Na introdução, afirmei que Marx raramente comenta sua metodologia. Ela tem de ser reconstruída, portanto, por uma leitura atenta dos comentários ocasionais, suplementada por um estudo das práticas. O capítulo 13, “Maquinaria e grande indústria”, nos dá a oportunidade de enfrentar essa questão ao mesmo tempo em que antecipa os argumentos gerais quanto ao caráter do modo de produção capitalista. O capítulo é longo, mas os itens são logicamente ordenados. Vale a pena seguir esse ordenamento lógico tanto antes quanto depois de estudar esse capítulo.
Começarei, no entanto, com a quarta nota do capítulo, em que Marx, nos mesmos termos enigmáticos que emprega com frequência ao fazer considerações metodológicas, interconecta um grande número de conceitos numa configuração que fornece um arcabouço geral para o materialismo dialético e histórico. A nota de rodapé se desdobra em três fases. A primeira concentra-se na relação de Marx com Darwin. Marx leu A origem das espécies e ficou impressionado com o método histórico de reconstrução evolucionária desenvolvido por Darwin. Ele via sua própria obra como uma espécie de continuação da obra de Darwin, com ênfase na história humana e na história natural (e não em oposição a ela). Seu objetivo, como ele observa no prefácio à primeira edição, é apreender “o desenvolvimento da formação econômica da sociedade como um processo histórico-natural”. A partir desse ponto de vista, o indivíduo “pode menos do que qualquer outro responsabilizar o indivíduo por relações das quais ele continua a ser socialmente uma criatura, por mais que, subjetivamente, ele possa se colocar acima delas” (80).
Na nota de rodapé, Marx foca primeiramente uma “história crítica da tecnologia”.
[Esta] provaria o quão pouco qualquer invenção do século XVIII pode ser atribuída a um único indivíduo. Até então, tal obra inexiste. Darwin atraiu o interesse para a história da tecnologia natural, isto é, para a formação dos órgãos das plantas e dos animais como instrumentos de produção para a vida. Não mereceria igual atenção a história da formação dos órgãos produtivos do homem social, da base material de toda organização social particular? E não seria ela mais fácil de ser compilada, uma vez que, como diz Vico, a história dos homens se diferencia da história natural pelo fato de fazermos uma e não a outra? (446, nota 89)
O argumento de Vico é que a história natural é o domínio de Deus e, como Deus age por caminhos misteriosos, ela está além do entendimento humano; já a nossa história, porque é feita por nós mesmos, pode ser conhecida. Anteriormente, Marx mencionou a abordagem histórica das mudanças tecnológicas e apontou algumas transições vitais associadas às transformações do modo de produção. Depois de concordar com a definição de Benjamin Franklin no capítulo 5 de que o homem é um “animal que fabrica ferramentas”, ele prossegue:
A mesma importância que as relíquias de ossos têm para o conhecimento da organização das espécies de animais extintas têm também as relíquias de meios de trabalho para a compreensão de formações socioeconômicas extintas. O que diferencia as épocas econômicas não é “o quê” é produzido, mas “como”, “com que meios de trabalho”. (257)
Então, numa nota de rodapé, ele observa quão ínfimo é o “conhecimento que a historiografia de nossos dias possui do desenvolvimento da produção material, portanto, da base de toda vida social e, por conseguinte, de toda história efetiva” (258). No capítulo 12, afirma:
A forma elementar de toda maquinaria foi-nos transmitida pelo Império romano com o moinho d’água. O período do artesanato deixou como legado grandes invenções: a bússola, a pólvora, a impressão de livros e o relógio automático. Em geral, no entanto, a maquinaria desempenha aquele papel secundário que Adam Smith lhe confere, ao lado da divisão do trabalho. (422)
Essa ideia de que houve um processo humano evolucionário, no qual podemos discernir mudanças radicais não apenas nas tecnologias, mas também nos modos de vida social, é claramente de grande importância para Marx.
Marx não leu Darwin de maneira acrítica. “É notável”, escreveu ele a Engels, “como Darwin reconhece, entre os animais e as plantas, a sociedade inglesa de seu tempo, com sua divisão de trabalho, concorrência, abertura de novos mercados, ‘invenções’ e a ‘luta pela existência’ malthusiana.”[a] Para Marx, o problema estava na concepção darwiniana de uma evolução puramente natural, sem nenhuma referência ao papel da ação humana na transformação da face da terra. A referência a Malthus também é significativa, porque, na introdução de A origem das espécies, Darwin atribuiu algumas de suas ideias principais a Malthus. E, como Marx não tolerava Malthus, deve ter sido difícil para ele engolir a ideia de que este tivesse inspirado Darwin. É interessante notar que os evolucionistas russos, que não estavam expostos ao impiedoso industrialismo inglês (Darwin era casado com a filha de Josiah Wedgwood, o famoso fabricante de cerâmica, e por isso tinha grande familiaridade com a concorrência e a divisão do trabalho e das funções), enfatizavam muito mais a cooperação e a ajuda mútua, ideias que o geógrafo russo Kropotkin traduziu nos fundamentos do anarquismo social.
Mas o que Marx apreciava em Darwin era a ideia da evolução como um processo aberto à reconstrução histórica e à investigação teórica. Marx entende o processo evolucionário humano de maneira semelhante. É nesse ponto que se mostra sua ênfase nos processos, em vez de nas coisas. O capítulo sobre a maquinaria e a grande indústria deveria ser lido como um ensaio nessa linha sobre a história da tecnologia. Ele fala do surgimento da forma industrial do capitalismo a partir do mundo do artesanato e da manufatura. Até então, ninguém havia pensado em escrever tal história; assim, esse capítulo é um esforço pioneiro que levaria mais tarde a todo um campo de estudos acadêmicos chamado história da ciência e da tecnologia. Lida desse modo, a argumentação do capítulo faz muito mais sentido. Mas, assim como a teoria de Darwin, há muito mais aqui do que apenas história. Há um engajamento teórico com os processos de transformação social, portanto há muita coisa para ser discutida.
A segunda parte da nota de rodapé faz uma afirmação curta, mas, a meu ver, extremamente importante, e requer análise. “A tecnologia desvela a atitude ativa do homem em relação à natureza, o processo imediato de produção de sua vida e, com isso, também de suas condições sociais de vida e das concepções espirituais que delas decorrem” (446, nota 89). Numa única sentença, Marx articula seis elementos conceituais identificáveis. Há, antes de tudo, a tecnologia. Há a relação com a natureza. Há o processo efetivo de produção e, em forma bastante nebulosa, a produção e a reprodução da vida cotidiana. Há, enfim, as relações sociais e as concepções mentais. Esses elementos não são estáticos, mas móveis, vinculados entre si pelos “processos de produção” que guiam a evolução humana. O único elemento que ele não descreve explicitamente em termos de produção é a relação com a natureza. Obviamente, essa relação mudou ao longo do tempo. Que a natureza é algo que está sempre sendo produzido, em parte pela ação humana, é uma ideia antiga; na versão marxista (esboçada no capítulo 5), ela é mais bem apresentada por meu colega Neil Smith, em seu livro Desenvolvimento desigual[b], em que os processos capitalistas de produção da natureza e do espaço são explicitamente teorizados.
