Estado e, mais precisamente, por um Estado dominado pelo capitalista e pelo landlord ” (313).
A formulação de Marx leva a uma questão importante: por que um Estado governado por capitalistas e proprietários fundiários aceitaria, ou mesmo cogitaria, limitar a duração da jornada de trabalho? E mais: se até aqui só encontramos as figuras do trabalhador e do capitalista n’O capital, o que faz o proprietário fundiário nesse capítulo? É evidente que, para analisar uma situação histórica real, Marx tem de olhar para a configuração de classe existente e considerar como as alianças de classe funcionam quando os trabalhadores não têm acesso direto ao poder estatal. O Estado britânico da primeira metade do século XIX era essencialmente organizado pela relação de poder entre capitalistas e proprietários fundiários, e seria impossível analisar a política desse período sem levar em conta o papel que a aristocracia rural desempenhava nessa relação. O poder do movimento dos trabalhadores ainda era secundário. “Abstraindo de um movimento dos trabalhadores que se torna a cada dia mais ameaçador”, escreve Marx,
a limitação da jornada de trabalho nas fábricas foi ditada pela mesma necessidade que forçou a aplicação do guano nos campos ingleses. A mesma rapacidade cega que, num caso, exauriu o solo, no outro matou na raiz a força vital da nação. Epidemias periódicas são, aqui, tão eloquentes quanto a diminuição da altura dos soldados na Alemanha e na França. (313)
Se o trabalho, assim como a terra, é um recurso fundamental para a criação da riqueza nacional, e se é superexplorado e degradado, a capacidade de manter a produção de mais-valor é prejudicada. Mas também é de interesse do Estado ter trabalhadores que possam integrar uma força militar efetiva. A saúde e a boa forma física da classe trabalhadora têm, portanto, interesse político e militar (como Marx observa na longa nota de rodapé). Na Guerra Franco-Prussiana de 1870-1871, por exemplo, a rápida derrota dos franceses pelos alemães foi atribuída, em parte, à boa saúde dos camponeses alemães, em comparação com a pobre classe camponesa e operária da França. A implicação política é de que é militarmente perigoso permitir a degradação das classes trabalhadoras. Essa questão se tornou importante nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, em particular quando se tratou de mobilizar indivíduos oriundos de populações pobres e, em alguns casos, racialmente distintas.
As leis fabris analisadas por Marx foram impostas pelo Estado britânico e concebidas – por razões tanto econômicas quanto político-militares – para limitar a exploração do trabalho vivo e prevenir sua degradação excessiva. Mas a lei é uma coisa, e sua aplicação é outra bem diferente. Isso nos remete à importante figura dos inspetores de fábrica: quem eram e de onde vinham? Certamente não eram marxistas radicais! Eles vinham da burguesia profissional. Eram servidores públicos civis, mas fizeram um belo trabalho de coleta de informações e uma enorme pressão para disciplinar os interesses industriais segundo as exigências do Estado. Marx não teria escrito esse capítulo sem as informações abundantes fornecidas por eles. Mas por que um Estado regulado pelo capital e por proprietários fundiários usaria inspetores de fábrica para fazer esse trabalho? É neste ponto que entra “o grau de civilização de um país”, assim como a moralidade burguesa e os interesses militares do Estado. Na Grã-Bretanha do século XIX, havia fortes correntes do reformismo burguês (por exemplo, Charles Dickens) que julgavam que algumas práticas laborais em vigor não deveriam existir numa sociedade civilizada. Isso traz para a discussão aquele mesmo “elemento histórico e moral” que afeta o valor da força de trabalho. Embora o movimento operário estivesse crescendo, ele não teria ido tão longe quanto foi sem a ajuda do reformismo burguês, em particular do setor representado pelos inspetores de fábrica.
Os inspetores de fábrica tiveram de enfrentar o problema da definição prática da jornada de trabalho. A que horas os trabalhadores deviam começar a trabalhar? O tempo de trabalho começa a ser contado dentro ou fora da fábrica? E as pausas para as refeições? Marx cita o relatório de um inspetor:
Para muitos fabricantes, o lucro extra a ser obtido com o sobretrabalho além do tempo legalmente estabelecido parece ser uma tentação grande demais para que possam resistir a ela [...]. Esses “pequenos furtos” que o capital realiza do tempo reservado às refeições e ao descanso do trabalhador também são designados pelos inspetores de fábrica como “petty pilferings of minutes”, pequenos surrupios de minutos, “snatching a few minutes”, furtadelas de alguns minutos, ou, na linguagem técnica dos trabalhadores, “nibbling and cribbling at meal times” [roer e peneirar às refeições]. (316)
Marx cita uma ideia fundamental: “Os pequenos momentos são os elementos que formam o lucro” (317). Para mim, essa formulação é crucial. Os capitalistas tentam aproveitar todo e qualquer momento do tempo do trabalhador no processo de trabalho. Os capitalistas não só compram a força de trabalho de um trabalhador por doze horas, como têm de assegurar que cada momento dessas doze horas seja usado com o máximo de intensidade. E isso, é claro, é a essência de um sistema fabril disciplinador e fiscalizador.
Se acreditarmos nos filmes antigos, houve uma época em que as telefonistas tinham tempo de conversar conosco (sou velho o suficiente para ter a lembrança de até ter paquerado algumas). Hoje os telefonistas têm uma meta rígida de chamadas que devem atender por hora. Se não a cumprem, são demitidos. E a meta aumenta constantemente. Você pode se considerar um privilegiado se conseguir mais de dois minutos do tempo deles. Li uma notícia sobre um telefonista que ficou meia hora numa ligação com uma criança cuja mãe havia morrido e foi demitido por não cumprir sua meta. Isso é comum em todos os processos de trabalho. O capitalista quer o tempo, quer aqueles momentos que são os elementos do lucro. Isso é um corolário do fato de que o valor é tempo de trabalho socialmente necessário. Apesar de toda a sua abstração, a teoria do valor revela algo importante a respeito das práticas e experiências diárias no chão de fábrica. Ela toca a realidade do comportamento do capitalista, toca a realidade da vida do trabalhador.
No terceiro item desse capítulo, Marx trata longamente dos “ramos da indústria inglesa sem limites legais à exploração”. Não me deterei nessa parte, porque os relatos terríveis das práticas laborais na indústria de palitos de fósforo, papéis de parede, linho e panificação (onde o trabalho noturno e a adulteração do pão eram questões candentes) são autoevidentes o bastante. Marx cita também acidentes provocados pelo sobretrabalho, um deles numa ferrovia e, segundo o médico legista, causado pelas excessivas horas de trabalho impostas aos trabalhadores. Há também o famoso caso de Mary Anne Walkley, “de 20 anos de idade, empregada numa manufatura de modas deveras respeitável” – numa situação em que “essas moças cumprem uma jornada em média de 16½ horas e, durante a season[a], chegam frequentemente a trabalhar 30 horas ininterruptas, sua evanescente ‘força de trabalho’ costuma ser reanimada com a oferta eventual de xerez, vinho do Porto ou café” – e que simplesmente morreu por excesso de trabalho (327). Morrer por excesso de trabalho não é algo restrito ao século XIX. Os japoneses têm um termo técnico para isso: karoshi. Muitas pessoas morrem por excesso de trabalho, e a vida de outras tantas é abreviada por isso e por causa de condições insalubres de trabalho. Em 2009, a United Farm Workers processou a California Occupational Safety and Health Administration (Cal/Osha) por não proteger os trabalhadores agrícolas contra a morte por excesso de calor, citando três casos de mortes por exaustão causada por esse motivo.
