Era o aniversário de Elizabeth e ele estava a confecionar-lhe uma refeição indiana. Gillon, Bill, Pauline e Jane Wellesley viriam a Wimbledon para este pequeno jantar comemorativo. Ele queria que fosse para ela uma noite especial. Ela estava a dar-lhe muito e ele só podia dar-lhe muito pouco, mas pelo menos podia confecionar esta refeição. Não contou a ninguém o que Greenup lhe dissera. Haveria tempo para isso noutro dia. Este dia, 9 de janeiro, era para a mulher que amava. Estavam juntos havia cinco meses.
Depois do aniversário dela, adoeceu. Durante vários dias teve febres altas e esteve de cama. Enquanto estava ali deitado, a arder e a tremer, as notícias, tanto privadas como públicas, pareciam ser um aspeto da sua doença. A assistente de Andrew, Susan, tinha falado com Marianne, que lhe disse que estava bem, e com certeza estava, mas ele agora não podia dar atenção a isso. A polícia dizia-lhe que, devido à «ameaça específica», as suas atividades teriam de ser ainda mais restritas. Tinham-lhe pedido para ir a vários programas televisivos, Wogan, Question Time, mas não seria autorizado. Haviam-lhe pedido para falar a um grupo da Câmara dos Comuns, mas eles não queriam levá-lo ao Palácio de Westminster. Podiam ser-lhe permitidos uns quantos serões em casa de amigos, mas nada mais. Ele sabia que se recusaria a aceitar isto, mas naquela altura estava demasiado doente para discutir. Noite adentro, estava ele na cama, febril, a televisão trouxe-lhe a notícia do início da Guerra do Golfo, do grande ataque aéreo ao Iraque. Depois o Iraque atacou Israel com mísseis Scud, que miraculosamente não mataram ninguém e, felizmente, não estavam armados com ogivas químicas. Passou dias num semidelírio de sono, febre e imagens de bombardeamentos cirúrgicos. Houve telefonemas, alguns atendidos e outros não, muitos pesadelos e acima de tudo a sua constante angústia relativamente às declarações de que «se tornara muçulmano». Sameen estava a achar isso muito difícil de aceitar e alguns dos telefonemas eram dela. Durante dois anos ele tinha vindo a descer uma estrada rumo ao âmago das trevas e agora estava lá, no inferno. Deixara os seus amigos perplexos e forçara-se a postar-se, sorridente, ao lado daqueles que o tinham caluniado e ameaçado outros, gente que aquiescera à ameaça de morte feita pelo Irão, a que Iqbal Sacranie, por exemplo, tinha chamado «a sua retribuição divina». O «intelectual» Tariq Modood escreveu-lhe uma carta dizendo que ele não devia voltar a falar na fatwa. «Os muçulmanos acham-no repulsivo», dizia Modood. O Ocidente tinha usado a fatwa para diabolizar os muçulmanos, de maneira que seria «repulsivo» da parte dele continuar a opor-se a ela. Este Modood apresentava-se como um moderado, mas semelhante hipocrisia tornava-lhe impossível pensar em linha reta. E era esta a gente que ele já não podia contrariar porque arrancara a língua. Outro «moderado», Akbar Ahmed, telefonou a dizer que os «duros» podiam estar lentamente a ceder, mas ele tinha de ser «muito conciliador», um «sadha [simples] muçulmano». Ele respondeu que havia uma porção muito limitada de merdas que estivesse disposto a engolir.
Caro Deus,
Se existes, e és como Te descrevem, omnisciente, omnipresente e acima de tudo todo-poderoso, não estremecerias por certo no Teu trono celestial quando confrontado com um simples livro e o seu escrevinhador. Os grandes filósofos muçulmanos discordaram muitas vezes acerca da Tua relação precisa com os seres humanos e as ações humanas. Ibn Sina (Avicena) sustentou que Tu, por estares muito acima do mundo, estavas limitado a conhecê-lo apenas em termos muito gerais e abstratos. Ghazali discordava. Qualquer Deus «aceitável pelo islão» conheceria em pormenor tudo o que se passava na superfície da terra e teria uma opinião sobre isso. Pois bem, Ibn Rushd não alinhava nisso, como Tu saberias se Ghazali tivesse razão (e não se Ibn Sina ou Ibn Rushd a tivessem). A alegação de Ghazali tornar-Te-ia demasiado semelhante aos homens, argumentava Ibn Rushd – semelhante a homens com as suas tolas discussões, as suas pequenas dissensões, os seus mesquinhos pontos de vista. Estaria abaixo de Ti, e diminuir-Te-ia ser arrastado para os assuntos humanos. Portanto, é difícil saber o que pensar. Se és o Deus de Ibn Sina e Ibn Rushd, nem sequer sabes o que está a ser dito e feito neste preciso momento em Teu nome. Contudo, mesmo que sejas o Deus de Ghazali, lendo os jornais, vendo televisão, tomando partido em disputas políticas e até literárias, não acredito que tivesses problema algum com Os Versículos Satânicos ou qualquer outro livro, por mais deplorável que fosse. Que espécie de Todo-poderoso poderia deixar-se abalar por uma obra do Homem? Pelo contrário, Deus, se por acaso Ibn Sina, Ghazali e Ibn Rushd estiverem todos enganados e Tu não existires mesmo, também nesse caso, também nessa altura não terias problemas com escritores ou com livros. Concluo que os meus problemas não são Contigo, Deus, mas sim com os Teus servos e seguidores na Terra. Uma distinta romancista disse-me uma vez que tinha deixado de escrever ficção porque não gostava dos seus fãs. Pergunto a mim mesmo se não te solidarizarás com a sua posição. Obrigado pela Tua atenção (a menos que não estejas a ouvir: ver acima).
O «tornar-se muçulmano» instigou alguns sujeitos dos Negócios Estrangeiros a propor que ele defendesse um terrorista. Recebeu uma mensagem a sugerir que podia intervir no julgamento de Kokabi. Mehdrad Kokabi, um «estudante», era acusado de fogo posto e de provocar explosões em livrarias que vendiam Os Versículos Satânicos. A acusação dizia que tinham encontrado impressões digitais suas no papel em que estavam embrulhadas duas bombas de canos, e que ele tinha utilizado o cartão de crédito para alugar automóveis utilizados nos ataques. Talvez, foi-lhe alvitrado, fosse um gesto simpático do autor de Os Versículos Satânicos pedir clemência no caso. Ofendido com a sugestão, falou com Duncan Slater e David Gore-Booth. Ambos discordaram da ideia. Isto foi ligeiramente tranquilizador, mas dois meses depois todas as acusações contra Kokabi foram subitamente retiradas e recomendou-se a sua deportação para o Irão. O governo desmentiu que tivesse pressionado a cega Justiça. Slater e Gore-Booth disseram nada saber sobre isso. Kokabi regressou ao Irão, onde foi recebido como herói e presenteado com um novo emprego. Passou a estar a seu cargo a escolha de «estudantes» a serem colocados no estrangeiro.
Tinham chegado as provas tipográficas da sua coletânea de ensaios, Pátrias Imaginárias. Bill disse: «Agora que fizeste esta coisa, talvez devêssemos incluir o teu ensaio no livro.» Ele tinha publicado uma peça no Times de Londres a tentar justificar as concessões que fizera em Paddington Green. Detestava a peça, e estava já a repensar tudo o que fizera, mas, depois de ter posto essa cruz às costas estava, pelo menos para já, incapacitado de se libertar dela. Concordou com Bill e o ensaio entrou com o título «Porque Sou Muçulmano». Durante o resto da vida nunca veria um exemplar de capa dura de Pátrias Imaginárias sem sentir uma punhalada de embaraço e remorso.
A guerra preenchia o pensamento de todos e, quando não repetiam que ele devia «retirar o insulto» (pôr termo à publicação de Os Versículos Satânicos), os «líderes» muçulmanos britânicos – Siddiqui, Sacranie, os mulás de Bradford – expressavam a sua solidariedade com Saddam Hussein. Aproximava-se o segundo aniversário da fatwa e o inverno era rigoroso e frio. Fay Weldon mandara-lhe um exemplar de Sobre a Liberdade, de John Stuart Mill, talvez como reprimenda, mas as suas palavras claras e vigorosas eram para ele mais inspiradoras que nunca. O seu desdém pelo mais teimoso dos seus opositores – por Shabbir Akhtar, pelos seus ataques à inexistente «inquisição liberal» e pelo seu orgulho no islão como religião da «ira militante» – tinham renascido, juntamente com uma nova antipatia de alguns dos seus supostos apoiantes, que agora julgavam que ele não era merecedor de ser apoiado. James Frenton escreveu uma peça simpática na New York Review of Books a defendê-lo contra o fenómeno dos «Amigos Consternados». Se o «Salman de sonho» que havia no espírito das pessoas fora traído pelas ações do Salman verdadeiro, começavam agora a pensar estes Consternados, ora bolas, que fosse para o diabo, não era digno da sua amizade. Mais valia deixar os assassinos levarem a sua avante.
Estava a recordar-se de uma coisa que Günter Grass certa vez lhe dissera sobre a derrota: que ela nos dava lições mais profundas do que a vitória. Os vencedores julgavam-se justificados e validados, tal como as suas visões do mundo, e não aprendiam nada. Os perdedores eram obrigados a reavaliar tudo aquilo que antes pensavam ser verdadeiro e merecedor de combate, e assim dispunham de uma oportunidade para aprender, da maneira mais difícil, as lições mais profundas que a vida tinha para dar. A primeira coisa que ele aprendeu foi que agora sabia onde ficava o fundo. Quando batíamos no fundo ficávamos a saber a verdadeira profundidade da água em que estávamos. E sabíamos que nunca mais queríamos voltar a estar lá.
Ele começava a aprender a lição que o poria em liberdade: que estar preso pela necessidade de ser amado era estar encerrado numa cela na qual se experimentava um interminável tormento e da qual não havia fuga. Precisava de compreender que havia pessoas que nunca o amariam. Por mais detidamente que ele explicasse a sua obra ou clarificasse as suas intenções ao criá-la, não o amariam. A mente irracional, impulsionada pelos absolutos da fé, isentos de dúvidas, não podia ser convencida pela razão. Aqueles que o tinham diabolizado nunca diriam: «Olhem, afinal ele não é nenhum diabo.» Precisava de compreender que isso nada tinha de mal. Ele também não gostava dessa gente. Desde que tivesse a certeza daquilo que escrevera e dissera, desde que se sentisse bem com a sua própria obra e com as suas posições públicas, podia suportar que não gostassem dele. Tinha apenas feito algo que o levara a sentir-se muito mal consigo próprio. Iria retificá-lo.
Estava a aprender que, para vencer um combate destes, não bastava saber contra o que se combatia. Isso era fácil. Estava a lutar contra a perspetiva de que as pessoas podiam ser mortas pelas suas ideias, e contra a capacidade de qualquer religião de pôr limites ao pensamento. Mas precisava, agora, de ter a certeza daquilo por que lutava. Liberdade de expressão, liberdade de imaginação, libertação do medo, e a bela e antiga arte da qual tinha o privilégio de ser praticante. E também o ceticismo, a irreverência, a dúvida, a sátira, a comédia e o gozo profano. Nunca mais voltaria a vacilar na defesa dessas coisas. Tinha feito uma pergunta a si próprio: Ao travares uma batalha que pode custar-te a vida, merece a causa por que estás a lutar que dês a vida por ela? E achara possível responder: sim. Estava pronto a morrer, se fosse necessário morrer, por aquilo a que Carmen Callil chamara «um livro dos diabos».
Nenhum dos seus verdadeiros amigos reagiu como os Consternados. Aproximaram-se mais que nunca e tentaram ajudá-lo naquilo que percebiam como um profundo trauma da mente e do espírito: uma crise existencial. Anthony Barnett telefonou, muito preocupado: «Precisamos de te arranjar um grupo de amigos e conselheiros», disse ele. «Não podes passar por tudo isto sozinho.» Ele explicou a Anthony que, para falar com franqueza, tinha mentido quando fizera a afirmação da crença religiosa. Disse a Anthony: «Quando escrevi os Versículos estava a dizer: temos de ser capazes de falar assim da religião, temos de ser livres de criticar e historicizar.» E se agora tinha de fingir que esse nós queria dizer nós, os muçulmanos, estava amarrado a isso. Por enquanto. Era o preço daquilo que tinha feito.
«É precisamente contra esse género de bem-intencionada deturpação da verdade», disse Anthony, «que os teus amigos devem aconselhar-te.»
Ele precisava de se refugiar num sítio qualquer e pensar. Apresentou um pedido para ir passar umas breves férias a França, mas os franceses não o queriam no seu solo. Os americanos continuavam relutantes em tê-lo no deles. Não havia saída da caixa. Houve, contudo, uma boa notícia. A «ameaça específica» contra ele era agora considerada um embuste. O Sr. Greenup veio dizer-lhe, alertando-o, que o perigo era ainda elevado – «há elementos apoiados pelo Irão que continuam a procurá-lo» – e dar-lhe um rebuçado. Ele podia começar a procurar uma nova casa, permanente. «Talvez dentro de uns meses possamos fazer uma avaliação mais otimista.» Isto animou-o um bocado.
Gillon telefonou-lhe no dia 15 de fevereiro. A fatwa tinha sido renovada. O governo britânico manteve-se em silêncio.
***
Bill Buford e Alicja tinham decidido casar-se e Bill pediu-lhe para ser o padrinho. A receção iria ser no restaurante Midsummer House, em Midsummer Common, em Cambridge. Phil Pitt foi lá para «fazer um reconhecimento» e, sem falar com Bill nem com o proprietário, Hans, declarou que o restaurante não era adequado. Pela primeira vez ele perdeu as estribeiras com os polícias e disse-lhes que não lhes competia a eles decidir se ele podia ser ou não padrinho de casamento do amigo. Assim, Phil acabou mesmo por falar com Bill e descobriu que tinha uma informação errada – a hora errada, a sala errada – e de repente o local era, afinal, adequado. «Nós é que somos os especialistas, Joe», disse ele. «Confie em nós.»
A irmã de Nigella, Thomasina, tinha cancro da mama. Foi imediatamente operada. Tiraram-lhe um quarto do seio. Mais tarde teria de fazer quimioterapia. Ouviu Marianne na BBC Radio Four protestar que o amava mas que ele estava tão obcecado com «a situação» que não havia espaço para mais ninguém, e fora essa a razão para se separarem. Definiu-se a si própria como «esta mulher brilhante». Perguntaram-lhe como estava a lidar com a vida e ela respondeu: «Vou-a fazendo à medida que avanço.»
A fatwa estava a prejudicar mais que uma vida. O diretor da Hall School, a escola onde Zafar andava, Paddy Heazell, estava preocupado com ele. «Parece ter um muro à sua volta. Não há nada que o penetre.» Talvez fosse boa ideia levá-lo a um psiquiatra do Hospital da Great Ormond Street. Era um rapaz inteligente e encantador, mas havia qualquer coisa nele que parecia estar adormecida. Fechava-se em si mesmo e achava-se um «falhado». Combinou-se que uma psiquiatra infantil veria Zafar uma vez por semana, a seguir à escola. Contudo, o Sr. Heazell foi tranquilizador quanto às hipóteses de Zafar entrar na sua escola secundária preferida, Highgate, porque Highgate apostava na importância das entrevistas aos futuros alunos, em lugar de se basear simplesmente nos resultados dos exames de admissão. «O Zafar desenvencilhar-se-ia sempre bem numa entrevista», disse o Sr. Heazell. No entanto, sublinhou que precisavam de fazê-lo sair da atual escuridão. «Ele está encurralado», disse o Sr. Heazell a Clarissa, «e não quer sair.» Nesse fim de semana Clarissa comprou um cão a Zafar, um cachorro filho de um cruzamento de cão pastor escocês com setter vermelho chamado Bruno. O cão foi importante e ajudou. Zafar ficou todo entusiasmado.
Ele tinha deixado novamente de fumar, mas a sua determinação estava prestes a ser posta à prova. Foi informado de novas precauções de segurança. Havia algum tempo que um elemento da equipa ia levantar o correio ao gabinete de Gillon e o trazia, mas agora queriam que ele passasse novamente pela Scotland Yard porque o seu transporte direto da agência para Wimbledon era demasiado arriscado. Além disso iam pôr um «duplo reencaminhamento» no telefone dele para tornar mais difícil a localização das chamadas. Parecia que a tarraxa estava a ser apertada com mais força, mas ele não sabia porquê. Foi então que o Sr. Greenup lhe veio dizer porquê. Uma «equipa de profissionais» tinha aceitado um contrato para o matar. Estavam envolvidas avultadas quantias. A pessoa que estava por detrás disso era «um funcionário governamental iraniano fora do Irão». Os britânicos não sabiam ao certo se se tratava de um plano sancionado ou de uma operação independente, mas estavam preocupados devido à extrema confiança do esquadrão da morte, que tinha prometido levar a cabo o assassínio no espaço de quatro a seis meses. «Na verdade, acham que podem matá-lo dentro de menos de cem dias.» O Special Branch não acreditava que a casa de Wimbledon tivesse sido comprometida, mas dadas as circunstâncias seria preferível que ele se mudasse imediatamente. Zafar era um «problema», e teria de ser-lhe atribuída vigilância policial. Elizabeth era igualmente um «problema». Podia ser necessário transferi-lo para uma base militar, ficando a viver numa caserna durante meio ano. Se ele optasse por ir para uma casa segura dos Serviços de Segurança, ficaria isolado de todo o contacto com o mundo exterior. No entanto, isto não alterava o acordo segundo o qual podia começar a procurar um lar permanente. Uma vez passados os próximos meses, isso seria aceitável.