Como construir as relações entre esses seis elementos conceituais? Embora sua linguagem seja sugestiva, Marx deixa essa questão em aberto, o que é lamentável, porque abre espaço para todo tipo de interpretação. Marx é descrito muitas vezes, tanto por amigos como por inimigos, como um determinista tecnológico, que acredita que mudanças nas forças produtivas ditam o curso da história humana, inclusive a evolução das relações sociais, as concepções mentais, a relação com a natureza etc. O jornalista neoliberal Thomas Friedman, por exemplo, admite tranquilamente em seu livro O mundo é plano[c] que é um determinista tecnológico; quando lhe disseram (equivocadamente) que essa era a posição de Marx, ele expressou sua admiração por Marx e citou uma longa passagem do Manifesto Comunista para provar seu argumento. Numa resenha do livro de Friedman, o filósofo político conservador John Gray confirmou o determinismo tecnológico de Marx e afirmou que Friedman estava apenas seguindo os passos de Marx[1]. Essas observações, feitas por pessoas que em geral são antipáticas ao pensamento de Marx, encontram paralelo na tradição marxista. A versão mais sólida da tese de que as forças produtivas são o agente condutor da história é de G. A. Cohen, em Karl Marx’s Theory of History: A Defence[2]. Depois de estudar todos os textos de Marx do ponto de vista da filosofia analítica, Cohen defende essa interpretação da teoria marxiana.
Não concordo com tal interpretação. Acho que é inconsistente com o método dialético de Marx (considerado lixo por filósofos analíticos como Cohen). Em geral, Marx evita a linguagem causal (desafio você a encontrar passagens desse tipo n’O capital). Nessa nota de rodapé, ele não diz que a tecnologia “causa” ou “determina”, mas “revela” ou, em outra tradução, “desvela” a relação do homem com a natureza. É claro que Marx dá muita atenção ao estudo das tecnologias (inclusive das formas organizacionais), mas isso não o leva a tratá-las como principais agentes da evolução humana. O que Marx diz (e muitos discordarão de mim) é que as tecnologias e as formas organizacionais interiorizam certa relação com a natureza, assim como com concepções mentais e relações sociais, com a vida cotidiana e os processos de trabalho. Em virtude dessa interiorização, o estudo das tecnologias e formas organizacionais pode “revelar” ou “desvelar” muito dos outros elementos. Inversamente, todos esses outros elementos interiorizam algo da tecnologia. Um estudo detalhado da vida cotidiana sob o capitalismo “revelará”, por exemplo, muita da nossa relação com a natureza, as tecnologias, as relações sociais, as concepções mentais e os processos laborais. Do mesmo modo, o estudo da nossa relação com a natureza não pode ir muito longe, se não examinar a natureza de nossas relações sociais, nossos sistemas de produção, nossas concepções do mundo, as tecnologias que empregamos e como conduzimos nossa vida cotidiana. Todos esses elementos constituem uma totalidade, e temos de entender com funcionam as interações mútuas entre eles.
Penso que esse é um modo profícuo de pensar o mundo. Por exemplo, fui membro de um júri para selecionar ideias para o planejamento de uma nova cidade na Coreia do Sul. Nós, os membros do júri, tínhamos todos os projetos à nossa frente. O júri era formado sobretudo por engenheiros e urbanistas, além de uns poucos arquitetos e paisagistas célebres. Estes últimos dominaram a discussão inicial sobre o critério que deveríamos adotar em nossas decisões, o que gerou principalmente um debate sobre a força simbólica relativa e as implicações práticas de círculos e cubos em estruturas arquitetônicas. Em outras palavras, as decisões teriam de ser tomadas, em grande parte, com base em critérios geométricos e simbólicos. Num determinado momento, perguntei: se você está construindo uma nova cidade, que coisas você acha importante saber? Para mim, é importante saber: que tipo de relação com a natureza será criado nessa cidade (o aspecto ambiental etc.)? Que tipo de tecnologias serão incorporadas lá e por quê? Que tipo de relação social se tem em vista? Quais sistemas de produção e reprodução serão incorporados? Como será a vida cotidiana lá, e esse é o tipo de vida cotidiana que gostaríamos de criar? E que concepções mentais, simbólicas etc. serão implantadas? Estamos construindo um monumento nacionalista ou um espaço cosmopolita?
Os outros jurados acharam essa formulação inovadora e interessante. Discutimos isso por algum tempo, até que a questão se tornou um pouco complicada demais em relação ao tempo de que dispúnhamos. Um dos arquitetos disse então que, dos seis critérios formulados por mim, apenas o relativo às concepções mentais era realmente importante, e voltamos à questão do simbolismo das formas e das forças relativas dos círculos e dos cubos! Mais tarde, porém, muitos me perguntaram onde poderiam encontrar mais sobre aquele modo tão interessante de pensar. Cometi o erro de indicar a nota 89 do capítulo 13 d’O capital. Não deveria ter feito isso, porque há duas reações típicas em casos assim. Uma é nervosa, e até temerosa, pois admitir que Marx possa ter dito algo tão óbvio e interessante significa admitir simpatias marxistas, e isso seria terrível para as ambições profissionais e até mesmo pessoais de alguém. A outra é olhar para mim como se eu fosse um idiota, uma pessoa tão desprovida de ideias que só consegue papagaiar o que Marx diz e, pior ainda, chegar ao ponto de citar uma mera nota de rodapé! E assim termina a conversa. Mas acredito que essa é uma maneira interessante de avaliar um planejamento urbano e criticar as qualidades da vida urbana.
Esse arcabouço é essencial para a fundamentação da teoria do materialismo histórico, e há uma forte evidência, como espero demonstrar, de que ele fundamenta grande parte da compreensão de Marx da evolução do capitalismo. Devo me deter um momento nesse ponto. Imagine um arcabouço em que esses seis elementos estão reunidos num mesmo espaço, mas em intensa inter-relação (ver a figura a seguir). Cada um desses elementos é internamente dinâmico, o que nos permite ver cada um como um “momento” no processo da evolução humana. Podemos estudar essa evolução da perspectiva de um desses momentos ou examinar as interações entre eles, como as transformações na tecnologia ou nas formas organizacionais com referência às relações sociais e às concepções mentais. Como nossas concepções mentais são alteradas pelas tecnologias que estão à nossa disposição? Não vemos o mundo com outros olhos quando dispomos de microscópios, telescópios, satélites, raios X e tomografia computadorizada? Entendemos e pensamos o mundo hoje de modo muito, muito diferente por causa das tecnologias que temos. Da mesma forma, alguém deve ter tido a concepção mental de que construir um telescópio seria algo interessante (lembre-se da passagem d’O capital sobre o processo de trabalho e o arquiteto incompetente). E, quando teve essa ideia, essa pessoa teve de encontrar um óptico, um vidreiro e todos os elementos necessários para transformar em realidade a ideia da construção do telescópio. Tecnologias e formas organizacionais não caem do céu. Elas são produzidas a partir de concepções mentais. Também surgem de nossas relações sociais e em resposta às necessidades práticas da vida cotidiana ou dos processos de trabalho.
