C A P Í T U L O  8 2

O grande avião de transporte C-130 continuava a subir, descrevendo uma curva para o sudeste, rugindo sobre o Adriático. A bordo, Robert Langdon sentia-se ao mesmo tempo confinado e à deriva – oprimido pela ausência de janelas da aeronave e perplexo com todas as perguntas sem resposta que rodopiavam em sua mente.

O seu estado de saúde, dissera-lhe Elizabeth Sinskey, é um pouco mais complicado do que um simples ferimento na cabeça.

A pulsação de Langdon se acelerou ao pensar no que ela talvez fosse lhe revelar, mas naquele momento a doutora estava ocupada discutindo estratégias de contenção com a equipe de SMI. Ali perto, ao telefone, Brüder falava com agências do governo sobre Sienna Brooks, mantendo-se informado acerca de todas as tentativas de localizá-la.

Sienna...

Langdon ainda tentava processar a informação de que ela estava envolvida até o pescoço naquela situação. Quando o avião enfim se estabilizou, o pequeno homem que se autointitulava diretor atravessou a cabine e foi se sentar à sua frente. Fez um triângulo com os dedos sob o queixo e franziu os lábios.

– A Dra. Sinskey me pediu que o informasse... que tentasse esclarecer um pouco mais a sua situação.

Langdon duvidava que aquele homem pudesse dizer algo capaz de lançar o mínimo de luz que fosse sobre aquela confusão.

– Como comecei a explicar mais cedo – falou o diretor –, boa parte do que está acontecendo começou depois que uma agente minha, Vayentha, trouxe o senhor para ser interrogado antes da hora. Não sabíamos que progresso já tinha feito para a Dra. Sinskey nem até que ponto havia compartilhado suas informações com ela. Mas temíamos que, se ela descobrisse a localização do projeto que nosso cliente havia nos contratado para proteger, fosse confiscar ou destruir o material. Tínhamos que encontrá-lo antes dela, por isso precisávamos que o senhor trabalhasse para nós... e não para a Dra. Sinskey. – Ele se deteve, batendo as pontas dos dedos umas nas outras. – Infelizmente, como já havíamos colocado as cartas na mesa, o senhor com certeza não confiava em nós.

– Então vocês me deram um tiro na cabeça? – perguntou Langdon, irritado.

– Bolamos um plano para fazer o senhor confiar em nós.

Langdon se sentiu perdido.

– Como é possível fazer alguém confiar em você... depois de ter sequestrado e interrogado essa pessoa?

O homem se remexeu, subitamente desconfortável.

– Professor, o senhor já ouviu falar em uma família de substâncias conhecidas como benzodiazepinas?

Langdon fez que não com a cabeça.

– É uma nova linha de fármacos usada, entre outras coisas, para tratar o estresse pós-traumático. Como deve saber, quando alguém passa por uma experiência terrível, como um acidente de carro ou uma agressão sexual, as memórias de longo prazo do ocorrido podem ter um efeito debilitante permanente. Com o uso das benzodiazepinas, os neurocientistas conseguem tratar o estresse pós-traumático antes mesmo de ele se instalar.

Langdon ouvia em silêncio, incapaz de imaginar o rumo que aquela conversa poderia tomar.

– Quando as lembranças novas se formam – prosseguiu o diretor –, os acontecimentos ficam armazenados na memória de curto prazo durante cerca de 48 horas antes de migrarem para a memória de longo prazo. Usando novas combinações de benzodiazepinas, é perfeitamente possível atualizar a memória de curto prazo... apagando seu conteúdo antes de as lembranças recentes migrarem e se transformarem em memórias de longo prazo. Por exemplo, se uma vítima de agressão for medicada com uma substância dessa família poucas horas depois do ocorrido, as lembranças podem ser eliminadas para sempre e o trauma jamais fará parte da sua psique. A única desvantagem é que vários dias da vida dela também serão apagados de sua memória.

Langdon o encarava com uma expressão incrédula.

– Vocês provocaram a minha amnésia!

O diretor deixou escapar um suspiro, como se pedisse desculpas.

– Infelizmente, sim. Usamos substâncias químicas para induzi-la. Um pro­cedimento muito seguro. Mas, é verdade, sua memória de curto prazo foi apagada. – Ele fez uma pausa. – Enquanto estava desacordado, o senhor ficou balbuciando algo sobre uma peste e imaginamos que fosse apenas por ter visto as imagens do projetor. Nem nos passou pela cabeça que Zobrist tivesse criado uma peste de verdade. – Ele se calou por mais alguns instantes. – O senhor também não parava de balbuciar uma expressão que nos pareceu ser Very sorry. Very sorry.