Ele recusou a base militar e a casa segura isolada. Se a casa de Wimbledon não tinha sido comprometida, não havia razão para não ficar lá. Porque havia ele de perder meses de renda e ver-se novamente em bolandas se eles não acreditavam que a casa tivesse sido «exposta»? O rosto do Sr. Greenup manteve a habitual máscara inexpressiva. «Se quer viver», disse, «vai-se mudar.»
– Papá – perguntou Zafar ao telefone –, quando é que vais ter um sítio permanente para morar?
Se por acaso vivesse para contar a história, pensou, que história de afetuosa amizade seria! Sem os amigos teria sido encerrado numa base militar, incomunicável, esquecido, afundando-se em espiral na loucura; ou então seria um vagabundo sem lar, a aguardar que a bala do assassino o encontrasse. O amigo que o salvou então foi James Fenton. «Podes ficar com esta casa», disse ele, assim que foi solicitado, «por um mês, em todo o caso.»
Depois de uma vida em cheio passada a saltar para cima do primeiro tanque vietcongue que entrou em Saigão no final da Guerra do Vietname, a juntar-se à multidão que saqueava o Palácio Malacañang para festejar a queda do presidente Marcos e Imelda dos Sapatos (trouxe de lá algumas toalhas com monograma), a investir parte do dinheiro que recebeu pelo trabalho em letras nunca usadas para a produção original de Les Misérables numa cultura de camarões nas Filipinas, e a viajar um pouco traumaticamente em Bornéu com o ainda mais aventureiro Redmond O’Hanlon (quando O’Hanlon lhe pediu mais tarde para ir com ele à Amazónia, James respondeu: «Não iria contigo nem a High Wycombe.») – ah, e fazendo alguma da melhor poesia de amor e guerra que se escreveria em qualquer geração –, o poeta Fenton e o seu parceiro, o escritor americano Darryl Pinckney, tinham-se instalado na Long Leys Farm, uma confortável propriedade rural em Cumnor, nos arredores de Oxford, e James ocupara-se ali a criar o mais requintado dos jardins à francesa debaixo da sombra ameaçadora de um gigantesco poste de eletricidade. Era esta a casa que agora oferecia ao seu amigo fugitivo, cujo recente Erro Tremendo ele tratara por escrito com brandura e cortesia, descrevendo como, ao serem publicadas as notícias sobre o Erro, «um número compreendido entre seis e sessenta milhões de leitores de jornais em todo o mundo pousaram as suas chávenas de café e disseram: Oh. Mas esse Oh que foi pronunciado tinha o seu próprio sabor, o seu próprio modificador, o seu próprio cambiante de significado… Oh, com que então acabaram por apanhá-lo! Oh, que cómodo! Oh, que derrota para o secularismo! Oh, que vergonha! Oh, Alá seja louvado. Pela parte que me toca, o Oh que se escapou dos meus lábios começou a vida como uma vibrante nuvenzinha cor de cereja de espanto. Por uns segundos, enquanto ela pairava no ar, pareceu-me detetar na nuvem as feições desalentadas de Galileu. Olhei novamente e Galileu parecia ter-se transformado em Patty Hearst. Pensei em Oslo… não, em Oslo não, na síndrome de Estocolmo». O resto da longa peça, aparentemente uma recensão de Harun e o Mar de Histórias para a New York Review of Books, apresentava o retrato do autor como um bom homem – ou pelo menos uma pessoa com quem era agradável conversar –, sendo o seu propósito não declarado restaurar, com imensa delicadeza e sem dizer que o fazia, o bom caráter desse autor aos olhos dos Amigos Consternados. O artigo fora já prova substancial do grande coração de James. Deixar a sua casa provou algo mais: a sua compreensão da necessidade de solidariedade no meio de uma guerra. Não se abandonavam os amigos quando eles estavam debaixo de fogo.
O Sr. Greenup deu a contragosto o seu consentimento à mudança para Long Leys Farm. «O Sr. Anton» suspeitava que o oficial da polícia teria gostado bastante de o enclausurar numa base militar para o castigar por todas as complicações que causara, por toda a despesa pública que tinha originado, mas em lugar disso o pequeno carnaval da Operação Malaquite teve de fazer as malas e trocar Londres SW 19 pelos jardins à francesa de Cumnor sob o seu poste guardião, que cavalgava o seu estreito mundo como um colosso.
Viu que Elizabeth estava angustiada. A tensão dos últimos desenvolvimentos tinha esbatido a radiância do seu sorriso. A imagem de um esquadrão de assassinos tão certo de alcançar o seu alvo que era capaz de fornecer uma data limite para o ato teria feito muitas mulheres fugirem, exclamando: «Desculpa, mas esta não é a minha luta.» Elizabeth, porém, enfrentou isso com bravura. Manteria o seu emprego em Bloomsbury e visitá-lo-ia aos fins de semana. Aliás, estava a ponderar deixar o emprego para não precisarem de estar separados, e porque queria escrever. Era também poetisa, embora tivesse relutância em mostrar-lhe a sua obra. Tinha-lhe mostrado um poema sobre um homem num monociclo e ele achara-o bastante bom.
Mudou-se para Cumnor e durante uns tempos foi impossível ver Zafar ou visitar quaisquer amigos londrinos. Estava a tentar compor na cabeça um romance provisoriamente intitulado O Último Suspiro do Mouro, mas os seus pensamentos não se fixavam em coisa nenhuma e foi dar a uma série de becos sem saída. Tinha a intuição de que o romance combinaria de alguma forma a história de uma família indiana com a narrativa andaluza da queda de Granada, do último sultão Boabdil a deixar o Alhambra e, como a mãe do sultão dizia desdenhosamente, «chorando como um mulher por aquilo que ele não soubera defender como um homem» ao contemplar o sol a pôr-se no último dia da Espanha árabe, mas não conseguia encontrar a ligação. Lembrou-se de Mijas, para onde a mãe de Clarissa, Lavinia, emigrara, e do livro que ele lá tinha encontrado, da autoria de Ronald Fraser, sobre a vida de Manuel Cortés, presidente de Câmara de Mijas quando rebentara a guerra civil. Depois da guerra Cortés regressara a casa e tivera de se esconder de Franco durante trinta anos até emergir, como Rip van Winkle43, para testemunhar a dilapidação da Costa del Sol com empreendimentos de turistas de pulseira. O nome do livro era In Hiding.
Pensou em Picasso e escreveu um estranho parágrafo sobre o bairro de Málaga onde o grande homem nascera. Na praça há crianças a brincar, crianças com ambos os olhos do mesmo lado do nariz. Jogam a Arlequim e Pierrot. Uma bomba como uma lâmpada trespassa um cavalo que grita. Há jornais colados nos flancos de uma guitarra negra. As mulheres transformam-se em flores. Há fruta. A tarde está quente. O artista morre. Fazem-lhe um caixão torto, uma colagem de céu e impressos. Ele bebe no seu próprio funeral. As suas mulheres sorriem e cospem e levam o seu dinheiro.
Este artista não chegou a entrar no romance, mas no final veio a compreensão: seria um romance sobre artistas, e o Alhambra e a Andaluzia seriam pintados por uma mulher indiana, postada no cimo de Malabar Hill, em Bombaim. Os dois mundos encontrar-se-iam na arte.
Encheu uma agenda com um relato beckettiano ou talvez kafkiano na primeira pessoa escrito por um homem que era regularmente espancado, que era mantido num compartimento às escuras por captores desconhecidos que entravam na escuridão para lhe baterem todos os dias. Não era o que queria escrever, mas estas passagens sobre espancamentos estavam constantemente a aparecer. Um dia houve um bruxulear de luz e ele escreveu um parágrafo cómico em que o seu narrador tentava descrever a primeira vez que os pais tinham feito amor, mas estava demasiado envergonhado para incluir verbos, por isso não vão saber, dizia ele, dos pormenores do que aconteceu quando ela, e depois ele, e depois ambos, depois do que, ela, ao que ele, e, em resposta a isso ela, e com isso, e além disso, e por um certo tempo, e depois por mais tempo ainda, e em silêncio, e ruidosamente, e quando já não podiam mais, e por fim, e depois… Este trecho entraria no livro acabado. A maior parte do resto era ganga.
Valeria Herr tivera um alarme de cancro, mas a biopsia revelou que não era maligno. Graças a Deus, Jim, pensou ele. Angela Carter teve menos sorte. O cancro tinha-a sob o seu domínio e, embora ela o combatesse denodadamente, no fim não conseguiu vencê-lo. Por todo o mundo morriam escritores ainda jovens: Italo Calvino, Raymond Carver, e agora era Angela que lutava com a Ceifeira. Uma fatwa não era a única maneira de morrer. Havia espécies de sentenças de morte mais antigas que ainda funcionavam muito bem.
***
A edição de bolso de Os Versículos Satânicos foi publicada na Holanda, na Dinamarca e na Alemanha. No Irão houve uma conferência de estudiosos muçulmanos a pedir que a ordem de morte de Khomeini fosse executada quanto antes. A Fundação 15 Khordad, uma organização quase não-governamental, chefiada pelo aiatola Hassan Sanei, que estava por detrás da oferta de uma recompensa, disse que pagaria 2 milhões de dólares a qualquer amigo, parente ou vizinho do autor que concretizasse a ameaça. (As bonyads, ou fundações, eram primitivamente instituições de beneficência que, após a revolução de Khomeini, se serviram dos bens apreendidos ao Xá e a outros «inimigos do Estado» para se tornarem gigantescos consórcios comerciais chefiados por clérigos importantes.) «Há imensos escritores com falta de dinheiro», disse ele a Andrew. «Talvez devêssemos levar isto a sério.»
Não havia notícia do paradeiro dos esquadrões de assassinos. Havia cinco meses que o governo britânico nada dizia sobre a fatwa.
Ele falou com Bill Buford dos problemas de encontrar e adquirir uma nova residência de longo prazo. Bill teve uma ideia genial. Rea Hederman, o diretor da New York Review of Books e da Granta, tinha ao seu serviço uma espécie de topa-a-tudo pessoal, um tal Sr. Fitzgerald, conhecido por toda a gente como «Fitz», cuja eficiência e cujo ar sólido e grisalho o tornariam um testa de ferro ideal. Ninguém suspeitaria alguma vez que Fitz estivesse envolvido numa coisa tão estranha como o caso Rushdie. Perguntou a Hederman se não haveria problema em envolver Fitz, e Rea concordou de imediato. Mais uma vez, o círculo de amigos encontrava soluções que as autoridades se mostravam incapazes ou reticentes em propor. Fitz iniciou a busca e não tardou a descobrir uma casa em Highgate, perto de Londres, dotada de um pátio fronteiro com portão, uma garagem incorporada, espaço bastante para os dois oficiais da equipa de proteção e ambos os condutores dormirem lá e um jardim substancial e isolado, que lhe permitiria sentir-se um pouco menos como uma toupeira num buraco. Teria possibilidades de sair – para a luz do sol, ou mesmo para a chuva, ou para a neve. A casa, em Hampstead Lane, estava imediatamente disponível para aluguer e os proprietários, cujo nome era Busara, estavam dispostos a negociar também a venda. A polícia foi vê-la e achou-a ideal. O contrato de arrendamento foi firmado de imediato, em nome de Rea Hederman. Joseph Anton foi posto em naftalina por uns tempos.
Tudo o que importava era que ele teria um sítio para onde ir. Estava-se em fins de março. Saiu de Long Leys Farm, abraçando gratamente James e Darryl ao devolver-lhes a casa, e ele e Elizabeth passaram o fim de semana na casa de Deborah Rogers e Michael Berkeley no País de Gales. Ei-lo com amigos pela primeira vez em semanas. Deb e Michael estavam lá, acolhedores como sempre, e Ian McEwan tinha aparecido com os seus dois jovens filhos. Caminharam pelas colinas e comeram uma deliciosa lasanha de carne. Na segunda-feira mudar-se-ia para a nova casa. Mas antes havia o domingo. Michael saiu de manhã e foi comprar os jornais. Voltou com uma expressão perturbada. «Lamento», disse. «É muito mau.»
Marianne tinha dado uma entrevista ao Sunday Times. O jornal pusera-a na primeira página. mulher de rushdie diz que ele é obcecado consigo próprio e vaidoso, por Tim Rayment. «A mulher de Salman Rushdie denunciou-o ontem como um homem fraco e obcecado consigo próprio, que não conseguiu estar à altura do papel que a história lhe tinha dado… “Todos nós que o amamos, que lhe fomos dedicados, que fomos seus amigos, esperávamos que o homem estivesse a altura do acontecimento. É esse o segredo que todos estão a tentar manter oculto. Não está. Não é o homem mais corajoso do mundo, antes fará o que for preciso para salvar a vida.”» Havia muito, muito mais. Ela dizia que ele lhe dissera fazer tenção de se encontrar com o coronel Khadafi, e fora então que ela soubera «que não queria estar casada com ele». Era interessante que agora desmentia a sua anterior alegação de que, quando se separaram, o Special Branch a deixara abandonada na província inglesa ao pé de uma cabina telefónica. Não, isso não tinha acontecido, mas não dizia o que acontecera. Acusava-o de deixar «mensagens aos gritos» no telefone, de manipular a imprensa, e de se desinteressar da questão mais ampla da liberdade de expressão. «A grande falácia que ele cometeu foi pensar que era ele a questão. Nunca o foi. As questões eram a liberdade de expressão e a sociedade racista da Grã-Bretanha, e ele não deu a cara por isso. Aquilo de que tem falado nos últimos dois anos é da carreira de Salman Rushdie.»
Ela era uma oradora eloquente e aquilo era um ataque que feria. Ele compreendia o que ela estava a fazer. As pessoas sabiam que fora ele a pôr termo ao casamento, e ela calculara que, se lhe chamasse um fraco e cobarde amante de Khadafi e carreirista, se conseguisse apagar os seus anos de envolvimento nas questões da livre expressão e da liberdade no PEN britânico e noutros grupos, se pudesse obliterar a imagem do jovem vencedor do Booker Prize que, na manhã seguinte à sua conquista, estava postado com um cartaz à porta de Downing Street para protestar contra a prisão do grande escritor indonésio Pramoedya Ananta Toer, podia fazê-lo parecer, ao público que já o via com maus olhos, um homem que não era digno de que se estivesse com ele, um homem que qualquer mulher decente teria de deixar. Estava a pronunciar as suas falas de saída.
Ele pensou: Fui eu que lhe dei as armas para ela me atacar. A culpa não é dela. É minha.
Os seus amigos – Michael Herr, Alan Yentob, Harold Pinter – telefonaram ou escreveram para expressar a sua ira e desapontamento. Ela viu que a entrevista não estava a surtir o efeito que pretendia e tentou as desculpas do costume: que a tinham citado incorretamente, que fora «traída» pelo jornal, tinha estado a publicitar a sua nova coletânea de histórias, quisera falar sobre o trabalho da Amnistia Internacional; e acrescentava que o marido lhe tinha «arruinado a carreira». Estes argumentos também não caíram bem.
Pátrias Imaginárias tinha sido publicado e fora maioritariamente tratado com respeito, admiração até, mas quase todos lamentavam o ensaio final sobre a sua suposta «conversão». Tinham razão. Pensou: Tenho de desfazer o Tremendo Erro. Tenho de desdizer o que disse. Enquanto não o fizer não posso viver com honra. Sou um homem sem religião a fingir que é religioso. «Ele fará tudo para salvar a vida», diz Marianne. Neste momento isso parece exato. Tenho de o tornar inexato.
Toda a vida soubera que havia um pequeno espaço isolado no centro do seu ser no qual mais ninguém podia entrar, e que toda a sua obra e as melhores ideias fluíam desse lugar secreto de uma maneira que ele não compreendia totalmente. Agora a luz brilhante da fatwa tinha irrompido através das cortinas dessa pequena habitação e o seu ser secreto estava nu debaixo desse clarão. Homem fraco. Não era o homem mais corajoso do mundo. Seja, pensou ele. Nu, sem artifícios, resgataria o seu bom nome; e tentaria executar uma vez mais o truque mágico da arte. Era aí que residia a sua verdadeira salvação.