Marx descreve o que acontece quando a relação de poder entre capital e trabalho torna-se tão distorcida que a força de trabalho é reduzida a uma condição de degradação e até de morte prematura. Esse problema é exacerbado pela introdução do sistema de turnos descrito no quarto item desse capítulo. O capital que não é aplicado é capital perdido, e capital, lembre-se, não é uma máquina ou uma soma de dinheiro, mas valor em movimento. Se uma máquina não é usada, é capital morto, por isso há pressão para usá-la o tempo todo. A continuidade do processo de produção torna-se importante em particular nas indústrias que empregam grandes quantidades de capital fixo na forma de equipamentos, como é o caso dos altos-fornos na indústria metalúrgica. A necessidade de manter empregado o capital fixo leva a uma jornada de trabalho de 24 horas. Como os trabalhadores não podem trabalhar 24 horas por dia, o sistema de turnos é introduzido e suplementado pelo trabalho noturno e pelo sistema de revezamento. Lembre-se: os trabalhadores não apenas produzem mais-valor, mas reanimam o capital constante. O resultado é o revezamento por meio de turnos. Não há, portanto, uma “jornada natural de trabalho”, apenas várias construções da jornada de trabalho em relação à demanda capitalista de manter a todo custo a continuidade do fluxo.
O item 5 trata da luta por uma jornada de trabalho normal. Por quanto tempo o capital pode consumir a força de trabalho que ele comprou por seu valor diário? Não há dúvida de que o capital extrairá dela tanto quanto puder. Para o capital,
é evidente que o trabalhador, durante toda a sua vida, não é senão força de trabalho, razão pela qual todo o seu tempo disponível é, por natureza e por direito, tempo de trabalho, que pertence, portanto, à autovalorização do capital [isto é, a produção de mais-valor]. Tempo para a formação humana, para o desenvolvimento intelectual, para o cumprimento de funções sociais, para relações sociais, para o livre jogo das forças vitais físicas e intelectuais, mesmo o tempo livre do domingo [...] é pura futilidade! Mas em seu impulso cego e desmedido, sua voracidade de lobisomem por mais-trabalho, o capital transgride não apenas os limites morais da jornada de trabalho, mas também seus limites puramente físicos. Ele usurpa o tempo para o crescimento, o desenvolvimento e a manutenção saudável do corpo. Rouba o tempo requerido para o consumo de ar puro e de luz solar. Avança sobre o horário das refeições e o incorpora, sempre que possível, ao processo de produção. (337)
Quando leio essas passagens, sempre me lembro de Tempos modernos, de Charlie Chaplin.
[O capital reduz o] sono saudável, necessário para a restauração, renovação e revigoramento da força vital [...] a não mais do que um mínimo de horas de torpor absolutamente imprescindíveis ao reavivamento de um organismo completamente exaurido [...]. O capital não se importa com a duração de vida da força de trabalho. O que lhe interessa é única e exclusivamente o máximo de força de trabalho que pode ser posto em movimento numa jornada de trabalho. Ele atinge esse objetivo por meio do encurtamento da duração da força de trabalho, como um agricultor ganancioso que obtém uma maior produtividade da terra roubando dela sua fertilidade. (338)
O paralelo entre a exaustão do solo e as forças vitais do trabalhador faz eco à formulação do capítulo 1, em que Marx cita o comentário de William Petty de que “o trabalho é o pai da riqueza material, [...] e a terra é a mãe” (121). Mas isso também implica que a exploração excessiva dos recursos necessários para produzir toda a riqueza é um perigo para o próprio capitalismo. Uma hora ou outra, o capitalista chegará à conclusão de que uma jornada normal de trabalho pode não ser uma má ideia.
Assim, se o prolongamento antinatural da força de trabalho, que o capital visa necessariamente por objetivo em seu impulso desmedido de autovalorização, encurta o tempo de vida do trabalhador singular e, com isso, a duração de sua força de trabalho, torna-se necessária uma substituição mais rápida dos trabalhadores que foram desgastados e, portanto, a inclusão de custos de depreciação maiores na reprodução da força de trabalho, do mesmo modo como a parte do valor a ser diariamente reproduzida de uma máquina é tanto maior quanto mais rapidamente ela se desgasta. Uma jornada de trabalho normal parece, assim, ser do próprio interesse do capital. (281)
O problema, no entanto, é que os capitalistas em situação de concorrência entre si não podem deixar de forçar a superexploração de suas bases fundamentais de recursos: o trabalho e a terra. Existe potencial para um conflito entre o interesse de classe dos capitalistas por uma força de trabalho “sustentável” e seus comportamentos individuais de curto prazo diante da concorrência. Portanto, algum limite tem de ser imposto na concorrência entre eles.
Os proprietários de escravos, diz Marx, podem matá-los por excesso de trabalho, contanto que tenham à mão uma fonte de escravos baratos. Mas isso também vale para o mercado de trabalho:
Basta ler, no lugar de mercado de escravos, mercado de trabalho, no lugar de Kentucky e Virgínia, Irlanda e distritos agrícolas da Inglaterra, Escócia e País de Gales, e, no lugar da África, Alemanha! Ouvimos como o sobretrabalho dizima os padeiros em Londres, e, apesar disso, o mercado de trabalho londrino está sempre transbordando de alemães e outros candidatos à morte nas padarias. (339)
Marx introduz aqui outro conceito importante: o de população excedente. Esta permite aos capitalistas superexplorar os trabalhadores, sem levar em conta sua saúde ou bem-estar. É claro que a população excedente tem de ser acessível ao capital. Marx cita o caso dos comissários da Lei dos Pobres, que eram instruídos a “enviar para o Norte o ‘excesso de população’ dos distritos agrícolas, com o argumento de que ‘os fabricantes os absorveriam e consumiriam’” (339-40). Os distritos agrícolas livraram-se convenientemente de suas obrigações com a Lei dos Pobres, ao mesmo tempo que forneceram trabalho excedente para os distritos manufatureiros.
O que a experiência mostra aos capitalistas é, em geral, uma constante superpopulação, isto é, um excesso de população em relação às necessidades momentâneas de valorização do capital, embora esse fluxo populacional seja formado de gerações de seres humanos atrofiados, de vida curta, que substituem uns aos outros rapidamente e são, por assim dizer, colhidos antes de estarem maduros. No entanto, a experiência mostra ao observador atento, por outro lado, o quão rápida e profundamente a produção capitalista, que, em escala histórica, data quase de ontem, tem afetado a força do povo em sua raiz vital, como a degeneração da população industrial só é retardada pela absorção contínua de elementos vitais naturais-espontâneos do campo e como mesmo os trabalhadores rurais, apesar do ar puro e do principle of natural selection [princípio da seleção natural] que reina tão soberano entre eles e só permite a sobrevivência dos indivíduos mais fortes, já começam a perecer. (341-2)
A população excedente põe em questão o interesse do capitalista pela saúde, pelo bem-estar e pela expectativa de vida da força de trabalho. Como seres humanos, os capitalistas podem se importar com isso, mas, sendo forçados a maximizar o lucro em condições de concorrência, eles não têm escolha.
