Numa visita a Mijas, havia muito tempo – Mijas, onde Manuel Cortés se escondera de Franco durante três décadas, passando os seus dias numa alcova por trás de um roupeiro e, quando a família teve de mudar de casa, vestindo-se de velhota para percorrer as ruas da cidade da qual fora presidente da Câmara –, conhecera um fotógrafo de origem alemã chamado Gustavo Thorlichen, um homem alto e bem-parecido, de feições aquilinas, cabelo grisalho lustroso e três boas histórias para contar. A tribo de exilados de Mijas murmurava que ele era provavelmente um ex-nazi porque acabara na América do Sul. De facto ele deixara a Alemanha nos anos 30 e fora para a Argentina, fugindo dos nazis. Um dia em Buenos Aires tinham-no chamado para fazer fotografias de Eva Perón, «um dos quatro fotógrafos», dissera-lhe o ajudante de Péron ao telefone, «a ter essa honra». Ele tomou fôlego e respondeu: «Obrigado pela honra, mas quando me convidarem para fazer fotografias, têm de me convidar sozinho, e nestas circunstâncias, com todo o respeito, tenho de declinar.» Houve um silêncio, após o qual o ajudante disse: «O senhor pode ser expulso da Argentina pelo que acaba de dizer.» «Se eu posso ser expulso da Argentina por dizer isto», contrapôs Gustavo, «não vale a pena ficar cá.» Desligou o telefone, foi ao quarto e disse à mulher: «Começa a fazer as malas.» Vinte minutos mais tarde o telefone tocou de novo e a voz do mesmo ajudante disse: «Evita recebe-o amanhã às onze, sozinho.» Depois disso passou a ser o fotógrafo oficial de Eva e Juan Perón e, segundo dizia, a famosa fotografia do rosto de Evita morta era dele.
Essa era a primeira boa história. A segunda dizia respeito a acompanhar muito com o jovem Che Guevara em La Paz e ser apelidado de «grande artista como fotógrafo» nos «diários da motocicleta» do Che. A terceira referia-se a estar numa livraria de Buenos Aires quando jovem fotógrafo, ainda no começo, e reconhecer um homem muito mais velho que entrava na livraria arrastando os pés como Jorge Luis Borges. Reuniu coragem, abordou o grande escritor e disse que estava a trabalhar num livro de fotografias que seria um retrato da Argentina e que ficaria muito honrado se Borges escrevesse o prefácio. Pedir a um cego para escrever o prefácio de um livro de imagens era disparatado, bem o sabia, mas mesmo assim pediu-lho. Borges disse-lhe: «Vamos dar um passeio.» Enquanto deambulavam pela cidade, Borges descrevia os edifícios à sua volta com precisão fotográfica. De vez em quando, porém, havia um edifício novo no lugar de um antigo que fora demolido. Nessas alturas Borges parava e dizia: «Descreva-o. Comece pelo andar de baixo e vá subindo.» À medida que falava, Gustavo apercebia-se de que Borges estava a construir o edifício na sua mente e a colocá-lo no seu lugar. No final do passeio Borges aceitou escrever o prefácio.
Thorlichen tinha-lhe dado um exemplar do livro Argentina e, apesar de ele estar agora metido numa caixa algures juntamente com os seus pertences, ainda se recordava do que Borges escrevera sobre as limitações da fotografia. A fotografia só via o que estava à sua frente, e era por isso que a fotografia nunca podia captar a realidade das grandes pampas argentinas. «Darwin observou e Hudson corroborou-o», escreveu Borges, «que esta planície, famosa entre as planícies do mundo, não causa uma impressão de vastidão a quem a vê do solo, ou a cavalo, porque o seu horizonte é o da visão e não vai além de três milhas. Por outras palavras, a vastidão não está em cada vista das pampas (que é aquilo que a fotografia consegue registar), mas sim na imaginação do viajante, na sua recordação dos dias de marcha e na sua previsão dos muitos que se seguirão.» Só a passagem do tempo revelava a infinita vastidão das pampas, e uma fotografia não podia captar a duração. Uma fotografia das pampas não mostrava mais que um extenso campo. Não podia captar a monotonia indutora do delírio de viajar, viajar e tornar a viajar por esse vazio imutável e interminável.
À medida que a sua nova existência ia atingindo o quarto ano, sentia-se muitas vezes como o viajante imaginário borgesiano, perdido no espaço e no tempo. O filme O Feitiço do Tempo ainda não fora lançado, mas quando o viu identificou-se fortemente com o protagonista, Bill Murray. Também na sua vida cada passo em frente era anulado por outro atrás. A ilusão de mudança era desfeita pela descoberta de que nada mudara. A esperança era apagada pelo desapontamento, as boas notícias pelas más. Se soubesse que ainda tinha pela frente seis anos de sequestro, muito para além do horizonte, a demência poderia mesmo ter-se instalado. Mas ele só conseguia ver até à orla da terra e aquilo que ficava para lá dela permanecia um mistério. Tratava do imediato e deixava que o infinito cuidasse de si próprio.
Os amigos confiaram-lhe mais tarde que viam que aquele peso o ia esmagando, fazendo-o parecer mais velho do que era. Quando o peso foi finalmente removido, voltou uma espécie de juventude, como se o fim da infindabilidade tivesse feito de alguma maneira o tempo voltar ao ponto em que entrara no vórtex. Pareceria mais novo aos cinquenta do que as quarenta e tal anos. Mas ainda faltava meia década para chegar aos cinquenta. E no entretanto muitas pessoas, quando a sua história era referida, ficavam impacientes, ou irritadas, ou enfadadas. Não era uma época paciente, mas antes um tempo de rápida mudança, em que nenhum assunto prendia a atenção por muito tempo. Ele tornou-se um incómodo para os homens de negócios porque a sua história estorvava o desejo que tinham de desenvolver o mercado iraniano, para os diplomatas que tentavam lançar pontes e para os jornalistas que, quando não havia nada de novo para dizer, não tinham notícias. Dizer que a história era a imutabilidade, a sua intolerável eternização, era dizer uma coisa que as pessoas não podiam ou não queriam ouvir. Dizer que ele acordava todos os dias numa casa cheia de estranhos armados, que não podia sair para ir comprar o jornal ou tomar um café, que a maior parte dos seus amigos não sabiam a sua morada e que ele não podia fazer nada nem ir a lado nenhum a não ser com a concordância de estranhos; que aquilo que toda a gente tinha como um dado adquirido, as viagens aéreas, por exemplo, era uma coisa que ele tinha constantemente de negociar; e que havia sempre, algures nas proximidades, a ameaça de uma morte violenta, uma ameaça que, segundo as pessoas cujo trabalho era avaliar essas coisas, não tinha diminuído minimamente… era aborrecido. O quê? Ele ainda estava a viajar pelas pampas, e estava tudo como antes? Bem, já toda a gente tinha ouvido essa história e não queria ouvi-la mais. Contem-nos uma história nova, era a opinião geral, quando não, vão-se embora, por favor.
Não valia a pena dizer ao mundo que estava enganado. Essa abordagem não tinha pernas para andar. Portanto, sim, uma nova história. Se era isso que queriam, seria isso que ele proporcionaria. Bastava de invisibilidade, silêncio, timidez, defensiva, culpabilidade! Um homem invisível, silenciado, era um espaço vazio onde outros podiam derramar os seus preconceitos, os seus interesses pessoais, a sua ira. A luta contra o fanatismo precisava de rostos visíveis, de vozes audíveis. Não se manteria calado por mais tempo. Tentaria tornar-se um homem ruidoso e visível.
Não era fácil ser atirado para um palco tão público. Para se orientar, para saber como agir sob todas aquelas luzes era preciso tempo. Tinha apalpado terreno e tropeçado, fora reduzido ao silêncio e quando falara dissera o que não devia. Agora, porém, havia maior clareza. Em Stationers’ Hall recusara-se a ser uma não-pessoa. A América permitira-lhe iniciar a sua jornada de regresso à individualidade, primeiro em Columbia e depois em Washington. Havia mais dignidade em ser combatente do que em ser vítima. Sim: defenderia a sua posição.
Se alguma vez escrevesse um livro sobre estes anos, como o faria? Podia alterar os nomes, evidentemente – podia chamar a esta gente «Helen Hammington» e «Rab Connolly» e «Paul Topper» e «Dick Wood», ou «Sr. Tarde» e «Sr. Manhã» –, mas como podia transmitir o que tinham sido aqueles anos? Começou a pensar num projeto provisoriamente chamado «Inferno», no qual tentaria tornar a sua história algo diferente de uma simples autobiografia. Um retrato alucinatório de um homem cuja imagem do mundo se quebrara. Como toda a gente, ele tinha na cabeça uma imagem do mundo que fazia algum sentido. Vivera nessa imagem, e compreendia por que razão ela era como era, e como sabia como se orientar dentro dela. Depois, como uma grande marreta a girar, a fatwa despedaçara a imagem e deixara-o num absurdo universo informe e amoral no qual o perigo estava em toda a parte e onde não se encontrava sentido algum. O homem da sua história tentava desesperadamente manter inteira a sua imagem do mundo, mas desfaziam-se-lhe peças dela nas mãos como estilhaços de vidro e cortavam-lhas até sangrarem. No seu estado demencial, neste bosque sombrio, o homem das mãos sangrantes que era uma versão de si próprio tentava alcançar a luz, atravessando o inferno, no qual passava pelos inúmeros círculos, os infernos públicos e privados, penetrando nos mundos secretos do terror e encaminhando-se para os grandes pensamentos proibidos.
Passado algum tempo desistiu desta ideia. A única razão pela qual a sua história era interessante era o facto de ter realmente acontecido. Não seria interessante se não fosse verdadeira.
A verdade é que os dias eram difíceis, mas, apesar dos receios dos amigos, ele não foi esmagado. Aprendeu, ao invés, a contra-atacar e os escritores imortais eram os seus guias. No fim de contas, não era o primeiro escritor a ser posto em perigo ou sequestrado ou anatematizado. Pensou no grandioso Dostoievski a enfrentar o pelotão de fuzilamento e depois, a seguir à comutação da pena no último minuto, a passar quatro anos num campo de prisioneiros, e em Genet a escrever imparavelmente na prisão a sua obra-prima violentamente homoerótica Nossa Senhora das Flores. O tradutor francês de Les Versets Sataniques, relutante em usar o seu próprio nome, tinha-se intitulado «A. Nasier», em honra do grande François Rabelais que publicara a sua primeira obra, Pantagruel, sob o anagramático pseudónimo de «Alcofribas Nasier». Rabelais fora também condenado pela autoridade religiosa: a Igreja Católica não fora capaz de digerir a sua hiperabundância satírica. Porém, ele fora defendido pelo rei, Francisco I, com o argumento de que o seu génio não podia ser suprimido. Bons tempos, esses, em que os artistas podiam ser defendidos por reis porque eram bons naquilo que faziam. Estes eram tempos menores.
O seu Erro abrira-lhe os olhos e desanuviara-lhe os pensamentos e despojara-o de qualquer equívoco. Via o perigo crescente diante de si porque sentira a sua tremenda força desmoralizadora dentro do próprio peito. Durante algum tempo prescindira da sua linguagem e fora obrigado a falar, titubeantemente e com muitas contorções, usando uma língua que não era a sua. A transigência destruiu o transigente e não apaziguou o intransigente inimigo. Não era por pintar as asas de preto que se passava a ser melro, mas como gaivota besuntada de petróleo perdia-se a capacidade de voar. O maior perigo da crescente ameaça era que os homens bons se suicidassem intelectualmente e chamassem a isso paz. Que os homens bons cedessem ao medo e chamassem a isso respeito.
Antes que mais alguém se interessasse pela ornitologia do terror, ele viu os pássaros a juntarem-se. Seria uma Cassandra para o seu próprio tempo, amaldiçoado por não ser ouvido, ou, caso fosse escutado, culpabilizado por aquilo que apontava. As serpentes tinham-lhe lambido as orelhas e ele ouvia o futuro. Não, Cassandra não, isso não era correto, visto que ele não era um profeta. Estava apenas a escutar na direção certa, a olhar para a tempestade que se aproximava. Mas seria difícil virar as cabeças dos homens. Ninguém queria saber o que ele sabia.
A Aeropagítica de Milton cantava contra os melros chilreantes. Aquele que destrói um bom livro mata a própria razão… Deem-me acima de todas as liberdades a liberdade de saber, de falar e de discutir livremente de acordo com a minha consciência. Ele tinha lido os textos antigos sobre liberdades havia muito e nessa altura pareceram-lhe bons, mas teóricos. Não precisava da teoria da liberdade quando dispunha dela como facto. Agora já não lhe pareciam teóricos.
Os escritores que sempre lhe tinham dito alguma coisa com mais clareza eram membros daquilo que ele imaginava como uma «Grande Tradição» rival, em oposição ao cânone leavisita51, escritores que compreendiam a irrealidade da «realidade» e a realidade do pesadelo acordado que era o mundo, a monstruosa mutabilidade do dia a dia, a irrupção do extremo e improvável no monótono quotidiano. Rabelais, Gogol, Kafka, estes e os dessa família, tinham sido os seus mestres e o seu mundo também já não se lhe afigurava fantasia. Estava a viver – encurralado – o gogoliano, o rabelaisiano, o kafkiano.