Era uma casa grande, cheia de mobílias feias, mas de aspeto sólido, duradouro. Era possível imaginar um futuro. Se Zafar entrasse para a Highgate School, ficaria perto. Elizabeth, que gostava de Hampstead Heath acima de tudo no mundo, estava contente por viver na sua orla norte. Ele começou a ser capaz de fazer algum trabalho e nesse mês de abril escreveu um conto, «Cristóvão Colombo e a Rainha Isabel de Espanha Consumam a Sua Relação», o seu primeiro conto depois de um longo intervalo, e o nevoeiro de desconhecimento que lhe ocultara O Último Suspiro do Mouro começara a dissipar-se. Tomou nota de nomes. Morais Zogoiby, conhecido como o Mouro. A sua mãe Aurora Zogoiby era a pintora. A família era de Cochim, onde pela primeira vez o Ocidente se encontrara com o Oriente. Os navios do ocidente não vinham conquistar, mas sim negociar. Vasco da Gama procurava a pimenta, o Ouro Negro do Malabar. Agradava-lhe a ideia de que toda a complexa ligação da Europa e da Índia nascera de um grão de pimenta. Desenvolveria o seu livro também a partir de um grão de pimenta. Os Zogoibys seriam uma família de mercadores de especiarias. Meio cristão, meio judeu, uma «castanha de catjud», o Mouro seria quase uma minoria de um. O livro, porém, tentaria mostrar que toda a realidade indiana podia nascer desse pequeno pimenteiro. A autenticidade não pertencia unicamente à maioria, como começavam a insistir os políticos hindus maioritários da Índia. Toda a pessoa indiana, todas as histórias indianas, eram tão autênticas como quaisquer outras.
Porém, ele tinha o seu próprio problema de autenticidade. Não podia ir à Índia. Como podia, então, escrever um livro verdadeiro sobre ela? Recordou-se do que lhe dissera o seu amigo Nuruddin Farah – Nuruddin, cujo exílio da Somália tinha durado vinte e dois anos, porque o ditador Mohammed Siad Barre o queria ver morto. Todos os livros que Nuruddin escreveu no exílio decorriam numa Somália naturalisticamente retratada. «Conservo-a aqui», dizia Nuruddin, designando o coração.
Em maio, os dois imãs do Regent’s Park que tinham estado em Paddington Green declararam que ele não era um verdadeiro muçulmano porque se recusava a retirar o livro. Houve outros «líderes» que anunciaram o seu «desapontamento» e disseram: «Voltamos à estaca zero.» Ele escreveu uma cáustica resposta e publicou-a no Independent. Isso fê-lo sentir-se muito melhor. Sentiu que se erguia uma ou duas polegadas do fundo e começava a longa jornada de regresso a si próprio.
A Article 19 tinha andado a ponderar se valia a pena continuar a financiar o trabalho a favor da Comissão de Defesa de Rushdie. Frances e Carmel, contudo, estavam determinadas a prosseguir e, se possível, levar a campanha a um novo nível, mais público. À medida que o governo britânico se deixava cair na apatia relativamente à questão, o que encorajava os parceiros europeus da Grã-Bretanha a seguirem-lhe o exemplo seria a campanha de defesa que teria de tomar a seu cargo o combate. Frances levou Harold Pinter, Antonia Fraser e Ronnie Harwood a uma reunião nos Negócios Estrangeiros com Douglas Hurd, que lhes disse que quando a ministra conservadora Lynda Chalker visitara o Irão em abril não abordara o assunto da fatwa com ninguém. Fazê-lo, dizia Hurd, «não seria necessariamente útil ao Sr. Salman Rushdie». Tinham começado a circular rumores na imprensa de que um «esquadrão da morte» entrara no país para perseguir o Sr. Rushdie, mas o Sr. Hurd estava determinado a ser sinistramente útil mantendo-se calado. Douglas Hogg, que substituíra William Waldegrave como subsecretário de Hurd, disse também que seria um erro da parte do governo britânico fazer estardalhaço sobre a fatwa, e tornar-lhe-ia mais difícil obter a libertação dos reféns remanescentes no Líbano.
Um mês depois, o fracasso deste tipo de imobilismo tornou-se evidente. Ettore Capriolo, o tradutor da edição italiana de Os Versículos Satânicos, recebeu na sua casa a visita de um homem «iraniano» que, segundo Gillon, tinha marcado um encontro para discutir «questões literárias». Uma vez dentro da casa de Capriolo, o homem exigiu que ele lhe fornecesse «a morada de Salman Rushdie» e, como não a obtivesse, atacou violentamente o tradutor, pontapeando-o e esfaqueando-o repetidamente, após o que saiu a correr, deixando Capriolo por terra, a sangrar. Por grande sorte, o tradutor sobreviveu.
Quando Gillon lhe deu a notícia, ele não conseguiu evitar a sensação de que o ataque era culpa sua. Os seus inimigos tinham sido tão bons a transferir a culpa para os seus ombros que agora ele também já acreditava nisso. Escreveu ao Sr. Capriolo exprimindo o seu pesar e a esperança de que o restabelecimento do tradutor fosse completo e rápido. Nunca recebeu resposta. Mais tarde soube pelos seus editores italianos que Capriolo estava indisposto com ele e se recusara a trabalhar em quaisquer futuros livros seus.
A fatwa estava tão próxima do seu alvo como isto. Depois a flecha negra que atingiu Ettore Capriolo voou até ao Japão. Oito dias mais tarde, na Universidade de Tsukuba, a nordeste de Tóquio, o tradutor japonês de Os Versículos Satânicos, Hitoshi Igarashi, foi encontrado assassinado num elevador próximo do seu gabinete. O Professor Igarashi era um estudioso do persa e do árabe e convertido ao islão, mas nem isso o salvou. Foi repetidamente esfaqueado na cara e nos braços. O criminoso não foi preso. Muitos boatos sobre o assassino chegaram à Inglaterra. Era um iraniano que entrara recentemente no Japão. Fora encontrada uma pegada num canteiro e aquele tipo de sapato só se encontrava na China continental. Foi feita a correlação entre os nomes de visitantes que haviam entrado no Japão vindos de portos de partida chineses e os nomes e pseudónimos conhecidos de terroristas islâmicos, e encontrou-se uma correspondência, segundo lhe disseram, mas o nome não foi divulgado. O Japão não produzia combustível próprio e recebia muito do seu petróleo bruto do Irão. O governo japonês tinha, aliás, tentado impedir a publicação de Os Versículos Satânicos, pedindo aos principais editores que não produzissem uma edição japonesa. Não queria que o assassínio de Igarashi complicasse as suas relações com o Irão. O caso foi abafado. Ninguém foi indiciado. Um bom homem jazia morto, mas não se permitiu que a sua morte se tornasse um embaraço.
A Associação do Paquistão japonesa não se calou. Rejubilou. «Hoje estivemos a felicitar-nos uns aos outros», dizia numa declaração. «Deus garantiu que Igarashi tivesse o que merecia. Toda a gente estava verdadeiramente feliz.»
Ele escreveu uma dolorida carta justificativa à viúva de Hitoshi Igarashi. Não houve resposta.
Por todo o mundo havia assassinos terroristas que atingiam os seus alvos. Na Índia, Rajiv Gandhi foi assassinado durante a campanha para a reeleição na cidade meridional de Sriperumbudur. Fora derrotado nas eleições de 1980 em parte, pensava ele, porque a forte segurança à sua volta tinha criado uma imagem afastada, distante. Desta feita estava determinado a ficar mais perto do povo. Devido a isso, uma bombista suicida dos Tigres de Tamil, uma mulher conhecida como Dhanu, pudera chegar até junto dele e detonar o cinto de explosivos que trazia à cintura. Um fotógrafo que estava ao pé de Rajiv foi também morto, mas a sua câmara ficou intacta e havia fotografias do assassínio na película dentro dela. Foi difícil encontrar o suficiente do ex-primeiro-ministro para o cremar.
Em Londres, ele ia tentando fazer um tipo de vida que fosse passível de se viver. Chorava Hitoshi Igarashi, pedia todos os dias notícias sobre o estado de saúde de Ettore Capriolo e esperava, caso viesse a sua vez, não levar ninguém consigo por estar demasiado perto.
Joseph Anton, tens de viver até morreres.
As visitas de Zafar à conselheira recomendada pela escola, Clare Chappell, tinham ajudado. Ele estava a ter melhores resultados escolares e orgulhava-se do prazer dos professores com a sua melhoria. Agora, porém, era o bem-estar de Elizabeth que se tornara motivo de preocupação. Tinham feito os possíveis por manter a sua relação secreta, conhecida apenas do círculo íntimo dos seus amigos, mas a história ia transpirando. «Toda a gente do escritório sabe», disse ela. «Passei o dia inteiro a tremer, com o choque.» A Bloomsbury Publishing tinha relativamente poucos terroristas islâmicos ao serviço, mas ela decidiu que queria despedir-se. Ficaria com ele a tempo inteiro e escreveria os seus poemas e não teria de se preocupar com línguas soltas. Não o fez parecer um sacrifício, mas ele sabia que o era, e grande, e o facto de ela o fazer sentir que era realmente aquilo que ela queria, de maneira que ele não tinha de sentir-se mal com isso, era mais uma prova da sua generosidade de espírito. Saiu da Bloomsbury sem o menor remorso e nunca pronunciou uma palavra de acusação ou arrependimento. Parte da imprensa tabloide britânica tinha começado a publicar histórias inteiramente falsas sobre o que «o novo amor de Rushdie» estava a custar ao país, insinuando que a entrada de Elizabeth na história tinha feito aumentar o orçamento da segurança em centenas de milhares de libras. À medida que o governo deixava de dedicar-se ao seu caso, o enfoque da imprensa ia-se desviando para o preço da proteção. Ele estava a custar uma fortuna ao país e era, claro, arrogante e ingrato. E agora o país tinha também de custear a namorada.
Elizabeth sabia que não estava a custar nada ao país e o seu desdém pelas histórias fabricadas era admirável.
A maior parte do tempo a casa do número 30 de Hampton Lane parecia tranquila e permanente. Parecia ali. Ele não passava parte do dia a pensar que podia ser «exposta», obrigando-o a outra repentina mudança. Mesmo quando iam profissionais lá a casa, as coisas mantinham-se serenas. A casa era suficientemente grande para que ele continuasse o seu trabalho enquanto o jardineiro cortava a relva ou o canalizador arranjava um cano ou se consertava algum aparelho da cozinha. Os Bulsaras eram uns senhorios relativamente pouco curiosos. Fitz era muito convincente e retratava o seu patrão como um ambicioso editor internacional, que andava muito por fora e às vezes estava; por outras palavras, não diferia muito do verdadeiro Rea Hederman, apesar de o verdadeiro Rea nunca ter alugado uma casa com oito quartos em Hampstead Lane. Fitz começou a falar-lhes da possibilidade de comprarem a casa e a Sr.a Bulsara propôs um preço exorbitante. «Eu tentei negociar com ela para baixar, senhor», disse Fitz, «mas ela só vê cifrões.»
Nessa altura apareceu uma nova propriedade no mercado, muito perto dos limites norte (e menos caros) da Bishop’s Avenue. Precisava de obras, mas o preço pedido era relativamente razoável. O proprietário queria vender rapidamente. Elizabeth foi vê-la, acompanhada por Fitz e um elemento da equipa de proteção, e todos gostaram dela. «Podemos sem dúvida fazer com que funcione», disse Elizabeth, que também lhe deu nota positiva. Sim, ele podia ter de novo uma base permanente; obtivera o beneplácito ao mais alto nível, diziam eles. Ele passou duas vezes de carro pela casa, mas não havia maneira de entrar. A casa ficava atrás de um pátio fronteiro com portão, era uma mansão com um telhado de duas águas muito inclinado e fachada caiada, anónima e, é certo, convidativa. Acreditou na palavra de Elizabeth e mudou-se para lá o mais depressa que pôde. Dez dias depois de Elizabeth ver o número 9 da Bishop’s Avenue pela primeira vez fizeram o contrato e a casa era dele. Não podia acreditar. Tinha novamente um lar. «Tem de compreender», disse ele ao seu novo oficial de proteção, um sujeito fino conhecido pelos colegas como CHT (de Colin Hill-Thompson) «que, uma vez que me mude para lá, nunca mais vou andar em bolandas.» Colin era talvez o mais compreensivo de todos os oficiais que ele até então tivera na equipa. «Com certeza», respondeu ele. «Não ceda. Eles aprovaram-na, e acabou-se.»
A nova casa precisava de imensas obras. Telefonou a um arquiteto seu amigo, David Ashton Hill, e introduziu-o no âmago do segredo. David, o amigo que se seguiu na longa sequência de Amigos Sem os Quais a Vida Teria Sido Impossível, lançou-se imediatamente ao trabalho; os operários de construção civil não foram admitidos no segredo, mas contou-se-lhes «a história». O número 9 da Bishop’s Avenue era a projetada base londrina de Joseph Anton, um editor internacional de origem americana. A sua namorada inglesa, Elizabeth, estava encarregada das obras e tomaria todas as decisões necessárias. O empreiteiro, Nick Norden, era filho do comediógrafo Denis Norden, e não se deixava enganar. Era difícil explicar a Nick por que razão um editor precisava de vidro à prova de bala nas janelas do andar térreo, ou de um quarto seguro no de cima. Era estranho que o Sr. Anton nunca estivesse presente nas reuniões, nem sequer uma vez. O bem-humorado inglesismo de Elizabeth era tranquilizador, claro, e o americanismo do Sr. Anton podia ser responsabilizado por muitas das suas esquisitices em matéria de segurança – os americanos, como todo o inglês sabia, tinham medo de tudo; se um carro fazia uma contraexplosão em Paris, toda a gente na América cancelava as férias em França –, mas a verdade, suspeitava o Sr. Anton, era que Nick Norden e os seus operários sabiam perfeitamente de quem era a casa que estavam a remodelar. No entanto, não o diziam, preferindo agir como se tivessem engolido a história, e nunca ninguém foi responsável por fugas de informação. Durou nove meses a preparação da casa para o Sr. Anton, que lá viveu nos sete anos subsequentes, e o segredo foi mantido durante todo esse tempo. Mesmo no final, um dos oficiais mais graduados da Brigada «A» confessou que tinham esperado que a casa se tornasse do conhecimento público daí a uns meses, e toda a gente na Yard se admirara por ela se manter «furtiva» ao longo de mais de oito anos. Mais uma vez, ele tinha razões para estar grato à seriedade com que as pessoas respondiam à sua delicada situação. Todos sabiam que se tratava de um segredo que era importante guardar; e por isso, muito simplesmente, guardavam-no.
Pediu a Fitz para prolongar o prazo de aluguer de Hampstead Lane. Fitz tomou a iniciativa de negociar um abaixamento da renda – «têm andado a roubá-lo descaradamente, senhor» – e conseguiu, muito embora a Sr.a Bulsara lhe implorasse: «Por favor, Sr. Fitz, tem de persuadir o Sr. Hederman a pagar mais caro.» Ele realçou os problemas que a propriedade tinha – havia dois fogões na cozinha, ambos avariados – e ela disse, como se isso fosse uma explicação completa e suficiente: «Mas nós somos indianos, cozinhamos em fogareiros a gás.» A Sr.a Bulsara lamentava que a venda se gorasse, mas continuava a ter uma ideia absurda do valor da propriedade. Contudo, concordou em baixar a renda. Depois, sem mais nem menos, apareceram oficiais de diligências à porta: oficiais de diligências do Supremo Tribunal, que vinham «penhorar os bens dos Bulsaras».
Quando confrontada com o inesperado, a equipa de proteção revelava por vezes traços comportamentais de galinhas acéfalas. Hum, Joe, diga lá outra vez que história é essa que está a contar. Em que nome está alugada a casa? Joseph Anton, não é? Ah, não é Joseph Anton? Ah, é verdade. Rea quê? Como é que escreve isso? Quem é que estamos a dizer que ele é? Ah, é mesmo editor? Ah, pronto. E qual é o nome completo do Fitz, Joe? Muito bem, o melhor é ir alguém à porta. Ele disse: «Vocês têm de melhorar nisto.» Mais para o fim do dia escreveu a narrativa e espetou-a na porta da sala de estar deles.
Os oficiais de diligências apareceram porque os Bulsaras se tinham atrasado num pagamento mensal de apenas 500 libras. Fitz encarregou-se do assunto, telefonando ao advogado dos Bulsaras, que enviou um fax aos oficiais de diligências dizendo que o cheque já tinha seguido pelo correio. Portanto, teoricamente, os oficiais de diligências podiam aparecer todos os meses? E podiam voltar amanhã se por acaso o cheque não estivesse no correio? O que se passava com as finanças dos Bulsaras? Isto era terrível: a sua casa aparentemente sólida podia desaparecer devido a problemas de dinheiro do senhorio, e durante os meses que seriam necessários para arranjar outro sítio ele ficaria mais uma vez sem casa. Fitz ficou impávido. «Eu vou falar com eles», disse. Os oficiais de diligências nunca mais voltaram.