“Après moi le déluge !” [Depois de mim, o dilúvio!][b] é o lema de todo capitalista e toda nação capitalista. O capital não tem, por isso, a mínima consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador, a menos que seja forçado pela sociedade a ter essa consideração. Às queixas sobre a degradação física e mental, a morte prematura, a tortura do sobretrabalho, ele responde: deveria esse martírio nos martirizar, ele que aumenta nosso gozo (o lucro)[c]? De modo geral, no entanto, isso tampouco depende da boa ou má vontade do capitalista individual. A livre-concorrência impõe ao capitalista individual, como leis eternas inexoráveis, as leis imanentes da produção capitalista. (342)
Os capitalistas, tendo coração ou não, são forçados pela concorrência a promover as mesmas práticas laborais de seus concorrentes. Se os concorrentes abreviam a vida de seus trabalhadores, você também tem de abreviá-la. Assim funcionam as leis coercitivas da concorrência. Esta expressão – “leis coercitivas da concorrência” – aparecerá diversas vezes no texto. E é importante notar que tais leis coercitivas desempenham um papel decisivo, como no caso presente.
Marx passa então a analisar a “luta de quatrocentos anos entre capitalista e trabalhador” que levou à “consolidação de uma jornada de trabalho normal”. Ele nota que “a história dessa luta mostra duas correntes antagônicas” (343). Na época medieval, era muito difícil que as pessoas trabalhassem como assalariadas. Quem não tirava seu sustento da terra tornava-se vagabundo, mendigo ou ladrão de estrada (como Robin Hood). Por isso, criou-se uma legislação para codificar a relação salarial, estender a jornada de trabalho e criminalizar mendigos e vagabundos. E, com efeito, estabeleceu-se um aparato disciplinar (e Marx retoma esse ponto no capítulo 24) para socializar a população no papel de trabalhadores assalariados. Os vagabundos eram açoitados e amontoados antes de serem mandados para uma boa jornada de trabalho. E nos primeiros decretos, que datam de 1349, uma boa jornada de trabalho era definida como um dia de trabalho de doze horas. Assim foi imposta a disciplina laboral na Grã-Bretanha. Há queixas semelhantes por parte das autoridades coloniais no século XIX e depois; afirmam, por exemplo, que o problema na Índia ou na África é que não se consegue que a população indígena trabalhe um dia de trabalho “normal”, que dirá uma semana de trabalho “normal”! Eles trabalham por um breve período e desaparecem. A noção de temporalidade dos nativos não se coaduna com a ideia do tempo do relógio e atravanca a capacidade dos capitalistas de extrair valor dos “pequenos momentos” que formam o lucro. A falta de disciplina temporal era uma queixa frequente entre os administradores coloniais, e esforços tremendos foram feitos para incutir nas populações locais uma disciplina laboral e um senso adequado de temporalidade. (Ouço queixas semelhantes de diretores de universidades a respeito dos estudantes, e tive de assistir a um curso de gênios pedagógicos de Harvard que insistiam que a primeira coisa que tínhamos de fazer num curso de graduação era incutir nos alunos um sentido apropriado de disciplina temporal.)
Hoje há uma extensa literatura sobre a atitude medieval (e medieval tardia) em relação ao tempo, bem como sobre as mudanças na temporalidade ocorridas com o advento do capitalismo (ou, como alguns preferem, da “modernidade”). Por exemplo, dificilmente nos lembramos de que a hora foi, em grande parte, uma invenção do século XIII, o minuto e o segundo só se tornaram medidas comuns no século XVII e termos como “nanossegundos” surgiram apenas em tempos recentes. Essas medidas não são determinações naturais, mas sociais, e sua invenção não foi irrelevante para a transição do feudalismo ao capitalismo. Quando Foucault fala do advento da governamentalidade, ele está se referindo ao momento em que as pessoas começaram a interiorizar o sentido da disciplina temporal e a aprender a viver de acordo com ela, quase sem pensar. Uma vez que interiorizamos esse sentido, acabamos presos a certa concepção da temporalidade e a práticas vinculadas a ela. Para Marx, essa temporalidade surge em associação com a emergência do valor como tempo de trabalho socialmente necessário. E, para ele, o papel da luta de classes é fundamental, um papel que Foucault tende a ignorar ou subestimar. Diz Marx:
Vimos que essas determinações minuciosas, que regulam com uma uniformidade tão militar os horários, os limites, as pausas do trabalho de acordo com o sino do relógio, não foram de modo algum produto das lucubrações parlamentares. Elas se desenvolveram paulatinamente a partir das circunstâncias, como leis naturais do modo de produção moderno. Sua formulação, seu reconhecimento oficial e sua proclamação estatal foram o resultado de longas lutas de classes. (354)
Não se trata mais de dizer que “entre direitos iguais, a força decide”, mas de reconhecer o caráter classista das formas hegemônicas de temporalidade. E a questão aqui não se limita à temporalidade, mas envolve também a espacialidade. Para ideólogos como o autor anônimo de An Essay on Trade and Commerce [Um ensaio sobre o intercâmbio e o comércio], de 1770, o problema é uma inclinação “fatal” ao “ócio e à indolência” da parte da população trabalhadora. Marx cita o ensaio:
“A cura não estará completa até que nossos pobres operários aceitem trabalhar seis dias pela mesma quantia que eles agora recebem por quatro dias de trabalho.” Para esse fim, e para a “extirpação da preguiça, da licenciosidade e do devaneio romântico de liberdade”, ditto “para a redução do número de pobres, o fomento do espírito da indústria e a diminuição do preço do trabalho nas manufaturas”, nosso fiel Eckart do capital propõe este instrumento de eficácia comprovada: trancafiar esses trabalhadores, que dependem da beneficência pública, numa palavra, os paupers, numa “casa ideal de trabalho” (an ideal workhouse). “Tal workhouse ideal deve ser transformada numa Casa do Terror (House of Terror).” Nessa “Casa do Terror”, esse “ideal de uma casa de trabalho” [workhouse], devem-se trabalhar “catorze horas diárias, inclusive o tempo reservado às refeições, de modo que restam doze horas completas de trabalho”. (348)
Marx dá então sua réplica. O equivalente a tal casa do terror para os paupers, escreve ele, “com a qual a alma do capital ainda sonhava em 1770, ergueu-se alguns anos mais tarde como uma gigante ‘casa de trabalho’ para os próprios trabalhadores da manufatura. Chamou-se fábrica. E, dessa vez, o ideal empalideceu diante da realidade” (349).
A organização espacial é parte do aparato disciplinar imposto ao trabalhador. Muito provavelmente, isso inspirou vários estudos de Foucault sobre os aparatos disciplinares espacialmente organizados (tendo o panóptico como modelo) em obras como História da loucura na idade clássica[d], Vigiar e punir[e] e O nascimento da clínica[f]. É uma ironia, penso eu, que no universo linguístico anglo-saxão Foucault seja visto normalmente como um pensador radicalmente contrário a Marx, apesar de ser bastante claro que as análises marxianas da jornada de trabalho são uma de suas inspirações. A meu ver, Foucault faz um excelente trabalho de generalização e substanciação do argumento de Marx. Embora em algumas de suas obras tardias ele parta daquilo que os marxistas (e, mais particularmente, os maoistas e os comunistas da França de então) diziam, seus primeiros textos fundamentais (sobre os manicômios, as prisões e as clínicas) deveriam ser lidos não como afastamento, mas como continuação dos argumentos de Marx a respeito do advento de um capitalismo disciplinar, no qual os trabalhadores têm de ser socializados e disciplinados para aceitar a lógica espaçotemporal do processo de trabalho capitalista.