Aprecio o modo como Marx estabelece essas relações, desde que sejam vistas dialeticamente, e não causalmente. Essa maneira de pensar permeia O capital, e deveríamos lê-lo tendo em mente tal arcabouço conceitual. Ele também oferece um padrão de crítica, porque podemos analisar o próprio desempenho de Marx a partir do modo como ele inter-relaciona esses diferentes elementos. Mas como exatamente ele interconecta concepções mentais, relações sociais e tecnologias? Ele faz isso de forma adequada? Há aspectos, como a política da vida cotidiana, que são deixados de lado? Em outras palavras, a dialética entre essa formulação e as práticas de Marx tem de ser investigada.
Façamos um resumo da questão. Os seis elementos constituem momentos distintivos no processo de evolução humana, entendido como uma totalidade. Nenhum momento prevalece sobre os outros, mesmo que no interior de cada um exista a possibilidade do desenvolvimento autônomo (a natureza muda e evolui, do mesmo modo que as ideias, as relações sociais, as formas da vida cotidiana etc.). Todos esses elementos se desenvolvem em conjunto e estão sujeitos a renovações e transformações perpétuas como momentos dinâmicos no interior da totalidade. Mas essa totalidade não é uma totalidade hegeliana, em que cada momento interioriza estreitamente todos os outros, mas sim uma totalidade ecológica, o que Lefebvre chama de “conjunto” [ensemble] e Deleuze, de “junção” [assemblage] de momentos que se codesenvolvem de modo aberto, dialético. O desenvolvimento desigual entre os elementos produz contingência na evolução humana (de maneira muito semelhante como as mutações imprevisíveis produzem contingência na teoria darwiniana).
Na teoria social, o perigo é ver um dos elementos como determinante de todos os outros. O determinismo tecnológico é tão equivocado quanto o determinismo ambiental (a natureza condiciona), o determinismo da luta de classes, o idealismo (as concepções mentais estão na vanguarda), o determinismo do processo de trabalho ou o determinismo resultante das mudanças (culturais) na vida cotidiana (essa é a posição política de Paul Hawken em seu influente Blessed Unrest [Abençoada inquietação][3]). Grandes transformações, como o movimento do feudalismo (ou outra configuração pré-capitalista) para o capitalismo, ocorrem por meio de uma dialética de transformações que atravessa todos os momentos. Esse codesenvolvimento se deu de modo desigual no espaço e no tempo, produzindo todo tipo de contingências locais, apesar de limitadas pela interação no interior do conjunto de elementos implicados no processo evolucionário e pela crescente integração espacial (e, às vezes, competitiva) dos processos de desenvolvimento econômico no mercado mundial. Talvez um dos maiores erros na tentativa consciente de construir o socialismo e o comunismo sobre a base do capitalismo tenha sido a incapacidade de reconhecer a necessidade de um engajamento político que atravessasse todos esses momentos e fosse sensível às especificidades geográficas. A tentação do comunismo revolucionário foi reduzir a dialética a um simples modelo causal, em que um ou outro momento era colocado na vanguarda da mudança e encarado realmente como tal. O fracasso era inevitável.
À primeira vista, a terceira fase da nota de rodapé parece contradizer minha interpretação da segunda:
Mesmo toda história da religião que abstrai dessa base material é acrítica. De fato, é muito mais fácil encontrar, por meio da análise, o núcleo terreno das nebulosas representações religiosas do que, inversamente, desenvolver, a partir das condições reais de vida de cada momento, suas correspondentes formas celestializadas. Este é o único método materialista e, portanto, científico. (446, nota 89)
Marx se considerava um cientista, e aqui ele diz que isso significa um comprometimento com o materialismo. Mas esse materialismo é diferente daquele dos cientistas naturais. Ele é histórico. “O defeito do materialismo abstrato da ciência natural, que exclui o processo histórico, pode ser percebido já pelas concepções abstratas e ideológicas de seus porta-vozes, onde quer que eles se aventurem além dos limites de sua especialidade” (446, nota 89). As descobertas de Darwin sobre a evolução eram falhas, porque ele ignorava o impacto do contexto histórico em sua teorização (o poder das metáforas que ele extraiu do capitalismo britânico) e não estendeu nem integrou seus argumentos à evolução humana. Marx, é claro, escreveu O capital antes de o darwinismo social se tornar popular, mas ele prefigura uma resposta crítica aos darwinistas sociais, que legitimaram o capitalismo como “natural” apelando para a teoria da evolução de Darwin. Como a teoria de Darwin extraía suas principais metáforas do capitalismo e era inspirada pela teoria social de Malthus, não surpreendia que visse o capitalismo como plenamente coerente com processos de competição supostamente naturais, a luta pela sobrevivência e, é claro, a sobrevivência do mais adaptado (sem levar em conta a ajuda mútua de Kropotkin).
O argumento geral de Marx é que os cientistas, por não terem entendido o momento histórico e estarem impedidos por seus compromissos metodológicos de integrar a história humana a seus modelos de mundo, chegaram muitas vezes a interpretações desse mundo que se revelaram falsas ou, na melhor das hipóteses, parciais. Na pior das hipóteses, ocultaram pressupostos históricos e políticos sob uma ciência supostamente neutra e objetiva. Essa perspectiva crítica, inaugurada por Marx, é hoje prática-padrão no campo dos estudos científicos e mostra que introduzir metáforas sobre gênero, sexualidade e hierarquias sociais na ciência conduz a todo tipo de equívoco sobre o mundo natural, ainda que admita que, sem metáforas, a pesquisa científica não chega a lugar nenhum.
Mas devemos examinar uma questão muito mais profunda. Falei no capítulo 1 do procedimento descendente de Marx: ele parte da aparência superficial e desce até os fetichismos para descobrir um aparato teórico conceitual capaz de capturar o movimento subjacente dos processos sociais. Então, passo a passo, esse aparato teórico é trazido de volta à superfície para interpretar a dinâmica da vida cotidiana sob uma nova luz. Esse é, segundo Marx confirma na nota de rodapé, “o único método materialista e, portanto, científico”. No capítulo sobre a jornada de trabalho, vimos um exemplo típico desse método. O valor, como tempo de trabalho socialmente necessário, interioriza uma temporalidade especificamente capitalista, e disso resulta um vasto campo de lutas sociais em torno da apropriação do tempo alheio. O fato de que “os pequenos momentos são os elementos que formam o lucro” gera nos capitalistas uma obsessão pela disciplina temporal e pelo controle do tempo (e, em breve, explicará por que eles são obcecados pela rapidez).
Mas como podemos pensar a relação entre, digamos, a teoria do “valor profundo” e o fermento imprevisível das lutas em torno da duração da jornada de trabalho? De volta à página 157, Marx cita (em outra nota de rodapé!) uma passagem famosa de uma obra anterior, a Contribuição à crítica da economia política:
Os modos determinados de produção e as relações de produção que lhes correspondem, em suma, de que “a estrutura econômica da sociedade é a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas sociais de consciência” [concepções mentais, se você preferir], de que “o modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral”.
