Nos capítulos anteriores, dedicamo-nos aos vários modos como podemos conseguir mais-valor relativo e absoluto. Quando Marx faz esse tipo de bifurcação conceitual, invariavelmente leva de volta a dualidade ao estado de unidade: no fim das contas, há apenas um mais-valor, e suas duas formas se condicionam mutuamente. Seria impossível ganhar mais-valor absoluto sem uma base tecnológica e organizacional adequada. Inversamente, o mais-valor relativo não teria sentido algum sem uma duração da jornada de trabalho que permitisse a apropriação de mais-valor absoluto. A diferença está apenas na estratégia capitalista, que “se faz sentir onde quer que se trate de aumentar a taxa de mais-valor”. Como costuma ocorrer quando Marx avança para um ponto de síntese, ele tanto retoma material já apresentado quanto o conduz a um ponto diferente, de onde é possível observar o terreno do capitalismo de uma nova perspectiva. As novas perspectivas do capítulo 14 geraram uma grande controvérsia, por isso exigem um escrutínio cuidadoso.
Considere, em primeiro lugar, o conceito de trabalhador coletivo, mencionado diversas vezes em capítulos anteriores. O mais-valor não é mais visto como uma relação individual de exploração, mas como parte de um todo mais amplo, em que os trabalhadores, em cooperação e dispersados pela divisão detalhista do trabalho, produzem coletivamente o mais-valor de que os capitalistas se apropriam. A dificuldade desse conceito é definir onde começa e onde termina o trabalhador coletivo. O caminho mais simples seria, digamos, partir da fábrica e designar como trabalhador coletivo todos que trabalham ali, inclusive faxineiros, auxiliares, gerentes de depósito e mesmo estagiários, ainda que muitos desses trabalhadores não desempenhem papel algum na produção efetiva de mercadorias. “Para trabalhar produtivamente, já não é mais necessário fazê-lo com as próprias mãos; basta, agora, ser um órgão do trabalhador coletivo, executar qualquer uma de suas subfunções” (577).
Mas grande parte do trabalho não é realizada nas fábricas, e a tendência em tempos mais recentes é recorrer à terceirização e à subcontratação, atrás das quais se encontram muitas vezes outros subcontratantes. E o que dizer da propaganda, do marketing e do design como serviços que, embora essenciais à venda de mercadorias, são frequentemente separados das atividades imediatas da produção? Ou devemos considerar exclusivamente as atividades internas da fábrica? É difícil chegar a uma definição exata, e parece não haver nenhuma solução perfeita – daí a controvérsia. Mas sem a ajuda desse conceito seria difícil chegar a uma abordagem macroteórica da dinâmica do capitalismo. Marx diz que até aqui a análise “permanece correta para o trabalhador coletivo, considerado em seu conjunto”, mas não é mais válida “para cada um de seus membros, tomados isoladamente”.
O segundo movimento é comparar essa ampliação da definição de trabalho produtivo com a restrição de seu âmbito, de modo que “só é produtivo o trabalhador que produz mais-valor para o capitalista”. Caracterizar alguém como “improdutivo” pode provocar uma reação emocional, já que soa como uma ofensa contra todos aqueles que trabalham duro para sobreviver. Contudo, como Marx se apressa a afirmar, no capitalismo “ser trabalhador produtivo não é [...] uma sorte, mas um azar” (577-8). A noção marxiana de “produtivo” não é normativa ou universal, mas uma definição historicamente específica ao capitalismo. No que concerne ao capital, aqueles que não contribuem para a produção de mais-valor são considerados improdutivos. A tarefa do socialismo seria, portanto, redefinir a noção de “produtivo” de um modo mais responsável e benéfico socialmente.
No entanto, mesmo no contexto do capitalismo, há desafios legítimos em torno da definição de “produtivo”. Por exemplo, durante anos as feministas argumentaram que o trabalho doméstico não pago reduz o valor de mercado da força de trabalho e, por isso, gera mais-valor para o capitalista. Marx não trata dessa questão, mas ocupa-se da suposta “base natural” da produtividade, e sua análise dá pistas de como ele teria abordado algumas dessas questões. A produtividade, diz ele, pode ser “limitada por condições naturais” ou aumentada, porque “quanto maiores a fertilidade natural do solo e a excelência do clima, tanto menor é o tempo de trabalho necessário para a conservação e reprodução do produtor”. Mantendo-se inalteradas as demais circunstâncias, “a grandeza do mais-trabalho variará de acordo com as condições naturais do trabalho, sobretudo com a fertilidade do solo” (581-2). Portanto, não há razão alguma para não dizer que o mais-trabalho variará de acordo com as condições sociais (por exemplo, a produtividade do trabalho familiar). Deixaremos de lado as passagens estranhas, que refletem o pensamento oitocentista a respeito do determinismo ambiental e da dominação da natureza (“Uma natureza demasiado pródiga ‘conduz o homem em sua mão, como uma criança em andadeiras’”[a]); Marx conclui, então, que “a excelência das condições naturais” (às quais poderíamos acrescentar também as condições sociais) “limita-se a fornecer a possibilidade, jamais a realidade do mais-trabalho, portanto, do mais-valor ou do mais-produto” (583). Quer dizer, a relação dinâmica com a natureza (ou com as condições da vida cotidiana e o trabalho doméstico) forma um pano de fundo necessário, mas não suficiente, para os processos sociais e as relações de classe por meio das quais o mais-valor é criado e apropriado.
Marx nos induz a reconhecer que “a relação capitalista [...] nasce num terreno econômico que é o produto de um longo processo de desenvolvimento”, de modo que a produtividade do trabalho “não é uma dádiva da natureza, mas o resultado de uma história que compreende milhares de séculos” (580-1). Além disso, diz ele, “para que [o trabalhador] o gaste [o tempo de ócio] em mais-trabalho para estranhos, é necessária a coação externa” (584). E a grande ironia é que “tanto as forças produtivas historicamente desenvolvidas, sociais, quanto as forças produtivas do trabalho condicionadas pela natureza aparecem como forças produtivas do capital, ao qual o trabalho é incorporado” (584). Para Marx, o x da questão, certo ou errado, reside sempre na configuração específica da apropriação do mais-valor do trabalho pelo capital, uma configuração que se encontra na matriz dos elementos que definem a totalidade de um modo de produção capitalista cada vez mais ampliado. Se Marx tivesse abordado essa questão, é muito provável que tivesse tratado as tarefas domésticas do mesmo modo que trata a relação com a natureza (como indica a nota 121 da página 469).
Os dois movimentos, o de ampliação e o de restrição da definição de trabalho produtivo, não são independentes um do outro. Combinados, ajudam Marx a ir de uma microperspectiva individual, em que a imagem dominante é a do trabalhador individual explorado por um empregador capitalista particular, para uma macroanálise das relações de classe, na qual é a exploração de uma classe por outra que ocupa a cena. Essa perspectiva de classe será a dominante dos últimos capítulos.
Curiosamente, todas as formas de teoria econômica encontram problemas ao se mover de um terreno microteórico para um terreno macroteórico. A economia política burguesa não tinha como realizar esse movimento, porque não dispunha (e ainda não dispõe) de uma teoria das origens do mais-valor. Ricardo ignorou completamente o problema, e John Stuart Mill, mesmo reconhecendo que ele tinha algo a ver com o trabalho, não pôde identificar exatamente em que consistia esse algo, porque não viu a diferença entre o que o trabalho toma e o que o trabalho cria. “Em terrenos planos”, diz Marx numa sarcástica referência a Mill, “até os montes de terra parecem colinas, e podemos medir a banalidade de nossa burguesia atual pelo calibre de seus ‘grandes espíritos’” (586). Embora a teoria de Marx do mais-valor facilite o movimento, o modo como o faz, como vimos, não se exime de críticas. Mas cabe a nós arar o solo para colher os frutos de seu pensamento.