O problema de como criar e manter a disciplina do trabalhador permanece, é claro. Traz consigo o problema do que fazer com aqueles que não se sujeitam a essa disciplina e por isso são tachados de esquisitos ou mesmo de transgressores. E este é o ponto fundamental tanto em Foucault como em Marx: eles são chamados de loucos ou antissociais e presos em manicômios ou presídios; ou, como observa Marx, são amontoados, humilhados e punidos. Ser uma pessoa “normal”, portanto, é aceitar certo tipo de disciplina espaçotemporal conveniente ao modo de produção capitalista. O que Marx mostra é que isso não é nada normal; trata-se de um construto social que surgiu durante esse período histórico, de modo particular e por razões particulares.
É claro que os capitalistas tiveram inicialmente de lutar para ampliar a jornada de trabalho e normalizá-la em, digamos, dez ou doze horas (como era na época de Marx). O “tempo de trabalho” nas sociedades pré-capitalistas variava muito, conforme as circunstâncias, mas em muitos casos não ultrapassava quatro horas por dia, e o resto do dia era destinado à socialização e a outras atividades que não poderiam ser chamadas de “produtivas”, no sentido de contribuir para a sobrevivência material. Na forma atual de sociedade, uma jornada de trabalho de quatro horas seria considerada ridícula, despropositada e incivilizada, o que nos leva à questão sobre o “grau de civilização” da nossa própria cultura. Presumivelmente, uma alternativa socialista deve ter como objetivo recuperar a jornada de trabalho de quatro horas!
No item 6, Marx relata o que aconteceu nos anos 1830 e 1840, quando os trabalhadores se revoltaram contra a duração excessiva da jornada de trabalho na Grã-Bretanha industrial. Ele descreve uma dinâmica política particular mais ou menos da seguinte forma (e aqui conto a história à minha maneira para ajudar a esclarecer a descrição de Marx). Nos anos 1820, na Grã-Bretanha, a aristocracia rural ainda dominava o poder político. Ela controlava o Parlamento, a Câmara dos Lordes, a monarquia, as Forças Armadas e o Judiciário. Mas havia também uma burguesia ascendente, parcialmente formada por interesses mercantis e financeiros tradicionais (estabelecida em Londres e em cidades portuárias, como Bristol e Liverpool, que ganhavam muito dinheiro com o trabalho escravo), e agora somada a um interesse industrial cada vez mais poderoso, concentrado nos fabricantes de algodão da região de Manchester. Estes se tornaram poderosos defensores de uma versão particular da teoria econômica, dominada pelas ideias de liberdade de mercado e livre-comércio (lembre-se de que foi em Manchester que Senior foi ensinar sua economia). Apesar de cada vez mais ricos, os capitalistas industriais tinham cada vez menos poder político, em comparação com a aristocracia fundiária. Eles tentaram então reformar o sistema parlamentar para ter mais poder dentro do aparelho estatal. Para isso, tiveram de travar uma séria batalha contra a aristocracia rural. E, ao travar essa batalha, buscaram o apoio da massa da população, em particular das classes médias profissionais e de uma classe trabalhadora articulada, educada por seus próprios meios e artesanal (distinta da massa de trabalhadores incultos). Em resumo, a burguesia industrial tentou fazer uma aliança com movimentos da classe trabalhadora artesanal contra a aristocracia fundiária. E, com agitações em massa no fim dos anos 1820, impuseram a promulgação da Reform Act de 1832, que mudou o sistema de representação parlamentar a seu favor e liberalizou o censo eleitoral, concedendo aos pequenos proprietários o direito de votar.
Contudo, ao longo do movimento que levou à reforma, os capitalistas fizeram todo tipo de promessa política às classes trabalhadoras, inclusive a extensão do voto aos artesãos, a regulação da jornada de trabalho e a adoção de medidas contra as condições opressivas de trabalho. Os trabalhadores não demoraram a chamar a Reform Act de “a grande traição”. A burguesia industrial conseguiu a maioria das reformas que desejava, enquanto as classes trabalhadoras não obtiveram quase nada. A primeira Lei Fabril para regular a duração da jornada de trabalho, promulgada em 1833, era fraca e ineficaz (embora tenha servido como precedente para a legislação estatal sobre essa questão). Revoltados com a traição, os trabalhadores organizaram um movimento político, chamado cartismo, para protestar contra as condições de vida da massa da população e as terríveis condições de trabalho nas fábricas. Enquanto isso, os aristocratas fundiários assumiram uma posição ainda mais antagônica ao poder crescente da burguesia industrial (essa tensão é onipresente nos romances de Dickens ou Disraeli). Tenderam a apoiar as demandas dos trabalhadores, em parte movidos pelo interesse nacional (militar), mas também pela típica política aristocrática da noblesse oblige, e descreviam-se como a boa gente paternalista que não explorava o povo como faziam os perversos industriais. Foi em parte daí que saíram os inspetores de fábrica, promovidos pela aristocracia rural para contrapor o poder de uma burguesia cruel. Nos anos 1840, a burguesia industrial viu-se pressionada por essa coalizão entre a aristocracia fundiária e um movimento operário que, como diz Marx, tornava-se “a cada dia mais ameaçador” (313). Versões mais incisivas da Lei Fabril foram propostas e aprovadas em 1844, 1847 e 1848.
Há, porém, outra peça nesse quebra-cabeça de relações entre classes e formação de alianças. A Escola de Manchester era grande defensora do laissez-faire e do livre-comércio. Isso levou a uma luta contra as Corn Laws [Leis dos Cereais][1]. Altos impostos sobre a importação de grãos protegiam os ganhos da aristocracia fundiária contra a concorrência estrangeira. Mas o resultado era o alto custo do pão, um alimento básico das classes trabalhadoras. A burguesia industrial lançou uma campanha política, liderada por Cobden e Bright em Manchester, a favor da abolição das Corn Laws, dizendo aos trabalhadores que isso baratearia o pão. Houve tentativas de firmar uma aliança com os trabalhadores (não muito bem-sucedidas, porque eles ainda guardavam viva na memória a “grande traição”). Nos anos 1840, reformas eventuais nas Corn Laws reduziram os impostos sobre a importação de grãos, e isso teve um sério impacto sobre a riqueza da aristocracia fundiária. Mas, com o pão mais barato, a burguesia industrial reduziu os salários. Nos termos de Marx, como parte do valor da força de trabalho era determinada pelo preço do pão, a importação mais barata de trigo diminuiu o preço do pão e, por conseguinte (mantidos iguais os demais fatores), provocou uma queda no valor da força de trabalho. Os industriais podiam pagar menos a seus trabalhadores porque estes precisavam de menos dinheiro para comprar seu pão diário! Nessa altura dos anos 1840, o movimento cartista se fortaleceu e as reivindicações dos trabalhadores e o movimento operário se intensificaram, mas não havia uma aliança sólida contra eles, porque os interesses industriais (burgueses) e rurais (aristocráticos) divergiam profundamente.