Vasari. Àquela altura, isso devia ser a única coisa que Langdon havia compreendido em relação ao projetor. Cerca trova.

– Mas... Achei que a amnésia tivesse sido causada pelo ferimento à bala. Alguém me baleou.

O diretor fez que não com a cabeça.

– Ninguém o baleou, professor. O senhor não sofreu nenhum ferimento na cabeça.

– O quê?! – Por instinto, os dedos de Langdon foram até os pontos e o inchaço na parte de trás de seu crânio. – Então que porcaria é esta aqui?! – Ele levantou os cabelos para expor a parte raspada.

– Faz parte da farsa. Fizemos uma pequena incisão no seu couro cabeludo e imediatamente a fechamos com pontos. O senhor precisava acreditar que tinha sido atacado.

Isso na minha cabeça não é um ferimento à bala?!

– Quando acordasse – prosseguiu o diretor –, queríamos que o senhor acreditasse que havia pessoas querendo matá-lo... que estava correndo perigo.

– Mas havia pessoas tentando me matar!– gritou Langdon, sua fúria repentina atraindo olhares dos outros passageiros do avião. – Vi um médico ser morto a sangue-frio no hospital, o Dr. Marconi!

– Isso foi o que o senhor viu – insistiu o diretor, com um tom de voz impassível –, não o que de fato aconteceu. Vayentha estava trabalhando para mim. Ela tem uma habilidade incrível para esse tipo de trabalho.

– Matar pessoas? – perguntou Langdon.

– Não – respondeu o diretor, mantendo a calma. – Fingir que está matando pessoas.

Langdon passou um bom tempo encarando o outro homem enquanto visualizava o médico de barba grisalha e sobrancelhas fartas caído no chão com sangue esguichando do peito.

– A arma de Vayentha estava carregada com balas de festim – explicou o diretor. – Os tiros acionaram um estopim controlado por rádio que fez explodir um saco de sangue preso ao peito do Dr. Marconi. A propósito, ele está bem.

Langdon fechou os olhos, aturdido com o que ouvia.

– Mas... e o quarto do hospital?

– Um cenário improvisado às pressas – respondeu o diretor. – Professor, sei que isso tudo é muito difícil de processar. Estávamos correndo contra o tempo e o senhor estava grogue, então nada precisava ser perfeito. Quando acordou, viu o que queríamos que visse: objetos hospitalares cenográficos, uns poucos atores e uma agressão coreografada.

Langdon não conseguia acreditar.

– É isso que a minha empresa faz – disse o diretor. – Somos muito bons em criar ilusões.

– E Sienna? – indagou Langdon, esfregando os olhos.

– Precisei tomar uma decisão rápida e resolvi me aliar a ela. Minha prioridade era proteger o projeto do meu cliente da Dra. Sinskey, algo que tanto eu quanto Sienna desejávamos. Para conquistar a sua confiança, Sienna o salvou da assassina e o ajudou a fugir por um beco nos fundos do hospital. O táxi que estava parado na rua também era nosso, com um segundo estopim controlado por rádio no para-brisa traseiro para criar um último efeito durante a sua fuga. O táxi levou vocês para um apartamento que havíamos montado às pressas.

O modesto apartamento de Sienna, pensou Langdon, entendendo por que ele parecia todo mobiliado com artigos de segunda mão. Isso também explicava a feliz coincidência de o “vizinho” dela ter roupas exatamente do seu tamanho.

Tudo não passara de uma grande encenação.

Até o telefonema desesperado da amiga de Sienna no hospital tinha sido falso. Sienna, é Danikova!

– Quando o senhor telefonou para o consulado dos Estados Unidos, ligou para um número que Sienna lhe deu – falou o diretor. – O telefone que tocou fica a bordo do Mendacium.

– Nunca cheguei a falar com o consulado...

– Não, nunca.

Não saia daí, dissera-lhe o falso funcionário. Alguém irá buscá-lo agora mesmo. Então, quando Vayentha apareceu, Sienna convenientemente a vira do outro lado da rua e ligara os pontos. Robert, o seu próprio governo está tentando matá-lo! Não pode envolver nenhuma autoridade nessa história! Sua única esperança é descobrir o que significa aquele projetor.

O diretor e sua misteriosa organização – fosse ela qual fosse – tinham reprogramado Langdon de forma muito eficaz, fazendo-o parar de trabalhar para a Dra. Sinskey e começar a trabalhar para eles. A farsa tinha sido um sucesso.