Havia a questão da saúde e a questão relacionada do medo. Foi ao médico – um tal Dr. Bevan, de St. John’s Wood, conhecido do Special Branch, que já tinha tratado pessoas sob proteção – e o coração, a tensão arterial e outros sinais vitais estavam em excelente forma, surpreendendo até o clínico. Aparentemente a sua fisiologia não tinha notado que ele estava a viver em circunstâncias stressantes. Estava a portar-se otimamente, e os habituais anjos da guarda das pessoas que sofriam de stress – Zolpidem, Valium, Zoloft e Xanax – não foram solicitados. Ele não tinha explicação para a sua boa saúde (e também andava a dormir bem), a não ser o facto de a compassiva máquina do seu corpo se ter de algum modo conformado com o que acontecera. Começara a escrever O Último Suspiro do Mouro, cuja personagem central era um homem que envelhecia ao dobro da velocidade normal. A vida do «mouro» Zogoiby estava a passar muito depressa e por conseguinte a morte estava a aproximar-se mais rapidamente do que devia. A relação da vida da personagem com o medo era também a do seu autor. Vou dizer-lhes um segredo acerca do medo, disse o Mouro. É um absolutista. Com o medo, é tudo ou nada. Ou regula a nossa vida como qualquer tirano persecutório, com uma omnipotência cega e estúpida, ou então dominamo-lo e o seu poder dissipa-se numa baforada de fumo. Outro segredo: a revolta contra o medo, o engendrar da queda desse déspota aparatoso, não tem nem pouco mais ou menos que ver com a «coragem». É desencadeada por algo muito mais fácil de entender: a simples necessidade de vivermos a nossa vida. Eu deixei de ter medo porque, sendo o meu tempo na terra limitado, não tinha segundos a perder com cagaços.
Não tinha tempo para se sentar a um canto e tremer. Claro que havia muita coisa a temer, e podia sentir o diabrete do medo a espreitá-lo, o monstro com asas de morcego do medo poisado no seu ombro a mordiscar-lhe avidamente o pescoço, mas compreendia que se queria funcionar tinha de arranjar maneira de enxotar os animalejos. Imaginou-se a aprisionar os diabretes numa caixinha e a pôr a caixa fechada num canto da sala. Feito isso, e havia ocasiões em que tinha de ser feito mais de uma vez, era possível avançar.
Elizabeth lidava com o medo de uma maneira mais simples. Enquanto as esquipas do Special Branch estivessem com eles, dizia de si para si, estariam a salvo. Nunca deu qualquer mostra de ter medo mesmo até ao fim da proteção. Era a liberdade que a intimidava. Dentro da redoma de proteção, sentia-se, na maioria dos casos, perfeitamente bem.
***
Foi-lhe oferecida a possibilidade de comprar um carro mais novo e mais confortável que os velhos Jaguares e Range Rovers da frota policial. Era um BMW de três volumes blindado cujo proprietário anterior fora o milionário do comércio de trapos Sir Ralph Halpern, o fundador da Topshop, mas mais conhecido como «Ralph-cinco-vezes-numa-noite», depois de uma jovem amante ter vendido a sua história aos tabloides. «Quem sabe o que terá acontecido naquele banco de trás», devaneou Dennis the Horse. «Mas é um bom negócio, o Lambisgoiomóvel de Sir Ralph.» Valia 140 000 libras mas pediam 35 000 por ele, «uma pechincha», declarava Denis the Horse. Podia até ser permissível, sugeriu a polícia, se estivessem fora de Londres e em estradas rurais, ele ser autorizado a guiar o carro. E as janelas à prova de bala eram de abrir, ao contrário das janelas dos Jaguares da polícia. Quando isso fosse julgado seguro, o ar fresco podia ser respirado.
Comprou o carro.
A primeira vez que foi conduzido nele a algum sítio foi quando o levaram à Central dos espiões. A sede dos Serviços de Informações britânicos (SIS), bem conhecida dos fãs de James Bond, erguia-se do outro lado do Tamisa, virada para a Random House como se fosse um autor à procura de um bom editor. John le Carré, nos seus livros de Smiley, chamava ao SIS «o Circus» porque os seus escritórios se situavam supostamente em Cambridge Circus, o que queria dizer que os seus espiões teriam vista para o Palace Theater de Andrew Lloyd Webber. Em certas zonas do funcionalismo público chamava-se ao SIS «Box 850», uma caixa postal utilizada em tempos pelo MI6. No coração da Espiolândia estava a pessoa que, na vida real, não se chamava M. O chefe do MI6 – isso já não era segredo – chamava-se C. Nas raras ocasiões em que o Sr. Anton de Hampton Lane e mais tarde do número 9 da Bishop’s Avenue foi autorizado a cruzar aqueles portões fortemente guardados, nunca chegou ao ninho da aranha, nunca conheceu C. Foi recebido por oficiais de outras zonas do alfabeto, oficiais de minúscula, poder-se-ia dizer, embora uma única vez tenha falado para um grupo de muitas das letras maiúsculas dos serviços. E, por duas vezes, avistou-se de facto com os chefes do MI5, Eliza Manningham-Buller e Stephen Lander.
Nessa primeira ocasião, foi conduzido a uma sala que podia ser uma sala de conferências de qualquer hotel de Londres para lhe darem boas notícias. A «ameaça específica» contra ele tinha sido «desclassificada». Então a data-limite para o assassínio já não se mantinha? Não. A operação, disseram-lhe, tinha sido «frustrada». Era uma palavra estranha e interessante. Apetecia-lhe fazer perguntas sobre esta «frustração». Depois pensou: Não faças. A seguir acabou mesmo por perguntar. «Uma vez que é da minha vida que estamos a falar», disse, «acho que me deviam dizer um pouco mais sobre o porquê de as coisas estarem melhor agora.» O jovem quadro do outro lado da polida mesa de madeira debruçou-se com uma expressão amistosa. «Não», disse. Foi o fim da discussão. Bem, não era uma resposta clara, pelo menos, pensou ele, inesperadamente divertido. A proteção das fontes era uma prioridade absoluta no SIS. Ser-lhe-ia dito apenas aquilo que o oficial encarregado do seu caso julgasse necessário. Parta lá disso ficava a Terra do Não.
A «frustração» dos seus inimigos deixou-o, por um momento, atordoado de deleite, mas de regresso a Hampstead Lane, o Sr. Greenup trouxe-o de novo à terra. O nível da ameaça ainda era elevado. Certas restrições manter-se-iam. Por exemplo, ele não autorizaria que Zafar fosse levado lá a casa.
Recebeu um convite para falar numa cerimónia na Universidade de Columbia, na Low Memorial Library, para comemorar os duzentos anos do Bill of Rights44. Tinha de começar a aceitar esses convites, pensou; tinha de emergir da invisibilidade e reclamar a sua voz. Falou com Frances D’Souza para tentar que Václav Havel o convidasse para ir a Praga a fim de o encontro que os britânicos tinham impossibilitado em Londres poder ter lugar no próprio território de Havel. Se o governo de Sua Majestade estava a abandonar o caso, podiam ter de internacionalizar a campanha e meter vergonha a Thatcher e Hurd para que fizessem um esforço. Ele podia usar quaisquer plataformas que lhe fossem oferecidas para fazer notar que o seu caso não era de maneira nenhuma único, que havia escritores e intelectuais em todo o mundo islâmico que estavam a ser acusados de cometer exatamente os mesmos delitos de opinião que ele: blasfémia, heresia, apostasia, insulto e ofensa, o que significava que ou os melhores e mais independentes espíritos criativos do mundo muçulmano eram degenerados, ou então que as acusações mascaravam o verdadeiro projeto dos acusadores: a sufocação da heterodoxia e da dissensão. Dizer isto não era, como algumas pessoas davam a entender, um pedido especial para atrair mais solidariedade para o seu caso, ou para justificar os seus «ultrajes». Era simplesmente a verdade. Para usar eficazmente esta argumentação, disse a Frances, teria também de desdizer aquilo que tinha dito, desfazer o Grande Erro, e precisava de o desdizer em voz alta nas plataformas de maior visibilidade, nos acontecimentos mais noticiados. Frances tinha um forte sentimento de proteção em relação a ele e preocupava-se com a possibilidade de isso poder piorar a sua situação. Não, contrapôs ele, seria pior manter-se na situação falsa que criara a si próprio. Estava a aprender da pior maneira que o mundo não era um lugar compassivo, que não havia razões para esperar que fosse diferente. A vida era pouco generosa para a maioria das pessoas e era difícil encontrar segundas oportunidades. O comediante Peter Cook, na clássica revista dos anos sessenta Beyond the Fringe, tinha recomendado às pessoas que a melhor coisa a fazer em caso de ataque nuclear «era estar fora da zona em que o ataque está prestes a ocorrer. Mantenham-se fora dessa zona», alertava ele, «porque essa é a área perigosa, onde as bombas caem». A maneira de evitar a falta de compaixão pelos nossos erros era, para começar, evitar cometer esses erros. Mas ele tinha cometido o erro. Faria o que fosse preciso para o emendar.
«Haverá repercussões, mesmo que isso signifique a morte», disse o porta-voz do Conselho de Mesquitas de Bradford. «Ao condenar à morte o autor de Os Versículos Satânicos, o juízo do imã foi impecável», disse o gnomo de jardim. Entretanto, em Paris, um esquadrão da morte entrou em casa do exilado ex-presidente do Irão, Shapur Bakhtiar, um opositor ao regime dos aiatolas, e assassinou-o a ele e a um ajudante com facas, naquilo que foi descrito como um «assassínio ritual».
Houve um golpe de Estado em Moscovo contra Mikhail Gorbatchov, que durante três dias foi mantido em prisão domiciliária. Quando o libertaram e levaram de regresso a Moscovo, havia repórteres à espera junto do avião para lhe perguntarem se ele agora aboliria o Partido Comunista. Ele pareceu horrorizado com a pergunta e nesse momento, precisamente então, a história (sob a forma de Boris Yeltsin) ultrapassou-o de roldão e deixou-o a arrastar-se na sua esteira. E contudo foi ele, e não Yeltsin ou Reagan ou Thatcher, o homem que mudou o mundo, proibindo o Exército Vermelho de disparar sobre os manifestantes em Leipzig e noutros locais. Muitos anos mais tarde o homem anteriormente invisível conheceria Mikhail Gorbatchov num evento de angariação de fundos em Londres. «Rushdie!», exclamou Gorbatchov. «Eu apoio totalmente as suas posições.» Houve até um pequeno abraço. O quê, todas elas?, perguntou ele ao homem que tinha o mapa da Antártida tatuado na testa. «Sim», retorquiu Gorbatchov, por intermédio do intérprete. «Apoio total.»
Estava a escrever uma monografia sobre o filme O Feiticeiro de Oz para o seu amigo Colin MacCabe e o Instituto Britânico do Filme (BFI). Os dois grandes temas do filme eram o lar e a amizade e ele nunca sentira tão intensamente a necessidade de ambos. Tinha amigos absolutamente tão leais como os companheiros de Dorothy na Estrada de Ladrilhos Amarelos, e estava prestes a voltar a ter uma casa permanente, depois de três anos em bolandas. Escreveu um conto distópico, «No Leilão dos Sapatinhos de Rubi», como peça para acompanhar o ensaio. Os sapatinhos que podiam levar-nos a casa quando quiséssemos: qual era o valor dessas coisas num violento futuro de ficção científica em que tudo se vendia e a casa se tornara um conceito «disperso, defeituoso»? O ensaio agradou a Bob Gottlieb e ao New Yorker e ele publicou uma extensa parte dele antes de o folheto do BFI ser publicado. O autor que desempenhara o papel de médico legista de Munchkin, Meinhardt Raabe, leu-o num lar para reformados de Fort Lauderdale e mandou uma carta de fã, acompanhada de um presente: uma fotografia a cores da sua grande cena do filme. Estava nos degraus da câmara municipal da cidade de Munchkin, tendo na mão o comprido pergaminho no cabeçalho do qual estavam as grandes letras góticas que diziam certidão de óbito. Por baixo dessa legenda, Raabe, usando uma esferográfica azul, tinha inscrito claramente o nome Salman Rushdie. Quando ele viu o seu nome na certidão de óbito de Munchkin, o seu primeiro pensamento foi: Mas afinal que graça é que isto tem? A seguir, porém, pensou: Não, já percebi. O Sr. Raabe, no seu lar para reformados, dispara cartas para pessoas de toda a América, de todo o mundo, é outro Herzog a vociferar as suas palavras no espaço vazio, com a diferença de que ele também tem uma grande pilha destas fotografias na mesa de cabeceira e manda uma delas em cada carta. É o seu cartão de visita. Ele não pensa: Ah, mas este sujeito em particular tem mesmo uma ordem de morte que impende sobre ele; talvez eu devesse ser um pouco mais sensível. Ele escreve, assina e expede. É o que ele faz.
Depois de o folheto ser publicado, Colin MacCabe disse-lhe que muita gente do BFI tinha ficado aterrada por se ver associada a um livro do célebre Sr. Rushdie. Colin conseguira apaziguar pelo menos alguns dos seus receios. O livro saiu e não houve rios de sangue. Era apenas um livrinho sobre um velho filme. Mas ele tinha compreendido que antes de poder ser novamente livre teria de ultrapassar tanto os receios dos outros como os seus.
O refém britânico John McCarthy foi libertado no Líbano.
Os chefes da Brigada «A» decidiram que era tempo de autorizar Zafar a visitar o pai no número 30 de Hampstead Lane. O Sr. Greenup sugeriu inicialmente que o rapaz fosse de olhos vendados, para que o local não fosse comprometido, mas isso estava fora de questão e Greenup não insistiu. Nessa tarde Zafar foi levado à casa e a felicidade dele iluminou o seu escuro interior e tornou-a bonita.
Frances telefonou-lhe, entusiasmada. Tinham-lhe pedido para lhe dizer confidencialmente que Harun e o Mar de Histórias ganhara o Prémio da Writers’ Guild para o melhor livro infantil do ano. «Eles gostariam imenso se pudesses arranjar maneira de ir lá receber o prémio.» Sim, disse-lhe ele, também ele gostaria muito de estar presente. Foi falar com Michael Foot, que lhe disse: «Ótimo. O estado de espírito mudou. Temos de falar outra vez com o Hurd e ser muito mais duros nas nossas exigências.» Ele adorava o apetite de Michael pela luta, inalterado pela sua avançada idade. Isso e a embocadura que tinha para o uísque, que só rivalizava com a de Christopher Hitchens. Quando bebia com Michael tinha-lhe sido necessário por mais de uma vez despejar sub-repticiamente o seu scotch num vaso.
Falou à polícia do Writers’ Guild Award. A cerimónia decorreria no hotel Dorchester no dia 15 de setembro. A equipa de proteção produziu uns ruídos-de-repentina-tomada-de-fôlego, a expressar as suas reservas. «Não sei como é que isso vai ser encarado no serviço, Joe», disse Benny Winters, um tanto ou quanto parecido, com o seu blusão castanho de pele, com Lenny Kravitz de cabelo mais curto. «Mas vamos ver o que eles acham, claro.» O resultado de verem o que eles achavam foi uma visita do Sr. Greenup com o seu ar mais lúgubre, acompanhado de outro oficial superior da polícia, uma mulher, Helen Hammington, que ao princípio não disse grande coisa.
– Desculpe, Joe – disse o Sr. Greenup. – Não posso autorizar isso.
– Não me autoriza a ir a Park Lane receber o meu prémio literário – replicou ele, lentamente. – Não autoriza isso apesar de haver uma única pessoa, o organizador do evento, que teria conhecimento prévio, e nós podermos chegar depois de estarem todos sentados para jantar, estarmos lá uns dez minutos antes da cerimónia de entrega do prémio, recebê-lo e sair antes de a cerimónia terminar. É isso que o senhor não autoriza.
– Por motivos de segurança – volveu o Sr. Greenup, contraindo os maxilares. – É muitíssimo imprudente.
Ele inspirou profundamente. (A sua paga por ter deixado de fumar fora o aparecimento de asma tardia, de forma que por vezes tinha falta de ar.)
– Sabe uma coisa? – tornou. – Eu tinha a impressão de que era um cidadão livre dum país livre, e não lhe compete a si autorizar ou não autorizar que eu faça o que quer que seja.
O Sr. Greenup perdeu a compostura.
– A minha opinião – disse – é que o senhor está a pôr em perigo o coletivo dos cidadãos de Londres em razão do seu desejo de autoenaltecimento.
Foi uma frase de espantosa construção – o coletivo dos cidadãos, em razão de, autoenaltecimento – e ele nunca a esqueceu. Chegara um momento fulcral – aquilo a que Cartier-Bresson chamara le moment décisif45.
– Sabe? – disse ele. – A coisa é assim. Eu sei onde fica o hotel Dorchester e acontece que tenho dinheiro para pagar o táxi. Por conseguinte a questão não é se eu vou ou não à entrega do prémio. Vou mesmo à entrega do prémio. A única pergunta a que o senhor tem de responder é esta: vem comigo?
Helen Hammington entrou na conversa e disse-lhe que ia substituir o Sr. Greenup como o oficial mais graduado encarregado do seu caso. Isto era uma notícia extraordinariamente boa. Depois disse ao Sr. Greenup: «Acho que provavelmente podemos tratar disso.» Greenup ficou todo vermelho mas não disse nada. «Foi decidido», prosseguiu Hammington, «que devemos provavelmente autorizá-lo a sair um pouco mais.»