A burguesia industrial tentou minar a prática das Leis Fabris dos anos 1840. Como os boiardos, manipulava a noção de temporalidade. Aproveitando-se do fato de que os trabalhadores não tinham relógio, os empregadores alteravam os relógios da fábrica para ganhar tempo extra de trabalho. Dividiam o trabalho em pequenas partes e empurravam o trabalhador “de lá para cá em porções fragmentadas de tempo” (362); desse modo, o trabalhador, como um ator no palco, participava de dez horas de trabalho, mas permanecia quinze na fábrica. Via-se “forçado a engolir sua refeição ora nesse pedaço de tempo não utilizado, ora noutro” (363). Os empregadores usavam o sistema de turnos para confundir o tempo e “denunciaram os inspetores de fábricas como uma espécie de Comissários da Convenção[g], que sacrificavam impiedosamente os desditosos trabalhadores a seus delírios de reforma do mundo” (356). A legislação inicial dirigia-se especialmente ao emprego de mulheres e crianças e desencadeou um debate sobre a idade em que as crianças se tornam adultas. “De acordo com a antropologia capitalista, a idade infantil acabava aos 10, ou, no máximo, aos 11 anos” (352). Isso é suficiente para mostrar o grau de civilização da burguesia industrial! E, como denunciou veementemente o inspetor de fábrica Leonard Horner, não adiantava recorrer aos tribunais, porque o máximo que faziam era eximir os empregadores. No entanto, diz Marx, “os tories” – a aristocracia rural –, “ávidos por vingança” (355) por causa da abolição das Corn Laws, patrocinaram a Lei Fabril de 1848, que limitou a jornada de trabalho a dez horas.
Mas em 1848 aconteceu uma daquelas crises periódicas do capitalismo: uma grande crise de superacumulação de capital, uma enorme crise de desemprego em grande parte da Europa. Isso provocou movimentos revolucionários intensos em Paris, Berlim, Viena e outros lugares; ao mesmo tempo, a mobilização cartista chegou ao auge na Grã-Bretanha. A burguesia começou a temer o potencial revolucionário da classe trabalhadora. Em Paris, em junho de 1848, os movimentos operários que exigiam poder foram violentamente reprimidos e estabeleceu-se um regime autoritário que se tornaria, em 1852, o Segundo Império, instituído por Luís Bonaparte.
Na Grã-Bretanha, os acontecimentos não foram tão dramáticos, mas o medo de uma revolta era disseminado.
[O] fiasco do partido cartista, com seus líderes encarcerados e sua organização fragmentada, já havia abalado a autoconfiança da classe trabalhadora inglesa. Logo depois disso, a Insurreição de Junho em Paris e sua sangrenta repressão provocaram, na Inglaterra do mesmo modo que na Europa continental, a união de todas as frações das classes dominantes, proprietários fundiários e capitalistas, chacais das bolsas de valores e varejistas, protecionistas e livre-cambistas, governo e oposição, padres e livres-pensadores, jovens prostitutas e velhas freiras [francamente, não tenho a menor ideia do que elas tinham a ver com isso], sob a bandeira comum da salvação da propriedade, da religião, da família e da sociedade! (357)
É espantoso com que frequência “a propriedade, a religião, a família e a sociedade” são repetidas como um mantra ideológico para proteger a ordem burguesa estabelecida. Não precisamos ir muito longe para encontrar um exemplo disso: na história recente dos Estados Unidos, o Partido Republicano, em particular, não existiria se não fosse sua veemente declaração de lealdade a esses princípios. Na Grã-Bretanha de 1848, “a classe trabalhadora foi por toda parte execrada, proscrita, submetida à loi des suspects [lei sobre os suspeitos][h]. Os senhores fabricantes já não tinham mais por que se constranger” e “revoltaram-se abertamente não só contra a Lei das 10 Horas, mas contra toda a legislação que, desde 1833, procurava de algum modo restringir a ‘livre’ exploração da força de trabalho”. A “rebelião” foi “conduzida por mais de dois anos com um cínico despudor e uma energia terrorista, ambos tanto mais banalizados quanto o capitalista rebelde não arriscava nada além da pele de seus trabalhadores” (357). Tudo isso lembra muito a contrarrevolução neoliberal de Reagan e Thatcher nos anos 1980. Sob o governo Reagan, grande parte dos avanços obtidos no campo das relações de trabalho (com o National Labor Relations Board e a Occupational Safety and Health Administration) foi revogada ou ficou sem aplicação. Também nesse caso, o caráter instável do poder de classe e das alianças de classe no interior do aparato estatal teve um papel fundamental.
Na Grã-Bretanha, aconteceu uma coisa interessante após 1850:
Mas a esse triunfo aparentemente definitivo do capital seguiu-se imediatamente uma reviravolta. Os trabalhadores haviam, até então, oferecido uma resistência passiva, ainda que inflexível e diariamente renovada. Eles protestavam, agora, em ameaçadores comícios em Lancashire e Yorkshire. A suposta Lei das 10 Horas era, para eles, mera impostura, uma trapaça parlamentar, e jamais teria existido! Os inspetores de fábricas alertaram urgentemente o governo de que o antagonismo de classes chegara a um grau de tensão inacreditável. Uma parte dos próprios fabricantes murmurou: “Devido às decisões contraditórias dos magistrados, reina um estado de coisas totalmente anormal e anárquico. Uma lei vigora em Yorkshire, outra em Lancashire, outra lei numa paróquia de Lancashire, outra em sua vizinhança imediata. (363)
Na verdade, o que os capitalistas fizeram foi usar a lei para dividir as decisões aqui, ali e acolá, privando-a assim de qualquer eficácia. Mas, diante de uma séria ameaça de revolta em 1850,
fabricantes e trabalhadores chegaram a um compromisso, que recebeu o selo parlamentar na nova lei fabril adicional de 5 de agosto de 1850. A jornada de trabalho para “jovens e mulheres” foi prolongada, nos primeiros cinco dias da semana, de dez horas para dez horas e meia, e diminuída para sete horas e meia aos sábados. (364)
Certos grupos, como os fabricantes de seda, procuraram isenções, e as crianças foram simplesmente massacradas “pela delicadeza de seus dedos” (365). Contudo, em 1850,
o princípio triunfou com sua vitória nos grandes ramos da indústria, que constituem a criatura mais característica do moderno modo de produção. Seu admirável desenvolvimento entre 1853 e 1860, lado a lado com o renascimento físico e moral dos trabalhadores fabris, saltava mesmo aos olhos mais cegos. Os próprios fabricantes, aos quais as limitações e regulações legais da jornada de trabalho foram gradualmente arrancadas ao longo de meio século de guerra civil, apontavam jactanciosos para o contraste com os setores da exploração que ainda se conservam “livres”. Os fariseus da “economia política” proclamaram, então, a compreensão da necessidade de uma jornada de trabalho fixada por lei como uma nova conquista característica de sua “ciência”. Compreende-se facilmente que, depois de os magnatas das fábricas terem se resignado e se reconciliado com o inevitável, a força de resistência do capital tenha se enfraquecido gradualmente, ao mesmo tempo que o poder de ataque da classe trabalhadora cresceu a par do número de seus aliados nas camadas sociais não diretamente interessadas. (367)
Quem eram esses aliados? Marx não diz, mas é provável que fossem as classes profissionais e a ala progressista da burguesia reformista. Elas eram elementos cruciais numa situação em que as classes trabalhadoras não tinham direito ao voto. “Daí o progresso relativamente rápido ocorrido a partir de 1860” (367).