Os dois capítulos seguintes não abordam questões substanciais. No capítulo 15, Marx apenas reconhece que o mais-valor varia de acordo com três fatores: a duração da jornada de trabalho, a intensidade do trabalho e a produtividade do trabalho, de modo que os capitalistas podem recorrer a três estratégias. A diminuição das possibilidades numa dimensão pode ser compensada pelo recurso a outra. O ponto fundamental é enfatizar, como faz Marx com frequência, a flexibilidade das estratégias dos capitalistas na busca de mais-valor: se não conseguem obtê-lo de um modo (aumentando a intensidade), eles o obtêm de outro (aumentando as horas de trabalho). Enfatizo esse ponto porque Marx é visto muitas vezes como um pensador rígido, que trabalha com conceitos rígidos. O capítulo 16 limita-se a mencionar (mais uma vez!) várias fórmulas para interpretar a taxa de mais-valor. Há muitas repetições n’O capital. Às vezes parece que Marx não está seguro de que entendemos o problema e sente-se na obrigação de repeti-lo para se certificar.
Os curtos capítulos sobre o salário (17-20) são relativamente autoexplicativos. As consequências resultam, como poderíamos esperar, do fato de que o campo da ação social é configurado mais pela representação na forma-dinheiro – salário – do que pelo valor da força de trabalho. Isso leva imediatamente ao problema da máscara fetichista que esconde as relações sociais sob o fermento da política representativa. Marx, no entanto, começa lembrando que há uma enorme diferença entre “o valor do trabalho” (expressão empregada na economia política clássica) e o “valor da força de trabalho”.
No mercado, o que se contrapõe diretamente ao possuidor de dinheiro não é, na realidade, o trabalho, mas o trabalhador. O que este último vende é sua força de trabalho. Mal seu trabalho tem início efetivamente e a força de trabalho já deixou de lhe pertencer, não podendo mais, portanto, ser vendida por ele. O trabalho é a substância e a medida imanente dos valores, mas ele mesmo não tem valor algum.
Pensar de outro modo é cair numa tautologia, isto é, falar do valor do valor.
Na expressão “valor do trabalho”, o conceito de valor não só se apagou por completo, mas converteu-se em seu contrário. É uma expressão imaginária, como, por exemplo, valor da terra. Essas expressões imaginárias surgem, no entanto, das próprias relações de produção. São categorias para as formas em que se manifestam relações essenciais. Que em sua manifestação as coisas frequentemente se apresentem invertidas é algo conhecido em quase todas as ciências, menos na economia política. (607)
Em outras palavras, o valor do trabalho é um conceito fetichista que disfarça a ideia do valor da força de trabalho e, por conseguinte, evita a questão crucial de como a força de trabalho se torna mercadoria.
A única solução que a economia política clássica encontrou para o problema da fixação daquilo que ela chamava incorretamente de valor do trabalho foi apelar para a doutrina da oferta e da demanda. Essa doutrina aparece várias vezes n’O capital, mas é aqui que Marx rechaça com mais ênfase seu valor explanatório. Mesmo a economia política clássica
reconheceu que a variação na relação entre oferta e demanda nada esclarece acerca do preço do trabalho, assim como de que qualquer outra mercadoria, além de sua variação, isto é, a oscilação dos preços de mercado abaixo ou acima de uma certa grandeza. Se oferta e demanda coincidem, cessa, mantendo-se iguais as demais circunstâncias, a oscilação de preço. Mas, então, oferta e demanda cessam também de explicar qualquer coisa. Quando oferta e demanda coincidem, o preço do trabalho é determinado independentemente da relação entre demanda e oferta, quer dizer, é seu preço natural, que, desse modo, tornou-se o objeto que realmente se deveria analisar. (608)
Essa determinação independente já foi definida por Marx na análise da compra e da venda de força de trabalho. Esta é fixada pelo valor das mercadorias necessárias à reprodução do trabalhador em dado padrão de vida, em dada sociedade e em dada época. Continuar a falar do valor do trabalho, em vez de do valor da força de trabalho, leva a todo tipo de confusão. Marx tenta esclarecer a questão fazendo (de novo!) um resumo da teoria do mais-valor nas páginas 609-10.
Mas o trabalhador pode ser remunerado de diferentes modos – por hora, por dia, por semana, por peça. O capítulo 18 trata do salário por tempo e do funcionamento desse sistema. Não há nada muito problemático aqui, mas devemos nos lembrar de que o modo como ele é praticado no mercado disfarça a relação social subjacente. O capítulo 19 fala do salário por peça, cuja vantagem para o capitalista é que os trabalhadores são forçados a competir entre si em termos de produtividade individual. A concorrência excessiva entre os trabalhadores provoca o aumento da produtividade e a queda dos salários, muito possivelmente abaixo do valor da força de trabalho. Por outro lado, a concorrência entre os capitalistas pode provocar um aumento nos salários. E assim chegamos, mais uma vez, à ideia de que há um ponto de equilíbrio em que a concorrência entre os capitalistas e a concorrência entre os trabalhadores produzem um salário que representa o valor adequado da força de trabalho.
A seção VI, sobre o salário, culmina no capítulo 20, em que Marx examina as diferenças nacionais dos salários. Nesse ponto, ele dispensa brevemente a tendência a analisar o capitalismo como se fosse um sistema fechado. É possível aqui examinar um desenvolvimento geográfico desigual num sistema globalizado. Mas a abordagem é muito breve para permitir maiores conclusões. Se o valor da força de trabalho é fixado pelo valor da cesta de mercadorias necessárias para sustentar o trabalhador num dado padrão de vida, e se esse padrão varia de acordo com as condições naturais, o estado da luta de classes e o grau de civilização de um país, então o valor da força de trabalho tem de apresentar uma variação geográfica (de país para país, nesse caso) significativa. A história da luta de classes na Alemanha é diferente da história da luta de classes na Grã-Bretanha ou na Espanha, por exemplo, e por isso há diferenças nacionais entre os salários (na verdade, costuma haver também diferenças regionais, mas Marx não se ocupa delas aqui). Do mesmo modo, variações de produtividade nas indústrias que produzem gêneros de primeira necessidade em diferentes partes do mundo geram diferenças no valor da força de trabalho e nas taxas de salários. Um salário nominal baixo num país altamente produtivo traduz-se num salário real maior, e vice-versa, porque os trabalhadores compram mais produtos com os salários que recebem (o que é chamado hoje de paridade do poder de compra). O que acontece então com o comércio entre países sob essas condições, e como será a concorrência entre os diferentes países? Marx não trata a fundo dessa questão; ele parece mais interessado na diferenciação entre salários reais e nominais, causada, em primeiro lugar, pela variação de produtividade nas indústrias de gêneros de primeira necessidade nos diversos países. O resultado será um contraste entre os modos como o capitalismo se desenvolve e como o mais-valor é estrategicamente buscado e extraído nos diferentes países. Se Marx tivesse se aprofundado nessa questão, muito provavelmente o resultado seria um sério questionamento da doutrina ricardiana da vantagem comparativa do comércio exterior, mas, por alguma razão, ele decidiu não desenvolver essa linha de argumentação. Devo dizer que acho difícil que alguém se entusiasme com esses capítulos sobre o salário, uma vez que as ideias são bastante óbvias e a redação é um tanto prosaica.