Sienna me enganou feito um patinho, pensou, sentindo mais tristeza do que raiva. Durante o curto tempo que haviam passado juntos, tinha se afeiçoado a ela. Para Langdon, o mais perturbador de tudo era o inquietante mistério de como uma pessoa tão inteligente e afetuosa quanto Sienna pudesse ser capaz de abraçar de corpo e alma a solução insana de Zobrist para o problema da superpopulação.

Posso lhe afirmar sem sombra de dúvida, dissera-lhe Sienna mais cedo, que, se não houver alguma mudança drástica, o fim da nossa raça está próximo... A matemática é irrefutável.

– E as matérias de jornal sobre Sienna? – indagou Langdon, lembrando-se do programa da peça de Shakespeare e dos artigos sobre seu QI excepcionalmente alto.

– Eram autênticas – respondeu o diretor. – As melhores ilusões são aquelas que contêm o maior número possível de elementos reais. Nosso tempo era curto, então o computador de Sienna e seus arquivos pessoais reais eram quase tudo que tínhamos à disposição. Na verdade, nem era para o senhor ter visto nada daquilo, a menos que começasse a duvidar da autenticidade dela.

– Tampouco deveria ter usado seu computador – disse Langdon.

– Sim. Foi por isso que perdemos o controle. Como Sienna não imaginava que a equipe de SMI de Elizabeth Sinskey fosse capaz de encontrar o apartamento, entrou em pânico e teve que improvisar. Na esperança de manter a farsa, fugiu de scooter com o senhor na garupa. Quando a missão foi por água abaixo, não tive alternativa senão desvincular Vayentha, embora depois ela tenha quebrado o protocolo e ido atrás de vocês mesmo assim.

– Ela quase me matou – disse Langdon, contando ao diretor o confronto no sótão do Palazzo Vecchio, quando Vayentha havia empunhado a arma e apontado para seu peito.

Só vai doer por um instante... mas você não me deixa alternativa. Então Sienna correra e a empurrara por cima da balaustrada, fazendo Vayentha mergulhar para a morte.

O diretor suspirou, refletindo sobre o que Langdon acabara de lhe contar.

– Duvido que Vayentha tenha tentando matá-lo... a arma dela só disparava tiros de festim. Àquela altura, sua única chance de redenção era capturá-lo. Deve ter achado que, se lhe desse um tiro de festim, o faria entender que afinal não era uma assassina e que o senhor estava vivendo uma farsa.

O diretor ficou calado por alguns instantes, pensativo, antes de prosseguir:

– Será que Sienna realmente queria matar Vayentha ou estava apenas tentando desviar o tiro? Não me atrevo a arriscar um palpite. Estou começando a perceber que não conheco Sienna Brooks tão bem quanto pensava.

Nem eu, pensou Langdon, mas, quando se lembrou da expressão de choque e remorso no rosto dela, teve a sensação de que o que ela fizera com a agente de cabelos espetados tinha sido um erro.

Langdon se sentia desnorteado... e completamente sozinho. Virou-se para onde deveria haver uma janela, ansiando olhar para o mundo lá embaixo, mas tudo o que viu foi a fuselagem da aeronave.

Preciso sair daqui.

– O senhor está bem? – indagou o diretor, encarando-o com um olhar preocupado.

– Não – respondeu Langdon. – Nem um pouco.

Ele vai sobreviver, pensou o diretor. Só está tentando processar a nova realidade.

O professor americano parecia ter sido arrebatado por um tufão, girado de um lado para outro e depois largado em uma terra desconhecida, aturdido.

Os alvos das atividades do Consórcio raramente desvendavam a realidade por trás das encenações que presenciavam e, quando isso acontecia, o diretor nunca estava presente para ver as consequências. Desta vez, no entanto, além da culpa que sentia ao testemunhar em primeira mão a perplexidade de Langdon, ele também carregava nos ombros um avassalador senso de responsabilidade por aquela crise.

Aceitei o cliente errado. Bertrand Zobrist.

Confiei na pessoa errada. Sienna Brooks.

Agora, o diretor voava para o olho do furacão – o epicentro do que poderia muito bem ser uma peste mortal, com potencial para instaurar o caos no mundo inteiro. Se saísse vivo daquela situação, desconfiava que o seu Consórcio não fosse resistir às suas devastadoras consequências. Os inquéritos e acusações seriam infindáveis.

Será este o meu fim?