Nas fotografias que sobreviveram desse tempo, diligentemente preservadas em grandes álbuns por Elizabeth, o Sr. Joseph Anton não vestia bem. A sua indumentária quotidiana habitual eram calças de fato de treino e camisola. As calças eram frequentemente verdes e a camisola castanha. Usava o cabelo comprido e trazia a barba demasiado hirsuta. Vestir assim era dizer: Estou a deixar-me ir. Não sou uma pessoa para levar a sério. Sou apenas um desmazelado qualquer. Devia ter feito a barba todos os dias e vestido roupa nova, lavada e engomada. Fatos de Savile Row, talvez, ou pelo menos uma camisa elegante e calças largas. Devia ter-se sentado à sua secretária como Scott Fitzgerald com o seu fato dos Brooks Brothers, ou Borges, garbosamente enfarpelado num colarinho engomado e camisa com botões de punho. Talvez as suas frases tivessem saído melhor se ele cuidasse mais da sua aparência. Se bem que Hemingway, com os seus calções de algodão e sandálias, não fosse assim tão mau. Gostaria de ter visto nessas fotografias sapatos finos nos pés, possivelmente Oxfords de dois tons, ou de cabedal branco. Em lugar disso, andava desleixado pela casa de Birkenstocks, o mais rafeiro de todos os calçados que era possível, com exceção das Crocs. Viu-se ao espelho e abominou o que via. Aparou a barba e pediu a Elizabeth que lhe cortasse o cabelo – a chique Elizabeth, cujo estilo pessoal era de Aluna Atrasada quando se conheceram, e que ganhara o hábito da roupa de estilista com a avidez de uma sereia encalhada ao descobrir o mar – e pediu aos polícias que o levassem a comprar roupa nova. Era tempo de tratar de si. Ia para a batalha e a sua armadura precisava de reluzir.
***
Quando acontecia uma coisa que nunca tinha acontecido, era frequente abater-se a confusão sobre as pessoas, uma névoa que embaciava as mentes mais límpidas; e muitas vezes a consequência dessa confusão era a rejeição, e até a raiva. Um peixe rastejava do pântano para a terra seca e os outros peixes ficavam desconcertados, talvez mesmo aborrecidos por ter sido atravessada uma fronteira proibida. Um meteorito colidia com a terra e a poeira tapava o sol, mas os dinossauros continuavam a lutar e a comer, sem compreender que se tinham tornado extintos. O nascimento da linguagem enraivecia os mudos. O xá da Pérsia, ao confrontar-se com a artilharia otomana, recusava-se a aceitar o fim da era da espada e mandava a cavalaria galopar de maneira suicida contra os canhões dos turcos. Um cientista observava tartarugas e tentilhões e escrevia sobre mutação aleatória e seleção natural e os adeptos do Livro do Génesis amaldiçoavam o seu nome. Uma revolução na pintura era ridicularizada e descartada como mero impressionismo. Um cantor de folk ligava a guitarra a um amplificador e uma voz na multidão gritava: Judas!
Era esta a pergunta que o seu romance fazia: Como entra o novo no mundo?
A chegada do novo nem sempre estava ligada ao progresso. Os homens também encontravam novas maneiras de se oprimirem uns aos outros, novas maneiras de desfazerem as suas melhores realizações e de descambarem no lodo primitivo; e tanto as inovações mais sombrias do homem como as mais radiosas confundiam os seus semelhantes. Quando as primeiras bruxas foram queimadas era mais fácil culpar as bruxas do que questionar a justiça da sua queima. Quando os cheiros dos fogões a gás chegaram até às ruas das aldeias vizinhas e começou a cair neve escura do céu, era mais fácil não compreender. A maior parte dos cidadãos chineses não compreendeu os heróis caídos de Tiananmen. Foram levados a uma falsa compreensão pelos autores do crime. Quando os tiranos ascenderam ao poder por todo o mundo muçulmano houve muitos que se apressaram a chamar autênticos aos seus regimes e à oposição a esses regimes ocidentalizada ou desenraizada. Quando um político paquistanês defendeu uma mulher falsamente acusada de blasfémia, foi assassinado pelo seu guarda-costas e o país aplaudiu o assassino e lançou-lhe pétalas de flores quando foi levado a julgamento. A maior parte destas negras novidades eram inovações que nasciam em nome de uma ideologia totalitária, de um governante absoluto, de um dogma inquestionável, ou de um deus.
O ataque a Os Versículos Satânicos era em si uma coisa pequena, embora conseguisse muitas parangonas, pelo que era difícil persuadir as pessoas de que era suficientemente extraordinário, que significava o bastante para garantir uma reação excecional. Quando ele iniciou a sua longa caminhada pelos corredores mundiais do poder, foi obrigado, uma e outra vez, a reexpor o caso. Um escritor sério tinha escrito um livro sério. A violência e a ameaça da reação era um ato terrorista que tinha de ser confrontado. Ah, mas este livro tinha ofendido muita gente, não tinha? Talvez sim, mas o ataque ao livro, ao seu autor, editores, tradutores e livreiros era uma ofensa muito maior. Ah, portanto, depois de ter causado agitação, ele opunha-se à agitação que por sua vez lhe criavam e queria que os líderes mundiais defendessem o seu direito de ser agitador.
Na Inglaterra do século XVII Matthew Hopkins, o «Descobridor-geral de Bruxas», criara um teste de bruxaria. Lastrava-se a mulher acusada – com pedras, ou amarrando-a a uma cadeira – e depois atirava-se a um rio ou um lago. Se ela flutuasse, era bruxa e merecia ser queimada; se fosse ao fundo e se afogasse, estava inocente.
A acusação de bruxaria era muitas vezes a mesma coisa que um veredito de «culpada». Agora era ele que estava à prova, a tentar persuadir o mundo de que os criminosos eram os descobridores de bruxas, e não ele.
Estava a suceder aqui algo de novo: o crescimento de uma nova intolerância. Alastrava pela superfície da terra, mas ninguém queria saber. Fora criado um mundo novo para ajudar os cegos a permanecerem cegos: islamofobia. Criticar a estridência militante desta religião na sua incarnação contemporânea era ser fanático. Uma pessoa fóbica era extremista e irracional nas suas opiniões, e por conseguinte a culpa residia nessas pessoas e não no sistema de crença que se arrogava mais de um bilião de seguidores em todo o mundo. Um bilião de crentes não podia estar enganado, e portanto deviam ser os críticos a espumar de raiva. Desde quando, gostava ele de saber, se tornara irracional antipatizar com a religião, com qualquer religião, antipatizar até veementemente com ela? Desde quando passara a razão a ser definida como sem-razão? Desde quando tinham os contos de fadas dos supersticiosos sido postos acima da crítica, fora do alcance da sátira? Uma religião não era uma raça. Era uma ideia, e as ideias permaneciam (ou caíam) porque eram suficientemente fortes (ou demasiado fracas) para suportar as críticas, e não porque fossem protegidas delas. As ideias fortes recebiam bem a dissensão. «Quem luta contra nós fortalece os nossos nervos e aguça as nossas capacidades», escreveu Edmund Burke. «O nosso antagonista é quem mais nos ajuda.» Só os fracos e os autoritários viravam costas aos seus opositores e lhes chamavam nomes e por vezes desejavam fazer-lhes mal.
Fora o islão que mudara, e não as pessoas como ele, fora o islão que se tornara fóbico a uma muito ampla gama de ideias, comportamentos e coisas. Nesses anos e nos anos que se seguiram houve vozes islâmicas numa ou noutra parte do mundo – Argélia, Paquistão, Afeganistão – que anatematizaram o teatro, o cinema e a música, e houve músicos e atores mutilados e mortos. A arte representativa era má, e assim as antigas estátuas budistas de Bamiyan foram destruídas pelos talibãs. Houve ataques de islamitas a socialistas e sindicalistas, caricaturistas e jornalistas, prostitutas e homossexuais, mulheres de saias e homens sem barba, e também, de modo surrealista, a males como os frangos congelados e as chamuças.
Quando se escreveu a história do século XX, a decisão de colocar a Casa de Saud no Trono que Assenta no Petróleo podia muito bem parecer o maior erro de política externa das potências ocidentais, porque os Sauds tinham usado a sua ilimitada riqueza em petróleo para construir escolas (madrassas) destinadas a propagar a extremista e puritana ideologia do seu bem-amado (e anteriormente marginal) Muhammad ibn ‘Abd al-Wahhab, e consequentemente o vaabismo, das suas origens de pequeno culto, extravasara para todo o mundo árabe. O seu crescimento deu confiança e energia a outros extremistas islâmicos. Na Índia, o culto Deobandi alastrou para além do seminário de Darul Uloom, no Irão xiita havia os pregadores militantes de Qom e no Egito sunita os poderosos conservadores de Al-Azhar. À medida que as ideologias extremistas – vaabitas, salafitas, khomeinitas, deobandis – aumentavam de poder e as madrassas fundadas pelo petróleo saudita criavam gerações de homens de vistas curtas, queixos barbados e punhos que se cerravam com facilidade, o islão afastou-se imenso das suas origens, ao mesmo tempo que pretendia regressar às raízes. O humorista americano H. L. Mencken definiu memoravelmente o puritanismo como «o medo obsidiante de que alguém, algures, possa ser feliz», e muitas vezes o verdadeiro inimigo do novo islão parecia ser a própria felicidade. E era esta a fé cujos críticos eram fanáticos? «Quando eu uso uma palavra», dizia Humpty Dumpty a Alice, no País das Maravilhas, «ela significa exatamente aquilo que eu quero que ela signifique; nem mais, nem menos.» Os criadores da «Novilíngua», de 1984, de Orwell, sabiam exatamente o que Humpty Dumpty queria dizer, ao rebatizar o ministro da Propaganda como ministro do Amor e o órgão mais repressivo do Estado como ministério da Verdade. A «islamofobia» era uma adenda ao vocabulário da Novilíngua de Humpty Dumpty. Pegava na linguagem da análise, da razão e da discussão e virava-a de pernas para o ar.
Se alguma coisa ele sabia com certeza, era que o cancro do fanatismo que alastrava pelas comunidades muçulmanas acabaria, no fim, por eclodir no mundo mais vasto para lá do islão. Se a batalha intelectual estava perdida – se este novo islão instaurasse o seu direito de ser «respeitado» e de denunciar os seus opositores, de os votar ao ostracismo e, porque não, de os matar, até – seguir-se-ia a derrota política.
Ele tinha entrado no mundo da política e estava a tentar argumentar com base em princípios. Mas à porta fechada, nas salas onde eram tomadas as decisões, os princípios raramente faziam política. Seria uma luta árdua, mais dificultada porque tinha também de lutar por reconquistar uma vida privada e profissional mais livre. A batalha teria de ser travada simultaneamente em ambas as frentes.
***
Peter Florence, que dirigia o festival literário de Hay-on-Wye, contactou-o para perguntar se havia alguma possibilidade de ele participar no evento desse ano. O grande romancista israelita David Grossman estava para participar numa conversa com Martin Amis, mas tivera de a cancelar. Seria ótimo, dizia Peter, se pudesses tomar o lugar dele. Não teríamos de informar ninguém previamente. A assistência ficaria entusiasmadíssima por te ver e acolher-te de novo no mundo dos livros. Ele queria aceitar; mas primeiro tinha de discutir o convite de Peter com a equipa de proteção, que teria de a discutir com os oficiais mais graduados da Yard, e, como o evento proposto ficava fora da jurisdição da Polícia Metropolitana, o chefe da polícia de Powys teria de ser informado, e seria preciso envolver agentes policiais uniformizados locais. Ele já imaginava os oficiais mais graduados da polícia a porem os olhos em alvo, lá está ele outra vez a fazer exigências, mas estava determinado a não se vergar à sua vontade de que passasse despercebido e não dissesse coisa nenhuma. No final, decidiram que ele podia ir ficar na herdade de Deborah Rogers e Michael Berkeley, perto de Hay, e assegurar a presença proposta, desde que a notícia não transpirasse antes do evento. E assim se fez. Subiu ao palco em Hay, confrontando-se com a circunstância de ele e Martin vestirem fatos de linho idênticos, e durante uma feliz hora e meia foi de novo um escritor entre leitores. A edição de bolso de Os Versículos Satânicos, importada da América, estava à venda em Hay e em toda a parte no Reino Unido, e depois de todas as dificuldades eis o que aconteceu: nada. As coisas não melhoraram, mas também não pioraram. O momento que a Penguin Books tinha receado a tal ponto que prescindira dos direitos de publicação passou sem um único incidente desagradável. Perguntou a si mesmo se Peter Mayer teria dado por isso.
Cada uma das suas deslocações de campanha levava dias – semanas – a preparar. Havia discussões com forças de segurança locais, problemas com companhias aéreas, acordos de políticos quebrados, o interminável trabalho de sim-e-não, de altos e baixos da organização política. Frances, Carmel e ele falavam constantemente e a campanha estava a tornar-se também para ele um trabalho a tempo inteiro. Nos últimos anos diria que perdera um, talvez dois romances completos para a fatwa; foi por isso que, quando os anos negros chegaram ao fim, mergulhou na escrita com renovada determinação. Havia livros empilhados dentro de si, a clamarem por nascer.