Ele deixa de fora a frase seguinte, que afirma que é na superestrutura que tomamos consciência das questões políticas e as enfrentamos.
É isso que é citado com frequência como o modelo base-superestrutura. Marx supõe que há uma base econômica sobre a qual se erguem os arcabouços do pensamento, assim como uma superestrutura política e legal que define coletivamente como tomamos consciência dos problemas e os enfrentamos. Essa formulação é lida às vezes de modo determinista: a base econômica determina a superestrutura política e legal, determina as formas de luta que são travadas nessa superestrutura e, conforme as transformações ocorridas na base econômica, determina os resultados das lutas políticas. Mas não vejo como o argumento pode ser considerado determinista, ou mesmo causal. Não é assim que o capítulo sobre a jornada de trabalho é desenvolvido. Há alianças de classe, possibilidades conjunturais, mudanças discursivas nos sentimentos, e o resultado jamais é seguro. Contudo, há sempre uma preocupação tão profunda com a apropriação do tempo alheio que a questão nunca se esgota. Trata-se de um eterno ponto de contestação “entre direitos iguais” no interior do capitalismo que não chega jamais a uma solução definitiva. A luta pelo tempo é fundamental para o modo de produção capitalista. É o que a teoria profunda nos diz, e, independentemente do que aconteça na superestrutura, esse imperativo não pode ser superado sem a derrubada do capitalismo.
Em todo caso, as forças produtivas e as relações sociais não podem existir sem expressão e representação correspondentes na superestrutura política e legal. Vimos isso com relação ao dinheiro, que é uma representação do valor cercada por todos os tipos de arranjos institucionais e legais e um objeto de luta e manipulação política (como também ocorre com os arcabouços legais do direito de propriedade privada). Contudo, Marx mostrou também que, sem o dinheiro (ou um arcabouço legal do direito de propriedade privada), o valor não poderia existir como uma relação econômica básica. Na esfera monetária, as coisas transcorrem de maneiras muito distintas, conforme a dinâmica da luta de classes, e isso tem implicações no funcionamento da teoria do valor. Afinal, o dinheiro pertence à superestrutura política ou à base econômica? Não há dúvida de que a resposta deve ser: a ambas.
De modo semelhante, o capítulo sobre a jornada de trabalho não nos permitiria dizer que o resultado da luta pela jornada de trabalho foi determinado pelos movimentos ocorridos na base econômica. Além disso, a restrição política à duração da jornada de trabalho levou os capitalistas, em parte, a procurar outro modo de ganhar mais-valor, isto é, mais-valor relativo. Claramente não é intenção de Marx que esse modelo base-superestrutura opere de modo mecânico ou causal, mas sim dialético.
No entanto, é verdade também que a “resolução” que se dá no reino da luta em torno da duração da jornada de trabalho diz respeito ao fato fundamental de que os “pequenos momentos são os elementos que formam o lucro”, o que deriva da definição do valor como tempo de trabalho socialmente necessário. Nas sociedades pré-capitalistas, ou mesmo na Roma Antiga, não havia uma luta concertada em torno da duração da jornada de trabalho. Esse tipo de luta só faz sentido no interior das regras de um modo de produção capitalista. Questões formais, como a duração da jornada de trabalho (semanal, anual, vitalícia), vêm à tona precisamente por causa da estrutura profunda do capitalismo. Como essas lutas são resolvidas é algo que depende de você, de mim e de todos os outros. E, de fato, a luta poderia ser resolvida de maneira que acarretasse o fim do modo de produção capitalista. Poderíamos construir uma sociedade em que os pequenos momentos não fossem os elementos que formam o lucro. Você consegue imaginar como seria essa sociedade? Parece interessante, não?
O que quero dizer é que o modo como essas coisas são resolvidas – por meios políticos e jurídicos, pelo equilíbrio das forças de classe, das concepções mentais etc. – não é irrelevante para o conceito profundo da circulação do valor como capital. O método realmente científico consiste em identificar tais elementos profundos que explicam por que certas coisas acontecem de determinada forma em nossa sociedade. Vimos isso na luta em torno da duração da jornada de trabalho, e podemos vê-lo também na luta em torno do mais-valor relativo, que explica por que o capitalismo tem de ser tão dinâmico tecnologicamente. Parece que não temos escolha entre crescer ou não, inventar ou não, porque é isso que manda a estrutura profunda do capitalismo. A única questão que importa, portanto, é como se dará esse crescimento, e com que tipo de mudança tecnológica. Isso nos obriga a considerar as implicações no que diz respeito às concepções mentais, à relação com a natureza e a todos os outros momentos. E, se não gostamos dessas implicações, não temos outra saída senão nos engajar na luta, não apenas em torno de um ou outro desses momentos, mas de todos ao mesmo tempo, até que, por fim, tenhamos de enfrentar a tarefa de transformar a própria regra do valor.
A circulação do capital, no entanto, é o móvel da dinâmica sob o capitalismo. Mas o que é socialmente necessário para que esse processo se sustente? Considere, por exemplo, as concepções mentais necessárias. Se você fosse a Wall Street com um cartaz dizendo “O crescimento é ruim, abaixo o crescimento!”, isso seria considerado um sentimento anticapitalista? Pode ter certeza de que sim. Mas você seria condenado não necessariamente por ser anticapitalista, e sim por ser contra o crescimento, porque o crescimento é considerado inevitável e bom. Crescimento zero é sinal de sérios problemas. O Japão não cresceu muito nos últimos tempos, pobre do povo! Já o crescimento na China tem sido espetacular, e os chineses são uma grande história de sucesso. Como podemos imitá-los? Cruzamos alegremente os braços e dizemos que o crescimento é bom, a mudança tecnológica é boa, portanto o capitalismo, que requer essas duas coisas, é necessariamente bom. Esse é um tipo de crença comum ao qual Gramsci se refere frequentemente como “hegemonia”. O mesmo tipo de questão emerge dos arranjos institucionais. Para funcionar de maneira eficiente, o capitalismo requer arranjos legais adequados. Quanto mais os chineses se dirigiam para o capitalismo, menos plausível se tornava a manutenção de um sistema legal que não reconhecesse alguns tipos de direitos de propriedade privada. Mas há uma boa dose de liberdade de ação e contingência nos arranjos institucionais que podem ser criados.