Embora Marx não mencione o fato, esse reformismo não estava confinado às condições do trabalho fabril e, à medida que se tornava claro que também podiam se beneficiar, os capitalistas se interessaram cada vez mais em participar. Isso é bem ilustrado por Joseph Chamberlain, um industrial de Birmingham que se tornou prefeito da cidade e foi chamado muitas vezes de Radical Joe por seu empenho para promover melhorias na educação, na infraestrutura (abastecimento de água, saneamento, iluminação a gás etc.) e nas condições de moradia dos mais pobres. Nos anos 1860, ao menos uma parte da burguesia industrial havia aprendido que, para manter o lucro, não era necessário ter uma posição reacionária em relação a essas questões.
Essa dinâmica exige um comentário. Os dados mostram que, até cerca de 1850, a taxa de exploração no sistema industrial britânico era terrível, e as horas de trabalho eram igualmente terríveis, com consequências pavorosas para as condições de trabalho e vida. Mas essa superexploração diminuiu após 1850, sem nenhum efeito negativo sobre o lucro ou a produtividade. Isso ocorreu, em parte, porque os capitalistas encontraram um novo meio de obter mais-valor (que analisaremos em breve). Mas eles também descobriram que uma força de trabalho saudável e eficiente, com uma jornada de trabalho menor, podia ser mais produtiva do que uma força de trabalho doente, ineficiente, dispersa, com colapsos e mortes frequentes, como aquela que foi utilizada nos anos 1830 e 1840. Os capitalistas puderam se gabar dessa descoberta e de sua benevolência, e algumas vezes apoiar publicamente certo grau de regulação coletiva e interferência do Estado para limitar os efeitos das leis coercitivas da concorrência. Mas, se do ponto de vista da classe capitalista limitar a duração da jornada de trabalho revelou-se uma boa ideia, o que dizer da luta dos trabalhadores e de seus aliados por esse mesmo fim? Os trabalhadores podem muito bem ter feito um favor ao capital. Os capitalistas foram empurrados para uma reforma que não era necessariamente contrária a seus interesses de classe. Em outras palavras, a dinâmica da luta de classes pode tanto ajudar a equilibrar o sistema quanto derrubá-lo. O que Marx constata é que, após cinquenta anos de luta, quando finalmente se renderam à ideia de regular a jornada de trabalho, os capitalistas viram que ela não atendia menos a seus interesses do que aos interesses dos trabalhadores.
No item 7, Marx examina o impacto da legislação fabril britânica em outros países, principalmente a França e os Estados Unidos. Começa reconhecendo a insuficiência de um modo de análise que foca simplesmente o trabalhador individual e seu contrato de trabalho.
A história da regulação da jornada de trabalho em alguns modos de produção, bem como a luta que, em outros, ainda se trava por essa regulação, provam palpavelmente que, quando o modo de produção capitalista atinge certo grau de amadurecimento, o trabalhador isolado, o trabalhador como “livre” vendedor de sua força de trabalho, sucumbe a ele sem poder de resistência. A criação de uma jornada normal de trabalho é, por isso, o produto de uma longa e mais ou menos oculta guerra civil entre as classes capitalista e trabalhadora. (370)
Em outros países, essa luta é afetada pela natureza das tradições políticas (o “método revolucionário francês”, por exemplo, é muito mais dependente das declarações de “direitos universais”) e pelas condições efetivas de trabalho (nos Estados Unidos, em condições de escravidão, “o trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro”) (372). Em todos os casos, porém, o trabalhador que aparece como um “agente livre” no mercado descobre que não é um agente livre no reino da produção, onde “seu parasita [Sauger] não o deixará ‘enquanto houver um músculo, um nervo, uma gota de sangue para explorar’” (373). Aqui, Marx cita Engels[i]. A lição que se deve aprender é:
Para “se proteger” contra a serpente de suas aflições[j], os trabalhadores têm de se unir e, como classe, forçar a aprovação de uma lei, uma barreira social intransponível que os impeça a si mesmos de, por meio de um contrato voluntário com o capital, vender a si e suas famílias à morte e à escravidão. No lugar do pomposo catálogo dos “direitos humanos inalienáveis”, tem-se a modesta Magna Charta[k] de uma jornada de trabalho legalmente limitada, que “afinal deixa claro quando acaba o tempo que o trabalhador vende e quando começa o tempo que lhe pertence”. (373-4)
Algumas questões vêm à tona com essa conclusão. A rejeição dos “direitos inalienáveis do homem” é a reafirmação de que a rights talk não conseguirá dar conta de questões fundamentais, como a determinação da duração da jornada de trabalho. Nem os tribunais. Mas aqui, pela primeira vez, Marx argumenta que os trabalhadores “têm de se unir” e atuar como classe, e o modo como fizerem isso terá um enorme impacto sobre as condições de trabalho e a dinâmica do capitalismo. A luta é fundamental para a própria definição de liberdade. Cito aqui uma passagem do Livro III d’O capital:
O reino da liberdade só começa, de fato, onde termina o trabalho determinado pela necessidade e pela conveniência externa; ele se encontra, por sua própria natureza, para além da esfera da produção material propriamente dita. Assim como o selvagem, também o homem civilizado tem de lutar com a natureza para satisfazer suas necessidades, para conservar e reproduzir sua vida, e tem de fazê-lo em todas as formas sociais e sob todos os modos de produção possíveis. Com seu desenvolvimento, expande-se esse reino da necessidade natural, porque também se expandem suas necessidades; ao mesmo tempo, porém, expandem-se as forças produtivas que as satisfazem. A liberdade nesse terreno só pode consistir em que o homem socializado, os produtores associados, regulem seu metabolismo com a natureza, submetam-no a seu controle coletivo, em vez de serem dominados por ele como por uma potência cega, e que o realizem com o mínimo dispêndio de energia e sob as condições mais dignas e adequadas à sua natureza humana. Mas ele permanece sempre um reino de necessidade. Para além dele começa o desenvolvimento das forças humanas como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, que, no entanto, só pode florescer sobre a base daquele reino da necessidade. A redução da jornada de trabalho é a precondição fundamental.[l]
Mas vemos também que os capitalistas, movidos pelas leis coercitivas da concorrência, costumam se comportar de maneira prejudicial a suas perspectivas de reprodução como classe. Se os trabalhadores se organizam como classe e, com isso, forçam os capitalistas a mudar seu comportamento, o poder coletivo dos trabalhadores ajuda a salvar os capitalistas de sua própria estupidez e miopia individuais, forçando-os a reconhecer seu interesse de classe. Isso implica que a luta de classes pode atuar como um estabilizador na dinâmica capitalista. Se os trabalhadores são completamente desprovidos de poder, o sistema torna-se deficiente, porque o “après moi le déluge!” não é um modo viável de conduzir uma economia capitalista estável. Isso é um problema sério, no que diz respeito tanto à superexploração da terra e à pilhagem dos recursos naturais quanto à qualidade e à quantidade de oferta de trabalho.