A campanha iniciou-se na Escandinávia. Nos anos que se seguiram ele apaixonar-se-ia pelos povos nórdicos devido à sua adesão aos mais altos princípios de liberdade. Até as companhias aéreas tinham moral e o transportavam sem discussão. O mundo era um lugar estranho: na hora da sua maior adversidade, um rapaz dos trópicos encontrava alguns dos seus aliados mais próximos no gélido norte, apesar de os dinamarqueses estarem preocupados com o queijo. A Dinamarca exportava grandes quantidades do seu queijo feta para o Irão e se aparecesse a dar guarida ao blasfemo, apóstata e herege, o comércio do queijo podia ser prejudicado. O governo dinamarquês era obrigado a escolher entre o queijo e os direitos humanos e ao princípio escolheu o queijo. (Houve rumores de que o governo britânico instara os dinamarqueses a não se encontrarem com ele. O editor holandês de Ian McEwan, Jaco Groot, ouvira dizer que os britânicos andavam a transmitir aos seus colegas europeus que não queriam ficar «embaraçados» com «uma demonstração demasiado pública de apoio».)
Fosse como fosse, ele deslocou-se lá, como convidado do PEN dinamarquês. Elizabeth partiu um dia antes com Carmel e a seguir introduziram-no a ele em Heathrow por uma entrada de segurança e transportaram-no de carro até à pista, sendo o último passageiro a embarcar. Ele estava muito preocupado com a possibilidade de os outros passageiros entrarem em pânico quando o vissem, mas estes passageiros eram quase todos dinamarqueses e receberam-no com sorrisos e apertos de mão e genuíno e destemido prazer. Quando a avião descolou da pista ele pensou: Talvez eu possa começar a voar de novo. Talvez não haja problema.
No aeroporto de Copenhague, a comissão de receção não deu com ele, por qualquer razão. Era manifestamente menos reconhecível do que julgava. Atravessou o aeroporto, galgou a barreira de segurança e passou quase meia hora na área das chegadas à procura de alguém que soubesse o que estava a acontecer. Durante trinta minutos tinha furado a rede de segurança. Esteve tentado a apanhar um táxi e esgueirar-se. A seguir, porém, os polícias apareceram a correr direitos a ele e com eles estava o seu anfitrião, Niels Barfoed, do PEN dinamarquês, esbaforido e a pedir desculpa pela confusão. Dirigiram-se aos carros que esperavam e a rede voltou a fechar-se à sua volta.
A sua presença – por uns tempos isto tornou-se «normal» – não tinha sido previamente anunciada. Os membros do PEN reunidos nessa noite no Museu Louisiana de Arte Moderna esperavam que o convidado de honra fosse Günter Grass, e Grass encontrava-se efetivamente lá, fazendo parte da sequência de grandes figuras literárias que aceitaram agir, nesses anos, como seus «testas de ferro». «Se Salman Rushdie é um refém, nós também somos reféns», disse Grass, ao apresentá-lo, e veio então a sua vez. Umas semanas antes, disse ele, cinquenta intelectuais iranianos tinham publicado uma declaração em sua defesa. «Defender Rushdie é defendermo-nos a nós», disseram. Fraquejar perante a fatwa encorajaria os regimes autoritários. Era aí que tinha de ser traçada a linha divisória e dela não podia haver recuo. Ele estava a travar tanto o combate dos seus colegas escritores como o seu. Os sessenta e cinco intelectuais dinamarqueses reunidos no Louisiana comprometeram-se a acompanhá-lo nesse combate e a exercer pressão para que o seu governo fizesse o que era devido. «Se o governo britânico se sente incapaz de enfrentar a inaceitável ameaça do Irão ao processo democrático», disse Frances D’Souza, «a comissão de defesa deve procurar o comprometimento e apoio que lhe foi oferecido na Europa.»
A certa altura ele viu pelas janelas do museu um cruzador a passar. «Aquilo é para mim?», perguntou, pretendendo fazer um gracejo; mas de facto era para ele: era o seu cruzador pessoal, para o proteger de um ataque naval e detetar eventuais homens-rãs iranianos que fossem a nado até ao museu com alfanges entre os dentes. Sim, tudo fora pensado. Eram um povo minucioso, os dinamarqueses.
O seu editor norueguês, William Nygaard, da H. Aschehoug & Co., instou-o a dar sequência à sua deslocação à Dinamarca visitando a Noruega. «Penso que aqui ainda podemos fazer melhor», disse ele. Havia ministros do governo prontos para o receberem. No verão, a Aschehoug dava sempre uma receção no jardim da bonita vivenda antiga do número 99 da Drammensveien, que na viragem do século anterior fora a residência da família Nygaard. Esta receção era um dos pontos altos da temporada de Oslo, a ela comparecendo muitos dos escritores noruegueses mais conhecidos, bem como líderes do mundo empresarial e da política. «Tens de vir à receção», disse William. «No jardim! Com mais de mil pessoas! Vai ser fantástico. Um gesto de liberdade.» William era uma figura carismática na Noruega: um arrojado esquiador, impressionantemente bem-parecido, descendente de uma das famílias mais antigas e presidente da mais importante casa editora. Era também um homem que cumpria as suas promessas: a visita à Noruega foi um êxito. Na receção no jardim de Drammensveien ele foi conduzido pelo meio da multidão por William Nygaard e conheceu… bem, le tout-Oslo52. Segundo William lhe disse mais tarde, a reação à sua visita foi imensa.
Esta deslocação fez de William o editor europeu mais «visível». Na altura não o sabiam, mas o trabalho por ele feito em favor do seu escritor colocou a sua vida em grande risco. Catorze meses mais tarde o terror viria bater à porta de William.
Em Londres, o porta-voz do Partido Trabalhista para as artes, o deputado Mark Fisher, organizou uma conferência de imprensa na Câmara dos Comuns, com a presença de deputados conservadores e trabalhistas, e pela primeira vez ele foi objeto de uma audição simpática dentro do palácio de Westminster. Houve uma só nota amarga. O conservador de extrema-direita Rupert Allason levantou-se e disse: «Por favor não interprete a minha presença aqui como apoio. Para ocultar aquilo que pretendia, segundo dizem os seus editores, o senhor induziu-os em erro acerca do seu livro. É absolutamente errado usar dinheiros públicos para o proteger.» Este maldoso ataquezinho perturbou-o menos do que antes o teria perturbado. Já não esperava ser universalmente amado; sabia que onde quer que fosse encontraria tanto adversários como amigos. E nem todos os adversários se situavam na direita. Gerald Kaufman, o deputado do Partido Trabalhista que manifestara a sua antipatia pela escrita do Sr. Rushdie, censurou publicamente o seu colega trabalhista Mark Fisher por ter convidado o autor a ir à Câmara dos Comuns. (O Majlis fez coro com Kaufman ao considerar que o convite fora «vergonhoso».) Haveria mais Kaufmans e Allasons pelo caminho. O que era importante era insistir na causa.
Falou com David Gore-Booth, no ministério dos Negócios Estrangeiros, e interrogou-o diretamente sobre os rumores de que o governo britânico era contra a sua nova campanha, mais visível, e tinha andado a trabalhar nos bastidores para a sabotar. Gore-Booth tinha uma excelente cara de jogador de póquer e nenhuma emoção transpareceu nela. Desmentiu os rumores. «O HMG apoia os seus encontros com outros governos», disse. Ofereceu-se para ajudar na ligação com as polícias a fim de que as forças de segurança dos países que ele visitasse não «exagerassem». Era difícil saber o que pensar. Talvez ele tivesse começado a arrastar o governo consigo.
Foi convidado a ir a Espanha pela Universidade Complutense de Madrid, a fim de conversar com Mario Vargas Llosa no Palácio do Escorial. Levou Elizabeth e Zafar com ele e passaram três dias tranquilos em Segóvia antes da conferência. A polícia espanhola manteve uma presença muito discreta e ele conseguiu andar pelas ruas e comer nos restaurantes daquela bonita cidadezinha e sentiu-se quase um homem livre. Almoçou em Ávila com Mario e a mulher, Patricia. Foram horas preciosas. Depois, no Escorial, o reitor da Universidade Complutense, Gustavo Villapalos, disse que tinha excelentes ligações no Irão e ofereceu-se como mediador. Khomeini, dizia, chamara-lhe uma vez um «homem muito santo». Esta última oferta de mediação revelou-se tão inútil como as outras. Ficou horrorizado ao ler na imprensa espanhola o anúncio feito por Villapalos de que ele concordara em alterar e cortar trechos «ofensivos» de Os Versículos Satânicos a fim de possibilitar um acordo. Negou isto veementemente e nessa altura Villapalos deixou de estar disponível e todo o contacto com ele terminou.
É preciso estar em todas as plataformas, dissera-lhe Giandomenico Picco, para se estar lá quando o comboio chegar. Mas algumas das plataformas não tinham linhas a passar por elas. Eram apenas lugares onde estar.
A partir do momento em que aterraram em Denver aperceberam-se de que as coisas estavam a correr muito mal. A polícia local tratava o evento como se fosse um trailer para a Terceira Guerra Mundial, e enquanto ele e Elizabeth atravessavam o aeroporto viam-se homens brandindo enormes armas de assalto a correr em várias direções, agentes da polícia a afastarem rudemente elementos do público, e havia gritos, braços a apontar e um clima de calamidade iminente. Aquilo assustou-o, aterrorizou as pessoas presentes e alienou a companhia aérea, que se recusou a aceitar que ele voltasse a embarcar num dos seus aviões devido ao seu comportamento. Os disparates das forças de segurança passavam a ser «seus».
Foram conduzidos de carro a Boulder, onde ele falou numa conferência literária pan-americana juntamente com Oscar Arias, Robert Coover, William Styron, Peter Matthiessen e William Glass. «Os escritores latino-americanos sabem há muito que a literatura é uma questão de vida ou de morte», disse ele no seu discurso. «Agora eu partilho esse conhecimento com eles.» Vivia numa época em que a importância da literatura parecia estar a esmorecer. Ele queria que fizesse parte da sua missão insistir na importância vital dos livros e da proteção das liberdades necessárias para os criar. No seu grande romance Se Numa Noite de Inverno um Viajante, Italo Calvino dizia (falando através da sua personagem Arkadian Porphyrich): «Ninguém tem hoje em tão alto valor a palavra escrita como os regimes policiais. Qual o dado que melhor permite distinguir as nações em que a literatura goza de uma verdadeira consideração do que as verbas consignadas para a controlar e reprimir?» O que era certamente verdade, por exemplo, em Cuba. Philip Roth disse uma vez, falando sobre a repressão da era soviética: «Quando estive na Checoslováquia, ocorreu-me que trabalho numa sociedade onde como escritor vale tudo e nada importa, ao passo que para os escritores checos que conheci em Praga nada vale e tudo importa.» O que era verdade nos estados policiais e na tirania soviética era também verdade nas ditaduras latino-americanas e no novo fascismo teocrático que o confrontava a ele e a muitos outros escritores, mas nos Estados Unidos – no ar liberal, ainda que rarefeito, de Boulder, no Colorado – não era fácil às pessoas sentirem a verdade vivida da repressão. Ele assumira como missão, disse, explicar o mundo em que «nada vale e tudo importa» ao mundo do «vale tudo e nada importa».
Foi necessária a intervenção pessoal do presidente da Universidade do Colorado, a Universidade de Boulder, para persuadir outra companhia aérea a transportá-lo de regresso. Depois de terminar o seu discurso, ele e Elizabeth foram imediatamente conduzidos de volta ao aeroporto de Denver e quase empurrados para dentro de um voo com destino a Londres. O dispositivo policial não era desconforme como quando da sua chegada, mas ainda era suficientemente grande para amedrontar quem quer que estivesse a ver. Deixou a América sentindo que a campanha acabava de dar um passo atrás.
O terror estava a bater a muitas portas. No Egito, o mais importante secularista, Farag Fouda, tinha sido assassinado. Na Índia, o Professor Mushirul Hasan, reitor da universidade Jamia Millia Islamia, de Deli, e historiador distinto, fora ameaçado por «muçulmanos irados» por se atrever a ser contrário à proibição de Os Versículos Satânicos. Foi obrigado a recuar e condenar o livro, mas a populaça exigiu também que ele aprovasse a fatwa. Recusou-se a fazê-lo. Em consequência disso ser-lhe-ia vedado voltar à universidade durante cinco longos anos. Em Berlim, quatro políticos iranianos curdos da oposição que participaram na Internacional Socialista foram assassinados no restaurante Mykonos e havia suspeitas de que o regime iraniano estivesse por detrás das mortes. E em Londres, Elizabeth e ele estavam a dormir no quarto quando se deu uma explosão muito ruidosa e toda a casa estremeceu. Os polícias irromperam pelo quarto dentro, de armas aperradas, e arrastaram o par adormecido para o chão. Ficaram de borco entre homens armados durante o que lhes pareceu terem sido horas, até se confirmar que a explosão ocorrera a uma certa distância, na rotunda de Staples Corner, por baixo do viaduto da North Circular Road. Era o IRA Provisório em ação; não tinha nada a ver com eles. Era uma bomba não-islâmica. Deixaram-nos sós para voltarem ao sono.
O terror islâmico não andava longe. O aiatola Sanei, da Fundação 15 Khordad, aumentou o valor da recompensa para incluir «despesas». (Guardem os recibos, assassinos, que depois podem ser reembolsados por aquele almoço de trabalho.) Três iranianos foram expulsos do Reino Unido porque tinham andado a conspirar para o matarem: dois funcionários da embaixada, Mehdi Sayes Sadeghi e Mahmoud Mehdi Soltani, e um «estudante», Gassem Vakhshiteh. No Irão, o Majlis – o supostamente «moderado» Majlis eleito pelos votantes nas recentes eleições iranianas! – dirigiu uma «petição» ao presidente Rafsanjani para que mantivesse a fatwa, e o aiatola Jannati, pró-Rafsanjani, respondeu que «estava na altura de matar o imundo Rushdie».