Examinaremos agora o material reunido nesse longo capítulo. Sugiro que você preste muita atenção à sequência dos títulos dos itens. Eles definem a linha lógica de argumentação que estrutura a investigação de Marx sobre o surgimento do sistema fabril e do uso da maquinaria. Ele começa, no entanto, com a surpresa de John Stuart Mill diante do fato de que as invenções mecânicas, supostamente concebidas para aliviar o fardo do trabalho, não serviram para nada disso. Na verdade, em geral, tornaram as coisas ainda piores. Marx não se surpreende com isso, porque as máquinas são usadas para produzir mais-valor, e não para diminuir a carga de trabalho. Isso significa, note bem, que a máquina “é um meio para a produção de mais-valor” (445). Isso soa estranho, dada a afirmação anterior de Marx de que as máquinas são trabalho morto (capital constante) e não podem produzir valor. No entanto, elas podem ser uma fonte de mais-valor. A redução no valor da força de trabalho por meio da produtividade aumentada gera mais-valor para a classe capitalista, e o capitalista que possuir a melhor maquinaria adquirirá a forma temporária de mais-valor relativo que traz ganhos para o produtor com maior produtividade. Não admira que os capitalistas se apeguem à crença fetichista de que as máquinas produzem valor!
Marx examina então a diferença entre ferramentas e máquinas. Definir “ferramenta como uma máquina simples, e máquina como uma ferramenta composta”, e não ver aí “nenhuma diferença essencial”, significa perder algo fundamental, mais especificamente “o elemento histórico” (aquele elemento que mereceu tanta atenção na nota de rodapé) (446). Marx foi um dos primeiros a usar o termo “revolução industrial” e a torná-lo essencial para sua reconstrução histórica. Mas o que constitui o cerne dessa revolução industrial? Foi ela uma simples mudança tecnológica, o fato de as ferramentas terem se tornado máquinas? Consiste a diferença entre máquinas e ferramentas no fato de as máquinas terem uma fonte externa de força? Ou a revolução industrial provocou também uma mudança radical nas relações sociais, paralelamente às transformações nas forças produtivas? A resposta a essas perguntas é igualmente afirmativa.
A máquina da qual parte a Revolução Industrial substitui o trabalhador que maneja uma única ferramenta por um mecanismo que opera com uma massa de ferramentas iguais ou semelhantes de uma só vez e é movido por uma única força motriz, qualquer que seja sua forma. Temos, aqui, a máquina, mas apenas como elemento simples da produção mecanizada. (449)
Isso se refere, no entanto, à transformação operada na posicionalidade (relação social) do trabalhador, que é tão importante quanto a própria máquina. Mesmo que os trabalhadores possam continuar a proporcionar a força motriz, em algum momento surge a necessidade de suplementá-la com uma fonte externa. A força hidráulica foi utilizada desde muito cedo, mas sua aplicação era limitada pela localização.
Somente com a segunda máquina a vapor de Watt, a assim chamada máquina a vapor de ação dupla, encontrou-se um primeiro motor capaz de produzir sua própria força motriz por meio do consumo de carvão e água, um motor cuja potência encontra-se plenamente sob controle humano, que é móvel e um meio de locomoção e que, ao contrário da roda d’água, é urbano e não rural, permitindo a concentração da produção nas cidades, ao invés de dispersá-la pelo interior. Além disso, é universal em sua aplicação tecnológica, e sua instalação depende relativamente pouco de circunstâncias locais. (451)
A máquina a vapor liberou o capital da dependência de fontes localizadas de poder, porque o carvão era uma mercadoria que, em princípio, podia ser transportada para qualquer lugar. Mas cuidado para não superestimar essa invenção, porque “a própria máquina a vapor [...] não provocou nenhuma revolução industrial. O que se deu foi o contrário: a criação das máquinas-ferramentas é que tornou necessária a máquina a vapor revolucionada” (449).
E, embora Marx não mencione o fato, o carvão também eliminou a aguda rivalidade, que havia limitado até então o desenvolvimento industrial, entre o uso da terra para a produção de alimentos e o uso de sua biomassa como fonte de energia. Enquanto a madeira e o carvão vegetal foram as fontes primárias de combustível, a disputa pela terra aumentou o custo tanto dos alimentos quanto dos combustíveis. Com o carvão, foi possível extrair a energia armazenada no período carbonífero e, com o petróleo, aquela armazenada no período cretáceo. Isso liberou a terra para a produção de alimentos e outras formas de matéria-prima e permitiu que a indústria se expandisse usando combustíveis baratos, com todo o tipo de consequência tanto para a urbanização quanto, é claro, para o modo como vivemos nossa vida neste exato momento. É interessante notar que, em tempos recentes, uma das respostas para a escassez de combustíveis tem sido recorrer à terra para produzi-los (etanol, em particular), e isso teve como consequência previsível o rápido aumento do preço dos alimentos e de outras matérias-primas (com todo os tipos de consequências sociais, como rebeliões e fome; até mesmo o preço do meu bagel subiu trinta centavos). Estamos recriando as barreiras à acumulação do capital que a mudança para os combustíveis fósseis contornou com tanto sucesso no fim do século XVIII ao revolucionar nossa relação com a natureza.
Mas a marca da revolução industrial foi mais do que uma simples mudança na produção de energia. “Por meio da divisão do trabalho, reaparece a cooperação peculiar à manufatura, mas agora como combinação de máquinas de trabalho parciais”. Há uma evolução significativa nas relações sociais.
Na manufatura, os trabalhadores, individualmente ou em grupos, têm de executar cada processo parcial específico com sua ferramenta manual. Se o trabalhador é adaptado ao processo, este último também foi previamente adaptado ao trabalhador. Esse princípio subjetivo da divisão deixa de existir na produção mecanizada. O processo total é aqui considerado objetivamente, em si mesmo, analisado em suas fases constitutivas, e o problema de executar cada processo parcial e de combinar os diversos processos parciais é solucionado mediante a aplicação técnica da mecânica, da química etc.
O resultado é a evolução de “um sistema articulado que reúne tanto máquinas de trabalho individuais de vários tipos quanto diversos grupos dessas máquinas”, sistema que é tanto mais perfeito “quanto mais contínuo for seu processo total” (454).
Devemos ressaltar alguns pontos nessa afirmação. Em primeiro lugar, a importância da continuidade no processo de produção, que é crucial por ser requerida pela continuidade da circulação do capital, e a maquinaria ajuda a realizar isso. Em segundo lugar, note que as relações sociais são transformadas juntamente com as relações técnicas. Em terceiro lugar, a análise do processo de produção em suas fases constitutivas acarreta uma transformação mental que faz uma ciência (a química, por exemplo) gerar tecnologia. Em outras palavras, há uma evolução nas concepções mentais. Ao menos três dos elementos examinados na nota de rodapé entram em ação aqui, ao mesmo tempo que a relação com a natureza e as exigências locais se alteram à medida que o carvão substitui as quedas d’água e a biomassa como fonte primária de energia. É em parágrafos desse tipo que vemos como funciona o raciocínio de Marx na nota de rodapé. Diferentes elementos confluem perfeitamente para formar uma narrativa convincente de coevolução, mais do que de causação. O resultado é um “sistema articulado de máquinas de trabalho movidas por um autômato central”. Nesse sistema, diz ele, “a produção mecanizada atinge sua forma mais desenvolvida. No lugar da máquina isolada surge, aqui, um monstro mecânico” – como vimos, Marx adora esse tipo de imagem –, “cujo corpo ocupa fábricas inteiras e cuja força demoníaca, inicialmente escondida sob o movimento quase solenemente comedido de seus membros gigantescos, irrompe no turbilhão furioso e febril de seus incontáveis órgãos de trabalho”. No entanto, Marx lembra que “as invenções de Vaucanson, Arkwright, Watt etc. só puderam ser realizadas porque esses inventores encontraram à sua disposição, previamente fornecida pelo período manufatureiro, uma quantidade considerável de hábeis trabalhadores mecânicos”. Ou seja, não haveria novas tecnologias sem a existência prévia das necessárias relações sociais e habilidades laborais. Uma parte desses trabalhadores “era formada de artesãos autônomos de diversas profissões”, enquanto “outra parte estava reunida em manufaturas” (455).