A seção VII, por sua vez, é imensamente interessante e rica de insights, porque é aqui que Marx trata do “processo de acumulação do capital” como um todo. Ele constrói o que poderia ser chamado de “macroanálise” das dinâmicas do modo de produção capitalista. Esse é, sem dúvida, o argumento culminante do Livro I d’O capital. Todo o conjunto de insights anteriores é reunido aqui para criar o que hoje poderíamos chamar de série de “modelos” de dinâmicas capitalistas. No entanto, é vital ter em mente, durante a leitura da seção VII, a natureza dos pressupostos. As conclusões de Marx não são afirmações universais, mas achados contingentes, baseados e limitados por seus pressupostos. Esquecer-se disso é um risco. Há um grande número de comentários sobre a obra de Marx, tanto favoráveis quanto desfavoráveis, que caem em sérios erros de interpretação porque negligenciam o impacto desses pressupostos. Uma das teses mais famosas apresentadas aqui, por exemplo, é a tendência ao empobrecimento crescente do proletariado e à produção de uma desigualdade cada vez maior entre as classes. Essa tese se baseia nos pressupostos de Marx e, quando esses pressupostos são abrandados ou substituídos, a tese não necessariamente se sustenta. Fico extremamente irritado com tentativas de aprovar ou reprovar os achados de Marx nesses capítulos como se ele apresentasse suas conclusões como verdades universais, e não como proposições contingentes.
Marx especifica seus pressupostos no preâmbulo da seção VII. Ele afirma:
A primeira condição da acumulação é que o capitalista tenha conseguido vender suas mercadorias e reconverter em capital a maior parte do dinheiro assim obtido. Em seguida, pressupõe-se que o capital percorra seu processo de circulação de modo normal. A análise mais detalhada desse processo pertence ao Livro II desta obra. (639)
O “modo normal” implica que os capitalistas não encontram nenhum problema para vender seus produtos por seu valor no mercado ou recolocar na produção o mais-valor que ganham. Portanto, todas as mercadorias são negociadas por seu valor. Não há superprodução ou subprodução; tudo é negociado em equilíbrio. Em particular, não há nenhum problema para encontrar um mercado, assim como não há nenhuma falta de demanda efetiva. Seria esse um pressuposto razoável? A resposta é: de modo nenhum, porque ele exclui um dos principais aspectos da formação de crises, aquele que predominou, por exemplo, na Grande Depressão dos anos 1930 e tornou-se central nas teorias keynesianas, qual seja, a falta de demanda efetiva. Marx abandona esses pressupostos nos volumes posteriores, mas é inteiramente fiel a eles nos três capítulos seguintes. Desconsiderar a demanda efetiva permite a ele identificar aspectos da dinâmica capitalista que, de outro modo, permaneceriam obscuros.
O segundo pressuposto é que a divisão do mais-valor em lucro da empresa (a taxa de retorno do capital industrial), lucro do capital comercial, juro, renda e impostos (Marx não inclui este último) não tem efeito algum. Na prática, os produtores capitalistas têm de compartilhar parte do mais-valor criado e apropriado com capitalistas que executam outras funções. “O mais-valor se divide, assim, em diversas partes. Seus fragmentos cabem a diferentes categorias de pessoas e recebem formas distintas, independentes entre si, como o lucro, o juro, o ganho comercial” – o lucro do comerciante –, “a renda fundiária”, os impostos etc. “Tais formas modificadas do mais-valor só poderão ser tratadas no Livro III” (639). Com efeito, Marx pressupõe que há uma classe capitalista formada exclusivamente de capitalistas industriais. No Livro III d’O capital, torna-se claro que o capital a juros, o capital financeiro, o capital comercial e o capital fundiário desempenham um papel considerável na compreensão da dinâmica geral do capitalismo. Aqui, porém, esses aspectos são deixados de lado. Temos apenas um modelo altamente simplificado de como funciona a acumulação do capital e, como todo modelo desse tipo, ele serve somente na medida do que permitem seus pressupostos.
Outro pressuposto tácito é explicitado um pouco mais adiante, numa nota de rodapé.
Abstraímos, aqui, do comércio de exportação, por meio do qual uma nação pode converter artigos de luxo em meios de produção ou de subsistência, e vice-versa. Para conceber o objeto da investigação em sua pureza, livre de circunstâncias acessórias perturbadoras, temos de considerar, aqui, o mundo comercial como uma nação e pressupor que a produção capitalista se consolidou em toda parte e apoderou-se de todos os ramos industriais. (656, nota 21a)
Marx pressupõe um sistema fechado, em que o capital circula de modo “normal”. Esse é um pressuposto importante e claramente restritivo. O que temos aqui é apenas um modelo simplificado da dinâmica de acumulação do capital, derivado da teoria do mais-valor absoluto e relativo operando num sistema fechado. Como veremos, o modelo é muito esclarecedor quanto a certos aspectos do capitalismo.
Apenas para situar os capítulos seguintes em seu contexto, vale a pena compará-los com o que temos nos outros volumes d’O capital. O Livro II confronta aquilo que é constante no Livro I: a dificuldade de encontrar mercados e levá-los a um estado de equilíbrio tal que o processo “normal” da circulação do capital possa ocorrer. Mas o Livro II tende a manter constante aquilo que é tratado como algo dinâmico no Livro I, isto é, a extração de mais-valor absoluto e relativo, rápidas mudanças de tecnologia e produtividade, determinações cambiantes do valor da força de trabalho. O Livro II imagina um mundo de tecnologia constante e relações de trabalho estáveis! Ele levanta as seguintes questões: como o capital pode circular sem dificuldade (dados os diferentes tempos de faturamento, além dos problemas resultantes da circulação do capital fixo de diferentes durações) e sempre encontrar mercado para o mais-valor que está sendo produzido? Considerando que a acumulação do capital exige expansão, como os capitalistas conseguem encontrar mercado, se a classe trabalhadora está cada vez mais pobre e os capitalistas estão reinvestindo? De fato, não há nenhuma menção à pauperização no fim do Livro II. O problema é assegurar o “consumo racional” das classes trabalhadoras para ajudar a absorção dos excedentes de capital que são produzidos. O modelo apresentado aqui é o famoso expediente fordista de baixar o salário para cinco dólares por jornada de oito horas de trabalho, auxiliado por um exército de assistentes sociais cuja tarefa era fazer os operários consumirem seus salários “racionalmente” do ponto de vista do capital. Hoje, nos Estados Unidos, vivemos num mundo em que cerca de 70% da força que impulsiona a economia depende do consumismo movido a dívidas, o que é perfeitamente compreensível, de acordo com a análise que encontramos no Livro II, mas não no Livro I.
Está claro que há uma contradição fundamental entre as condições de equilíbrio definidas no Livro I e aquelas definidas no Livro II. Se as coisas vão bem de acordo com a análise do Livro I, provavelmente vão muito mal do ponto de vista da análise do Livro II, e vice-versa. Os dois modelos da dinâmica de acumulação do capital não concordam, e nem podem concordar. Isso serve de prefácio para a discussão sobre a inevitabilidade das crises no Livro III, mas a expressão “movido a dívidas” que acrescentei ao “consumismo” indica que os termos da distribuição (financiamento, crédito e juro) podem ter um papel importante na dinâmica do capitalismo, em vez de simplesmente um papel auxiliar. O poder do consumidor, fortalecido pelo fato de todos (inclusive os governos) usarem cartões de crédito e se endividarem até o pescoço, foi essencial para a estabilização (tal como existe hoje) do capitalismo global nos últimos cinquenta anos. Nada disso é encontrado nos capítulos seguintes. Mas o modelo altamente simplificado de acumulação do capital que Marx constrói e analisa é extremamente revelador, além de profundamente relevante para a compreensão da história recente do neoliberalismo, que se caracterizou pela desindustrialização, pelo desemprego estrutural crônico, pela insegurança crescente do trabalho e por surtos de desigualdade social. Em suma, passamos muito tempo no mundo do Livro I nos últimos trinta anos. Os problemas da demanda efetiva revelados no Livro II foram temporariamente resolvidos pelos excessos do sistema de crédito, com consequências previsivelmente desastrosas.