Foi ao sul de Londres jogar ténis de mesa com o pintor Tom Phillips no seu estúdio. Parecia a coisa certa a fazer. Tom começara a pintar o seu retrato – ele disse a Tom que parecia demasiado melancólico, mas Tom replicara: «Melancólico? Que queres tu dizer com isso? Eu chamo-lhe Sr. Bem-disposto» –, de forma que passara duas horas a posar antes de perder ao pingue-pongue. Não lhe agradava perder ao pingue-pongue.
Nesse dia a Fundação 15 Khordad anunciou que começaria brevemente a enviar equipas de assassínio ao Reino Unido para executarem a fatwa. Perder ao pingue-pongue era mau, mas ele estava a tentar não perder o juízo.
Zafar saiu da Hall School pela última vez – a Hall, que tanto tinha feito para o proteger do que estava a acontecer ao pai, onde, quer os professores quer os rapazes, lhe haviam permitido, sem nunca expressar esse sentimento por palavras, ter uma infância normal em plena insanidade. Os pais de Zafar tinham muitas razões para estar gratos à escola. Cabia esperar que a nova escola cuidasse tão afetuosamente dele como a anterior.
Highgate era essencialmente uma escola diurna, mas havia casas para internos durante a semana e Zafar estava muito empenhado em ficar no regime de internato. Daí a dias, porém, descobriu que detestava lá ficar. Aos treze anos, era um rapaz que gostava do seu espaço privativo e num internato de rapazes não existia tal coisa. Por isso sentiu-se imediatamente infeliz. Os pais concordaram que ele devia deixar o regime de internato e a escola aceitou a decisão. Zafar passou logo a irradiar felicidade e começou a adorar a escola. E agora o pai tinha uma casa perto de Highgate, de forma que ele podia visitá-lo e passar lá a noite nos dias de aulas e a relação entre eles podia recuperar o que tinha perdido durante quatro anos: intimidade, continuidade e qualquer coisa parecida com à-vontade. Zafar tinha um quarto próprio na nova casa e pediu para ele ser todo mobilado a preto e branco. Não podia trazer lá os amigos, mas compreendia porquê e dizia que não se importava. Mesmo sem a visita de outros rapazes, era uma grande melhoria em relação ao internato. Tinha de novo um lar com o pai.
Na Índia, extremistas hindus destruíram uma das mais antigas mesquitas indianas, a Babri Masjid, em Ayodhya, construída pelo primeiro imperador mogol. Os autores da destruição alegaram que a mesquita fora erigida sobre as ruínas de um templo hindu que assinalava o Ramjanmabhoomi, o berço do Senhor Rama, o sétimo avatar de Vixnu. O caos não era prerrogativa apenas do islão. Quando ele soube da destruição da Babri Masjid sentiu-se assaltado por um desgosto complexo. Estava triste por a religião ter revelado mais uma vez que o seu potencial para a destruição excedia amplamente o seu potencial para o bem, por uma série de asserções improváveis – que a moderna Ayodhya era o mesmo local que a Ayodhya do Ramayana, onde Rama fora rei em data desconhecida no passado remoto; que o alegado local de nascimento era o local de nascimento verdadeiro; que os deuses e os seus avatares realmente existiam – ter redundado na vandalização de um edifício real e belo cujo azar fora ter sido construído num país que não promulgava leis fortes para proteger o seu património e no qual era possível ignorar as leis que existiam desde que se fosse suficientemente numeroso e se alegasse agir em nome de um deus. Estava também triste porque nutria ainda sentimentos de afeto pela mesma cultura muçulmana da Índia que impedia Mushirul Hasan de exercer a sua profissão e o impedia a ele de receber visto para visitar o seu país natal. A história da Índia muçulmana era inevitavelmente a sua história também. Um dia escreveria um romance acerca do neto de Babar, Akbar, o Grande, que tentara fazer a paz entre os muitos deuses da Índia e os seus seguidores e que, por uns tempos, fora bem-sucedido.
As feridas infligidas pela Índia eram as mais fundas. Não se punha a questão, ao que lhe disseram, de lhe ser concedido visto para visitar o país onde nascera e que era a sua profunda inspiração. Nem sequer era bem-vindo no centro cultural indiano de Londres porque, segundo o diretor do centro (e neto do Mahatma) Gopal Gandhi, a sua presença ali seria vista como antimuçulmana e prejudicaria as seculares credenciais do centro. Cerrou os maxilares e voltou ao trabalho. O Último Suspiro do Mouro era o mais secular que um romance podia ser, mas o seu autor era tido como um sectário divisionista no país sobre o qual estava a escrever. As nuvens adensavam-se por cima da sua cabeça. Descobriu, contudo, que o seu espírito de contradição se equiparava à mágoa, que as suas frases ainda se podiam formar, que a sua imaginação ainda podia fulgurar. Não permitiria que as rejeições interrompessem a sua arte.
***
Não tendo outra alternativa, tornou-se em parte um embaixador de si próprio. Mas fazer política não era uma coisa que lhe saísse naturalmente. Fez os seus discursos, pugnou pela sua causa e pediu aos dignitários mundiais que se opusessem a este novo «terrorismo de controlo remoto», este apontar de um dedo letal para o outro lado do mundo: Ele, veem-no? Matem-no, ao careca que tem o livro na mão; e que compreendessem que se o terrorismo-por-fatwa não fosse derrotado se repetiria certamente. Mas muitas vezes as palavras soavam a coisa batida aos seus próprios ouvidos. Na Finlândia, depois de ter falado numa reunião do Conselho Nórdico, foram aprovadas resoluções, foram criadas subcomissões, foram feitas promessas de apoio; mas ele não conseguia libertar-se da sensação de que nada de substancial estava a ser ganho. Ficou mais deleitado com a beleza do bosque outonal que via da janela, e teve a oportunidade de passear por ele com Elizabeth e respirar o ar vivificante e sentir-se episodicamente em paz; e isso, para o seu espírito, naquele momento, era uma bênção maior do que todas as resoluções do mundo.
Com a ajuda do terno encorajamento de Elizabeth, a sua desilusão desvaneceu-se. Estava de novo a encontrar a sua voz, e o seu Erro esfumava-se no passado, embora tivesse de continuar durante anos a desdizê-lo. Estava a ser ouvido com respeito e isso sabia-lhe inegavelmente bem depois de tanta gente ter torpemente desdourado o seu caráter e o seu trabalho. Foi ganhando gradualmente prática na defesa da sua posição. Durante os piores excessos do comunismo soviético, argumentava ele, os marxistas ocidentais tinham procurado distanciar o «socialismo realmente existente» da Verdadeira Fé, a visão de igualdade e justiça de Karl Marx. Porém, quando a URSS se desmoronou e se tornou manifesto que o «socialismo realmente existente» poluíra fatalmente o marxismo aos olhos de todos aqueles que tinham ajudado a derrubar os déspotas, deixou de ser possível acreditar numa Verdadeira Fé não corrompida pelos crimes do mundo real. Agora, quando os Estados islâmicos forjavam novas tiranias, os muçulmanos estabeleciam uma separação similar; assim, havia o «islão realmente existente» das teocracias sanguinárias e depois havia a Verdadeira Fé da paz e do amor.
Ele achava isto difícil de digerir e tentou encontrar as palavras certas para o dizer. Podia facilmente compreender os defensores da cultura muçulmana; quando a Babri Masjid se abateu, isso magoou-o tanto como a eles. E também ele se emocionava com as muitas coisas boas da sociedade muçulmana, o seu espírito caritativo, a beleza da sua arquitetura, pintura e poesia, as suas contribuições para a filosofia e a ciência, os seus arabescos, os seus místicos e a amável sabedoria de muçulmanos de mentalidade aberta como o seu avô, o pai da mãe, o Dr. Ataullah Butt. O Dr. Butt de Aligarh, que exercia a profissão de médico de família e estava também ligado ao Tibbya College da Universidade Muçulmana de Aligarh, onde se estudava a medicina ocidental a par dos tradicionais tratamentos com ervas indianos, ia em peregrinação a Meca, rezou as suas orações cinco vezes por dia em todos os dias da sua vida – e era um dos homens mais tolerantes que o neto alguma vez conheceu, rudemente bem-disposto, aberto a toda a sorte de pensamentos rebeldes infantis e adolescentes, até à ideia da não-existência de Deus, o raio de uma ideia disparatada, diria ele, mas que devia ser discutida. Se o islão era aquilo em que o Dr. Butt acreditava, não havia grande mal nisso.
Mas havia qualquer coisa que estava a desgastar a fé do avô, a corroê-la e a corrompê-la, a torná-la uma ideologia de mesquinhez e intolerância, a proibir livros, a perseguir pensadores, a erigir absolutismos, a transformar o dogma numa arma com a qual agredir os não-dogmáticos. Essa coisa precisava de ser combatida e para a combater tinha de se lhe dar nome e o único nome adequado era islão. O islão realmente existente tinha-se tornado no seu próprio veneno e havia muçulmanos a morrer dele e havia que dizer isso, na Finlândia, em Espanha, na América, na Dinamarca, na Noruega e em toda a parte. Ele di-lo-ia, se mais ninguém o fizesse. Queria falar, também, porque a ideia de que a liberdade era património de todos e não, como sustentava Samuel Huntington, uma noção ocidental estranha às culturas do Oriente. À medida que o «respeito pelo islão», que era o medo da violência islâmica mascarado de hipocrisia à maneira de Tartufo, ganhava legitimidade no Ocidente, o cancro do relativismo cultural tinha começado a corroer as ricas multiculturas do mundo moderno, e por essa encosta escorregadia podiam todas resvalar para o Vale de Lágrimas, o pântano de desespero de John Bunyan.
Ao lutar de país em país, batendo à porta dos poderosos e procurando encontrar pequenos momentos de liberdade nas garras desta ou daquela força de segurança, tentava descobrir as palavras de que precisava para ser, não só advogado de si próprio, mas também daquilo que defendia, ou queria defender a partir de agora.
Ocorreu um «pequeno momento de liberdade» quando foi convidado para um concerto dos U2 em Earls Court. Foi durante a digressão de apresentação do álbum Achtung Baby, com os seus psicadélicos Trabants pendurados. Os polícias disseram imediatamente que sim quando ele os informou; finalmente, uma coisa que eles queriam fazer! Acontece que Bono lera O Sorriso do Jaguar e, como tinha ido à Nicarágua mais ou menos na mesma altura, estava interessado em conhecer o seu autor. (Ele nunca se cruzara com Bono na Nicarágua, mas um dia a sua intérprete loira de olhos brilhantes, Margarita, uma sósia de Jayne Mansfield, exclamara excitadamente: «Bono vem cá! Bono está na Nicarágua!», e nessa altura, sem qualquer mudança de inflexão da voz nem o menor amortecimento do brilho nos olhos, acrescentara: «Quem é Bono?») E portanto ei-lo em Earls Court, de pé nas sombras, a assistir. Nos bastidores, após o espetáculo, foi conduzido a um atrelado cheio de sanduíches e crianças. Não havia fãs nos concertos dos U2; apenas creches. Bono entrou e foi instantaneamente engrinaldado de filhas. Estava ávido de falar de política: a Nicarágua, um protesto próximo contra a deposição insegura de lixo nuclear em Sellafield, no norte de Inglaterra, o seu apoio à causa de Os Versículos Satânicos. Não estiveram muito tempo um com o outro, mas tinha nascido uma amizade.
***
Nigella Lawson e John Diamond casaram-se em Veneza. Como todos os amigos dela, ele ficou muito feliz com a notícia. Onde John estava havia sempre risos. Na receção que deram no Groucho Club para festejar o casamento, o bolo foi feito por Ruthie Rogers e, ao que Ruthie dizia, segundo um projeto do marido, o grande arquiteto em pessoa. John comentou, inocentemente: «Não me digas! Se fosse um projeto de Richard Rogers, os ingredientes não deviam estar todos no exterior?»
A Alemanha era o maior parceiro comercial do Irão. Tinha de lá ir. Uma pequena e feroz deputada do Bundestag alemão chamada Thea Bock tencionava, ao que dizia, assegurar-se de que ele se encontrasse com «toda a gente». Mas primeiro tinha de chegar a Bona, e não podia voar na Lufthansa nem na British Airways. Thea Bock desencantou um pequeno avião particular, vermelho-vivo, que parecia saído de uma história da Primeira Guerra Mundial: «Biggles e a Fatwa». O avião era tão pequeno e antiquado que as janelas abriam. Voava tão baixo que ele receou que chocassem contra um monte ou um campanário. Era como viajar pelo céu num riquexó motorizado indiano. Felizmente estava bom tempo, um sereno dia de sol, e o piloto pôde levar o seu teco-teco sem novidade até à capital alemã, onde as reuniões correram tão bem, graças aos esforços de Thea Bock, que os iranianos ficaram irritadíssimos, porque de repente ali estava Rushdie a ser calorosamente cumprimentado por Björn Engholm, o líder dos sociais-democratas, e por Rita Süssmuth, a porta-voz do parlamento alemão, e por muitos dos mais importantes deputados alemães; e, na ausência do ministro dos Negócios Estrangeiros, Klaus Kinkel, que estava fora, eis Rushdie no ministério dos Negócios Estrangeiros alemão a ser recebido pelo presidente da secção cultural, o Dr. Schirmer. O embaixador iraniano falou encolerizadamente na televisão alemã e disse que tinha a certeza de que a Alemanha não prejudicaria as relações com o Irão por causa deste homem. Disse também que podia haver assassinos americanos ou israelitas em vias de liquidar o apóstata, fingindo serem executores muçulmanos, só para o Irão ficar mal visto.