Dois dias mais tarde ele estava no Dorchester, no seio do mundo dos livros, e recebia o seu prémio, um tinteiro de vidro com uma base de madeira. Agradeceu aos presentes na sala a sua solidariedade e pediu desculpas por aparecer e desaparecer de repente no meio do jantar. «Neste país livre», disse, «eu não sou um homem livre.» Ao ser aplaudido de pé vieram-lhe realmente lágrimas aos olhos, e ele não era pessoa que chorasse com facilidade. Acenou à multidão e ao sair da sala ouviu John Cleese dizer ao microfone: «Bem, está bonito! Eu agora devia dar sequência a isto.» Tinha sido um inofensivo pedacinho de autoenaltecimento, afinal. O coletivo dos cidadãos de Londres estava a salvo nos seus smokings, nas suas casas, nas suas camas. E nunca mais tornou a ver o Sr. Greenup.
***
O anjo da morte parecia andar distante nesses estranhos dias.
Liz telefonou: não davam mais de seis meses de vida a Angela Carter. Zafar telefonou-lhe, lavado em lágrimas. «Morreu a Hattie», disse. Hattie era May Jewell, a avó anglo-argentina de Clarissa, uma fã de chapéus de aba larga e modelo para a personagem Rosa Diamond de Os Versículos Satânicos, no exterior de cuja casa de Pevensey Bay, no Sussex, Gibreel Farishta e Saladin Chamcha tinham aterrado na areia, depois de se despenharem num Jumbo que explodira e sobreviverem. Algumas das histórias preferidas de May Jewell – em Londres, em Chester Square Mews, vira uma vez o fantasma de um moço de estrebaria que parecia caminhar de joelhos, quando se apercebera de que estava a caminhar ao nível da estrada antiga, mais abaixo, e por conseguinte só era visível dos joelhos para cima; em Pevensey Bay, a esquadra invasora da conquista normanda teria navegado pela sua sala de estar fora, porque a linha de costa se alterara desde 1066; na Argentina, os touros da sua estancia de Las Petacas entravam e poisavam-lhe as cabeças no regaço como se fossem unicórnios e ela uma virgem, o que não era o caso, nem deles nem dela – tinham ido parar às suas páginas. Ele gostava muito das suas histórias, dos seus chapéus e dela.
Helen Hammington veio ter com ele outra vez para lhe dizer o que a polícia achava bem ele fazer segundo as novas regras, liberalizadas. Podiam levá-lo, mediante combinação, a comprar roupa e livros depois das horas normais de expediente. Talvez ele quisesse fazer uma expedição de compras fora de Londres, a um sítio como Bath, por exemplo, podendo até nesse caso ir nas horas a que as lojas estavam abertas. Se quisesse autografar livros, isso era talvez possível desde que fosse também fora de Londres. O seu amigo Professor Chris Bigsby tinha-o convidado para fazer uma palestra na Universidade de East Anglia, e talvez ele pudesse aceitar convites desse género. Podiam também facultar-se idas ocasionais à English National Opera ou ao National Theater. Ela sabia que Ruthie Rogers era sua amiga íntima, e portanto talvez ele pudesse ir jantar ao Riva Café, ou ao Ivy, onde os proprietários, Jeremy King e Chris Corbin, seriam também prestáveis. Ah: e Zafar seria agora autorizado, não só a visitá-lo, como a passar a noite em Hampstead Lane. Não havia dúvida de que a partida do Sr. Greenup tinha alterado as coisas.
(Aquilo que ele não estava autorizado a fazer: viver publicamente, movimentar-se livremente, fazer a vida normal de um escritor ou de um homem livre na casa dos quarenta. A sua vida era uma dieta rigorosa: tudo o que não fosse expressamente autorizado era proibido.)
A 11 de novembro faria mil dias que ocorrera o funeral de Bruce Chatwin e a declaração da fatwa. Falou com Frances e Carmel sobre a maneira de usar politicamente o momento. Elas concordaram em fazer uma «vigília» de vinte e quatro horas em Central Hall Westminster. Quando foi publicada a respetiva notícia, Duncan Slater telefonou-lhe. Douglas Hurd, dizia Slater, pedia que a vigília fosse cancelada e ameaçava que, se tal não acontecesse, a campanha de defesa de Rushdie seria responsabilizada – talvez mesmo pelo governo – pelo adiamento da libertação do refém britânico Terry Waite. Ao saber disto, Michael Foot ficou furioso. «Ceder a ameaças encoraja a tomada de reféns», disse ele. No fim, porém, o evento foi cancelado a pedido da vítima da fatwa. Os direitos humanos de Terry Waite deviam ter precedência sobre os seus.
O diretor da Feira do Livro de Frankfurt, Peter Weidhaas, queria voltar a convidar editores iranianos, mas o clamor na Alemanha impediu-o de o fazer.
Chegou o milésimo dia. Terminou um ensaio, «Mil Dias num Balão», para assinalar a sua chegada. O PEN American Center realizou um comício e enviou uma carta de protesto às Nações Unidas. Os seus amigos britânicos, cancelada a vigília, leram cartas de apoio numa livraria da Charing Cross Road. No entanto, o jornal Independent, que estava a tornar-se uma espécie de jornal da casa para o islão britânico, publicou um artigo do «escritor» Ziauddin Sardar que dizia: «A melhor linha de ação para o Sr. Rushdie e os seus apoiantes é calarem-se. Uma mosca apanhada numa teia de aranha não chama a atenção sobre si.» A mosca em questão telefonou ao diretor do jornal para lhe dizer que nunca mais escreveria recensões para as suas páginas literárias.
A 18 de novembro, Terry Waite foi libertado pelos seus captores. Já não havia reféns britânicos no Líbano. Perguntou a si mesmo como tentariam silenciá-lo agora. A resposta não tardou. A 22 de novembro o arcebispo de Cantuária, George Carey, decidiu atacar Os Versículos Satânicos e o seu autor. O romance, dizia Carey, era uma «afrontosa difamação» do Profeta Maomé. «Temos de ser mais tolerantes com a ira muçulmana», declarou o arcebispo.
Ele contra-atacou numa entrevista na rádio e a imprensa britânica caiu em força sobre o arcebispo. Carey recuou, pediu desculpas e convidou o homem cuja obra condenara para tomar chá. O homem invisível foi conduzido ao Lambeth Palace e lá estava a figura esguia do arcebispo, um cão a dormir diante da lareira e uma chávena de chá; uma chávena e, dececionantemente, nada de sanduíches de pepino. Carey foi desajeitado e titubeante e não tinha grande coisa para dizer. Ao ser-lhe perguntado se tentaria interceder junto de Khamenei para mandar revogar a fatwa, ele respondeu frouxamente: «Não me parece que ele me preste muita atenção.» O objetivo do chá não era mais do que limitação de estragos. Terminou cedo.
Havia também rumores de que os britânicos se estavam a preparar para trocar embaixadores com o Irão e reatar totalmente as relações diplomáticas. Ele precisava urgentemente de uma plataforma pública. A data do evento na Universidade de Columbia aproximava-se a passos largos e parecia realmente importantíssimo que ele lá estivesse, que a sua voz fosse ouvida. No entanto, havia ainda dois reféns americanos no Líbano e não era claro que lhe fosse permitida a entrada nos Estados Unidos. E como viajaria? Não havia nenhuma companhia aérea que estivesse na disposição de tê-lo como passageiro. A polícia disse-lhe que quase todas as semanas havia aviões militares de passageiros que faziam voos entre o Reino Unido e os Estados Unidos. Talvez ele pudesse arranjar lugar num deles. Informaram-se e efetivamente ele seria autorizado a viajar num voo militar. Mas ainda não estava esclarecido que pudesse empreender a viagem.
Duncan Slater telefonou a pedir desculpa pela «confrontação» sobre a vigília dos mil dias e disse que «não havia pressa» na troca de embaixadores. Ia ser colocado num posto no estrangeiro, segundo disse, e David Gore-Booth ocuparia o seu lugar como elemento de ligação do FCO. Ele gostara de Slater e sentia-se apoiado por ele. Gore-Booth era uma proposta muito diferente: mais sombrio, mais brusco, mais corrosivo.
Joseph Cicippio foi libertado a 1 de dezembro e o último refém americano, Terry Anderson, foi posto em liberdade uma semana depois. Os americanos cumpriram a palavra e levantaram o embargo à sua deslocação. A ida à Low Library estava assente.
Atravessaria o oceano num voo da Royal Air Force até ao aeroporto internacional Dulles em Washington, D.C. Ser-lhe-ia facultado um avião particular, pertencente, ao que lhe disseram, ao presidente da Time Warner, para a deslocação a Nova Iorque e regresso. Em Nova Iorque estaria uma equipa de segurança do NYPD46 à sua espera. À medida que se aproximava a data da partida, estes planos estavam constantemente a alterar-se, numa verdadeira tortura. O avião particular de D.C. para Manhattan converteu-se num automóvel, a seguir num helicóptero e mais tarde voltou a ser um avião. Andrew tinha planeado um jantar em que ele pudesse conhecer nova-iorquinos influentes e um «almoço de artes», possivelmente com Allen Ginsberg, Martin Scorsese, Bob Dylan, Madonna e Robert De Niro. Parecia demasiado fantasista, e era-o. Disseram-lhe que não lhe seria permitido sair do hotel a não ser para falar em Columbia. Não lhe seria permitido participar nos jantares na Low Library; iria lá fazer o seu discurso e depois sairia imediatamente. Regressaria por via aérea a D.C. nessa mesma noite e tomaria o voo da RAF de regresso ao Reino Unido. As embaixadas dos Estados Unidos em todo o mundo tinham sido postas em alerta máximo e tomado medidas de segurança extra para o caso de haver represálias islâmicas contra a América por tê-lo deixado entrar no país. Toda a gente com quem ele e Andrew falaram estava nervosíssima – a RAF, o ministério da Defesa, a embaixada americana, o Departamento de Estado americano, o ministério dos Negócios Estrangeiros britânico e o NYPD. Ele disse a Larry Robinson pelo telefone: «É mais fácil entrar no Jardim do Paraíso do que nos Estados Unidos. Para entrar no Paraíso a única coisa que é preciso é ser bom.»
Consoante a data se ia aproximando, os Estados Unidos iam protelando a hora da partida. Finalmente, na terça-feira, 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, e o dia anterior ao seu discurso em Columbia, embarcou no avião de transporte da RAF e, de costas para o sentido da marcha, deixou solo britânico pela primeira vez em três anos.
Na pista do aeroporto Tetelboro, em New Jersey, havia um cortejo de nove carros, com escolta de motociclos, à sua espera. O carro central era uma limusina blindada extralonga de cor branca. Era o seu carro. A chefiar o grande número de agentes do NYPD envolvidos estava o tenente Bob Kennedy, conhecido, para aquele dia, como «Comandante de Hudson». O tenente Bob apresentou-se e explicou o «cenário», interrompendo-se frequentemente para falar para a manga. Recebido Vigia de Hudson, daqui Comandante de Hudson, escuto. Recebido. Terminado. Os polícias falavam hoje em dia como ele tinha visto polícias falar na televisão. O tenente Bob, como era evidente, pensava estar num grande filme. «Vamos transportá-lo através da cidade até ao hotel neste mesmo veículo», disse ele redundantemente, quando o cortejo arrancou.
– Tenente Bob – disse ele –, isto é muita coisa. Os nove veículos, as motos, as sirenes, as luzes a piscar, todos estes agentes. Não seria realmente mais seguro levar-me por ruas secundárias num Buick usado?
O tenente Bob olhou-o com a expressão compassiva que as pessoas reservam para os cronicamente estúpidos ou loucos.
– Não, senhor, não seria – respondeu.
– Para quem mais fariam uma coisa desta escala, tenente Bob?
– Isto aqui era o que faríamos para o Arafat, senhor. – Constituiu um certo choque ser equiparado ao líder da Organização de Libertação da Palestina.
– Se eu fosse o presidente, tenente Bob, que mais fariam?
– Se o senhor fosse o presidente dos Estados Unidos, fechávamos uma data destas ruas laterais e teríamos atiradores especiais nos telhados ao longo do trajeto, senhor, mas no seu caso não achámos que fosse necessário porque daria demasiado nas vistas.
O discreto cortejo de nove carros arrancou em direção a Manhattan com as sirenes das motos a berrar e as luzes a piscar, não chamando nada a atenção.
Andrew esperava-o no hotel. Na suite presidencial havia colchões almofadados à prova de bala a cobrir todas as janelas, apesar de estarem no andar mais alto, e havia cerca de uma dúzia de homens empunhando gigantescas armas de ficção científica espalhados pelos quartos. Andrew tinha-lhe arranjado duas visitas. Veio primeiro Susan Sontag, que o abraçou e lhe disse tudo o que o PEN American Center fizera e faria a seu favor. Depois apareceu Allen Ginsberg a uma porta e Susan teve de sair por outra para que os dois gigantes americanos não se encontrassem. Ele não sabia bem por que razão isto era necessário, mas Andrew disse que era melhor assim, para evitar um conflito de egos literários, e ao entrar, Ginsberg, de sandálias e com uma pequena mochila às costas, avaliou a situação e disse firmemente: «Muito bem, agora vamos meditar. O escritor indiano pensou: Isto é invulgar, temos aqui um americano a ensinar-me a dizer «om shantih om»47. Em voz alta disse, para ser jocoso: «Não medito a não ser que o Andrew Wylie medite também.» Daí a pouco estavam os três sentados no chão, de pernas cruzadas, a cantar sobre a shantih, paz, enquanto o exército de homens com armamento de ficção científica observava e o acolchoado à prova de bala encobria o frio sol de dezembro. Quando terminou a sua sessão de meditação, Ginsberg distribuiu vários folhetos sobre budismo e foi-se embora.
Um pouco mais tarde Elizabeth apareceu de surpresa e o tenente Bob fê-la entrar para ir ter com ele, rodeado de homens armados. «Está tudo bem, tenente Bob», disse ele. «A Elizabeth é fixe. A Elizabeth está comigo.»
Kennedy semicerrou os olhos. «Se eu o quisesse matar, senhor», disse tolamente, exibindo a sua melhor expressão de Jack Nicholson Louco, «seria exatamente ela quem eu mandaria.»
– Como assim, tenente Bob?
Kennedy apontou para uma mesa onde estava um arranjo de frutas e queijos, bem como talheres e pratos.
– Se ela pegasse num desses garfos e lho espetasse no pescoço, eu perderia o emprego. Senhor.
Andrew Wylie estava a encontrar dificuldade em manter a sisudez e durante o resto da viagem Elizabeth passou a ser conhecida como a Garfista Louca.
Nessa noite estavam na limusina blindada extralonga, no meio do cortejo dos nove veículos com a escolta de motociclistas e as sirenes e as luzes a piscar, rolando como uma flecha a cem à hora pela Rua 125 em direção ao campus da Columbia, com Harlem em peso no passeio a observar a discreta operação a passar como um fantasma, quase impercetivelmente, e Andrew gritava de deleite com a escandaleira de tudo aquilo: «Este é o melhor dia da minha vida inteira!»
Depois a diversão, a diversão ligeiramente histérica, de comédia negra, acabou. Ele escondeu-se atrás de uma cortina na Low Library e quando o seu nome foi anunciado houve um arquejo de sobressalto e ele avançou, saindo da invisibilidade para a luz. A seguir houve aplausos acolhedores e afetuosos. As luzes incidiam-lhe nos olhos e ele não conseguia ver a sala, não fazia ideia de quem lá estaria, mas tinha o seu discurso para proferir, os seus mil dias de balão para descrever. Pediu à assistência para pensar na perseguição religiosa e na questão de quanto valia uma só vida humana, e deu início à longa tarefa de desfazer o seu Erro, desdizendo o que tinha dito, reintegrando-se nas fileiras dos defensores da liberdade e deixando Deus para trás. Teria de desdizer o Erro repetidas vezes durante muitos anos, mas nessa noite, quando reconheceu a falta perante a distinta assistência da Universidade de Columbia e deu de novo a cara por aquilo em que mais fervorosamente acreditava – a liberdade de expressão é tudo o que importa, disse ele, a liberdade de expressão é a própria vida –, sentiu-se mais limpo e na solidária reação da assistência ouviu compaixão. Se fosse um homem religioso ter-se-ia sentido confessado, absolvido dos seus pecados. Mas não era religioso e nunca mais fingiria religiosidade. Era um homem orgulhosamente irreligioso. Não rezes por mim, dissera à mãe. Não percebes? A nossa equipa não é essa.
Terminado o discurso, a América pô-lo fora sem cerimónias. Não houve tempo para se despedir de Andrew nem de Elizabeth. O tenente Bob ia sentado no banco dianteiro da limusina branca enquanto esta desfilava pela noite rumo ao aeroporto MacArthur, em Islip, Long Island, e lá estava o avião à espera para o levar ao Dulles, onde embarcou no transporte da RAF juntamente com todo o pessoal militar, e a seguir ei-lo de volta à gaiola. Mas tinha viajado, e falara. A primeira vez era a mais difícil, e todas as dificuldades haviam sido ultrapassadas e à sua frente estavam a segunda vez, e a terceira, e a quarta. Podia ainda não haver uma luz ao fundo do túnel, mas pelo menos já estava no túnel.