Mas o processo evolucionário teve um impulso próprio. “Com o aumento das invenções e a demanda cada vez maior por máquinas recém-inventadas, desenvolveram-se cada vez mais, por um lado, a compartimentação da fabricação de máquinas em diversos ramos autônomos e, por outro lado, a divisão do trabalho no interior das manufaturas de construção de máquinas.” As relações sociais estavam em pleno processo de transformação. “Na manufatura, portanto, vemos a base técnica imediata da grande indústria. Aquela produziu a maquinaria, com a qual esta suprassumiu [aufhob] os sistemas artesanal e manufatureiro nas esferas de produção de que primeiro se apoderou.” Após “revolucionar essa base – encontrada já pronta e, depois, aperfeiçoada de acordo com sua antiga forma” –, o sistema finalmente criou “para si uma nova, apropriada a seu próprio modo de produção” (456). Em suma, o capitalismo descobriu uma base tecnológica mais adequada a suas regras de circulação.
Esse é, a meu ver, um argumento evolucionário, não determinista. As contradições do capitalismo, na forma em que surgem no período manufatureiro e artesanal, não podiam ser resolvidas com base nas tecnologias existentes. Houve, portanto, uma pressão considerável para que se criasse uma nova combinação de tecnologias. Marx conta como o capitalismo criou “para si uma nova [base], apropriada a seu próprio modo de produção”. Mas todo esse processo permaneceu condicionado ao “crescimento de uma categoria de trabalhadores que, dada a natureza semiartística de seu negócio, só podia ser aumentada de modo gradual, e não aos saltos. Em certo grau de desenvolvimento, porém, a grande indústria entrou também tecnicamente em conflito com sua base artesanal e manufatureira” (456). A força expansionista do capital encontrou um limite. O sistema capitalista chegou ao ponto em que necessitava de trabalhadores qualificados para construir as máquinas que facilitariam seu desenvolvimento, ao mesmo tempo que sua própria base tecnológica servia como impulso para a capacidade de construir máquinas.
Mas era difícil deter o processo evolucionário. “O revolucionamento do modo de produção numa esfera da indústria condiciona seu revolucionamento em outra.” Note aqui o uso que Marx faz do termo “modo de produção”. Em certas passagens, como no parágrafo inicial d’O capital, ele usa esse termo para contrapor, digamos, os modos de produção capitalista e feudal. Mas, aqui, o termo ganha um significado muito mais específico: o modo de produção numa indústria particular. Esses dois significados estão relacionados: o modo de produção numa indústria particular cria novas formas de máquinas que são adequadas ao modo de produção capitalista entendido em seu sentido mais amplo. Aqui, no entanto, estamos falando de transformações específicas nos modos de produção em esferas particulares da indústria e das interações dinâmicas entre elas.
Isso vale, antes de mais nada, para os ramos da indústria isolados pela divisão social do trabalho – cada um deles produzindo, por isso, uma mercadoria autônoma –, porém entrelaçados como fases de um processo global. Assim, a fiação mecanizada tornou necessário mecanizar a tecelagem, e ambas tornaram necessária a revolução mecânico-química no branqueamento, na estampagem e no tingimento.
O alastramento entre diferentes segmentos de um processo de produção cria mudanças que se reforçam mutuamente. Além disso, “a revolução no modo de produção da indústria e da agricultura provocou também uma revolução nas condições gerais do processo de produção social, isto é, nos meios de comunicação e transporte” (457). Isso introduz um tema que acho extremamente interessante em Marx: a importância daquilo que ele chama nos Grundrisse de “anulação do espaço pelo tempo”[d]. A dinâmica evolucionária do capitalismo não é neutra em relação a sua forma geográfica. Já vimos pistas disso na discussão sobre a urbanização, a concentração provocada pela introdução da máquina a vapor e a liberdade de movimento propiciada pelo vapor como força motriz. A conectividade no mercado mundial também foi alterada.
Assim, abstraindo da construção de veleiros, que foi inteiramente revolucionada, o sistema de comunicação e transporte foi gradualmente ajustado ao modo de produção da grande indústria por meio de um sistema de navios fluviais e transatlânticos a vapor, ferrovias e telégrafos. Mas as terríveis quantidades de ferro que tinham de ser forjadas, soldadas, cortadas, furadas e moldadas exigiam, por sua vez, máquinas ciclópicas, cuja criação estava além das possibilidades da construção manufatureira de máquinas.
E aqui surge o último elo da argumentação: “A grande indústria teve, pois, de se apoderar de seu meio característico de produção, a própria máquina, e produzir máquinas por meio de máquinas. Somente assim ela criou sua base técnica adequada e se firmou sobre seus próprios pés” (457-8). A capacidade de produzir máquinas com a ajuda de máquinas é, em suma, a base técnica de um modo de produção capitalista absolutamente maduro e dinâmico. Em outras palavras, o crescimento da engenharia e da indústria de máquinas-ferramentas é a fase final de uma revolução que criou a “base técnica adequada” para o modo de produção capitalista em geral. “Como maquinaria, o meio de trabalho adquire um modo de existência material que condiciona a substituição da força humana por forças naturais e da rotina baseada na experiência pela aplicação consciente da ciência natural.” Isso acarreta uma revolução não apenas das concepções mentais, mas também de sua aplicação.
Na manufatura, a articulação do processo social de trabalho é puramente subjetiva, combinação de trabalhadores parciais; no sistema da maquinaria, a grande indústria é dotada de um organismo de produção inteiramente objetivo, que o trabalhador encontra já dado como condição material da produção. (459)
A natureza da cooperação é fundamentalmente alterada, por exemplo.
Detive-me nesse item para mostrar que a propagação sinérgica das revoluções na tecnologia baseia-se, e ao mesmo tempo provoca transformações, nas relações sociais, nas concepções mentais e nos modos de produção (em sentido concreto e particular), assim como nas relações espaciais e naturais. O surgimento desse novo sistema tecnológico adequado ao modo de produção capitalista (em sentido amplo) é uma história evolucionária em que todos os elementos presentes na nota de rodapé de Marx se desenvolvem em conjunto.