O primeiro capítulo da seção VII apresenta as qualidades de um capitalismo ficcional caracterizado pela reprodução simples. Como a acumulação do capital por meio da extração de mais-valor é reproduzida e perpetuada? Para responder a essa pergunta, temos de entender a acumulação do capital em sua “interdependência contínua” e no “fluxo constante de sua renovação”, de modo que “todo processo social de produção é simultaneamente processo de reprodução”. Além isso, “se a produção tem forma capitalista, também o tem a reprodução” (641).
Parte do que o capitalista apropria em termos de nova riqueza tem de ser investido na reprodução do sistema. Mas isso significa que o mais-valor tem de retornar à reprodução simples. “Ora, embora esta [a reprodução simples] seja mera repetição do processo de produção na mesma escala, essa mera repetição ou continuidade imprime ao processo certas características novas ou, antes, dissolve as características aparentes que ele ostentava quando transcorria de maneira isolada” (642). Até aqui, a análise se concentrou apenas na produção do mais-valor como um evento produzido de uma só vez. Mas as coisas se mostram muito diferentes quando examinadas como um processo contínuo ao longo do tempo.
O que reflui continuamente para o trabalhador na forma do salário é uma parte do produto continuamente reproduzido por ele mesmo. Sem dúvida, o capitalista lhe paga em dinheiro o valor das mercadorias[isto é, o valor da força de trabalho]. Mas o dinheiro é apenas a forma transformada do produto do trabalho. Enquanto o trabalhador converte uma parte dos meios de produção em produto, uma parte de seu produto anterior se reconverte em dinheiro. É com seu trabalho da semana anterior ou do último semestre que será pago seu trabalho de hoje ou do próximo semestre. A ilusão gerada pela forma-dinheiro desaparece de imediato assim que consideramos não o capitalista e o trabalhador individuais, mas a classe capitalista e a classe trabalhadora. (642)
As relações de classe, e não os contratos entre indivíduos, ocupam agora o pensamento de Marx.
A classe capitalista entrega constantemente à classe trabalhadora, sob a forma-dinheiro, títulos sobre parte do produto produzido por esta última e apropriado pela primeira. De modo igualmente constante, o trabalhador devolve esses títulos à classe capitalista e, assim, dela obtém a parte de seu próprio produto que cabe a ele próprio. A forma-mercadoria do produto e a forma-dinheiro da mercadoria disfarçam a transação. (643)
A imagem que isso transmite é que a classe trabalhadora se encontra numa relação de “loja de fábrica” com a classe capitalista. Os trabalhadores recebem dinheiro pela força de trabalho que vendem aos capitalistas e gastam esse dinheiro comprando de volta uma parte daquelas mercadorias que eles produziram coletivamente. Essa relação de loja de fábrica é dissimulada pelo sistema salarial e não é facilmente discernível quando a análise foca apenas o trabalhador individual. O significado de “capital variável” sofre outra mudança. De fato, o corpo do trabalhador, do ponto de vista do capital, é um mero instrumento de transmissão para a circulação de uma parte do capital. O trabalhador está numa contínua versão do processo M-D-M. Mas, em vez de ver isso como uma relação simples e linear, temos de pensá-la agora como contínua e circular. Uma parte do capital flui à medida que os trabalhadores incorporam valor nas mercadorias, recebem salários em dinheiro, gastam o dinheiro em mercadorias, reproduzem a si mesmos e retornam ao trabalho no dia seguinte para incorporar mais valor nas mercadorias. Os trabalhadores se mantêm vivos ao fazer circular o capital variável.
Isso suscita algumas observações interessantes. Para começar, “o capital variável só perde o significado de um valor adiantado a partir do fundo próprio do capitalista quando consideramos o processo capitalista de produção no fluxo constante de sua renovação”. Os capitalistas só pagam seus trabalhadores depois que o trabalho é realizado. Portanto, os trabalhadores adiantam aos capitalistas o valor de sua força de trabalho. Não há garantia alguma de que o trabalhador será pago (se, por exemplo, o capitalista declarar falência nesse meio-tempo). Na China, nos últimos anos, tem sido muito comum não pagar os salários devidos, em particular na área da construção civil. Marx está interessado em remodelar de maneira ainda mais radical nossa interpretação da acumulação do capital. Diz ele que “esse processo tem de ter começado em algum lugar e em algum momento. Do ponto de vista que desenvolvemos até aqui, portanto, é provável que o capitalista se tenha convertido em possuidor de dinheiro em virtude de uma acumulação originária” (644). Esse conceito formará a base da discussão sobre as origens do capitalismo no capítulo 24. Aqui, ele afirma apenas que deve ter havido um momento original em que os capitalistas, de uma maneira ou de outra, tiveram recursos suficientes para iniciar esse processo de acumulação de capital. A pergunta que ele faz aqui é: como e por quem esse capital original é reproduzido?
Marx dá um exemplo: se um capitalista tem inicialmente mil libras e as investe em capital variável e capital constante para produzir um mais-valor de duzentas libras, ele se apropria das duzentas libras como se fossem capital seu e ainda recebe de volta as mil libras iniciais. Mas o capital original foi preservado pelo consumo produtivo dos trabalhadores, e o mais-valor foi produzido a partir do tempo de trabalho excedente dos trabalhadores. Suponhamos que, no ano seguinte, o capitalista volte a investir mil libras (tendo consumido o excedente) com o objetivo de produzir outras duzentas libras de mais-valor. Após cinco anos de repetição do processo, os trabalhadores produziram mil libras de mais-valor, o equivalente ao capital original do capitalista. Marx desenvolve aqui o argumento político de que o capitalista, mesmo que tivesse direito àquelas mil libras iniciais, certamente perde o direito ao capital original, depois de cinco anos produzindo duzentas libras de mais-valor por ano. Por direito, as mil libras pertencem aos trabalhadores, dado o princípio lockiano (que Marx não cita, apesar de estar claro que o tem em mente) de que os direitos de propriedade cabem àqueles que criam valor ao misturar seu trabalho à terra. São os trabalhadores que produzem o mais-valor, e este, por direito, deveria pertencer a eles.
O caráter político desse argumento é importante, mas contraria radicalmente modos de pensar profundamente arraigados. Ficaríamos surpresos se nos informassem que o dinheiro original que depositamos numa caderneta de poupança por 5% de juros, por exemplo, não nos pertence mais depois de alguns anos. No que nos diz respeito, o capitalismo parece ser capaz de botar seus próprios ovos de ouro. Mas é legítimo perguntar de onde vêm os 5%, e, se Marx está certo, eles só podem vir da mobilização e da apropriação do mais-valor de alguém, em algum lugar. É inquietante pensar que esses 5% talvez venham da exploração cruel de trabalho vivo na província de Cantão, na China. Nossa superestrutura legal insiste em preservar os direitos originais de propriedade, assim como o direito de usar esses direitos para ter lucro. Mas os direitos de propriedade resultam do poder de classe do capital de extrair e manter o controle dos excedentes, porque a força de trabalho se tornou, por processos históricos específicos, uma mercadoria comprada e vendida no mercado de trabalho. O que Marx diz aqui implica que, para desafiar o capitalismo, é necessário desafiar não apenas a noção de direitos, o modo como as pessoas pensam sobre os direitos e a propriedade, mas também os processos materiais por meio dos quais os excedentes são criados e apropriados pelo capital. Assim, depois de cinco anos,
Nem um átomo de valor de seu antigo capital continua a existir. [...] Abstraindo-se inteiramente de toda acumulação, a mera continuidade do processo de produção, ou a reprodução simples, após um período mais ou menos longo, transforma necessariamente todo capital em capital acumulado ou mais-valor capitalizado. Ainda que, no momento em que entrou no processo de produção, esse capital fosse propriedade adquirida mediante o trabalho pessoal daquele que o aplicou, mais cedo ou mais tarde ele se converteria em valor apropriado sem equivalente, em materialização, seja em forma monetária, seja em outra, de trabalho alheio não pago. (645)
Há um exemplo interessante de um plano prático que reflete o modo marxiano de pensar (se derivou ou não de Marx, isso eu não sei). Um economista sueco chamado Rudolf Meidner, que teve um papel fundamental na elaboração do altamente bem-sucedido Estado de bem-estar social sueco nos anos 1960 e início dos anos 1970, formulou aquele que seria conhecido como o Plano Meidner. Para enfrentar a inflação, os poderosos sindicatos seriam estimulados a aceitar um arrocho salarial coletivo. Em troca, os lucros extras (mais-valor) que se somariam ao capital em consequência desse arrocho seriam depositados num fundo de investimento social que seria controlado pelos trabalhadores e compraria ações de empresas capitalistas. As ações seriam inalienáveis e, com o tempo (mais do que os cinco anos do exemplo de Marx), o controle da empresa passaria para o fundo de investimento social. Em outras palavras, a classe capitalista seria literalmente comprada (de maneira pacífica) ao longo do tempo e substituída pelo controle total dos operários sobre as decisões de investimento. O plano foi recebido com horror pela classe capitalista (que prontamente concedeu o chamado Prêmio Nobel de Economia – na verdade, esse prêmio não tem nada a ver com Nobel – a neoliberais como Friedrich Hayek e Milton Friedman, formou think tanks antissindicalistas e mobilizou uma oposição feroz na mídia). O governo social-democrata da época nunca tentou implementar o plano; contudo, quando pensamos nele, a ideia (muito mais complicada nos detalhes, é claro) é extremamente coerente com o argumento de Marx, e oferece ao mesmo tempo um modo pacífico de comprar o poder capitalista. Por que não pensar mais nisso?