O embaixador Hossein Musavian foi chamado no dia seguinte ao ministério dos Negócios Estrangeiros alemão. «Nós protegeremos o Sr. Rushdie», disse o vice-ministro. «Depois da nossa conversa muito franca, ele [o embaixador iraniano] sabe que é assim.» As sugestões acerca de um assassínio por parte dos serviços de informações norte-americanos ou israelitas foram rotuladas de «absurdas». O embaixador Musavian disse que as suas palavras tinham sido «deturpadas».
Havia, pois, momentum, como dizia Frances; mas ter-se-ia atingido a massa crítica (um dos seus termos favoritos)? Ainda não. O Conselho das Mesquitas de Bradford fez outra declaração malévola alegando que a campanha estava a piorar as coisas e que o autor não devia esperar qualquer «comutação da pena» por parte da comunidade muçulmana. O presidente do Conselho, Liaquat Hussein, acreditava manifestamente que era um homem importante a dizer uma coisa importante. Mas soava como uma voz do passado. Os seus quinze minutos de fama tinham-se esgotado.
Estava em Estocolmo para receber o Prémio Kurt Tucholsky, conferido a escritores que resistissem às perseguições, e para falar à Academia Sueca. O Irão condenou o galardão, claro. O presidente do Supremo Tribunal de Justiça iraniano pronunciou-se, e outro tanto fez o recompensador aiatola Sanei. Caro presidente do Supremo Tribunal de Injustiça, começou ele, mas depois abandonou a carta imaginária. Havia pessoas que não mereciam que lhes escrevessem, nem sequer na imaginação. Meu caro Sanei da Recompensa, permita que lhe chame a atenção para a possibilidade de um motim. Talvez o senhor e os seus amigalhaços acabem como espíritos de Bligh, ao sabor das águas num bote, na esperança de alcançarem a costa de Timor.
A Academia Sueca reunia-se numa bonita sala rococó do andar de cima do antigo edifício da Bolsa de Valores de Estocolmo. À roda de uma comprida mesa havia dezanove cadeiras estofadas de seda azul-clara. Uma destinava-se ao rei, para o caso de aparecer; ficava vazia se ele não comparecesse, o que acontecia sempre. Nas costas das outras cadeiras havia numerais romanos de I a XVIII. Quando morria um académico era eleito um novo membro para ocupar a sua cadeira e sentar-se nela até ele ou ela passar para a academia maior do céu. Pensou de imediato no espirituoso policial de G. K. Chesterton O Homem Que Era Quinta-feira, sobre um anarquista cujos sete chefes tinham nomes de código correspondentes aos dias da semana. Ele não estava, porém, na presença de anarquistas.
Tinha-lhe sido dada autorização para entrar no santo dos santos da literatura, a sala onde era atribuído o Prémio Nobel, para falar perante uma assembleia gravemente amistosa de eminências pardas. Lars Gyllenstein (XIV) e Kerstin Ekman (XV), os académicos que se tinham retirado da mesa para protestarem contra a pusilânime falta de reação dos colegas à fatwa, não compareceram. As suas cadeiras eram uma censura vazia. Isso entristeceu-o: esperara dar azo a uma reconciliação. O convite da academia fora feito como maneira de compensar o seu anterior silêncio. A sua presença entre eles indicava o seu apoio. Foi colocada na mesa, ao lado da cadeira vazia do rei, uma décima nona cadeira, sem número, na qual ele se sentou e falou e respondeu às perguntas até os académicos se darem por satisfeitos. Elizabeth, Frances e Carmel foram autorizadas a assistir, sentadas noutras cadeiras alinhadas contra uma parede.
No centro da discussão sobre Os Versículos Satânicos, disse ele, por detrás de todas as acusações e injúrias, estava uma questão de profunda importância: Quem deve ter controlo sobre a história? Quem tem, quem devia ter, o poder não só de contar as histórias com as quais, e dentro das quais, todos vivemos, mas também de dizer de que maneira essas histórias podem ser contadas? Porque toda a gente vivia segundo e dentro de histórias, as chamadas grandes narrativas. A nação era uma história, a família era outra e a religião, uma terceira. Como artista criativo ele sabia que a única resposta à pergunta era esta: todos e qualquer um têm, ou devem ter, esse poder. Devíamos ter todos a liberdade de chamar as grandes narrativas à pedra, de discutir com elas, de as satirizar e insistir para que elas mudem a fim de refletirem as mudanças dos tempos. Devíamos falar delas reverentemente, irreverentemente, apaixonadamente, causticamente, ou como nos aprouvesse. Era o nosso direito como elementos de uma sociedade aberta. De facto, poder-se-ia dizer que a nossa capacidade de recontar e refazer a história da nossa cultura era a melhor prova de que as nossas sociedades eram efetivamente livres. Numa sociedade livre a discussão sobre as grandes narrativas nunca terminava. Era a discussão em si que importava. A discussão era a liberdade. Numa sociedade fechada, porém, os que detinham poder político ou ideológico tentavam invariavelmente calar esses debates. Nós vamos contar-vos a história, diziam eles, e nós vos diremos o que ela significa. Nós vos diremos como a história deve ser contada e proibimos-vos de a contardes de qualquer outra maneira. Se não gostardes da maneira como nós contamos a história, sois inimigos do Estado ou traidores à fé. Não tendes direitos. Ai de vós! Iremos atrás de vós e ensinar-vos-emos o significado da vossa recusa.
O animal contador de histórias tem de ter liberdade para as contar.
No final da reunião recebeu um presente. Do outro lado da sala havia um restaurante muito conhecido, Den Gyldene Freden («A Paz Dourada»), propriedade da academia. No fim das suas reuniões semanais, os Dezoito, ou aqueles que aparecessem, retiravam-se para uma sala privada do Paz Dourada para jantar. Cada um deles pagava, à chegada, com uma moeda de prata que tinha o lema da academia, Snille och smak. Talento e Bom Gosto. Quando saíam do restaurante as moedas eram-lhes devolvidas. Estas moedas nunca eram dadas ao público em geral, mas nesse dia ele saiu da academia com uma no bolso.
Em Nova Iorque, desta feita, não havia cortejo à espera, nem tenente Bob preocupado com aquilo que Elizabeth pudesse fazer com um garfo. (Ele tinha voado na Scandinavian Airlines, pela rota mais longa, via Oslo.) Havia pessoal de segurança para o conduzir através do aeroporto, mas mais nada. Não estava prevista nenhuma aparição pública, pelo que a polícia americana se dispôs a deixá-lo em grande parte entregue a si próprio. Permitiram-lhe gozar uns dias de quase liberdade, de estar o mais próximo dela que tinha estado em quase quatro anos. Instalou-se no apartamento de Andrew Wylie e os elementos do NYPD ficaram nos seus carros lá em baixo, na rua. Durante esses dias fez as pazes com Sonny Mehta. E jantou com Thomas Pynchon.
Uma das melhores qualidades de Andrew era a sua relutância em guardar ressentimentos. «Tu e o Sonny deviam fazer as pazes», disse ele. «Há muito tempo que são amigos. É o que está certo fazerem.» E havia boas razões comerciais para ele oferecer o ramo de oliveira. A longo prazo, a Random House era a editora mais provável para assumir a publicação da edição de bolso de Os Versículos Satânicos. A Penguin nunca o faria, e, como a Penguin era a distribuidora da Granta Books, era difícil imaginar uma relação a longo prazo com a Granta, a despeito da extraordinária amizade e heroísmo de Bill. «Não podemos perder de vista o objetivo», observou Bill, «e o objetivo é a publicação normal de todos os livros, incluindo os Versículos.» Agora que a edição da Consortium tinha vencido a barreira da edição de bolso, seria possível, na opinião dele, persuadir Sonny a assumir novos livros sem medo, e também a aceitar a responsabilidade de longo prazo pelas obras disponíveis em existência. «Assim de repente não», disse Andrew, «mas talvez depois de publicarem o próximo romance. Penso mesmo que o farão. E é isso que devia ser feito.» Ele e Gillon tinham avançado e fechado o negócio com Sonny e a Knopf para O Último Suspiro do Mouro. Haviam também apaziguado Bill, que ficara muito aborrecido quando lhe deram conta do plano. Mas Bill era primeiro um amigo e só depois editor e tinha um coração suficientemente grande para perceber o que Andrew pretendia. Salvara Harun de Sonny e nesta altura aceitou ceder-lhe o Mouro sem rancor.
Antes de o acordo poder ser assinado, ele e Sonny precisavam de enterrar o machado de guerra e era esse o verdadeiro propósito da viagem a Nova Iorque. Andrew contactou também a agente (e mulher) de Thomas Pynchon, Melanie Jackson, e o retirado autor de O Arco-Íris da Gravidade aceitou avistar-se com eles. No final foram combinados dois encontros. Ele e Pynchon jantaram com Sonny no apartamento do centro da cidade dos Mehtas. O desaguisado com Sonny foi reparado com um abraço e a questão de Harun ficou por discutir. Era a taciturna maneira de Sonny fazer as coisas – deixar as coisas incómodas por dizer e seguir adiante – e talvez fosse melhor assim. Depois chegou Pynchon, exatamente com o aspeto que Thomas Pynchon devia ter. Era alto e vestia uma camisa de flanela aos quadrados vermelhos e brancos e calças de ganga, tinha uma cabeleira branca à Albert Einstein e uns dentes da frente de Bugs Bunny. Depois de meia hora inicial de conversa empolada, Pynchon pareceu descontrair-se e falou longamente da história do operariado americano e da sua própria filiação, que datava dos seus primeiros tempos de trabalho como redator técnico na Boeing, no sindicato dos escritores técnicos. Era estranho imaginar aqueles autores de manuais do utilizador a ouvirem falar o grande romancista americano, que talvez vissem como o sujeito que dantes escrevia o folheto de segurança do míssil supersónico Bomarc CIM-10, sem fazerem ideia da maneira como o conhecimento desse míssil por parte de Pynchon inspirara as suas extraordinárias descrições dos foguetes V-2 da Segunda Guerra Mundial a caírem sobre Londres. A conversa prolongou-se muito para além da meia-noite. A certa altura Pynchon disse: «Vocês provavelmente estão cansados, hem?», e realmente estavam, mas pensavam também: É Thomas Pynchon, não podemos ir para a cama.
Quando Pynchon finalmente se foi embora, ele pensou: Muito bem, então agora somos amigos. Quando eu vier a Nova Iorque talvez nos encontremos ocasionalmente para tomarmos uma bebida ou comermos qualquer coisa e aos poucos acabaremos por nos conhecer melhor.
Mas nunca mais se encontraram.
Dias emocionantes. Deu uma volta de buggy pelo parque com Gita e embora uma velhota tenha exclamado «Eh lá!», todas as outras pessoas ficaram impassíveis. Tomou o pequeno-almoço com Giandomenico Picco, que disse: «A chave são os Estados Unidos.» Passeou em Battery Park e no Lincoln Center. No gabinete de Andrew teve uma emotiva reunião com Michael Herr, que tinha regressado à América e vivia na parte setentrional do estado de Nova Iorque, na cidade da sua infância, Cazenovia, que ficava muito perto de Chittenango, a cidade natal de L. Frank Baum, o autor de O Feiticeiro de Oz. Sonny deu uma receção em sua honra, e Paul Auster e Siri Hustvedt, Don DeLillo, Toni Morrison, Susan Sontag, Annie Leibovitz e Paul Simon estavam todos lá. O seu momento favorito dessa noite de libertação, em que se sentiu novamente parte do único mundo que alguma vez quisera habitar, foi quando Bette Bao Lord disse a Susan Sontag, de cara séria, querendo realmente saber a resposta: «Tens algum tique interessante, Susan?»
Ele e Elizabeth foram até Long Island com Andrew e Camie Wylie à sua casa de Water Mill, onde se lhes juntaram Ian McEwan, Martin Amis, David Rieff, Bill Buford e Christopher e Carol Hitchens. Andrew deu uma receção na qual Susan Sontag revelou um dos seus tiques interessantes. Ela era na realidade duas Susans, uma Susan Boa e uma Susan Má, e enquanto a Susan Boa era animada, divertida, leal e bastante distinta, a Susan Má podia ser um monstro tirânico. Uma empregada subalterna da agência Wylie disse qualquer coisa sobre o conflito na Bósnia que não agradou a Susan; a Susan Má veio ao de cima aos rugidos e a agente subalterna da Wylie esteve em risco de ser devorada. Não era uma luta justa, a de Susan Sontag contra aquela jovem, que não podia dar-lhe réplica, fosse como fosse, porque Sontag era uma cliente importante da Agência Wylie. Era necessário salvar a vida da jovem agente, e ele e Bill Buford acorreram e silenciaram a imponente Sontag bombardeando-a com insignificâncias. «Olha lá, Susan, gostas da rotação dos Yankees?» «O quê? De que estão vocês a falar? Quero lá saber do raio da rotação dos Yankees! Estou só a dizer a esta jovem…» «Sim, mas tens de reconhecer, Susan, que El Duque é uma coisa do outro mundo.» «Não, isto é importante, esta jovem pensa que na Bósnia…» «O que é que achas do vinho, Susan? Acho que o tinto é capaz de ter um bocadinho de rolha.» Sontag acabou por se calar, derrotada pelas irrelevâncias, e foi concedido à jovem agente o direito de viver.