Mas essa é uma conclusão difícil, porque Marx é supostamente um pensador revolucionário. Nesse capítulo, ele inicia sua exposição com a tese de que tanto o capital quanto o trabalho procuram seus direitos nos termos das leis da troca. Nesses termos, o único resultado possível para os trabalhadores é uma “modesta Magna Carta” de um salário diário justo para uma jornada de trabalho justa. Não há aqui nenhuma menção à derrubada da classe capitalista ou à abolição das relações de classe. A luta de classes serve apenas para equilibrar a relação entre capital e trabalho. Ela pode ser muito facilmente interiorizada na dinâmica capitalista como uma força positiva que sustenta esse modo de produção. Se, por um lado, isso significa que a luta de classes é tanto inevitável como socialmente necessária, por outro, lança pouca luz sobre as perspectivas de uma derrubada revolucionária do capitalismo.
Como devemos interpretar o elemento político envolvido nisso tudo? Minha inclinação é concordar com a proposição de que um certo ganho de poder do movimento trabalhador é socialmente necessário para o funcionamento efetivo do capitalismo e, quanto antes os capitalistas reconhecerem e se submeterem a esse fato, melhor para eles. Há evidências históricas suficientes para apoiar essa conclusão, como o New Deal, pelo qual os Estados Unidos fortaleceram deliberadamente o movimento sindical não para derrubar o capitalismo, mas para ajudar a estabilizá-lo. As lutas em torno do valor da força de trabalho e da duração da jornada de trabalho são fundamentais para chegar a um mínimo de estabilidade no capitalismo, tanto por razões sociais e políticas quanto por razões puramente econômicas. Talvez não seja por acaso que a fase de governo social-democrata mais forte na Europa nos anos 1950 e 1960 e a aliança social entre o capital e o trabalho nos Estados Unidos estejam associadas a um robusto crescimento capitalista, e que os Estados escandinavos, com seus poderosos sistemas de bem-estar social, tenham continuado como concorrentes relativamente bem-sucedidos na arena mundial, mesmo durante a recente virada neoliberal. Marx também dirá que, para compreender a dinâmica do capitalismo, é necessário introduzir a descoberta da existência socialmente necessária da luta de classes numa economia política burguesa, que, por si mesma, silencia esse fato.
Mas há também um ponto em que a luta em torno da duração da jornada de trabalho e o ganho de poder do movimento trabalhador podem ir além da consciência sindical e se transformar em reivindicações mais revolucionárias. Uma coisa é dizer que a jornada de trabalho deveria ser limitada a oito ou dez horas, mas o que aconteceria se os trabalhadores exigissem uma redução para quatro horas? Nesse ponto, os capitalistas ficam assustados. Como aconteceu na França, mesmo uma semana de trabalho de 35 horas e férias de 6 semanas foram vistas como excessivas e desencadearam um forte movimento por parte da classe capitalista e de seus aliados a favor de uma maior “flexibilidade” nas leis trabalhistas. A questão é: em que ponto a reforma se excede e desafia a própria base do capitalismo?
Se existe um ponto de equilíbrio na luta de classes, ele não é fixo, tampouco conhecido. Mas esse ponto depende da natureza das forças de classe e do grau de flexibilidade dos capitalistas em relação às novas demandas. Por exemplo, uma jornada de trabalho muito mais curta permite aos capitalistas forçar a intensidade e a eficiência do trabalho para compensar as horas reduzidas. É virtualmente impossível manter um alto grau de intensidade numa jornada de trabalho de doze horas. Um exemplo interessante ocorreu na greve dos mineiros contra o governo de Eward Heath, na Grã-Bretanha, nos anos 1970. Diante da escassez de energia, Heath decretou uma jornada de trabalho de três dias, mas dados subsequentes mostraram que a atividade produtiva não diminuiu na mesma proporção. Ele decretou também o fim das transmissões de televisão após as dez horas da noite, e isso lhe custou o mandato na eleição seguinte (também houve um interessante aumento no número de nascimentos, cerca de nove meses depois).
Não posso deixar de concluir este capítulo com alguns comentários sobre sua relevância para as condições atuais. Está claro que, desde os tempos de Marx, a dinâmica da luta de classes (inclusive da formação de alianças de classe) continuou a desempenhar um papel crucial tanto na determinação dos dias, semanas, anos e vida de trabalho quanto no grau de regulação das condições de trabalho e dos níveis de salários. Mesmo que em certos lugares e épocas as condições mais terríveis descritas por Marx tenham sido lentamente corrigidas, as questões gerais que ele descreve (por exemplo, a expectativa de vida muito menor do que a média em muitas ocupações, como mineração, metalurgia e construção) nunca foram resolvidas. Mas, nos últimos trinta anos, com a contrarrevolução neoliberal – que dá muito mais ênfase à desregulamentação – e a procura de forças de trabalho mais vulneráveis por meio da globalização, houve uma recrudescência daquelas condições que os inspetores de fábrica descreveram com tantos detalhes na época de Marx. Em meados dos anos 1990, por exemplo, eu passava o seguinte exercício aos estudantes que frequentavam meu curso sobre O capital: pedia que imaginassem que haviam recebido uma carta de seus pais em que estes diziam que O capital, apesar de ter certa relevância histórica, descreve condições que foram superadas há muito tempo. Eu lhes apresentava uma quantidade enorme de excertos de relatórios oficiais (do Banco Mundial, por exemplo) e recortes de jornais respeitáveis (New York Times etc.) que descreviam as condições de trabalho nas fábricas da Gap na América Central, da Nike na Indonésia e no Vietnã e da Levi Strauss no Sudoeste Asiático e diziam quão chocada havia ficado Kathie Lee Gifford, grande defensora das crianças, ao descobrir que as roupas que ela havia criado para o Walmart haviam sido produzidas em fábricas hondurenhas que empregam crianças pequenas por salário inexistente ou em fábricas clandestinas em Nova York em que os trabalhadores ficam semanas sem salário. Os estudantes escreviam ensaios excelentes, mas hesitavam quando eu sugeria que talvez gostassem de enviá-los a seus pais.
Lamentavelmente, as condições pioraram. Em maio de 2008, uma inspeção da Immigration and Customs Enforcement num frigorífico em Iowa descobriu 389 pessoas suspeitas de ser imigrantes ilegais, entre elas vários menores de idade e muitas trabalhando doze horas por dia, seis dias por semana. Os imigrantes foram tratados como criminosos; muitos dos 297 condenados ficaram presos cinco meses ou mais, até que foram deportados; enquanto isso, as autoridades começaram muito lentamente a tomar medidas contra o frigorífico por suas práticas de trabalho chocantes, mas apenas depois que o ultraje ganhou repercussão pública. Como meus estudantes puderam concluir, é muito fácil incluir dados atuais sobre as práticas laborais no capítulo em Marx discute a jornada de trabalho, sem que se note nenhuma diferença. Foi a isso que nos levaram a contrarrevolução neoliberal e o enfraquecimento do movimento trabalhista. Infelizmente, a análise de Marx é absolutamente relevante para nossa condição contemporânea.