Quando associado à relação de “loja de fábrica” entre o trabalho e o capital, o argumento de Marx conduz a insights ainda mais profundos, ao mesmo tempo que levanta questões cruciais (e, nesse caso, infelizmente não respondidas). “Como antes de [o trabalhador] entrar no processo seu próprio trabalho já está estranhado” – isto é, o trabalhador cedeu o valor de uso da força de trabalho ao capitalista –, “tendo sido apropriado pelo capitalista e incorporado ao capital, esse trabalho se objetiva continuamente, no decorrer do processo, em produto alheio.” Nem o produto nem o trabalho nele incorporado pertencem ao trabalhador.
Por conseguinte, o próprio trabalhador produz constantemente a riqueza objetiva como capital, como poder que lhe é estranho, que o domina e explora, e o capitalista produz de forma igualmente contínua a força de trabalho como fonte subjetiva e abstrata de riqueza, separada de seus próprios meios de objetivação e efetivação, existente na mera corporeidade do trabalhador; numa palavra, produz o trabalhador como assalariado. Essa constante reprodução ou perpetuação do trabalhador é a sine qua non [condição indispensável] da produção capitalista. (645-6)
Penso que essa é uma formulação interessante e desconcertante, digna de uma reflexão séria. “O próprio trabalhador produz constantemente a riqueza objetiva como capital”, e essa riqueza objetiva torna-se um poder estranho que agora domina o trabalhador. O trabalhador produz o instrumento de sua própria dominação! Esse é um tema que ressoa e reverbera por todo O capital. Ele levanta a questão histórica geral da tendência dos seres humanos a produzir os instrumentos de sua própria dominação. Nesse caso, porém, o capitalista produz a fonte subjetiva da riqueza, que é abstrata, por intermédio da “corporeidade do trabalhador”, que é “separado de seus próprios meios de objetivação e efetivação”. O capitalista produz e reproduz o trabalhador como o sujeito ativo – porém alienado – capaz de produzir valor. E isso, note bem, é a condição fundamental e socialmente necessária para a sobrevivência e a manutenção do modo de produção capitalista.
O trabalhador engaja-se no consumo produtivo e no consumo individual (uma distinção que encontramos antes). Os trabalhadores não só produzem o equivalente do valor do capital variável, isto é, sua própria vida, como também transferem e, desse modo, reproduzem o valor do capital constante. Por meio de seu trabalho, os trabalhadores reproduzem tanto o capital quanto o trabalhador. Os capítulos sobre a divisão do trabalho e a maquinaria mostraram como o trabalhador foi necessariamente transformado num apêndice do capital no interior do processo de trabalho. Mas agora vemos o trabalhador como um “apêndice do capital” no mercado e em sua casa. É isto que a circulação de capital variável realmente significa: o capital circula pelo corpo do trabalhador e reproduz o trabalhador como um sujeito ativo que reproduz o capital. Mas o trabalhador não tem de ser reproduzido apenas como uma pessoa individual. “A manutenção e a reprodução da classe trabalhadora permanecem uma condição necessária para a reprodução do capital” (647).
Isso levanta uma série de questões, tratadas por Marx de modo muito superficial. As políticas de reprodução de classe, diz ele, eram brutais e simples em sua época. “O capitalista pode abandonar confiadamente” a tarefa diária da reprodução de classe “ao impulso de autoconservação e procriação dos trabalhadores. Ele apenas se preocupa com limitar ao máximo o consumo individual dos trabalhadores, mantendo-o nos limites do necessário” (647). Contudo, Marx passa ao largo de algo importante, que requer uma análise mais profunda. A imensa e fundamental questão da reprodução da classe trabalhadora envolve questões de propagação, autopreservação, relações sociais no interior da classe e uma série de outros aspectos que Marx deixa convenientemente para os próprios trabalhadores resolverem, porque é isso que o capital supostamente faz. Na verdade, mesmo num Estado controlado por capitalistas e proprietários fundiários, as questões a respeito da reprodução social jamais são deixadas unicamente aos trabalhadores, e certamente as condições da luta de classes e “o grau civilizacional” de um país têm o mesmo peso – se não maior – nesse caso do que nas questões relativas à jornada de trabalho. A discussão anterior sobre os artigos das Leis Fabris que se referem à educação são um exemplo da intervenção do Estado na política de reprodução da classe trabalhadora, e o Estado sempre foi ativo no campo da saúde pública (a cólera tinha o estranho hábito de transpor as fronteiras de classe) e dos direitos reprodutivos, das políticas de controle populacional etc. Questões desse tipo necessitariam de uma consideração muito mais detalhada do que a fornecida por Marx. Mas seu argumento geral é acertado. A reprodução simples não é uma questão técnica. A questão fundamental é a reprodução da relação de classe.
Em seu próprio desenrolar, portanto, o processo capitalista de produção reproduz a cisão entre força de trabalho e condições de trabalho. Com isso, ele reproduz e eterniza as condições de exploração do trabalhador. Ele força permanentemente o trabalhador a vender sua força de trabalho para viver e capacita o capitalista a comprá-la para enriquecer. Já não é mais o acaso que contrapõe o capitalista e o trabalhador no mercado, como comprador e vendedor. É a versatilidade característica do processo que faz com que o trabalhador tenha de retornar constantemente ao mercado como vendedor de sua força de trabalho e converte seu próprio produto no meio de compra nas mãos do primeiro. Na realidade, o trabalhador pertence ao capital ainda antes de vender-se ao capitalista. (652)
O resultado, conclui Marx, é que “o processo capitalista de produção, considerado em seu conjunto ou como processo de reprodução, produz não apenas mercadorias, não apenas mais-valor, mas produz e reproduz a própria relação capitalista: de um lado, o capitalista, do outro, o trabalhador assalariado” (653).
Por uma série de razões, como veremos em breve, a ideia de um modo de produção capitalista numa condição estável, de não crescimento, é improvável, se não totalmente impossível. O capítulo 22 examina como e por que o mais-valor ganho ontem é transformado no novo capital monetário de amanhã. A resultante “reprodução do capital em escala progressiva” envolve a incorporação dessas “forças de trabalho suplementares e de diversas faixas etárias que a classe trabalhadora lhe fornece anualmente aos meios de produção adicionais já contidos na produção anual”. Para que isso aconteça, é necessário que o capital produza primeiro as condições para sua própria expansão.