No segundo item do capítulo, Marx levanta a seguinte questão: como o valor é transferido da máquina para o produto? Os outros dois modos de aquisição de mais-valor relativo – pela cooperação e pela divisão do trabalho – não custam nada ao capital, exceto algum gasto fortuito. Mas uma máquina é uma mercadoria que tem de ser comprada no mercado. Isso é muito diferente, por exemplo, de uma simples reconfiguração da divisão do trabalho na fábrica. As máquinas têm um valor, e esse valor tem de ser pago. O valor incorporado na máquina tem de ser transferido de algum modo “ao produto para cuja produção ela serve”, mesmo que não ocorra nenhuma transferência física de matéria (460). Inicialmente, Marx apela para a ideia da depreciação linear. Se a máquina dura dez anos, um décimo de seu valor é incorporado ao produto a cada ano desse período. Mas ele estabelece um limite importante para o desenvolvimento da maquinaria:
Considerado exclusivamente como meio de barateamento do produto, o limite para o uso da maquinaria está dado na condição de que sua própria produção custe menos trabalho do que o trabalho que sua aplicação substitui. Para o capital, no entanto, esse limite se expressa de forma mais estreita. Como ele não paga o trabalho aplicado, mas o valor da força de trabalho aplicada, o uso da máquina lhe é restringido pela diferença entre o valor da máquina e o valor da força de trabalho por ela substituída. (466)
Isso supõe (como a maioria dos economistas tende a fazer) que os capitalistas tomam decisões racionais. Se uma máquina é cara e você economiza muito pouco trabalho com ela, então por que comprá-la? Quanto mais barata a máquina e mais caro o trabalho, maior é o incentivo para empregar maquinaria. O cálculo que o capitalista tem de fazer, portanto, é entre o valor gasto para comprar a máquina e o valor economizado no trabalho empregado (capital variável). Esse limite para o desenvolvimento da maquinaria é tipicamente imposto pelas leis coercitivas da concorrência. Os capitalistas que compram máquinas caras, mas economizam pouco trabalho com elas, serão excluídos do mercado.
Quanto capital variável é economizado depende, no entanto, do valor da força de trabalho. “Isso explica porque hoje, na Inglaterra, são inventadas máquinas que só encontram aplicação na América do Norte” (466). Na América do Norte, a relativa escassez de trabalho encarecia o custo com a mão de obra e estimulava o emprego de máquinas, ao passo que na Grã-Bretanha o excedente de mão de obra significava trabalho mais barato e, portanto, menos incentivo ao uso de máquinas. Esse cálculo das condições limitantes do emprego da maquinaria é importante tanto na teoria quanto na prática. Há exemplos na China, onde, por abundância de mão de obra, um artigo que é feito numa máquina cara e sofisticada nos Estados Unidos foi fragmentado em processos de trabalho menores, que podem ser feitos à mão. Em vez de empregar uma máquina muito cara e 20 trabalhadores nos Estados Unidos, você emprega 2 mil trabalhadores na China e ferramentas manuais. Esse exemplo refuta a ideia de que o capitalismo marcha inevitavelmente em direção a uma mecanização e a uma sofisticação tecnológica cada vez maiores. Dada a importância das condições limitantes e as relações de valor, todos os tipos de oscilação podem ocorrer no desenvolvimento das tecnologias mecânicas.
No terceiro item, Marx considera três consequências do emprego da máquina para o trabalhador. A maquinaria facilitou a “apropriação de forças de trabalho subsidiárias pelo capital”, o “trabalho feminino e infantil”. De fato, as tecnologias mecânicas destruíram a base técnica que existia no período artesanal. Tornou-se muito mais fácil empregar mulheres e crianças sem qualificação técnica. Isso trouxe uma série de consequências. Foi possível substituir o salário familiar pelo salário individual. Este pôde ser reduzidoenquanto salário familiar, com a entrada das mulheres e das crianças no mercado de trabalho, pôde permanecer constante. Esse foi um tema interessante e persistente na história do capitalismo. Nos Estados Unidos, desde os anos 1970, os salários individuais caíram ou permaneceram praticamente constantes em termos reais, mas os salários familiares tenderam a crescer à medida que mais mulheres começavam a trabalhar. O que a classe capitalista ganha com isso são dois trabalhadores pelo preço de um. O milagre econômico brasileiro nos anos 1960 foi igualmente dominado por uma diminuição catastrófica dos salários individuais sob a ditadura militar, mas os salários familiares conseguiram se estabilizar por causa não apenas do trabalho das mulheres, mas também das crianças (nessa época, o trabalho infantil começou a ser empregado nas minas de ferro). Isso levou ao famoso comentário do presidente Emílio Garrastazu Médici de que “a economia” (ele deveria ter dito a classe capitalista) “vai bem, mas o povo vai mal”. Há muitas circunstâncias históricas em que os capitalistas apelaram para essa solução para ganhar mais-valor.
Isso traz à tona também a questão da relação entre os salários individual e familiar. Este último é necessário para a reprodução da classe trabalhadora. Mas quem assume o custo de sua reprodução? Marx, como muitos apontaram, não é muito sensível a questões desse gênero, mas numa nota de rodapé ele reconhece a importância da relação entre trabalho doméstico e a compra e venda de força de trabalho no mercado. Se a mulher participa da força de trabalho,
é necessário substituir por mercadorias prontas os trabalhos domésticos que o consumo da família exige, como costurar, remendar etc. A um dispêndio menor de trabalho doméstico corresponde, portanto, um dispêndio maior de dinheiro, de modo que os custos de produção da família operária crescem e contrabalançam a receita aumentada. A isso se acrescenta que a economia e a eficiência no uso e na preparação dos meios de subsistência se tornam impossíveis. (469, nota 121)
A análise do salário familiar traz outras questões. Na época de Marx, era muito comum que o homem, em especial nos países com que Marx tinha familiaridade, distribuísse o trabalho para toda a família. Daí resultou o “gang system” [sistema de turmas] para a provisão de trabalho. Um homem adulto podia ser responsável pelo fornecimento da força de trabalho de várias crianças, talvez de uma mulher e uma irmã, assim como de sobrinhos e outros parentes. Na França, o mercado de trabalho era formado com frequência por um gang system em que a figura patriarcal comandava o trabalho de todos ao seu redor e entregava esse trabalho a seus empregadores, que, por sua vez, deixavam a cargo daquela figura patriarcal a remuneração do trabalho e a distribuição dos benefícios. Sistemas desse tipo não são raros na Ásia e podem ser encontrados na organização de grupos de imigrantes na Europa e na América do Norte. Como aponta Marx na nota de rodapé, os piores aspectos desse sistema se evidenciaram (e continuam a se evidenciar) no tráfico de crianças e no trabalho em condições análogas à escravidão. Baseando-se em grande medida nos relatórios dos inspetores de fábrica (imbuídos de uma moralidade vitoriana que Marx não critica) e no relato de Engels em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra[e], Marx foca a “corrupção moral decorrente da exploração capitalista do trabalho de mulheres e crianças” e as débeis tentativas da burguesia de conter essa degradação moral por meio da educação (473). Assim como no caso das Leis Fabris, há uma contradição entre o que as leis coercitivas da concorrência obrigam os capitalistas individuais a fazer e o que o Estado tenta realizar por meio da educação das crianças. Marx, portanto, levanta questões, embora de modo pouco apropriado, sobre a reprodução da vida (outro elemento importante, apesar de negligenciado, da nota 89).