O capítulo 9 é um típico capítulo de transição. Ele parte de um conjunto de questões para introduzir outro. Marx retoma a forma árida, algébrica, antes de dar uma guinada substancial. Os capitalistas, sugere ele, estão muito interessados em maximizar a massa do mais-valor porque seu poder social individual depende da quantidade total de dinheiro que controlam. A massa do mais-valor é dada pela taxa de mais-valor multiplicada pelo número de trabalhadores empregados. Se esse número diminui, a mesma massa de mais-valor pode ser ganha com um aumento da taxa de mais-valor. Mas há um limite para a taxa de mais-valor, dado não apenas pelo fato de o dia ter apenas 24 horas, mas também por todas as barreiras sociais e políticas discutidas anteriormente. Diante desse limite, os capitalistas podem aumentar o número de trabalhadores empregados. Num certo ponto, porém, outro limite se apresenta: o do total de capital variável disponível e da oferta total de população trabalhadora. Obviamente, o último limite seria a população total, mas existem outras razões para que a força de trabalho disponível seja muito menor do que ela. Diante desses dois limites, o capital tem de lançar mão de uma estratégia inteiramente diferente para aumentar a massa do mais-valor.
Como ocorre com frequência em capítulos transitórios, Marx apresenta, de forma sucinta, um mapa conceitual do caminho percorrido e do que ainda resta percorrer:
No interior do processo de produção, o capital se desenvolveu para assumir o comando sobre o trabalho, isto é, sobre a força de trabalho em atividade ou, em outras palavras, sobre o próprio trabalhador. O capital personificado, o capitalista, cuida para que o trabalhador execute seu trabalho ordenadamente e com o grau apropriado de intensidade [...]. [Mas] o capital desenvolveu-se, ademais, numa relação coercitiva, que obriga a classe trabalhadora a executar mais trabalho do que o exigido pelo círculo estreito de suas próprias necessidades vitais. (381)
O capital personificado, em sua sede por mais-trabalho e sua busca incessante de mais-valor,
excede em energia, desmedida e eficiência todos os sistemas de produção anteriores baseados no trabalho direto compulsório [...]. Inicialmente, [porém], o capital subordina o trabalho conforme as condições técnicas em que ele historicamente se encontra. Portanto, ele não altera imediatamente o modo de produção, razão pela qual a produção de mais-valor, na forma como a consideramos até agora, mostrou-se independente de qualquer mudança no modo de produção. (381-2)
Mas isso está prestes a mudar tanto lógica como historicamente. Quando “observamos o processo de produção do ponto de vista do processo de valorização”, percebemos que os “meios de produção converteram-se imediatamente em meios para a sucção de trabalho alheio. Não é mais o trabalhador que emprega os meios de produção, mas os meios de produção que empregam o trabalhador”. Essa mudança lógica e histórica ocupa o cerne de uma transformação radical na forma como o modo de produção capitalista tem de ser entendido. “Em vez de serem consumidos por ele como elementos materiais de sua atividade produtiva”, são os meios de produção que “o consomem como fermento de seu próprio processo vital, e o processo vital do capital não é mais do que seu movimento como valor que valoriza a si mesmo” (382). Isso se segue do simples fato de que o valor dos meios de produção (o trabalho morto congelado nas fábricas, nos fusos e nas máquinas) só pode ser preservado (para não dizer aumentado na forma de mais-valor) pela absorção da oferta de trabalho vivo sempre renovada. Para o “cérebro burguês”, a conclusão é que os trabalhadores existem apenas para valorizar o capital por meio da aplicação de sua força de trabalho!
O capitalismo abomina qualquer tipo de limite, precisamente porque a acumulação de dinheiro é, em princípio, ilimitada. Por isso, o capitalismo se esforça constantemente para transcender todos os limites (ambientais, sociais, políticos e geográficos) e transformá-los em barreiras que possam ser transpostas ou contornadas. Isso dá um caráter definido e especial ao modo de produção capitalista e impõe consequências históricas e geográficas ao seu desenvolvimento. Vamos analisar agora como os limites encontrados neste capítulo – da força de trabalho disponível e da taxa de exploração – são transformados pelo capital numa barreira que pode ser ultrapassada.
[a] A London season era o período do ano em que a elite britânica, composta majoritariamente de aristocratas rurais, instalava-se na capital a fim de travar contatos sociais e engajar-se na política. A season londrina coincidia com o início das atividades do Parlamento e estendia-se por cerca de cinco meses, começando no fim de dezembro e encerrando-se no fim de junho. (N. T.)
[b] Referência à frase de Madame de Pompadour, “Après nous le déluge !” (Depois de nós, o dilúvio!), em resposta à advertência de um membro da corte a respeito dos efeitos nocivos das extravagâncias da realeza sobre a dívida pública francesa. (N. T.)
[c] Referência de Marx a um verso do poema “Suleika”, da obra West östlicher Divan, de J. W. de Goethe. (N. T.)
[d] São Paulo, Perspectiva, 1972. (N. E.)
[e] 36. ed., Petrópolis, Vozes, 2007. (N. E.)
[f] 7. ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2011. (N. E.)
[1] Na Grã-Bretanha, corn referia-se sobretudo ao trigo, e não ao milho, como na América.
[g] Assim eram chamados, durante a Revolução Francesa, os representantes da Convenção Nacional que, investidos de poderes especiais, atuavam nos departamentos e nas fileiras militares. (N. T.)
[h] Lei sobre medidas de segurança geral, aprovada pelo Corps Législatif em 19 de fevereiro de 1858. A lei dava ao imperador e a seu governo o direito irrestrito de deter qualquer pessoa suspeita de postura hostil ao Segundo Império e de mantê-la na prisão por tempo indeterminado, exilá-la na Argélia ou expulsá-la do território francês. (N. T.)
[i] Friedrich Engels, “Die englische Zehnstundenbill” [A lei inglesa da jornada de trabalho de dez horas], em Neue Rheinische Zeitung. Politsch-Ökonomische Revue [Nova Gazeta Renana. Revista de economia política], caderno de abril, 1850, p. 5. (N. T.)
[j] Referência a “Heinrich”, poema de Heinrich Heine: “Du, mein liebes treues Deutschland,/ Du wirst auch den Mann gebären,/ Der die Schlange meiner Qualen/ Niederschmettert mit der Streitaxt” (Tu, Alemanha amada e fiel/ Darás à luz também ao homem/ Que abaterá a machadadas/ A serpente de minhas aflições). (N. T.)
[k] Magna Charta Libertatum: documento imposto ao rei inglês João I (chamado “João sem Terra”) pelos grandes senhores feudais, barões e príncipes eclesiásticos, apoiados pela nobreza rural e pelas municipalidades. A Charta, assinada em 15 de junho de 1215, limitava o poder do rei, principalmente em favor dos senhores feudais, e fazia várias concessões à nobreza rural; à massa da população, os camponeses servos, a Charta não concedia qualquer direito. Marx refere-se aqui à lei para a limitação da jornada de trabalho, pela qual a classe trabalhadora inglesa teve de travar uma longa e persistente luta. (N. T.)
[l] MEW, Das Kapital (Berlim, Dietz, 1983), v. 25, p. 828. (N. T.)