Para acumular, é necessário transformar uma parte do mais-produto em capital. Mas, sem fazer milagres, só podemos transformar em capital aquilo que é utilizável no processo de trabalho, isto é, os meios de produção e, além deles, aquilo com que o trabalhador pode sustentar-se, isto é, os meios de subsistência. Por conseguinte, é preciso empregar uma parte do mais-trabalho anual na fabricação de meios de produção e de subsistência adicionais [...]. Numa palavra: o mais-valor só pode ser convertido em capital porque o mais-produto, do qual ele é o valor, já contém os componentes materiais de um novo capital. (656)
A produção de artigos de luxo ou de outros produtos sem utilidade (como equipamento militar e monumentos religiosos ou ao Estado) não tem importância, independentemente de quão lucrativa possa ser. Os novos meios de subsistência e produção têm de ser produzidos e organizados de antemão. Então, e apenas então, “o ciclo da reprodução simples se modifica e se transforma [...] perfazendo uma espiral” (657). Outro modo de ver isso (de acordo com a análise do capítulo precedente) é o de que “a classe trabalhadora que criou, com seu mais-trabalho realizado neste ano, o capital que no próximo ano ocupará trabalho adicional. Isso é o que se denomina”, diz Marx com profunda ironia, “gerar capital por meio de capital”.
No entanto, o trabalhador é sujeito ativo nesse processo. Marx continua a pressupor que os processos de mercado obedecem “continuamente à lei da troca de mercadorias, e que o capitalista sempre compra a força de trabalho e o trabalhador sempre a vende, e supomos que por seu valor real”. Mais uma vez, enfatizo a importância desses pressupostos na análise de Marx. “É evidente que a lei da apropriação ou lei da propriedade privada, lei que se funda na produção e circulação de mercadorias, converte-se em seu direto oposto, obedecendo à sua dialética própria, interna e inevitável.” Fica clara, assim, a inversão do princípio lockiano da mistura de trabalho e terra para criar valor como fundamento do direito à propriedade privada.
A troca de equivalentes, que aparecia como a operação original, distorceu-se a ponto de, agora, a troca se realizar apenas na aparência, uma vez que, em primeiro lugar, a própria parte do capital trocada pela força de trabalho não é mais do que uma parte do produto do trabalho alheio, apropriado sem equivalente. (659)
Consequentemente, “a relação de troca entre o capitalista e o trabalhador se converte, portanto, em mera aparência correspondente ao processo de circulação, numa mera forma, estranha ao próprio conteúdo e que apenas o mistifica” (659). E Marx continua:
A compra e venda constantes da força de trabalho é a forma. O conteúdo está no fato de que o capitalista troca sem cessar uma parte do trabalho alheio já objetivado, do qual ele constantemente se apropria sem equivalente, por uma quantidade cada vez maior de trabalho vivo alheio. Originalmente, o direito de propriedade aparecia diante de nós como fundado no próprio trabalho. No mínimo esse suposto tinha de ser admitido, porquanto apenas possuidores de mercadorias com iguais direitos se confrontavam uns com os outros, mas o meio de apropriação da mercadoria alheia era apenas a alienação da mercadoria própria, e esta só podia se produzir mediante o trabalho. A propriedade aparece agora, do lado do capitalista, como direito a apropriar-se de trabalho alheio não pago ou de seu produto; do lado do trabalhador, como impossibilidade de apropriar-se de seu próprio produto. A cisão entre propriedade e trabalho converte-se na consequência necessária de uma lei que aparentemente partia da identidade de ambos. (659)
Nesse ponto, Marx volta (mais uma vez!) à questão de como a troca de equivalentes pode produzir um não equivalente, isto é, mais-valor, e como a noção original de direitos de propriedade é invertida, tornando-se um direito de apropriação do trabalho de outros. O que vem a seguir é, portanto, a enésima repetição da teoria do mais-valor (se você ainda tem alguma dúvida a respeito dessa teoria, leia com atenção a passagem das páginas 660-1). Marx prossegue, no entanto, e observa que o que pode ser deduzido do ponto de vista do indivíduo não costuma funcionar do ponto de vista das relações de classe.
Certamente, o quadro é inteiramente diferente quando consideramos a produção capitalista no fluxo ininterrupto de sua renovação e, em vez do capitalista individual e do trabalhador individual, consideramos a totalidade, a classe capitalista e, diante dela, a classe trabalhadora. Com isso, porém, introduziríamos um padrão de medida totalmente estranho à produção de mercadorias. (661)
Isso acontece porque a liberdade, a igualdade, a propriedade e Bentham prevalecem no mercado, tornando invisível a produção de mais-valor no processo de trabalho.
Esse mesmo direito segue em vigor como no início, quando o produto pertencia ao produtor, e este, trocando equivalente por equivalente, só podia enriquecer mediante seu próprio trabalho, e também segue em vigor no período capitalista, quando a riqueza social se torna, em proporção cada vez maior, a propriedade daqueles em condições de se apropriar sempre de novo do trabalho não pago de outrem. [...] Esse resultado se torna inevitável tão logo o próprio trabalhador vende livremente a força de trabalho como mercadoria. (662)
As liberdades e os direitos burgueses mascaram a exploração e a alienação. “Na mesma medida em que, de acordo com suas próprias leis imanentes, ela [a produção de mercadorias] se desenvolve até se converter em produção capitalista, as leis de propriedade que regulam a produção de mercadorias se convertem em leis da apropriação capitalista” (662). Para usarmos a linguagem do prefácio da Contribuição à crítica da economia política, há um ajuste superestrutural para legitimar e legalizar a apropriação de mais-valor, recorrendo a conceitos de direitos de propriedade privada. Daí a rejeição de Marx a toda e qualquer tentativa de universalizar as concepções burguesas de direito e justiça. Elas não fazem mais do que fornecer a cobertura legal, ideológica e institucional socialmente necessária para a produção do capital numa escala cada vez maior.
A economia política clássica, cheia de concepções burguesas de direitos, levou a “concepções errôneas da reprodução em escala ampliada” (como diz o título do item 2). Para começar, a relação entre a acumulação do capital e o entesouramento (poupança) foi mantida num estado de extrema confusão. No entanto, a economia política clássica está certa “quando acentua como momento característico do processo de acumulação o consumo do mais-produto por trabalhadores produtivos, em vez de por improdutivos” (664). Mas, pela definição marxiana de “produtivo”, isso significa que o mais-produto de ontem tem de servir para a criação de mais mais-produto e mais-valor hoje. As dinâmicas desse processo são complicadas. A economia política clássica focou exclusivamente o trabalho extra e, portanto, o capital variável extra (aumento em gastos com salários) que era exigido. Contudo, assim como no caso da última hora de Senior, da qual Marx zombou, a economia política clássica tendeu a se esquecer inteiramente da necessidade de obter novos meios de produção (capital constante) a cada rodada de acumulação (que acarretou mudanças na relação com a natureza por meio da extração de matéria-prima). Essa era a segunda “concepção errônea” que Marx tinha de corrigir.
Isso nos leva à pergunta fundamental: se os capitalistas têm o comando do mais-valor, por que simplesmente não o consomem e aproveitam a vida? Uma parte do mais-valor é, de fato, consumida pelos capitalistas como renda. A classe capitalista consome uma parte do mais-valor para satisfazer seus prazeres. Mas outra parte é reinvestida como capital. Surge então outra pergunta: o que governa a relação entre o consumo da renda e o reinvestimento do mais-valor como capital? A resposta de Marx merece uma longa citação.