A segunda parte (b) desse item trata do “prolongamento da jornada de trabalho”. A maquinaria cria de fato novas condições, não apenas permitindo ao capital estender a jornada de trabalho, mas criando “novos incentivos” para isso. “Como capital, e como tal o autômato tem no capitalista consciência e vontade, a maquinaria é movida pela tendência a reduzir ao mínimo as barreiras naturais humanas, resistentes, porém elásticas.” A máquina é concebida, em parte, para vencer a resistência do trabalhador, que é, “de todo modo, reduzida pela aparente facilidade do trabalho na máquina e pela maior ductibilidade e flexibilidade do elemento feminino e infantil” (476). É evidente que temos aqui um típico preconceito vitoriano. Na verdade, as mulheres não eram nada dóceis, nem as crianças.
Mas, aqui, o cerne do problema é a temporalidade e a continuidade da produção. Quanto mais a máquina é usada, mais ela se desgasta; isso explica o forte incentivo para que as máquinas fossem empregadas o mais rápido possível. Para começar, “o desgaste material da máquina é duplo. Um deles decorre de seu uso” e o outro de seu não uso, isto é, quando a máquina simplesmente enferruja. “Mas, além do desgaste material, a máquina sofre, por assim dizer, um desgaste moral.” Esse termo sempre me parece estranho. O que Marx quer dizer é “obsolescência econômica”. Se comprei uma máquina por 2 milhões de dólares no ano passado e, neste ano, todos os meus concorrentes podem comprá-la por 1 milhão (ou, o que dá no mesmo, pagar 2 milhões de dólares por uma máquina duas vezes mais eficiente do que a minha), então o valor das mercadorias produzidas cairá e perderei metade do valor da minha máquina. “Em ambos os casos, seu valor, por mais jovem e vigorosa que a máquina ainda possa ser, já não é determinado pelo tempo de trabalho efetivamente objetivado nela mesma, mas pelo tempo de trabalho necessário à sua própria reprodução ou à reprodução da máquina aperfeiçoada.” O perigo é que a máquina se desvalorize “em maior ou menor medida” (477). Para se proteger contra esse perigo, os capitalistas são levados a usar sua maquinaria o mais rápido possível (se possível, mantendo-a em uso 24 horas por dia). Isso significa estender a jornada de trabalho (ou, como veremos, introduzir o trabalho por turnos e os sistemas de revezamento). Máquinas empregadas para estender a jornada de trabalho estimulam a necessidade de estendê-la ainda mais.
Os capitalistas são apaixonados pelas máquinas porque elas são uma fonte de excedente e mais-valor relativo. O fetiche de um “ajuste tecnológico” [technological fix] torna-se algo arraigado em seu sistema de crenças. No entanto, as máquinas também são fonte de uma “contradição imanente, já que dois fatores que compõem o mais-valor fornecido por um capital de dada grandeza, um deles, a taxa de mais-valor, aumenta somente na medida em que reduz o outro fator, o número de trabalhadores” (480). E, como a massa de mais-valor, tão crucial para o capitalista, depende da taxa de mais-valor e do número de trabalhadores, as inovações que poupam trabalho podem não melhorar a situação do capitalista. Desse ponto de vista, substituir trabalhadores por inovações tecnológicas não parece uma boa ideia, pois significaria eliminar da produção os verdadeiros produtores de valor. Essa contradição é tratada em detalhes no Livro III d’O capital, em que as dinâmicas da inovação tecnológica são vistas como desestabilizadoras e fonte de sérias tendências a crises.
Mas o incentivo para que os capitalistas continuem a inovar é todo-poderoso. Apesar das contradições, a busca competitiva pela efêmera forma de mais-valor relativo é irresistível. Em resposta às leis coercitivas da concorrência, os capitalistas individuais comportam-se de um modo que não coincide necessariamente com os interesses da classe capitalista. Mas as consequências sociais para o trabalho também podem ser catastróficas.
Se, portanto, a aplicação capitalista da maquinaria cria, por um lado, novos e poderosos motivos para o prolongamento desmedido da jornada de trabalho, revolucionando tanto o modo de trabalho como o caráter do corpo social de trabalho e, assim, quebrando a resistência a essa tendência, ela produz, por outro lado, em parte mediante o recrutamento para o capital de camadas da classe trabalhadora que antes lhe eram inacessíveis, em parte liberando os trabalhadores substituídos pela máquina, uma população operária redundante, obrigada a aceitar a lei ditada pelo capital. Daí este notável fenômeno na história da indústria moderna, a saber, de que a máquina joga por terra todas as barreiras morais e naturais da jornada de trabalho. Daí o paradoxo econômico de que o meio mais poderoso para encurtar a jornada de trabalho se converte no meio infalível de transformar todo o tempo de vida do trabalhador e de sua família em tempo de trabalho disponível para a valorização do capital. (480)
Podemos entender agora por que John Stuart Mill estava certo.
A terceira parte (c) desse item trata explicitamente da intensificação. Antes mencionada de passagem (por exemplo, na definição do tempo de trabalho socialmente necessário), a questão é devidamente tratada aqui. Os capitalistas podem usar a tecnologia mecanizada para alterar e regular a intensidade e o ritmo do processo de trabalho. A redução da chamada porosidade da jornada de trabalho (momentos em que o trabalho não é realizado) é o alvo principal. Quantos segundos o trabalhador pode desperdiçar durante a jornada de trabalho? Se trabalham com ferramentas, os trabalhadores podem largá-las e pegá-las novamente. Podem trabalhar em seu próprio ritmo. Com a tecnologia mecanizada, a velocidade e a continuidade são determinadas pelo sistema da máquina, e os trabalhadores têm de se adequar ao movimento da linha de produção, por exemplo (como em Tempos modernos, de Charles Chaplin). Ocorre uma inversão nas relações sociais: os trabalhadores tornam-se apêndices da máquina. Um dos grandes avanços ocorridos após 1850, quando a burguesia industrial aceitou que teria de conviver com as Leis Fabris e com a regulação da duração da jornada de trabalho, foi os capitalistas terem descoberto que jornadas de trabalho mais curtas eram compatíveis com intensidades aumentadas. Esse reposicionamento do trabalhador como um apêndice do processo de trabalho é extremamente importante para o que vem a seguir.
[a] Carta de Marx a Engels, 19 de junho de 1862 (MEW, cit., v. 30, p. 249). Traduzida aqui do original alemão. (N. T.)
[b] Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1988. (N. T.)
[c] 3. ed., Rio de Janeiro, Objetiva, 2009. (N. T.)
[1] John Gray, “The World is Round”, The New York Review of Books, v. 52, n. 13, 11 ago. 2005.
[2] Ed. ampl., Princeton, Princeton University Press, 2000.
[3] Nova York, Viking, 2007.
[d] Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 432. (N. E.)
[e] São Paulo, Boitempo, 2008. (N. E.)