O ensaio do «Balão» substituiu o texto da «conversão» na edição de bolso de Pátrias Imaginárias e pelo menos ele pôde deixar de se retrair todas as vezes que via um exemplar desse livro. Até que enfim, pensou quando o livro de bolso chegou. Este é o livro verdadeiro. O seu autor é o meu verdadeiro eu. O seu fardo pareceu-lhe menos pesado. Fez a sua rutura com o dentista Essawy e deixou eternamente para trás aquelas unhas dos pés bem tratadas.
Cara Religião,
Posso levantar a questão dos primeiros princípios? Porque, estranhamente, ou não tão estranhamente, os religiosos e os irreligiosos não conseguem chegar a acordo sobre o que eles sejam. Para o razoável grego que abordava a questão da verdade, os primeiros princípios eram pontos de partida (arche) e nós apreendíamo-los porque possuíamos perceção/consciência (nous). Pelo uso da razão pura, e fazendo fé na nossa perceção sensorial, Descartes e Spinoza acreditavam que podíamos chegar a uma definição da verdade que reconhecêssemos como verdadeira. Os pensadores religiosos, por outro lado – S. Tomás de Aquino, Ibn Rushd –, sustentavam que a razão existia fora da consciência humana, que pairava no espaço como a aurora boreal ou a cintura de asteroides, à espera de ser descoberta. Uma vez descoberta, era fixa e imutável, porque era preexistente – compreendes? –, não dependia de nós para existir, simplesmente era. A ideia de razão desencarnada, de razão absoluta, é um pouco difícil de engolir, especialmente quando tu, Religião, participas na ideia de revelação. Porque nessa altura acabou-se o pensamento, não acabou? Tudo o que precisa de ser ensinado foi revelado e nós estamos presos a isso, eternamente, absolutamente, sem esperança de apelo. Deus, bem poderíamos gritar, ajuda-nos. Eu estou na outra equipa, que acredita que, a menos que os primeiros princípios deste tipo possam ser postos em causa por primeiros princípios do outro tipo – encontrando novos pontos de partida, aplicando a nossa consciência e a perceção sensorial de o-que-é a esses pontos de partida, e chegando assim a novas conclusões – estamos desgraçados, os nossos cérebros apodrecerão, e os homens de turbantes e longas barbas (ou os homens de sotaina fingindo ser celibatários ao mesmo tempo que abusam de rapazinhos) herdarão a terra. Porém, e isto pode fazer-te confusão, em assuntos culturais eu não sou relativista e acredito em universais. Os direitos humanos, por exemplo, as liberdades humanas, a natureza humana e aquilo que ela deseja e merece. Consequentemente não concordo com a noção do Professor S. Huntington de que a razão pertence ao Ocidente e o obscurantismo ao Oriente. O coração é aquilo que é e nada sabe de pontos cardeais. A necessidade de liberdade, tal como a inevitabilidade da morte, é um universal. Pode não preexistir, sendo uma consequência da nossa humanidade essencial, mas não é negociável. Eu compreendo, Religião, que isto te possa fazer confusão, mas estou absolutamente esclarecido a esse respeito. Consultei o meu nous e ele deu-me o seu acordo. Discute. Com certeza, discute. Ah, P.S., o que se passa com aqueles formulários oficiais paquistaneses (todos eles, para tudo) que insistem que declaremos a nossa religião e não aceitam como resposta «nenhuma»? Caso respondamos «nenhuma» considera-se o formulário «inutilizado» e temos de preencher outro ou arriscarmo-nos às consequências, que podem muito bem ser medonhas. Não sei se é este o caso noutros países muçulmanos, mas tenho cá as minhas suspeitas de que pode sê-lo. É um pouco extremo, Religião, não achas? Roçando até o fascista, não? Que espécie de clube é este que obriga as pessoas a serem sócias? Eu pensava que os melhores clubes eram elitistas e faziam os possíveis por não deixar entrar a ralé.
Discute também isto. Por favor.
Caro Leitor,
Obrigado pelas suas simpáticas palavras sobre a minha obra. Seja-me permitido salientar o aspeto elementar de que a liberdade de escrever está intimamente relacionada com a liberdade de ler e não ver as leituras escolhidas, apreciadas ou censuradas em nosso nome por qualquer sacerdócio ou Comunidade Ofendida. Desde quando foi uma obra de arte definida pelas pessoas que não gostavam dela? O valor da arte reside no amor que gera, não no ódio. É o amor que torna os livros duradouros. Continue a ler, por favor.
Formulou algumas resoluções de ano novo. Perder peso, obter o divórcio, escrever o seu romance, conseguir a publicação de Os Versículos Satânicos em edição de bolso e lograr a anulação da fatwa. Sabia que não conseguiria cumprir todas as promessas que fazia a si mesmo. Mas três ou quatro das cinco já seria bom. Nas seis semanas seguintes perdeu sete quilos. Era um bom começo. Comprou o seu primeiro computador. Como muitas pessoas ligadas às antigas tecnologias, receou que isso pudesse modificar a sua maneira de escrever. Muitos anos antes ele e Fay Weldon tinham dado uma palestra conjunta em Kentish Town e durante o período de perguntas e respostas uma mulher perguntara: «Quando está a escrever à máquina e risca uma frase, continua a escrever ou tira a folha da máquina e começa a página de novo?» Tanto ele como Fay tinham respondido que tiravam a folha e começavam uma nova, evidentemente. Como muitos outros escritores, ele tinha o fetiche das cópias limpas, e a facilidade de «limpar» uma página nesta maravilhosa engenhoca era o bastante para o convencer da sua valia. Quanto menos tempo gastasse a datilografar de novo, mais tempo teria para a escrita propriamente dita. O Último Suspiro do Mouro seria o primeiro romance que ele escrevia em computador.
A casa da St. Peter’s Street precisava de ser vendida. As suas despesas eram enormes e o dinheiro seria muito útil. Enquanto a imprensa tabloide continuava a queixar-se de que ele saía muito caro ao Reino Unido, os seus recursos estavam perto da rutura. Tinha comprado (e estava a remodelar) uma casa grande onde ele e a equipa de proteção podiam viver felizes para sempre e um lambisgoiomóvel à prova de bala. Ia comprar um apartamento de dois quartos em Hampstead a fim de que Elizabeth pudesse ter uma morada «pública», sendo a compra feita em nome dela, a título de presente. Felizmente, Robert McCrum, da Faber and Faber, queria comprar a casa de Islington e acertaram rapidamente as condições. Porém, o negócio ficou protelado quando a venda da casa de Robert se gorou. Ele dizia que havia outras pessoas interessadas, contudo, e esperava conseguir levá-la a cabo em breve.
Encontrou-se com Duncan Slater pela última vez. Slater ia ocupar o posto de embaixador britânico na Malásia. Falaram durante três horas e a essência era que o «HMG»48 tinha sido afetado pelo maior estardalhaço que ele começara a fazer, especialmente em Columbia. «O Hurd reconhece que você tem uma grande clientela», disse-lhe Slater. «Não é necessariamente a dele, mas é grande e impossível de ignorar.» O ministro dos Negócios Estrangeiros percebera que o caso Rushdie não podia ser varrido para debaixo do tapete. «Talvez consigamos que a recompensa seja cancelada», disse Slater. Bem, isso seria um bom começo, replicou ele. «Mas o FCO não está satisfeito com os seus planos para a edição de bolso.»
No aniversário de Elizabeth, uns dias depois, souberam que o cancro de Angela Carter era em ambos os pulmões. Tinha dificuldade em respirar e restavam-lhe apenas umas semanas de vida. O seu belo rapazinho Alex já sabia. A ideia de a perder era intolerável mas, como a sua mãe costumava dizer, o que não tem remédio remediado está. Duas semanas mais tarde, Angela convidou-o para tomar chá. Seria a última vez que a veria. Ao chegar à velha e familiar casa de Clapham, verificou que ela se levantara da cama e estava muito direita numa poltrona a servir chá como uma anfitriã formal. Apercebeu-se do esforço que aquilo representava e da importância que tinha para ela fazê-lo, de maneira que tiveram uma tarde de chá em devida forma e riram o mais que puderam. «A companhia de seguros vai ficar fula», gargalhou ela, «porque eu só paguei três anos de prémios de um imenso plano novo e agora ela vai ter de pagar, de modo que os meus rapazes ficam bem.» Os rapazes dela eram o marido, Mark, que estava sentado ao pé deles, calado como era seu costume, e o filho, Alex, que não estava em casa. Passado pouco tempo ela estava exausta e ele levantou-se para se ir embora, despedindo-se dela com um beijo. «Cuida de ti», disse ela, e foi tudo. Quatro semanas depois desse chá estava morta.
Os seus amigos mais íntimos – Caroline Michel, Richard e Ruth Rogers, Alan Yentob e Philippa Walker, Melvyn Bragg e outros – estavam a planear um evento público a ter lugar no terceiro aniversário da fatwa, com a presença de muitos grandes escritores. Günter Grass disse que sim, que viria, bem como Mario Vargas Llosa e Tom Stoppard, e aqueles que não podiam vir – Nadine Gordimer, Edward Said – prometeram mandar mensagens vídeo. O que não era anunciado publicamente era que ele próprio faria uma aparição «surpresa». O local era o Stationer’s Hall, a velha sala de reuniões da associação onde muitos anos antes, noutra vida, ele recebera o Booker Prize.
Esse jovem escritor não teria tido que ouvir os seus editores recusarem-se a publicar a sua edição de bolso, mas os anos dourados eram coisa do passado. Encontrou-se com Peter Mayer em casa de Gillon e Mayer foi finalmente claro. Não, não estava a ver que a Penguin publicasse alguma vez uma edição de bolso de Os Versículos Satânicos, embora ele pessoalmente garantisse que a edição de capa dura continuaria à venda; e sim, ele autorizaria, por conseguinte, que os direitos da edição de bolso revertessem para o autor a fim de que se pudesse conseguir algum tipo de publicação em consórcio. Toda a gente tentou ser cortês e educada, embora fosse um momento chocante. O advogado de Mayer, Martin Garbus, estava de novo presente e opinou que na América talvez fosse possível um consórcio liderado pela Associação de Livreiros Americanos, pelo PEN American Center e pela Authors’ Guild. No dia seguinte ele telefonou a Frances D’Souza e, sem qualquer autoridade para o fazer, anunciou que ele estava a organizar um consórcio e perguntou-lhe se a Article 19 estaria disposta a ser a editora do livro no Reino Unido. (Garbus alegaria mais tarde no New York Times que fora ele que tinha estado efetivamente por detrás da criação do consórcio que editou o livro, uma alegação tão contrária à verdade que teve de ser prontamente refutada.)
A sua vida era como um dia de fortes ventos que fazia as nuvens correr pelo céu encobrindo o sol: primeiro a escuridão, depois luz repentina, e a seguir novamente as trevas. No dia seguinte ao encontro com a Penguin nasceu a segunda criança de Sameen, na Florence Ward do Northwick Park Hospital, em Harrow: uma segunda filha, Mishka. Viria a tornar-se uma virtuosa do piano, trazendo a música a uma família que, até à sua chegada, tinha sido comicamente pouco dada a ela.
Foi informado pelo Special Branch de que as últimas informações davam a entender que havia unidades do Hezbollah ativas a tentar localizá-lo e matá-lo. Não havia alterações à avaliação da ameaça, que continuava em Grotescamente Elevada.
Andrew encontrou-se em Nova Iorque com Giandomenico Picco, das Nações Unidas, o negociador que conseguira a libertação de muitos dos reféns do Líbano, incluindo John McCarthy. Picco disse, sobre o caso Rushdie: «Trabalhei nisso e estou a trabalhar nisso.» Meses mais tarde, em Washington D.C., o homem invisível pôde encontrar-se com o negociador secreto e Picco deu-lhe um conselho que havia de recordar sempre: «O problema da negociação de um acordo destes», disse Picco, «é que se passa uma data de tempo à espera de que o comboio chegue à estação, mas não se sabe a que estação chega. A arte da negociação é estar parado no maior número de estações possível, de maneira que, quando o comboio chegar, estejamos lá.»
Em Berlim, o jornal Die Tageszeitung encetou uma campanha de «Cartas a Salman Rushdie». As cartas seriam reproduzidas em duas dúzias de jornais por toda a Europa e pelas Américas, e Peter Carey, Günter Grass, Nadine Gordimer, Mario Vargas Llosa, Norman Mailer, José Saramago e William Styron contavam-se entre os grandes escritores que tinham aceitado contribuir. Quando Carmel Bedford telefonou a Margaret Atwood a pedir-lhe que escrevesse uma carta, a grandiosa Peggy disse: «Oh, caramba, que poderia eu dizer?» Ao que Carmel, uma irlandesa com eles no sítio, respondeu: «Use a sua imaginação.» E houve outro grande romancista que lhe telefonou, o qual não contribuiu mas foi talvez o mais entusiasmante de ouvir. Foi Thomas Pynchon, outro famoso homem invisível, que lhe ligou a agradecer a sua recensão de Vineland na New York Review of Books e a perguntar solicitamente como passava. Ele respondeu citando o clássico de culto do amigo de Pynchon, Richard Fariña, a quem era dedicado O Arco-Íris da Gravidade: «Estou há tanto tempo em baixo que me parece em cima.» Pynchon sugeriu que da próxima vez que estivessem ambos em Nova Iorque se podiam encontrar para jantar. «Oh, meu Deus», disse ele, parecendo um colegial cheio de borbulhas com uma paixoneta, «oh, sim, por favor.»
Formar um consórcio de editores, livreiros, organizações industriais e indivíduos proeminentes do mundo dos livros não fora difícil na Alemanha e em Espanha. Toda a gente queria participar naquilo que encarava como uma importante defesa da liberdade de expressão. Misteriosamente, estava a revelar-se coisa bem diferente nos Estados Unidos. Andrew aconselhara-se com o juiz William Brennan, um dos «Supremos» americanos, com o célebre constitucionalista Floyd Abrams e com o ex-procurador-geral Elliot Richardson, e todos eles tinham sido unânimes em considerar que a publicação da edição de bolso de Os Versículos Satânicos era uma questão importante que caía sob a alçada da Primeira Emenda. Todos os principais editores americanos discordavam. Uma após outra, as grandes figuras do campo editorial americano negaram que neste assunto estivesse em causa a liberdade de expressão, murmurando que entrarem num consórcio seria uma «crítica implícita» a Peter Mayer e à Penguin. Sonny Mehta disse-lhe: «E se as pessoas não quiserem simplesmente fazê-lo, Salman? Se quiserem apenas que a coisa passe?» Andrew soube que a Associação de Editores Americanos estava efetivamente a formar um cartel oficioso antipublicação para apoiar Peter Mayer (de quem gostavam) e para contrariar os seus esforços, porque, falando com franqueza, não morriam de amores pelo famoso Andrew Wylie, cujo cliente tinha fama de ser igualmente bastante intragável. As pessoas não lhe retribuíam os telefonemas. Fechavam-lhe as portas na cara. O New York Times noticiou que os esforços para se criar um consórcio estavam «a esmorecer». Mas Andrew – e Gillon em Londres – continuavam inflexivelmente determinados. «Podemos publicar esta edição de bolso», diziam, «e fá-lo-emos.»
Houve um único editor que se demarcou dos restantes. George Craig, da HarperCollins, disse a Andrew que ajudaria – discretamente. Não podia autorizar a HarperCollins a integrar o consórcio, mas podia financiar a impressão dos primeiros cem mil exemplares, e fá-lo-ia, além de fornecer um designer para criar uma sobrecapa; mostraria também a Andrew como montar o sistema de impressão, armazenamento e distribuição de que o consórcio precisaria para manter a edição ativa. Mas até Craig estava nervoso: não queria que se soubesse que estava a fazer o que quer que fosse. E foi assim, dissimuladamente, sub-repticiamente, que se elaborou um plano de edição, como se fosse o planeamento de um crime por homens de chapéus de abas flexíveis e gabardinas desproporcionadas reunidos à volta de uma mesa de madeira numa cave, debaixo de uma única lâmpada nua. A empresa, chamada The Consortium, foi formalmente constituída no Delaware. Eram três os membros da Consortium: Gillon Aitken, Salman Rushdie e Andrew Wylie. Não houve um único editor americano, nem britânico, aliás, que juntasse oficialmente o seu nome nem – com a honrosa exceção de George Craig – prestasse qualquer apoio financeiro ou organizativo ao projeto. Andrew e Gillon investiram o seu dinheiro no projeto e chegaram a acordo com o seu autor quanto à divisão dos lucros, se os houvesse. «Estamos a fazer isto», disse Andrew. «Estamos praticamente prontos para arrancar.»
***
Tinha comprado o apartamento de Elizabeth e estava ainda à espera de que Robert McCrum concretizasse a compra da casa da St. Peter’s Street. Os trabalhos de construção no número 9 da Bishop’s Avenue estavam a custar uma pequena fortuna e ele andava apertado de finanças. Se por alguma razão a casa do número 30 de Hampstead Lane viesse a ser «exposta», pensou, não poderia provavelmente suportar outra renda cara. Podia ter de ser, afinal, a base militar.