Apenas como capital personificado o capitalista tem um valor histórico e dispõe daquele direito histórico à existência de que, como diz o espirituoso Lichnovski, nenhuma data não dispõe[b]. Somente nesse caso sua própria necessidade transitória está incluída na necessidade transitória do modo de produção capitalista. Ainda assim, porém, sua força motriz não é o valor de uso e a fruição, mas o valor de troca e seu incremento. (667)
Os capitalistas, diz Marx, estão necessariamente interessados na acumulação do poder social em forma-dinheiro e, portanto, são estimulados por ela.
Como fanático da valorização do valor, o capitalista força inescrupulosamente a humanidade à produção pela produção e, consequentemente, a um desenvolvimento das forças produtivas sociais e à criação de condições materiais de produção que constituem as únicas bases reais possíveis de uma forma superior de sociedade, cujo princípio fundamental é o pleno e livre desenvolvimento de cada indivíduo. O capitalista só é respeitável como personificação do capital. Como tal, ele partilha com o entesourador a pulsão absoluta de enriquecimento. Mas o que neste aparece como mania individual, no capitalista é efeito do mecanismo social, no qual ele não é mais que uma engrenagem. Além disso, o desenvolvimento da produção capitalista converte numa necessidade o aumento progressivo do capital investido numa empresa industrial, e a concorrência impõe a cada capitalista individual, como leis coercitivas externas, as leis imanentes do modo de produção capitalista. Obriga-o a expandir continuamente seu capital a fim de conservá-lo, e ele não pode expandi-lo senão por meio da acumulação progressiva. (667)
O capitalista, segundo Marx, não tem uma liberdade real. Os pobres capitalistas são meras engrenagens de um mecanismo; eles têm de reinvestir, porque as leis coercitivas da concorrência os obrigam a isso. Como capital personificado, eles têm uma psicologia tão concentrada no aumento do valor de troca, na acumulação do poder social em forma-dinheiro ilimitada, que a acumulação de dinheiro se torna o foco fetichista de seus desejos mais profundos. Nisso reside a similaridade entre o miserável e o capitalista. Ambos desejam poder social, mas os capitalistas procuram esse poder colocando constantemente sua riqueza em circulação, ao passo que o miserável tenta manter sua riqueza deixando de usá-la. E se individualmente os capitalistas derem algum sinal de que estão se desviando de sua missão principal, as irritantes leis coercitivas da concorrência (mais uma vez introduzidas na argumentação com a função essencial de policiar o sistema) os põem na linha.
Diante dessa realidade, os apologistas burgueses criam uma nobre ficção. Os capitalistas, dizem eles, criam capital e dedicam-se à sua nobre missão de criar aquela “forma superior de sociedade” – que mesmo Marx admite que pode ser produto de seus esforços – por meio da abstinência! Devo dizer que, vivendo em Nova York, jamais presenciei uma situação em que a classe capitalista se mostrasse abstinente. Marx sugere, no entanto, que os capitalistas se defrontam com um dilema faustiano. E até cita Fausto: “Duas almas moram, ah!, em seu peito, e uma quer apartar-se da outra!” (620). Por um lado, eles são forçados pelas leis coercitivas da concorrência a acumular e reinvestir; por outro, são atormentados pelo desejo de consumir. A abstinência forçada de consumo é transformada numa ideologia de virtude burguesa voluntária. O lucro pode até ser interpretado como um retorno obtido graças à virtude! E o reinvestimento também é uma virtude (ele cria empregos, por exemplo) e merece ser admirado e recompensado. Todos aqueles cortes de impostos que George W. Bush concedeu aos multimilionários durante seu governo foram interpretados como uma recompensa aos investidores virtuosos, cuja abstinência tinha supostamente um papel crucial na criação de empregos e no crescimento econômico. O fato de os ricos se acostumarem rapidamente a fazer festas de 10 milhões de dólares para comemorar a formatura dos filhos ou o aniversário da esposa não casou muito bem com a teoria. No entanto, Marx, ainda fortemente influenciado pela história do capitalismo de Manchester, sugere que a luta entre as “duas almas” que habitam o peito do capitalista teve uma evolução gradual. De fato, nos estágios iniciais, os capitalistas foram forçados a se abster do consumo (daí a importância da ideologia dos quakers entre os primeiros capitalistas ingleses), mas, à medida que a espiral da acumulação aumentava cada vez mais, as restrições ao consumo se abrandaram. Em Manchester, “o último terço do século XVIII, ‘foi de grande luxo e esbanjamento’”, diz Marx, citando um relato de 1795 (670). Sob tais condições, “a produção e a reprodução em escala ampliada seguem aqui seu curso, sem qualquer ingerência daquele santo milagroso, o cavaleiro da triste figura, o capitalista ‘abstinente’” (674).
Movidos pelas leis coercitivas da concorrência e pelo desejo de aumentar seu poder social em forma-dinheiro ilimitada, os capitalistas reinvestem porque esse é o único meio de permanecer no negócio e manter sua posição de classe. Isso leva Marx a uma conclusão fundamental a respeito da essência do modo de produção capitalista.
Acumulai, acumulai! Eis Moisés e os profetas! “A indústria provê o material que a poupança acumula.” Portanto, poupai, poupai, isto é, reconvertei em capital a maior parte possível do mais-valor ou do mais-produto! A acumulação pela acumulação, a produção pela produção: nessa fórmula, a economia clássica expressou a vocação histórica do período burguês. Em nenhum instante ela se enganou sobre as dores de parto da riqueza, mas de que adianta lamentar-se diante da necessidade histórica? Se para a economia clássica o proletário não era mais que uma máquina para a produção de mais-valor, também o capitalista, para ela, era apenas uma máquina para a transformação desse mais-valor em mais-capital. (670-1)
Isso significa simplesmente que o capitalismo procura sempre o crescimento. Não pode existir uma ordem social capitalista que não seja fundada na busca do crescimento e da acumulação em escala cada vez maior. “A acumulação pela acumulação, a produção pela produção.” Leia as matérias diárias sobre a situação da economia – do que as pessoas falam o tempo inteiro? Crescimento! Onde está o crescimento? Como vamos crescer? Pouco crescimento define uma recessão, assim como crescimento negativo define uma depressão. Um crescimento (composto) de 1% ou 2% não é suficiente; precisamos de 3% no mínimo e a economia só pode ser considerada “saudável” se chegarmos a 4%. E veja a China: ela tem taxas constantes de 10% de crescimento há tantos anos. Essa é a verdadeira história de sucesso nos tempos atuais, em comparação com o Japão, que depois de décadas de crescimento espetacular teve crescimento próximo a zero nos anos 1990 e foi transferido para a enfermaria do capitalismo global.
A esse imperativo soma-se uma crença fetichista, uma ideologia centrada nas virtudes do crescimento. O crescimento é inevitável, o crescimento é bom. Não crescer é estar em crise. Mas crescimento ilimitado significa produzir por produzir, o que também significa consumir por consumir. Tudo o que se coloca no caminho do crescimento é ruim. Barreiras e limites ao crescimento têm de ser removidos. Problemas ambientais? Péssimo! A relação com a natureza tem de ser mudada. Problemas sociais e políticos? Péssimo! Reprima os críticos e mande os recalcitrantes para a cadeia. Barreiras geopolíticas? Derrube-as com violência, se necessário. Tudo deve dançar ao ritmo da “acumulação pela acumulação” e da “produção pela produção”.