Novembro estava frio, mas correram pela praia a jogar com uma bola de futebol, a atirar pedras pela água fora e a fazer os seus disparatados jogos de palavras (o jogo dos Títulos que Não Eram Suficientemente Bons, por exemplo: O Sr. Jivago, O Adeus ao Armamento, Por Quem os Sinos Triplicam, Dois Dias na Vida de Ivan Denisovich, Mademoiselle Bovary, A Parentela Forsyte, O Vasto Gatsby, Cab Driver, O Amor nos Tempos de Gripe, Toby-Dick, Advérbio 22, Raspberry Finn), sem agentes de segurança à vista. Nesses dias de amizade captou um vislumbre de esperança no futuro. Se a América o deixasse vir e ficar tranquilamente em solo americano e correr os seus riscos, talvez essa fosse a melhor possibilidade de encontrar alguma liberdade a curto prazo; talvez ele pudesse alcançar pelo menos uma liberdade a tempo parcial, durante um ano, ou dois, ou três, enquanto lutava pelo fim das ameaças. O que era ele, afinal, senão uma massa encurralada ansiosa por respirar liberdade? Ouviu a canção da estátua da baía e pareceu-lhe que era para si que ela cantava.
A sua editora canadiana Louise Dennys, presidente do PEN canadiano, sobrinha de Graham Greene e a melhor editora de Toronto, além de constituir (com Ric Young, ainda mais alto e igualmente deslumbrante) o casal feliz de maior estatura e mais bem-parecido que ele conhecia, queria que ele fizesse uma das suas entradas inesperadas na festa anual de beneficência do PEN canadiano. Ela esperava que se sucedessem reuniões com políticos importantes e que o Canadá pudesse ser persuadido a «associar-se» entusiasticamente. Tinham arranjado um avião particular. Era um avião de se lhe tirar o chapéu, com um interior concebido por Ralph Lauren, e foi o voo transatlântico mais cómodo da sua vida. Porém, teria preferido pôr-se na fila em Heathrow como qualquer passageiro, viajando como toda a gente viajava. Quando a vida era uma série de crises e de soluções de emergência, era a normalidade que parecia um luxo – infinitamente desejável, mas inatingível.
Em Toronto eram esperados por Ric Young e pelo romancista John Ralston Saul, em representação do PEN, e foram conduzidos à residência de Michael Ondaatje e Linda Spalding. No dia seguinte iniciou-se o trabalho. Foi entrevistado, entre muitos outros, pelo mais importante jornalista canadiano, Peter Gzowski, que o interrogou, no seu programa de rádio, sobre a sua vida sexual. «Sem comentários», disse ele. «Mas», insistiu Gzowski, «isso não quer dizer que não haja sexo, pois não?» Ao almoço encontrou-se com o primeiro-ministro de Ontario, cujo auxílio tinha sido o fator crucial na obtenção do avião. Rae era jovem, simpático, loiro, calçava sapatilhas e disse que tinha aceitado ir ao palco na festa de beneficência apesar de a mulher recear que o matassem. Acontece que a segurança canadiana aconselhara todos os políticos a não se encontrarem com ele; ou podia tratar-se de uma desculpa cómoda. Fosse qual fosse a razão, estava a revelar-se difícil organizar as reuniões. Nessa noite ele e Elizabeth jantaram em casa de John Saul e da jornalista da televisão e futura governadora-geral do Canadá, Adrienne Clarkson, e a seguir ao jantar Adrienne pôs-se de pé e cantou-lhes «Hello, Young Lovers» com uma bela e potente voz.
Na noite seguinte estavam todos nos bastidores do Winter Garden Theater e ele vestiu a T-shirt do PEN que Ric lhe comprara. John Irving chegou, a sorrir. Peggy Atwood entrou precipitadamente, de chapéu de cowboy e blusão com franjas, e beijou-o. A seguir começou a parte «Rushdie» do programa, que lhe pareceu a maior das homenagens literárias, com um escritor após outro a ler uma parte da horrível cronologia da fatwa, para depois ocupar um assento no palco. John Irving falou amavelmente do primeiro encontro que haviam tido, há muito tempo, e leu o princípio e o final de Os Filhos da Meia-Noite, após o que Atwood o apresentou e ele subiu ao palco e mil e duzentas pessoas tiveram um sobressalto e a seguir manifestaram com um bramido a sua solidariedade e amor. Esta história de ser transformado num ícone era muito estranha, pensou. Não se sentia icónico. Sentia-se… real. Mas neste preciso momento era possível que fosse a melhor arma que tinha. O Salman-ícone simbólico que os seus apoiantes tinham construído, um idealizado Salman da Liberdade que defendia imaculada e inabalavelmente os mais altos valores, contrariava e poderia até no final derrotar a versão demoníaca de si próprio construída pelos seus adversários. Levantou o braço e acenou e, quando o bramido amainou, falou de modo ligeiro de caças às bruxas e do perigoso poder da comédia, após o que leu a sua história «Cristóvão Colombo e a Rainha Isabel de Espanha Consumam a Sua Relação». Louise pretendera que ele fizesse isso, que estivesse ali como um escritor entre gente da literatura e que lhes oferecesse a sua escrita. Terminada a história, Louise entrou e leu uma mensagem de apoio da secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros canadiana, Barbara Macdougall, após o que entrou Bob Rae e o abraçou – foi o primeiro chefe de governo do mundo a fazê-lo – e o bramido irrompeu outra vez. Foi uma noite que ele nunca esqueceria.
A embaixada iraniana em Ottawa protestara junto do governo canadiano por não ter sido previamente informada da sua visita. Era a melhor piada da semana.
Antes, durante e depois destas viagens ele e Elizabeth mudaram-se para a nova casa. Era uma casa que ele nunca teria escolhido, numa zona em que nunca teria desejado morar; era demasiado grande, devido aos polícias que tinham de morar com eles, demasiado cara e demasiado conservadora. Contudo, David Ashton Hill fizera um esplêndido trabalho e Elizabeth tinha-a equipado com mobiliário bonito e ele dispunha de uma sala de trabalho espetacular, e acima de tudo era a sua casa, não fora alugada para ele por delegados prestáveis, nem fora para ele descoberta por polícias ou emprestada por amigos graças à bondade dos seus corações; e portanto ele amava-a e entrou nela numa espécie de estado de êxtase. Não há sítio como o lar. O lambisgoiomóvel cruzou o portão elétrico, a porta blindada da garagem abriu-se e voltou a fechar-se atrás de si, e ei-lo ali. Nunca nenhum polícia o forçaria a deixá-la. Irmão, eu estou demasiado velho para empreender de novo as minhas viagens, dissera o rei Carlos II após a Restauração, e os sentimentos do rei eram também os seus. Martinho Lutero vinha-lhe também à mente. Hier stehe ich. Ich kann nicht anders. Martinho Lutero não estava a falar de propriedades, evidentemente. Mas era também isso que ele sentia. Aqui estou, dizia para consigo. Aqui também me sento e trabalho e ando na minha bicicleta de exercício e vejo televisão e tomo banho e como e durmo. Não posso fazer outra coisa.
Bill Buford pedira-lhe para ser um dos membros do júri dos Melhores Jovens Romancistas Britânicos de 1993. Em 1983 ele figurara na primeira dessas listas ao lado de Ian McEwan, Martin Amis, Kazuo Ishiguro, Graham Swift e Julian Barnes. Agora andava a ler as obras de jovens escritores: Jeanette Winterson, Will Self, Louis de Bernières, A. L. Kennedy, Ben Okri, Hanif Kureishi. Os seus colegas de júri eram A. S. Byatt, John Mitchinson, das livrarias Waterstone’s, e o próprio Bill. Houve descobertas agradáveis (Iain Banks) e também deceções (Sunetra Gupta não era cidadã britânica, de maneira que não podia ser considerada). Chegaram rapidamente a acordo quanto a mais de metade dos escritores incluídos nos vinte finalistas e a seguir começaram as discordâncias interessantes. Ele discutiu com Antonia Byatt acerca de Robert McLiam Wilson e perdeu. Ela era favorável a J. D. Taylor, mas foi uma batalha que, por sua vez, também não ganhou. Houve desacordo acerca de qual das filhas de Lucien Freud podiam incluir, Esther Freud ou Rose Boyt. (Esther entrou, Rose não.) Ele era um grande admirador da obra de A. L. Kennedy e conseguiu recrutar apoio suficiente para que ela vencesse a oposição de Antonia Byatt. Foi um debate sério e apaixonado e no final houve dezasseis autores acerca dos quais todo o júri estava em total acordo e quatro últimos sobre os quais todos discordavam com a mesma veemência. Seguidamente a lista foi publicada e as piranhas do pequeno lago do mundo literário de Londres atiraram-se a ela.
Harry Ritchie, no Sunday Times, depois de conseguir direitos de exclusividade para revelar os nomes dos vinte escritores e de ter concordado em apoiar adequadamente a promoção, tomou a iniciativa de denegrir a lista. Ele telefonou a Ritchie e perguntou: «Já leu todos esses escritores? Porque eu, por mim, não os tinha lido antes de aceitar esta tarefa.» Ritchie admitiu que lera apenas cerca de metade dos escritores da lista. Isso não o impedira de os deitar abaixo. Aparentemente já ninguém podia contar com os quinze minutos de graça da praxe antes de começar a ser zurzido. Mal se saía do ovo, levava-se logo uma marretada na cabeça. Três dias depois James Wood, o malévolo Procustes da crítica literária, que torturava as suas vítimas na estreita cama das suas inflexíveis ideologias literárias, estirando-as dolorosamente ou amputando-as pelos joelhos, aplicou o tratamento aos Vinte no Guardian. Bem-vindos à literatura inglesa, rapazes e raparigas.
No dia de Natal ele e Elizabeth puderam convidar Graham Swift e Candice Rodd para passarem o dia com eles. No dia 26 de dezembro, Nigella Lawson e John Diamond e Bill e Alicja Buford foram jantar lá a casa. Elizabeth, que adorava a festividade e todos os seus rituais – ele começara a chamar-lhe, afetuosamente, uma «fundamentalista do Natal» – ficou muito contente por conseguir «fazer o Natal» para toda a gente. Passados quatro anos podiam passar a temporada na sua própria casa, com a sua própria árvore, retribuindo os anos de hospitalidade e gentileza dos amigos.
Mas as asas adejantes do anjo da morte nunca andavam longe. A irmã de Nigella, Thomasina, estava a sair-se mal na sua luta contra o cancro da mama. O filho de Antonia Fraser, Orlando, sofrera um grave acidente de automóvel na Bósnia, fraturara muitos ossos e perfurara um pulmão. Sobreviveu, contudo. O namorado da enteada de Ian McEwan, Polly, foi apanhado por um incêndio numa casa em Berlim. Não sobreviveu.
Clarissa telefonou-lhe, lavada em lágrimas. A agência literária A. P. Watt tinha-a notificado de que seria dispensada dentro de seis meses. Ele falou com Gillon Aitken e Liz Calder. Era um problema que tinha de ser resolvido.
Foi fotografado numa espécie de jaula por Terry O’Neill para o Sunday Times de Londres. Esta fotografia sairia na capa da revista de domingo, para ilustrar um ensaio dele ao qual seria dado o título «O Último Refém». Agarrado às barras enferrujadas que O’Neill tinha encontrado para que ele se pusesse atrás delas, perguntava a si mesmo se alguma vez viria o dia em que os jornalistas e fotógrafos se interessassem por ele como romancista. Não parecia provável. Acabava de saber por Andrew que, apesar dos melhores esforços da agência, a Random House declinara publicar a edição de bolso de Os Versículos Satânicos. A Consortium não podia ser já dissolvida. No entanto, acrescentava Andrew, muitas figuras de topo da Random House – Frances Coady e Simon Master, nos escritórios de Londres, e Sonny Mehta, em Nova Iorque – declaravam estar «muito zangados» com esta recusa pelos chefões (os mesmos chefões que, ao recusarem associar-se ao consórcio para a edição de bolso, tinham dito que «não estavam para ser empurrados por nenhum maldito agente») e garantiam estar a trabalhar para «dar-lhe a volta».
Uma viagem política a Dublin. Elizabeth e ele foram convidados para ficar na casa de Bono em Killiney. Havia uma bela casinha de hóspedes ao fundo do jardim dos Hewsons, com vistas de CinemaScope da baía de Killiney. Os hóspedes eram encorajados a assinar o seu nome e rabiscar mensagens ou desenhos na parede da casa de banho. Na primeira noite ele conheceu escritores irlandeses em casa do jornalista do Irish Times Paddy Smyth, cuja mãe, a eminente romancista Jennifer Johnston, lhe contou a história segundo a qual Tom Maschler, da Jonathan Cape, lhe tinha dito, depois de ler o seu primeiro romance, achar que ela não era uma escritora e que nunca escreveria outro livro, razão pela qual não ia publicar aquele que ela escrevera. Por conseguinte, houve mexericos literários, mas também trabalho político. O ex-primeiro-ministro Garret Fitzgerald era um dos vários políticos presentes, que prometeram unanimemente o seu apoio.