O Dia dos Namorados estava muito próximo e iam-se ouvindo os habituais ruídos desagradáveis. A fatwa foi reafirmada, claro. Um jornal iraniano descreveu a ordem como «um mandamento divino de morte do diabo por apedrejamento». O lacaio britânico do Irão, Kalim Siddiqui, falou debaixo do seu cogumelo venenoso. «Rushdie é o Inimigo Número Um do Islão.» Mas desta vez houve alguns gritos de resposta. Cento e quinze deputados europeus subscreveram uma moção que expressava «profunda solidariedade com as dificuldades experimentadas pelo autor», e apelando a todos os estados-membros que pressionassem o Irão no sentido de retirar as ameaças. David Gore-Booth disse-lhe que Douglas Hogg e os Negócios Estrangeiros estavam a assumir uma linha «muito positiva», mas queriam esperar até às eleições de abril para o Majlis iraniano. Depois podiam procurar a revogação da recompensa e conseguir que a fatwa fosse formalmente «circunscrita» – isto é, conseguir que os iranianos a declarassem válida apenas no interior do Irão – como primeiro passo para o seu cancelamento final.
Sentiu-se um pouco animado. Pelo menos a pressão da campanha de defesa estava a obrigar o governo a ter novas ideias sobre o caso.
Foi então que aconteceu uma coisa muito surpreendente. Frances e o especialista em assuntos do Médio Oriente da Article 19, Saïd Essoulami, escreveram ao encarregado de negócios iraniano a solicitar uma reunião para discutir o caso – e os iranianos aceitaram. Na manhã de 14 de fevereiro de 1992, Frances e Saïd encontraram-se com funcionários iranianos e discutiram a fatwa e a recompensa. Os iranianos cederam muito pouco, mas tinham manifestamente ficado atrapalhados com a publicidade pró-Rushdie, pensava Frances. Teimaram com ela e Saïd que o governo britânico não estava interessado no caso. (Quando a imprensa teve conhecimento desta reunião, os iranianos procuraram negar que ela se tivesse realizado e a seguir alegaram que só tinha estado presente um «empregado local», e não qualquer elemento da missão diplomática.)
Nesse dia houve em todo o mundo protestos e declarações a seu favor. Em França dezassete milhões de pessoas assistiram a uma entrevista televisiva que ele tinha gravado: a maior audiência alguma vez registada em França a um programa sem ser o noticiário da noite. Nessa noite, em Stationers’ Hall, em Londres, falou para uma assistência de escritores e amigos, dizendo-lhes: «Recuso-me a ser uma não-pessoa. Recuso-me a prescindir do direito de publicar o meu trabalho.» O evento foi simpaticamente coberto por todos os jornais britânicos exceto o Independent, que nem sequer se referiu a ele.
Angela Carter morreu a 16 de fevereiro de 1992. Quando chegou o telefonema, ele ficou de pé na sala de estar e chorou. Depois foi solicitado pelo Late Show, para falar sobre ela. Uma presença nos meios de comunicação era a última coisa que ele tinha em mente, mas Alan Yentob disse «a Angela havia de querer que fosses tu», de modo que ele escreveu qualquer coisa e foi transportado até aos estúdios. Quando lá chegou disse: «Vou fazer exatamente uma gravação disto. Não vou ser capaz de fazer duas.» Conseguiu, de alguma maneira, levá-lo a cabo e foi para casa. Saiu outra versão da sua peça no New York Times. Ele tinha terminado precisamente o seu ensaio sobre O Feiticeiro de Oz e recordava-se de que fora Angela que primeiro lhe contara as histórias do terrível comportamento dos Munchkins em Hollywood, das suas bebedeiras e promiscuidades. Ela gostara especialmente da história do Munchkin entornado que ficara preso numa sanita. Dedicou o seu livrinho a ela. Ao contrário da velha fraude, Oz, o Grande e Terrível, ela tinha sido uma feiticeira muito boa, conforme ele escreveu no seu artigo para o jornal, e uma amiga muito querida.
Ela tinha deixado pormenorizadas disposições para o funeral e a ele era-lhe ordenado que participasse e lesse o poema de Andrew Marvell «Numa Gota de Orvalho»:
Assim a Alma, essa Gota, esse Raio
Da límpida Fonte do Eterno Dia
[…]
Nos seus pensamentos puros, circulares,
Expressa o Céu maior num Céu menor.49
No dia anterior ao funeral os tabloides publicaram mais coisas desagradáveis sobre Elizabeth e o seu «custo» para a nação. Não tinham, porém, nenhuma fotografia dela, e a polícia alertou-o para o facto de que, se eles fossem ao funeral, os paparazzi os perseguiriam e conseguiriam a fotografia que a colocaria em grande perigo. Ele disse que, sendo assim, iriam separadamente, e a máscara simpática de Helen Hammington caiu. Ele estava a fazer demasiadas exigências ao Special Branch, disse ela, devido às suas aparições públicas. «Todos os outros notáveis que vocês protegem», observou ele, «têm um programa diário completo de eventos, e vocês não se queixam. Eu quero ir ao funeral da minha amiga e vocês dizem que é de mais.» «Sim», tornou ela, «mas todos os outros notáveis estão a prestar ou prestaram um serviço à nação. O senhor, no meu entender, não.»
No final, Elizabeth não foi ao funeral no cemitério de Putney Vale. Não havia um único fotógrafo da imprensa na cerimónia. Os polícias tinham-se enganado nisso. Não o disseram, claro está. Contavam com o cenário mais negro, como sempre faziam. Ele não estava disposto a viver a sua vida segundo o cenário mais negro. Isso transformá-lo-ia em prisioneiro deles. Ele não era prisioneiro de ninguém. Era um homem inocente a tentar viver uma vida de homem livre.
Michael Berkeley disse-lhe mais tarde que a presença de tantos polícias no recinto do crematório no dia do funeral tinha dado azo à seguinte troca de palavras no seio do grupo que saía da cremação anterior: «Deve ir alguém mesmo importante a seguir.» E, precisamente quando Michael ia intervir, dizendo: sim, alguém mesmo importante, Angela Carter, ouviu a resposta: «Ná. Provavelmente é só algum malfeitor que deixaram sair de manhã da prisão de Scrubs para vir ao enterro da mãe.»
Os oficiais de proteção em si continuavam a ser tão simpáticos, compreensivos e prestáveis quanto podiam. Quando Zafar quis mostrar as suas proezas no râguebi, o sujeito novo, Tony Dunblane – o do bigode vistoso e casacos de tweed, como um pirata dos subúrbios – levou pai e filho a um campo de jogos da polícia em Bushey e os fulanos alinharam-se como uma linha de três quartos para Zafar poder correr e passar a bola. (Zafar tinha feito o exame de admissão e fora à entrevista para a Highgate School e, para grande alegria e infinito alívio dos pais, conseguira vaga. Sabia que alcançara uma coisa muito importante para ele e a sua confiança disparou, tal como a mãe e o pai esperavam.) Elizabeth estava a dedicar-se metodicamente à tarefa de escolher a mobília e o papel de parede para a nova residência como se eles fossem um casal a montar casa, e Tony trouxe folhetos de sistemas de som e aparelhos de televisão de última geração e ofereceu-se para montar tudo o que eles escolhessem depois de eles se mudarem. Quando Robert McCrum finalmente fez o contrato e o negócio da venda do número 41 da St. Peter’s Street se fechou, a polícia levou-o de volta àquela que já não era a sua casa e ajudou-o a embalar as suas coisas e a carregá-las numa carrinha a fim de serem guardadas num armazém da polícia até poderem ser levadas para a nova casa. A vulgar bondade humana destes homens para com um seu semelhante que estava «numa alhada dos diabos», como dizia Tony Dunblane, nunca deixava de emocioná-lo.
Foram precisas quase cinco horas, com a ajuda de Elizabeth, para embalar as coisas de Marianne. Escondidas entre os seus pertences encontrou todas as fotografias que tirara na sua viagem à Nicarágua em 1986, sobre a qual tinha escrito o seu pequeno livro de reportagem, O Sorriso do Jaguar. E todos os negativos também. (Mais tarde, Sally Riley, uma colega de Gillon, indicada por Marianne para receber as suas coisas, devolveu outras descobertas: uma antiga cabeça de pedra da civilização Gandara que a mãe lhe dera e um saco de fotografias suas; não as dos álbuns desaparecidos, mas as fotografias sobrantes, as rejeitadas e as repetidas. Pelo menos estas poucas recordações da sua vida antes de Marianne tinham sido resgatadas. Foi especialmente bom recuperar as imagens do nascimento e primeiros momentos de Zafar. A maior parte das fotografias em falta, as que estavam coladas nos álbuns perdidos, nunca foi recuperada.)
As dificuldades do dia a dia – ou aquela calamitosa distorção do quotidiano que se tornara para ele «o dia a dia» – continuavam, como um invasor, a ocupá-lo. Andrew Wylie tinha andado a tentar comprar um novo apartamento; quando a direção da cooperativa soube que ele era o agente do autor de Os Versículos Satânicos, rejeitou-o. Ao comunicar esta notícia, tentando dar a entender que não tinha importância, Andrew nunca parecera tão desanimado. Era uma fraca recompensa por tudo o que tinha feito, e estava a fazer, pelo seu autor. Esta história, pelo menos, teve um final feliz. Pouco tempo depois da sua rejeição, Andrew encontrou um apartamento melhor e desta feita a direção da cooperativa não o recusou.
Foi então que rebentou uma bomba. Helen Hammington veio visitá-lo e o punho de aço mostrou-se sob a luva de pelica. Depois de ele e Elizabeth se instalarem na nova casa, disse, a proteção policial seria retirada, porque o subcomissário adjunto John Howley não estava disposto a arriscar a segurança dos seus homens naquilo que inevitavelmente se tornaria uma proteção às claras.
Era um assombroso abuso de confiança. Tinham-lhe assegurado desde o primeiro dia que a proteção se manteria até a avaliação da ameaça pelos serviços de informações baixar para um nível aceitável. Isso não acontecera. Acrescia que tinham sido Howley e o seu capanga Greenup a sugerir-lhe que estava na altura de comprar casa. Haviam-lhe assegurado especificamente que, se fossem instalados os sistemas de segurança adequados, a proteção continuaria nesse local mesmo que passasse a ser conhecido como a sua casa. Tinham-no obrigado a comprar uma habitação autónoma, com um pátio da frente e dois portões separados, um eletrónico e outro de funcionamento manual (para o caso de cortes de energia), uma garagem incorporada cuja porta automática de madeira ocultaria uma chapa de metal à prova de bala; fora forçado a instalar as dispendiosas janelas à prova de bala e sistemas de alarme de que eles haviam feito questão e, acima de tudo, tivera de comprar uma casa com mais do dobro do tamanho de que ele e Elizabeth precisavam para eles, a fim de que quatro elementos da polícia – dois elementos de proteção e dois condutores – pudessem dormir lá e tivessem também a sua própria sala de estar. Despendera imenso dinheiro e esforços para satisfazer todos os requisitos, e agora que tinha gasto todo esse dinheiro e estava amarrado à casa, vinham dizer-lhe: «Ora bem, então vamo-nos embora.» A imoralidade daquilo era quase impressionante.
A verdadeira razão eram os custos, ele sabia-o: os custos e a mentalidade de tabloide que achava que ele não merecia o que pudesse custar protegerem-no devidamente, às claras, como protegiam todas as outras pessoas.
Nessa altura havia certas coisas sobre a fatwa que eram conhecidas; não eram publicamente conhecidas, mas eram conhecidas entre as pessoas que tinham necessidade de as conhecer, incluindo ele próprio e o subcomissário adjunto Howley. A ameaça não era meramente teórica. Havia uma força especial dentro do ministério da Informação iraniano cuja missão era elaborar e concretizar um plano para levar a efeito a ordem de Khomeini. A força especial tinha um nome de código e havia uma cadeia de autorização montada. Seria elaborado um plano, que viria a ser seguidamente aprovado por diferentes níveis sucessivos até chegar ao presidente, que estava incluído, e finalmente sancionado pela liderança religiosa. Era esse o modus operandi iraniano normal. A força especial que executara Shapur Bakhtiar tinha quase certamente funcionado da mesma maneira. O facto de Howley estar disposto a retirar a proteção sabendo o que sabia, e tão cedo a seguir ao assassínio de Bakhtiar, revelava muito acerca da sua maneira de pensar. Nunca perdemos ninguém, tinham-lhe dito os membros da sua equipa de proteção, orgulhosamente, mas Howley estava a dizer-lhe uma coisa diferente. Se o perdermos, não nos importamos. Aquilo caía-lhe… mal.
Disse a Elizabeth que devia pensar na sua própria segurança. Se a polícia se fosse embora, era impossível saber até que ponto a vida se podia tornar perigosa. «Eu não te deixo», retorquiu ela.
Fosse como fosse, conseguiu trabalhar um pouco. Terminou uma sinopse de O Último Suspiro do Mouro que por fim fazia algum sentido. Tinha demorado muito tempo a acertar. Agora só precisava da paz de espírito que lhe permitiria escrevê-lo.
Fora convidado pelo escritor Scott Armstrong para falar no Fórum da Liberdade em Washington, D.C., em fins de março, e queria ir. Parecia provável que se pudessem combinar encontros com políticos e jornalistas americanos durante a sua estadia em D.C. Decidiu que usaria a plataforma para expressar as suas dúvidas sobre o empenhamento britânico na sua segurança: iniciar o contra-ataque num lugar onde havia mais probabilidades de os meios de comunicação lhe darem audiência simpática. Andrew disse-lhe que faria tudo o que estivesse ao seu alcance para lhe arranjar um exemplar da edição de bolso de Os Versículos Satânicos a tempo do fórum. Seria uma resposta aos censores que o fórum podia muito bem querer ouvir. O livro estava de facto no impressor, por fim. Tinha sido protelado pela Penguin, que por alguma razão só assinara o documento de reversão à última hora e depois argumentara que a imagem da capa, hoje famosa, das duas figuras engalfinhadas e a cair por terra, um príncipe e um demónio, lhe pertencia (fora efetivamente tirada de uma antiga miniatura indiana, Rustam Mata o Demónio Branco, do Shahnama, ou Livro dos Reis, cujo original se guarda hoje no Clive Album do Victoria & Albert Museum). A Penguin acabou por deixar de criar obstáculos, assinou na linha que era preciso e as máquinas de imprimir e de encadernar tinham sido ligadas. Passados todos estes anos, principiavam realmente a existir exemplares de bolso.
Depois de muita relutância, a RAF aceitou levá-lo até Dulles e trazê-lo de volta num dos seus voos de transporte regulares – apenas mais esta vez. De futuro o serviço não lhe seria facultado. Além disso, desta feita pedir-lhe-iam para pagar, não só a sua passagem, como as de dois elementos do pessoal de segurança da RAF que se deslocariam à América e voltariam com ele. Humildemente, sem ver outra alternativa, ele pagou. Pensava muitas vezes num verso de John Prine: há um buraco no braço do papá para onde vai todo o dinheiro. A fatwa era a sua heroína. Tinha-o feito gastar tudo quanto ganhava e, embora pudesse acabar por matá-lo, nem sequer o deixava pedrado.
Antes de partir para a América, Fat Jack «quis dar-lhe uma palavrinha» em nome dos rapazes. Estavam todos preocupados com as propostas de alterações de estatuto da Brigada «A» que, a serem postas em vigor, os poriam fora do Special Branch e lhes fariam perder o estatuto de detetives. Alguns dos seus notáveis conservadores estavam a trabalhar no sentido de conseguir que essas alterações fossem para o lixo, mas havia eleições gerais iminentes e que aconteceria se o Partido Trabalhista voltasse ao poder? As últimas sondagens mostravam que os trabalhistas levavam uma vantagem de 3 por cento sobre os conservadores. Não poderia ele falar com o seu amigalhaço Neil Kinnock a favor deles se Kinnock viesse a ser primeiro-ministro? «Francamente», respondeu ele, «em termos de Partido Trabalhista, o senhor é praticamente tudo quanto temos.»
O despertador tocou às cinco e meia da manhã e eles saíram da cama, fazendo-a ranger. A equipa de proteção levou Elizabeth a Swiss Cottage a fim de apanhar um comboio para Heathrow e a seguir transportou-o a ele até ao aeroporto militar de Brize Norton, atravessando os belos Costwolds envoltos na névoa da madrugada, iniciando-se a sua segunda deslocação ao estrangeiro em três anos.
Em Dulles aguardava-o uma empresa de segurança privada contratada pelo Fórum da Liberdade, conforme veio a saber mais tarde, pelo exorbitante preço de 80 000 dólares. O chefe do destacamento era um sujeito afável que lhe perguntou se lhe podiam ser dados exemplares da edição de bolso, para ele e para a sua equipa. O total de exemplares que ele queria ascendia a mais de cinquenta. Aquilo era alarmante: Quanta gente tinha afinal a equipa? «Com certeza», respondeu ele. «Eu arranjo-lhos.»
Encontrou-se com Elizabeth e Andrew num centro de conferências chamado Westfields, a seis milhas de Dulles. Estava previsto dar as suas entrevistas na suite Windsor. Ele crescera em Bombaim numa casa chamada Windsor Villa, que fazia parte da propriedade de Westfield. A coincidência fê-lo sorrir. Seguiram-se muitos dias de entrevistas e todos os jornalistas estavam entusiasmados, excitados até, com o ambiente de capa e espada. Tinham sido trazidos àquele local pela segurança e não sabiam de antemão para onde iam. Uma grande emoção. A fatwa era o único assunto que interessava à maior parte da comunicação social. Só Esther B. Fein, do New York Times, quis realmente abordar a sua escrita, e como conseguia ele levá-la a cabo nestas condições extraordinárias.