Para Marx, essa é uma das características que definem o capitalismo. É claro que ele chega a essa conclusão com base em seus pressupostos. Mas esses pressupostos são coerentes com a visão da economia política clássica acerca da “missão histórica” da burguesia. E isso define um princípio regulador muito importante e poderoso. A história do capitalismo não se baseia em taxas compostas de crescimento? Sim. As crises capitalistas não são definidas como falta de crescimento? Sim. Os criadores de políticas em todo o mundo capitalista não são obcecados pelo estímulo e pela manutenção do crescimento? Sim. E você já viu alguém questionar o princípio do crescimento, para não dizer tomar alguma providência a esse respeito? Não. Questionar o crescimento é irresponsável e impensável. Apenas excêntricos, desajustados e utopistas esquisitos acreditam que o crescimento ilimitado seja ruim, sejam quais forem suas consequências ambientais, econômicas, sociais e políticas. Sem dúvida, problemas causados pelo crescimento, como o aquecimento global e a degradação ambiental, têm de ser enfrentados, mas é raro que se diga que a resposta ao problema é suspender completamente o crescimento (embora haja evidências de que as recessões aliviem a pressão sobre o meio ambiente). Não, temos de descobrir novas tecnologias, novas concepções mentais, novos modos de viver e produzir, para que o crescimento, a ilimitada acumulação composta do capital, possa continuar.
Esse não foi um princípio regulador de outros modos de produção. É claro que impérios cresceram e ordens sociais se expandiram episodicamente, mas com frequência eles apenas se estabilizaram e, em alguns casos, estagnaram e até desapareceram. Uma das grandes críticas aos comunismos realmente existentes, como a antiga União Soviética e Cuba, foi e continua a ser que esses países não cresceram o suficiente e, por isso, não podiam competir com o incrível consumismo e o espetáculo do crescimento no Ocidente, concentrado nos Estados Unidos. Digo isso não para elogiar a União Soviética, mas para destacar quão automáticas tendem a ser nossas respostas ao não crescimento – a estagnação é imperdoável. Hoje temos uma quantidade suficiente de veículos utilitários esportivos, Coca-Cola e água engarrafada para satisfazer a acumulação pela acumulação, acompanhada de todo tipo de consequência desastrosa para a saúde e o meio ambiente (como epidemias de diabetes, que, diga-se de passagem, ainda são raras em Cuba, em comparação com os Estados Unidos). Isso nos leva a pensar que pode ser difícil manter a taxa composta de crescimento de 3% que caracteriza o capitalismo desde a metade do século XVIII. Quando o capitalismo era constituído de uma zona econômica de cerca de 40 milhas quadradas em torno de Manchester e umas poucas cidadezinhas, 3% de taxa composta de crescimento eram algo excepcional, mas hoje ele abrange a Europa, a América do Norte e do Sul e, sobretudo, o Leste Asiático, com forte implantação na Índia, na Indonésia, na Rússia e na África do Sul. Partindo dessa base, as consequências de uma taxa composta de crescimento de 3% ao longo dos próximos cinquenta anos são inimagináveis. Ao mesmo tempo, isso torna mais imaginável, se não absolutamente imperativa, a sugestão de Marx nos Grundrisse de que está na hora de o capital dar lugar a um modo de produção mais sensato.
Como se pode ver, há uma variedade de modos de ganhar mais-valor sem produzir absolutamente nada. Reduzir o valor da força de trabalho pela redução do padrão de vida é um dos caminhos. Marx, citando John Stuart Mill, diz que, “se o trabalho pudesse ser obtido sem ser comprado, os salários seriam supérfluos”.
Mas, se os trabalhadores pudessem viver de ar, tampouco seria possível comprá-los por preço algum. Sua gratuidade é, portanto, um limite em sentido matemático, sempre inalcançável, ainda que sempre passível de aproximação. É uma tendência constante do capital reduzir os trabalhadores a esse nível niilista. (676)
E Marx apresenta algumas maneiras de fazer isso, como fornecer receitas culinárias aos trabalhadores para que economizem com alimentação. Mais tarde, esse tipo de coisa tornou-se parte, por exemplo, das práticas da Russell Sage Foundation e dos assistentes sociais, que tentaram ensinar a outros trabalhadores maneiras adequadas de consumir. Tomar esse caminho, porém, cria problemas de demanda efetiva que Marx não considera, porque ele pressupõe que todas as mercadorias são comercializadas por seus valores. A economia de capital constante (inclusive o corte de desperdícios) também pode ser proveitosa, embora os capitalistas estejam constantemente à procura de algo “presenteado gratuitamente pela Natureza”. “Uma vez mais, é a ação direta do homem sobre a natureza que se converte, sem interferência de novo capital, em fonte direta de uma maior acumulação” (679). Alterar a produtividade do trabalho social por outros meios (motivação e organização) não custa nada, e usar máquinas velhas, além de seu tempo de vida, também ajuda, assim como destinar recursos existentes (por exemplo, ambientes construídos) para novos propósitos. Finalmente, “a ciência e a técnica constituem uma potência de expansão do capital em funcionamento, independente da grandeza dada que esse capital alcançou” (681). A acumulação pode ser expandida por todos esses diferentes meios, sem que haja necessidade de recorrer à capitalização do mais-valor.
“No decorrer desta investigação”, diz Marx no início do item 5,
verificamos que o capital não é uma grandeza fixa, mas uma parte elástica da riqueza social, parte que flutua constantemente com a divisão do mais-valor em renda e capital adicional. Viu-se, além disso, que, mesmo com uma dada grandeza do capital em funcionamento, a força de trabalho, a ciência e a terra nele incorporadas (e por terra entendemos, do ponto de vista econômico, todos os objetos de trabalho preexistentes na natureza, sem intervenção humana) constituem potências elásticas do capital, potências que, dentro de certos limites, deixam a ele uma margem de ação independente de sua própria grandeza. Abstraímos, aqui, de todas as circunstâncias do processo de circulação [ele se refere aos pressupostos iniciais sobre o mercado], que proporcionam graus muito diversos de eficiência à mesma massa de capital [...] [e] abstraímos de qualquer combinação mais racional que pudesse ser realizada de maneira direta e planificada com os meios de produção e as forças de trabalho existentes. (684-5)
Mais uma vez, Marx insiste na incrível flexibilidade e manobrabilidade do capital. “A economia política clássica”, ao contrário, “sempre gostou de conceber o capital social como uma grandeza fixa e dotada de um grau fixo de eficiência”. O pobre Jeremy Bentham, “esse oráculo insipidamente pedante e fanfarrão do senso comum burguês do século XIX”, tinha uma visão particularmente fixa de como o capitalismo construiu um fundo de trabalho (685).
O capital não é uma grandeza fixa! Nunca se esqueça disso e agradeça o fato de existir uma boa dose de flexibilidade e fluidez no sistema. Muito frequentemente, a oposição de esquerda ao capitalismo subestimou esse fato. Se os capitalistas não podem acumular de um modo, eles o farão de outro. Se não podem usar a ciência e a tecnologia em seu próprio benefício, explorarão a natureza ou passarão receitas à classe trabalhadora. Há inúmeras estratégias à disposição deles, e eles desenvolveram maneiras muito sofisticadas de usá-las. O capitalismo pode ser monstruoso, mas não é um monstro rígido. Os movimentos oposicionistas ignoram sua capacidade de adaptação, sua flexibilidade e fluidez por sua própria conta e risco. O capital não é uma coisa, mas um processo. Está continuamente em movimento, mesmo quando interioriza o princípio regulador da “acumulação pela acumulação e a produção pela produção”.
[a] Citação modificada do poema (e canção popular) “An die Natur”, de Friedrich Leopold, conde de Stolberg. (N. T.)
[b] A 31 de agosto de 1848, na Assembleia Nacional de Frankfurt, o latifundiário silesiano Lichnovski pronunciou-se – num alemão que provocou risos nos ouvintes – contra o direito histórico da Polônia à existência autônoma, direito de que, disse, “nenhuma data não dispõe”. Segundo Lichnovski, uma data anterior de ocupação do território polonês sempre “poderia reivindicar” um “direito maior”, como era o caso dos alemães. Esse discurso foi comentado à época por Marx e Engels, na Nova Gazeta Renana, numa série de artigos intitulada “Die Polendebatte e in Frankfurt” [O debate sobre a Polônia em Frankfurt] (Cf. N. E. A. MEW, 5, p. 351-3). (N. T.)