A presidente Mary Robinson recebeu-o na sua residência oficial, Phoenix Park – o seu primeiro encontro com um chefe de Estado! – e escutou-o pestanejando e calada enquanto ele apresentava o seu caso. Falou pouco, mas murmurou: «Não é pecado ouvir.» Ele falou na conferência da Trinity sobre liberdade de expressão «Let in the Light» e mais tarde, durante as bebidas para os oradores, houve uma mulher baixa e entroncada que veio ter com ele e lhe disse que por ele se ter oposto à disposição legal chamada Secção 31, que proibia o acesso do Sinn Féin à televisão irlandesa, «eliminou todo o perigo para si vindo de nós». «Estou a ver», respondeu ele. «E nós quer dizer quem?» A mulher fitou-o nos olhos. «Ora porra, o senhor sabe muito bem quem nós somos», disse. Depois de receber este livre-trânsito do IRA foi levado ao lendário programa de entrevistas de Gay Byrnes Late Late Show e, como Gay disse que tinha lido e gostado de Os Versículos Satânicos, praticamente toda a Irlanda decidiu que o livro e o seu autor deviam ser bons.
De manhã visitou a torre Martello de Joyce, onde o majestoso e roliço Buck Mulligan vivera com Stephen Dedalus, e ao subir os degraus até ao telhado da casamata sentiu-se, como muitos se tinham sentido antes dele, a entrar no romance. Introibo ad altare Dei, disse baixinho. Depois, no Abbey Theater, um almoço com escritores e o novo ministro das artes, o poeta Michael D. Higgins, todos com emblemas na lapela que diziam eu sou salman rushdie. Depois do almoço dois dos outros Salman Rushdies, Colm Tóibín e Dermot Bolger, levaram-no a passear ao farol de Howth Head (com a Garda a segui-los a uma distância cortês) e o faroleiro John deixou-o acender a luz. No domingo Bono levou-o discretamente a um bar em Killiney sem dizer nada à Garda e durante meia hora ele sentiu-se tonto com aquela liberdade desprotegida e porventura também graças à desprotegida Guinness. Quando regressaram à casa Hewson, a Garda olhou para Bono com ar de pesarosa acusação mas absteve-se de usar palavras duras para com o filho preferido do país.
No Independent on Sunday estava a ser atacado pela direita e pela esquerda: o Príncipe de Gales chamava-lhe um mau escritor cuja proteção ficava demasiado cara, enquanto o jornalista de esquerda Richard Gott, um antigo simpatizante dos soviéticos que acabara por ser obrigado a despedir-se do Guardian quando se provou que tinha «aceitado ouro dos Vermelhos», atacava as suas opiniões políticas e a sua escrita «dessintonizada». Sentiu repentinamente, com a força de uma epifania, a verdade daquilo que escrevera em «De Boa-Fé»: que a liberdade era sempre conquistada, nunca dada. Talvez devesse recusar a proteção e limitar-se a viver a sua vida. Mas poderia arrastar Elizabeth e Zafar para esse arriscado futuro? Não seria uma irresponsabilidade? Tinha de o discutir também com Elizabeth e Clarissa.
Em Washington tinha tomado posse um novo presidente. Christopher Hitchens telefonou. «Clinton é decididamente a teu favor», disse. «Isso é garantido.» John Leonard publicou um artigo no Nation em que recomendava que o novo presidente, que se sabia ser um grande leitor e dissera que o seu livro preferido era Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, lesse Os Versículos Satânicos.
Os Bailes dos Polícias Secretos eram espetáculos de beneficência dos anos oitenta para angariação de fundos a favor da Amnistia Internacional, mas os comediantes e músicos que neles participavam não estavam quase certamente a par de que os polícias secretos não davam na realidade um baile – ou pelo menos uma festa significativa. Todos os invernos, em fevereiro ou por essa altura, a festa anual da Brigada «A» tomava conta do Peelers, o grande espaço de bar/restaurante que ficava num dos andares superiores da New Scotland Yard e a lista de convidados era diferente de qualquer outra em Londres. Toda a gente que estava a receber ou tinha recebido proteção era convidada, e todos esses «notáveis» faziam os possíveis por comparecer, como forma de agradecerem aos agentes que tinham tomado conta deles. Primeiros-ministros passados e presentes, ministros de Estado da Irlanda do Norte, ministros da Defesa, ministros dos Negócios Estrangeiros de ambos os principais partidos trocavam mexericos e bebiam com os agentes de proteção e OFDs53. Além disso, as equipas de proteção eram autorizadas a convidar uns quantos amigos e associados dos seus notáveis que tivessem sido especialmente úteis. Tudo somado, enchia uma boa sala.
Ele diria nesses anos que, se alguma vez escrevesse a história da sua vida, chamar-lhe-ia Portas Traseiras do Mundo. Toda a gente podia entrar pela porta principal. Tinha de ser-se realmente alguém para entrar pela porta da cozinha, pela entrada do pessoal, pela janela das traseiras ou pela conduta do lixo. Mesmo quando fora levado à New Scotland Yard para o baile dos polícias secretos, entrara pela garagem subterrânea e fora discretamente transportado ao andar de cima num elevador interditado para seu uso. Os outros convidados usaram a entrada principal, mas ele era o tipo que entrava pelas traseiras. Uma vez no Peelers, porém, passou a fazer parte daquela alegre turba – alegre, em parte, porque as únicas bebidas disponíveis pareciam ser enormes copos de uísque e gim – e todos os elementos da «sua» equipa vieram cumprimentá-lo com um jovial «Joe!»
Os agentes de proteção tinham especial deleite em juntar notáveis que em condições normais nunca se conheceriam, só para ver o que acontecia. Conduziram-no pelo meio da multidão ao sítio onde um velhote débil, com os resquícios de um bigode famoso, se encontrava, levemente corcovado, ao lado da sua solícita mulher. Ele já se cruzara efetivamente uma vez com Enoch Powell, nos anos setenta, quando vivia na casa de Clarissa da Lower Belgrave Street. Fora ao quiosque local, o Quinlan’s, para comprar um jornal, e eis que Powell vinha na sua direção, Powell com os seus olhos de demónio, no auge da fama, poucos anos antes do discurso de «rios de sangue» que destruíra a sua carreira política. Como os romanos, parece-me ver o rio Tibre espumando de tanto sangue, dissera ele, expressando o medo que todos os britânicos racistas tinham dos estrangeiros escuros. Nesse dia, no Quinlan’s, o jovem emigrante não violento que estava diante do célebre Enoch tinha pensado seriamente em pregar-lhe um murro no nariz, e ficara sempre um pouco desapontado consigo próprio por não o ter feito. Mas a Lower Belgrave Street pululava de gente que estava a pedir que a pusessem a deitar sangue do nariz: Madame Somoza, a mulher do ditador, no número 35, mesmo ao lado, e aqueles simpáticos Lucans, no número 46 (Lorde Lucan, à data, ainda não tentara matar a mulher, matando antes a ama; mas estava a preparar-se para isso). A partir do momento em que se começasse a pregar murros no nariz às pessoas, era difícil saber onde parar. Provavelmente fora boa ideia afastar-se de Enoch, dos globos oculares coruscantes e do lábio superior pós-hitleriano.
Vinte anos mais tarde, eis Powell de novo. «Não», disse ele aos seus protetores. «Em termos gerais, preferia que não.» Ouviram-se então exclamações de «Ora, ande lá, Joe, ele agora é um velhote», e outra que penetrou as suas defesas: «A Sr.a Powell, está a ver, Joe?», disse Stanley Doll, «é uma vida difícil para ela, tomar conta do velhote. Ela quer mesmo conhecê-lo. Significaria muito para ela.» Por conseguinte, foi Margaret Powell que ele e Elizabeth concordaram em conhecer. Ela tinha vivido em Carachi quando jovem, no mesmo bairro onde moravam familiares dele, e queria conversar sobre os velhos tempos. O velho Enoch mantinha-se ao lado dela, corcovado e a dizer que sim com a cabeça, calado, já demasiado decrépito para valer um murro. Depois de um intervalo cortês desculpou-se, pegou em Elizabeth pelo cotovelo, virou costas e estava ali Margaret Thatcher a olhar diretamente para ele, com a sua malinha, o cabelo com laca e o sorrisinho contrafeito.
Ele nunca teria imaginado que a Dama de Ferro fosse daquelas pessoas que mexem nas outras quando falam. Ao longo de toda a sua breve conversa a ex-primeira-ministra estava constantemente a pôr-lhe as mãos em cima. Viva, meu caro, com a mão levemente poisada nas costas da sua, como vai, com a mão a começar a acariciar-lhe o antebraço, estes homens maravilhosos têm tomado bem conta de si?, agora com a mão no seu ombro; o melhor era ele falar, disse de si para si, antes que ela principiasse a fazer-lhe festas na cara. «Sim, obrigado», disse, e ela baixou a cabeça naquele famoso aceno sacudido, Bom, bom, com a mão a acariciar-lhe novamente o braço, bem, cuide de si, e por ali ficaria, se Elizabeth não interrompesse para perguntar, muito firmemente, o que propunha o governo britânico fazer para pôr termo às ameaças. Lady Thatcher pareceu levemente surpreendida por ver palavras tão duras saídas da boca daquela coisinha linda, e o seu corpo retesou-se um pouco. Oh, minha querida, e agora era Elizabeth quem ela acariciava, sim, deve ser muito preocupante para si, mas não me parece que alguma coisa se vá modificar enquanto não houver uma mudança de regime em Teerão. «Só isso?», volveu Elizabeth. «É essa a sua política?» A mão de Thatcher recolheu-se. O olhar firme desviou-se e fixou-se no infinito. Fazendo um vago aceno e emitindo um ruído arrastado de Mmm, ela afastou-se.
Elizabeth passou o resto da noite zangada. Só isso? É a isso que se resume todo o plano que eles têm? Mas ele pensou em Margaret Thatcher a acariciar-lhe o braço e sorriu.
O quarto aniversário da fatwa foi tão acalorado como sempre. De Teerão, onde o aiatola Khamenei, o presidente Rafsanjani, Nateq-Nouri, o porta-voz do Majlis, e outros estavam claramente irritados com o volume crescente das objeções oficiais ao seu criminoso planozinho, vieram os habituais ruídos arrepiantes. As suas ameaças tiveram resposta do Congresso dos Estados Unidos, da Comissão de Direitos Humanos da ONU e até do governo britânico. Douglas Hurd pronunciou-se em Estrasburgo e o seu vice, Douglas Hogg, falou em Genebra, identificando o caso Rushdie como «uma questão de direitos humanos de grande importância». Na Noruega, um negócio de petróleo com o Irão estava a ser bloqueado; uma linha de crédito de um milhar de milhão de dólares prometida pelo Canadá ao Irão tinha sido igualmente suspensa. Ele próprio estava num local inesperado: a fazer o sermão – ou, dado que não era um homem do clero, a palestra – do púlpito da Capela do King’s College.
Antes de ele começar a falar, o reitor do King’s alertou-o para o eco. «Faça pausas depois de umas quantas palavras», disse ele, «caso contrário as reverberações torná-lo-ão inaudível.» Ele sentiu que estavam a revelar-lhe um mistério: era então por isso que os sermões tinham sempre aquele som. «Estar… nesta casa… é recordar… o que de mais belo tem… a fé religiosa», principiou ele, e pensou: Pareço um arcebispo. Prosseguiu, falando na casa de Deus das virtudes do secular e lamentando a perda de outros que tinham travado o bom combate – Farag Fouda, no Egito, e agora o mais popular jornalista turco, Ugur Mumcu, assassinado por uma bomba colocada no automóvel. A desumanidade dos devotos invalidava as suas pretensões de virtude. «Tal como a Capela do King’s… pode ser tida… como um símbolo… do que há de melhor… na religião», disse ele com a sua melhor dicção eclesiástica, também a fatwa… se tornou… um símbolo… do que ela tem de pior. A própria fatwa… pode ser vista… como um conjunto… de modernos versículos satânicos. Na fatwa… mais uma vez… o mal… assume a máscara… da virtude… e os crentes… são… enganados.»
A 26 de fevereiro de 1993, o World Trade Center de Nova Iorque foi objeto de um atentado bombista por parte de um grupo chefiado por um kuwaitiano chamado Ramzi Yousef. Houve seis mortos e mais de mil feridos, mas as torres não caíram.
Os amigos diziam-lhe que a campanha estava a tornar-se muito eficaz e que ele estava a comportar-se muito bem, mas ele sentia-se com demasiada frequência dominado por aquilo a que Winston Churchill chamava o «cão negro» da depressão. No mundo exterior era capaz de lutar; tinha aprendido a fazer o que tinha de ser feito. Quando regressava a casa, desmoronava-se muitas vezes e era Elizabeth que tinha de lidar com os destroços. David Gore-Booth disse-lhe que os Negócios Estrangeiros tinham falado com a British Airways mas a companhia aérea continuava a recusar-se a transportá-lo. Tom Phillips terminara o seu retrato do Sr. Bem-Disposto e oferecera-o à National Portrait Gallery, que decidira não o aceitar «nesta altura». Por vezes, quando lhe chegavam notícias deste género, bebia demasiado – antes da fatwa nunca fora grande bebedor – e nessas alturas não havia meio de resistir aos seus demónios e registava-se uma certa dose de mau génio induzido pela bebida. Tom Phillips dera-lhe o retrato do Sr. Bem-Disposto e, quando ele tentou pendurá-lo e descobriu que a sua caixa de ferramentas tinha desaparecido, explodiu numa fúria excessiva, que Elizabeth achou insuportável, entregando-se a uma crise de choro. Disse-lhe também que a ideia de desistir da proteção era uma loucura e que não viveria com ele numa casa desprotegida. Se ele prescindisse da proteção ficaria a viver sozinho.