Scott Armstrong, entroncado, profissional, um homem do D.C. da cabeça aos pés, tinha más notícias: a reunião com congressistas agendada para o dia seguinte fora cancelada, segundo as suas informações, na sequência de uma intervenção do próprio secretário de Estado James Baker. Por que razão fazia Baker tal coisa? A resposta tornou-se mais clara nos dias subsequentes, quando a administração de George H. W. Bush recusou todos os pedidos de audiência e declinou fazer uma declaração sobre o caso. O secretário de imprensa da Casa Branca, Marlin Fitzwater, disse: «Ele é apenas mais um autor numa digressão de apresentação do seu livro.»
Andrew perdeu a cabeça e acusou Scott de tê-los enganado. As vozes subiram de tom. Scott ficou furioso com Andrew mas sugeriu, e bem, que pusessem a zanga de lado e vissem o que podia ser salvo. Jantaram com Mike Wallace e alguns outros. Ali, confidencialmente, e para assegurar as simpatias desses augustos jornalistas, foi revelada a verdadeira natureza da Consortium, bem como a hostilidade da administração norte-americana e a possibilidade de os britânicos retirarem a proteção.
***
Estava na altura do seu discurso. Vestia um fato de linho bordeaux que nesta altura estava já espetacularmente amarrotado, mas não houve tempo para mudar de roupa. Parecia um professor chanfrado, mas talvez isso não tivesse importância. Estava mais preocupado com as suas palavras do que com a aparência. A linguagem dos discursos políticos era-lhe estranha. Ele era a favor de extremar a linguagem, de fazê-la significar o máximo que fosse possível, de ouvir o significado da sua música bem como as suas palavras; mas agora devia falar com simplicidade. Diga onde quer realmente chegar, tinham-lhe dito; explique-se, justifique-se, não se esconda atrás da sua ficção. Importava que um autor fosse desnudado desta maneira, despojado da riqueza da linguagem? Importava, sim, porque a beleza tocava cordas bem dentro do coração humano, a beleza abria portas no espírito. A beleza importava porque a beleza era alegria e a alegria era a razão de ele fazer aquilo que fazia, a sua alegria com as palavras e com a sua utilização para contar histórias, para criar mundos, para cantar. E a beleza, de momento, estava a ser tratada como um luxo do qual ele podia prescindir; como uma mentira. O feio era a verdade.
Fez o melhor que podia. Pediu apoio e ajuda americana, que a América mostrasse ser «a verdadeira amiga da liberdade», e falou não apenas da liberdade de escrever e publicar, mas também da liberdade de ler. Falou dos seus receios de que os britânicos estivessem prestes a abandoná-lo à sua sorte. Depois anunciou que, após muitas adversidades, fora finalmente possível publicar uma edição de bolso de Os Versículos Satânicos e pegou num exemplar do livro. Não era uma edição atraente. Tinha uma horrorosa capa dourada com grandes letras gordas a preto e vermelho que se pareciam demasiado com a letra de imprensa nazi. Mas existia, e isso causava-lhe uma sensação muito boa. Três anos e meio depois da primeira edição do romance, conseguira levar a cabo o processo de publicação.
Havia amigos jornalistas na assistência. Praful Bidwai, do Times of India, e Anton Harber, cujo Weekly Mail tentara convidá-lo para ir à África do Sul em 1988. Mas ele não pôde demorar-se e pôr-se à conversa. A equipa de segurança falava do «risco de franco-atiradores». O edifício fronteiro «tinha ligações à Líbia». Ah, sim, o coronel Kadhafi, o meu velho amigo, pensou ele. Foi rapidamente levado para fora dali.
A mulher de Scott, Barbara, tinha ficado a «tomar conta» de Elizabeth, que lhe disse que o pessoal da segurança não a deixara entrar na sala de conferências e a obrigara a ficar sentada numa garagem. Ela aceitara-o de boa mente, mas agora foi a vez dele de ficar furioso. Levaram-nos para a acolhedora casa, onde ficariam, de um cavalheiro de setenta e cinco anos extremamente falador chamado Maurice Rosenblatt, um poderoso lobista liberal que desempenhara um importante papel no derrube do senador Joseph McCarthy. Enquanto Rosenblatt fazia o seu solilóquio, Andrew continuava a espumar de raiva pelo cancelamento da reunião com o Congresso. Foi então que Scott telefonou e Andrew barafustou com ele. «Hei de dizer-lhe mais tarde o palerma que você é», disse Scott, e pediu para falar com o Sr. Rushdie, ao qual disse: «Não devo nenhuma explicação ao Andrew, mas a si devo-a.» Enquanto estavam a falar, Peter Galbraith, um quadro administrativo superior da Comissão de Relações Exteriores do Senado dos Estados Unidos, que ele não conhecia, mas que sabia ser filho de John Kenneth Galbraith e, porventura mais impudicamente, o jovem universitário amante de Benazir Bhutto, apareceu na outra linha para dizer que a reunião afinal se realizaria. Haveria um almoço na sala de jantar privativa dos senadores, oferecido pelos senadores Daniel Patrick Moynihan e Patrick Leahy, onde estariam presentes muitos mais senadores. A temperatura baixou rapidamente. Andrew acalmou-se e pediu desculpa a Scott, este sentiu-se justificado e houve muito alívio. Foram para a cama exaustos, mas sentindo-se bem melhor.
Era a primeira vez que estavam em Washington e no dia seguinte ele e Elizabeth tiveram a sua primeira vista das cidadelas e fortalezas do poder americano. Depois Elizabeth ficou sozinha a explorar o Smithsonian e os Jardins Botânicos e ele foi levado até ao Capitólio, onde o senador Leahy veio ao seu encontro, corpulento e paternal, com as suas patas de urso. Estavam lá também os senadores Simon Lugar, Cranston, Wofford, Pell e o grande homem em pessoa, Daniel Patrick Moynihan, alto como um arranha-céus, como convinha ao senador mais antigo de Nova Iorque, de laço e com aquele sorriso travesso profissional. Escutaram-no atentamente enquanto ele analisava a situação e foi o senador Simon quem se adiantou primeiro, insistindo para que o Senado aprovasse uma resolução de apoio. Daí a pouco todos apresentavam propostas, e foi entusiasmante, sem a menor dúvida, ter todos aqueles homens arregimentados sob a sua bandeira. No final do almoço (salada de frango, sem possibilidades de álcool), Moynihan tinha tomado o assunto a seu cargo e sugeriu que ele e Leahy elaborassem um projeto de resolução e o submetessem ao Senado. Era um enorme passo.
Andrew tomara disposições para que todos os presentes na reunião recebessem um exemplar da edição de bolso de Os Versículos Satânicos, mas nessa altura, surpreendentemente, os senadores puxaram de múltiplos exemplares de livros anteriores e queriam-nos personalizados e autografados para eles e também para as suas famílias. Não era frequente ele impressionar-se com sessões de autógrafos, mas esta foi um assombro.
Seguiu-se outra surpresa. Os senadores conduziram-no a uma antecâmara da Comissão de Negócios Estrangeiros, onde havia uma imensa multidão de jornalistas e fotógrafos à sua espera. Scott tinha-se «desunhado a trabalhar» e Andrew devia-lhe um pedido de desculpas. Efetivamente, mais para o fim do dia Andrew pediu-lhe desculpa. «Na verdade o meu trabalho não é este», disse Scott. «Sou escritor, e não publicista. Normalmente tento furar a segurança montada à volta duma história, e não mantê-la.» Mas a sua afabilidade voltou.
E assim aconteceu que agora ali estava o autor de Os Versículos Satânicos, «apenas um autor numa digressão de apresentação do livro», a dar uma conferência de imprensa no coração do poder da América, com os senadores atrás dele como um grupo de apoio, todos eles com exemplares de O Livro de Bolso nas mãos. Se tivessem desatado a entoar um coro cheio de doo-woops e shang-a-langs, nesse dia de espantos, não teria sido muito surpreendente.
Referiu que esta era uma batalha numa guerra mais vasta, sobre o ataque às liberdades criativas e intelectuais em todo o mundo muçulmano e expressou a sua gratidão aos senadores reunidos pelo seu apoio. Moynihan pegou no microfone e disse que era uma honra estar ao seu lado. Era manifesto que ele já não estava em Inglaterra. Não era isso que os políticos ali diziam dele.
Jantaram – num restaurante! – com Scott e Barbara Armstrong e Christopher e Carol Hitchens. Marianne estava a viver em D.C., disse Christopher, mas não lhe parecia que ela dissesse alguma coisa hostil porque isso perturbaria as suas «ligações» com «as pessoas que quer conhecer». De facto ela manteve-se em silêncio, o que foi uma bênção. No dia seguinte ele gravou uma emissão especial com Charlie Rose e de tarde participou num programa de telefonemas dos ouvintes com a duração de uma hora com John Hockenberry, para a NPR50. Uma rapariguinha de nove anos chamada Erin telefonou a perguntar: «Sr. Rushdie, o senhor diverte-se a escrever os seus livros?» Ele respondeu que se divertira muito a escrever Harun. «Ah, claro», volveu Erin. «Eu li esse livro. Esse é um livro bom.» Mais tarde uma muçulmana chamada Susan entrou no ar e chorou imenso, e quando Hockenberry lhe perguntou se achava que o Sr. Rushdie devia ser morto, respondeu: «Teria de me informar sobre isso.»
Scott telefonara ao seu amigo Bob Woodward a pedir ajuda e ficara muito impressionado, disse, «pela profundidade do empenhamento do Bob». Woodward tinha marcado algo de bastante especial: um chá com a lendária Katherine Graham, proprietária do Washington Post.
No carro, a caminho da casa da Sr.a Graham, sentia-se tão cansado que por pouco não adormeceu. Mas a adrenalina era uma útil substanciazinha bioquímica e, assim que se encontrou na presença da grande senhora, espertou de novo. Estava lá a colunista Amy Schwartz. Foi informado de que fora ela que escrevera os editoriais sobre ele. Nem todos eles tinham sido favoráveis. Estava lá também David Ignatius, o editor internacional, que queria falar sobre as próximas eleições iranianas. Don Graham, o filho da Sr.a Graham, estava «cem por cento com ele», disse-lhe Scott.
Teve de fazer quase todas as despesas da conversa. Os jornalistas do Post faziam perguntas e ele respondia. A Sr.a Graham quase não falou, exceto quando ele lhe perguntou diretamente por que razão pensava ela que a administração dos Estados Unidos tinha agido tão sem-cerimoniosamente. «Este governo é muito estranho», disse ela. «Tem muito poucos centros de poder. O de Baker é um deles. Ele é um homem engraçado, parece sempre ter as suas motivações pessoais.» Ignatius interveio para repetir uma coisa que Woodward também dissera. «A melhor via para a administração pode ser através de Barbara Bush.» Depois do encontro ele disse a Scott que só teria de fazer votos para que agora o Post o apoiasse. «A Kay Graham não te teria recebido», opinou Scott, «se a decisão de te apoiar não estivesse já tomada.» Era, portanto, um trabalho bem feito. O New York Times tinha dito já que o apoiaria se outros jornais também participassem. Se Graham entrara, também Sulzberger participaria, e Andrew pensava que podia arregimentar Dow Jones e Scott julgava que podia garantir Gannett. Redigiria uma declaração com duas partes a ser assinada por todos eles: apoio à edição de bolso e apoio ao seu autor contra a fatwa, e, no final, uma exigência de que a administração dos Estados Unidos se associasse e desse também o seu apoio.
De facto, o New York Times não esperou pela assinatura da declaração de apoio. Como que estimulado por esta reunião com os seus rivais de Washington, o Times publicou um editorial na manhã a seguir ao chá com a Rainha Kay, a atacar a Casa Branca e o Departamento de Estado pela sua abordagem de não-envolvimento. «Isto é lamentavelmente coerente com três anos de palavreado oco oficial desde que o aiatola Khomeini denunciou Os Versículos Satânicos como blasfemos e pediu a morte do autor e dos editores. O Sr. Rushdie tem vivido desde então escondido. O seu tradutor japonês foi morto à punhalada e o tradutor italiano ferido à facada. Entretanto em França e na Suíça foram assassinados opositores ao regime iraniano. Se isto não é terrorismo de Estado, o que é? No entanto, a reação do Ocidente foi vergonhosamente cautelosa… Está em risco muito mais do que a vida do Sr. Rushdie se os Estados ocidentais não alertarem conjuntamente o Irão de que não pode conquistar o mercado que cobiça enquanto não deixar de exportar e exortar ao terrorismo.» As nações agiam de acordo com os seus interesses próprios. Para o Irão anular a fatwa seria preciso mostrar ao Irão que era do seu interesse fazê-lo. Fora o que ele dissera à Sr.a Graham e a Mike Wallace antes dela. Agora o New York Times dizia-o também.
Elizabeth foi conduzida ao seu avião e umas horas mais tarde ele abandonava a América num voo da RAF. Acabava-se a boa vida. Em Londres a polícia não queria levá-lo à sessão em memória de Angela Carter no cinema Ritzy, em Brixton. Desceu à terra com um baque e discutiu durante muito tempo até eles aceitarem que podia ir. Elizabeth foi separadamente, como de costume. O Ritzy, berrante, estafado, parecia perfeito para Angela. No palco havia um biombo tripartido, pintado por Corinna Sargood, de cores muito vivas, com araras. E um grande ramo de flores. Nas paredes havia painéis com cenas de filmes. Nuruddin Farah abraçou-o e disse: «Há uma mulher com quem ando muito a sério e que te quero apresentar.» Ele respondeu: «Há uma mulher com quem ando muito a sério e te quero apresentar.» Eva Figes abraçou-o também. «É tão bom ter-te aqui para te tocar em vez de te ver na televisão!» Lorna Sage falou, descrevendo maravilhosamente o riso de Angela – a boca muito aberta num grande ricto e depois o seu estremecer silencioso durante vários minutos antes de vir o som. Tinha conhecido Angela depois de ler Heróis e Vilões e elogiara efusivamente a sua escrita. «Devo ter parecido muito esquisita», disse, «porque daí a um bocado Angela pôs-se de pé e disse: “Eu não sou gay, sabe?”» Depois da cerimónia a polícia obrigou-o a sair imediatamente. Clarissa e Zafar também lá estavam mas ele não foi autorizado a falar-lhes. «Eu fui atrás de ti mas já tinhas saído», disse-lhe mais tarde Zafar. Seguira o pai pela porta lateral e vira-o a ser levado à pressa.
O número 41 da St. Peter’s Street encontrava-se vazio; a maior parte da mobília estava em armazém ou fora dada a Sameen e Pauline ou usada para mobilar o novo apartamento de Elizabeth. As chaves foram enviadas a Robert McCrum e a venda ficou consumada. Fechava-se um capítulo da sua vida.
A 9 de abril, Melvyn Bragg e Michael Foot deram uma festa conjunta de noite eleitoral na casa de Melvyn, em Hampstead. A noite iniciou-se num ambiente de celebração, com grandes expectativas de fim dos longos anos de «desgoverno conservador». Porém, à medida que a noite avançava, tornou-se claro que Kinnock tinha perdido. Ele nunca vira uma festa morrer tão depressa. Saiu cedo porque estava demasiado triste para ficar ali no meio de todas as esperanças frustradas.
Uma semana mais tarde, Helen Hammington pediu outra reunião. Ele disse-lhe que queria que o seu advogado estivesse presente, e Bernie Simons, o seu representante legal, foi trazido a Hampstead Lane. Helen Hammington parecia constrangida e embaraçada ao comunicar-lhe os «planos revistos» para a sua proteção. À medida que ela falava, tornou-se claro que ela, e Howley por detrás dela, estavam a recuar em toda a linha. A proteção manter-se-ia até o nível da ameaça baixar. Se a nova casa «se tornasse pública», eles não se perturbariam com isso.
Ele acreditaria sempre que tinha de agradecer à América – aos senadores, aos jornais – este pequeno êxito. A América tornara impossível à Grã-Bretanha virar costas à sua defesa.
43 Personagem de um romance de Washington Irving que adormece, para acordar vinte anos mais tarde, já depois da Revolução Americana. (N. do T.)
44 Declaração de Direitos, o acordo constitucional inglês de 1789. (N. do T.)
45 Em francês no original. (N. do T.)
46 New York Police Department, a polícia de Nova Iorque. (N. do T.)
47 Mantra da paz, no hinduísmo. (N. do T.)
48 Sigla de Her Majesty’s Government, o governo de Sua Majestade. (N. do T.)
49 So the Soul, that Drop, That Ray / Of the clear Fountain of Eternal Day / […] / Does, in its pure and circling thoughts express / The greater Heaven in an Heaven less. (N. do T.)
50 National Public Radio, o sistema de rádio de serviço público norte-americano, maioritariamente financiado pelos ouvintes e sem fins lucrativos. (N. do T.)