Depois disso ele começou a ter mais cuidado com os sentimentos dela. Ela era uma mulher corajosa e dedicada e ele tinha sorte em a ter e não permitiria a si próprio estragar tudo. Decidiu pôr completamente de parte o álcool e, embora não o tenha conseguido totalmente, as noites de excesso terminaram e a moderação voltou. Não estava disposto a concretizar a praga de Marianne e a transformar-se no alcoólico que o pai fora. Recusava-se a transformar Elizabeth noutra versão da mãe, que sofrera longamente.
Doris Lessing estava a escrever as suas memórias e telefonou-lhe para as discutir. A maneira de Rousseau, dizia ela, era a única; havia apenas que dizer a verdade, dizer tanta verdade quanto possível. Mas os escrúpulos e as hesitações eram inevitáveis. «Na altura, Salman, eu era uma mulher bastante bonita e há nesse facto implicações que podemos não ter levado em consideração. As pessoas com quem tive ou quase tive casos… muitas delas são bem conhecidas e várias estão ainda vivas. Penso mesmo em Rousseau», acrescentou ela, «e espero que este livro seja uma obra emocionalmente honesta, mas será justo ser honesto com as emoções dos outros?» De qualquer maneira, concluiu ela, os verdadeiros problemas viriam no segundo volume. Ela estava ainda a escrever o primeiro, cujas personagens já tinham morrido ou «já não se importam». Com muitas risadas, foi pôr-se a escrever, animando-o a fazer o mesmo. Ele queria dizer, mas não disse, que andava outra vez a imaginar uma vida de não-escritor, a pensar na paz e sossego, talvez mesmo alegria, dessa vida. Mas estava resolvido a terminar o livro que então escrevia. Pelo menos este último suspiro.
E o livro ia progredindo lentamente. Em Cochim, Abraham Zogoiby e Aurora da Gama viviam o seu «amor de pimenta».
***
Em meados de março conseguiu finalmente voar para Paris. Os temíveis homens do RAID cercaram-no quando ele saiu do avião e informaram-no de que tinha de fazer exatamente, exatamente, o que eles dissessem. Levaram-no a grande velocidade até ao Grande Arche de la Défense e estava lá Jack Lang, ministro da Cultura e número dois do governo francês, para o cumprimentar, acompanhado de Bernard-Henri Lévy, e levá-lo ao auditório. Tentou não pensar na gigantesca operação de segurança a toda a volta do Arche e concentrar-se antes na extraordinária assembleia que o esperava, que parecia ser toda a intelectualidade francesa e a elite política, tanto da direita como da esquerda. (Exceto Miterrand. Nesses anos em França, era sempre sauf Miterrand.) Bernard Kouchner e Nicolas Sarkozy, Alain Finkielkraut e Jorge Semprún, Philippe Sollers e Elie Wiesel conviviam e comportavam-se cordialmente uns com os outros. Patrice Chéreau, Françoise Giroud, Michel Rocard, Ismail Kadaré, Simone Veil – era uma sala imponente.
Jack Lang, na introdução ao debate, disse: «Temos de agradecer hoje a Salman Rushdie, porque ele uniu a cultura francesa.» Isto arrancou uma sonora gargalhada. Depois, durante duas horas, houve um intenso período de perguntas. Ele esperava ter causado boa impressão, mas não houve tempo para saber se assim fora, porque, mal a reunião terminou, a equipa do RAID fê-lo sair à pressa da sala e levou-o de carro dali o mais rapidamente possível. Conduziram-no à embaixada britânica, que, sendo tecnicamente solo britânico, era o único sítio onde lhe era permitido passar a noite. Uma noite. O embaixador britânico Christopher Mallaby acolheu-o com grande amizade e cortesia e tinha até lido alguns dos seus livros. Mas também esclareceu que se tratava de um convite para um só dia. Ele não podia pensar na embaixada como um hotel. Na manhã seguinte foi conduzido ao aeroporto e despedido de França.
No caminho de ida e volta da embaixada ficou chocado ao reparar que a Place de la Concorde estava vedada ao trânsito. Todas as ruas que iam dar ou saíam da Concorde estavam bloqueadas por polícias, de forma que ele, no seu cortejo automóvel, pudesse passar rapidamente pela Place sem entraves. Aquilo entristeceu-o. Ele não queria ser a pessoa para quem a Concorde era encerrada. O cortejo passou por um pequeno café-bistrot e toda a gente que tomava café debaixo do seu toldo olhava na sua direção, com um misto de curiosidade e um pouco de ressentimento nos rostos. Pergunto a mim mesmo, pensou ele, se alguma vez voltarei a ser uma daquelas pessoas a tomar um café no passeio e a ver o mundo passar.
A casa era bonita mas parecia uma gaiola dourada. Tinha aprendido a suportar os ataques islâmicos que contra ele eram desferidos; no fim de contas não era de espantar que os fanáticos e intolerantes continuassem a comportar-se como intolerantes e fanáticos. Era mais difícil lidar com as críticas britânicas não muçulmanas, que aumentavam de volume, e com a aparente duplicidade do ministério dos Negócios Estrangeiros e do governo de John Major, que consistentemente prometiam uma coisa e faziam outra. Escreveu um artigo furioso em que deixava transparecer toda a raiva e deceção. Cabeças mais frias – Elizabeth, Frances, Gillon – persuadiram-no a não o publicar. Em retrospetiva, pensava que fizera mal em seguir o seu conselho. De todas as vezes que optara por se calar durante esse período da sua vida – por exemplo, durante o ano entre a fatwa e a publicação de «De Boa-fé» – o silêncio parecera-lhe posteriormente um erro.
Na segunda-feira, dia 22 de fevereiro, o gabinete do primeiro-ministro anunciou que o Sr. Major tinha aceitado em princípio conceder-me uma audiência, como mostra da determinação do governo de defender a liberdade de expressão e o direito dos seus cidadãos a não serem mortos por bandidos a soldo de uma potência estrangeira. Mais recentemente marcou-se uma data para essa audiência. Registou-se de imediato uma vociferante campanha do grosso dos deputados conservadores no sentido de que a audiência fosse cancelada, devido à sua interferência com a «parceria» da Grã-Bretanha com os mulás homicidas de Teerão. A data – que me tinham assegurado ser «tão firme quanto é possível» – foi hoje adiada sem explicação. Por uma curiosa coincidência, a deslocação prevista para princípios de maio de uma delegação comercial britânica ao Irão pode agora ter lugar sem empecilhos. O Irão está a saudar esta visita – a primeira missão do género nos catorze anos decorridos desde a revolução de Khomeini – como um «progresso» nas relações. A sua agência noticiosa afirma que os britânicos prometeram que vão ser disponibilizadas linhas de crédito.
Está a tornar-se mais difícil manter a confiança na decisão do ministério dos Negócios Estrangeiros de lançar uma nova iniciativa internacional «com visibilidade» contra a célebre fatwa. De facto, não só nos apressamos a fazer negócios com o regime tirânico a que a administração americana chama «um fora da lei internacional» e rotula de o maior patrocinador do terrorismo do mundo, como nos propomos emprestar dinheiro a esse país para transacionar connosco. Entretanto, deduzo que me vão propor uma nova data para a minha pequena audiência. Mas ninguém do número 10 de Downing Street me contactou verbalmente ou por escrito.
O grupo de pressão «anti-Rushdie» dos conservadores – a sua denominação demonstra só por si o desejo dos seus membros de transformar isto numa questão de personalidade, em lugar de uma questão de princípio – inclui Sir Edward Heath e Emma Nicholson, bem como o conhecido paladino dos interesses iranianos, Peter Temple-Morris. Emma Nicholson diz-nos que passou a sentir «respeito e apreço» pelo regime iraniano (cujo historial de assassínios, mutilações e torturas do seu próprio povo foi recentemente condenado pelas Nações Unidas como estando entre os piores do mundo), enquanto Sir Edward, ainda protegido pelo Special Branch porque, há vinte anos, o povo britânico sofreu sob o desastroso governo do qual foi primeiro-ministro, critica a decisão de conceder proteção similar a um compatriota que corre presentemente maior perigo do que ele. Todas estas pessoas concordam num aspeto: a crise é culpa minha. Pouco importa que duzentos e tal dos mais eminentes iranianos no exílio tenham assinado uma declaração de absoluto apoio à minha pessoa. Que escritores, jornalistas e académicos de todo o mundo muçulmano – onde o ataque às ideias dissidentes, progressistas e acima de tudo secularistas ganha força de dia para dia – tenham dito aos meios de comunicação britânicos que «defender Rushdie é defender-nos a nós». Que Os Versículos Satânicos, uma obra legítima da imaginação livre, tenha muitos defensores (e onde há pelo menos duas opiniões, por que razão hão de aqueles que queimam livros ter a última palavra?), ou que os seus opositores não tenham sentido necessidade de a compreenderem.
Funcionários iranianos admitiram que Khomeini nem sequer viu alguma vez um exemplar do romance. Juristas iranianos afirmaram que a fatwa contraria a lei islâmica, para já não falar da lei internacional. Entretanto, a imprensa iraniana oferece um prémio de dezasseis moedas de ouro e uma peregrinação a Meca por uma caricatura que «prova» que Os Versículos Satânicos não é um romance, mas sim uma bem urdida conspiração ocidental contra o islão. Não parece todo este assunto, por vezes, a mais negra das comédias negras, um espetáculo barato de circo representado por palhaços homicidas?
Nos últimos quatro anos fui caluniado por muita gente. Não tenciono continuar a oferecer a outra face. Se foi correto atacar as pessoas de esquerda que foram companheiras de percurso do comunismo e as de direita que procuraram transigir com os nazis, os amigos do Irão revolucionário – homens de negócios, políticos ou fundamentalistas britânicos – merecem ser tratados com igual desdém.
Creio que atingimos um ponto de viragem. Ou levamos a sério a defesa da liberdade, ou não. Se levamos, espero que o Sr. Major se disponha em breve a declarar abertamente a sua posição conforme prometeu. Gostaria muito de discutir com ele as possibilidades de se aumentar a pressão sobre o Irão – na CEE, através da Commonwealth e da ONU, no Tribunal Internacional. O Irão precisa mais de nós do que nós precisamos do Irão. Em lugar de vacilar quando os mulás ameaçam cortar ligações comerciais, sejamos nós a pressioná-los economicamente. Descobri, nas minhas conversas por toda a Europa e na América do Norte, um amplo interesse de todos os partidos pela ideia de uma proibição de concessão de crédito ao Irão, como primeira etapa. Mas todos estão à espera de que o governo britânico tome a liderança. Nos jornais de hoje, porém, Bernard Levin sugere que nada menos que dois terços de todos os deputados conservadores ficariam encantados se assassinos iranianos conseguissem matar-me. Se estes deputados representam verdadeiramente a nação – se estamos assim tão pouco preocupados com as nossas liberdades, seja: suspendam a proteção, revelem o meu paradeiro e deixem vir as balas. Ou uma coisa, ou outra. Decidamo-nos.»
O muito adiado encontro com John Major teve finalmente lugar a 11 de maio no seu gabinete da Câmara dos Comuns. Ele tinha falado com Nigella Lawson antes de ir e a sua ponderação foi uma grande ajuda. «Ele não pode de maneira nenhuma recusar-se a apoiar-te», disse ela. «O mau estado da economia ajuda-te, porque, se ele não pode invocar sucesso económico, vai ter de ir em busca de alguma força moral.» Ela tinha também boas notícias: estava grávida. Ele disse-o a Elizabeth, ciente de que ela também queria muito engravidar. Mas como podiam eles pensar em trazer uma criança para o seu pesadelo, para a sua amena prisão? E depois havia o cromossoma simples translocado, que fazia da gravidez uma roleta biológica. Um bebé não parecia a opção mais sensata para um homem que estava prestes a implorar ao primeiro-ministro que o ajudasse a salvar a vida.
O primeiro-ministro não trazia afivelado o sorriso de boa pessoa que era a sua imagem de marca e não falou de críquete. Parecia fechado, talvez até um pouco à defesa, um homem que sabia que lhe ia ser pedido que fizesse coisas que talvez não quisesse fazer. Disse sem rodeios que não ia haver fotografias naquela audiência porque ele queria «minimizar a reação do Irão e do grosso dos seus próprios deputados». Era um começo pouco auspicioso.
«Gostaria de lhe agradecer os quatro anos de proteção», disse ele a Major. «Estou imensamente grato aos homens que cuidam de mim, arriscando a vida.» Major pareceu abalado. Este não era o Rushdie de que estava à espera, aquele que o Daily Mail descrevia como «malcriado, rabugento, deselegante, disparatado, grosseiro, desengraçado, tacanho, arrogante e egocêntrico». Tornou-se imediatamente claro que o primeiro-ministro tinha o Daily Mail na cabeça. (O jornal publicara um editorial a opor-se a esta audiência.) «Talvez devesse dizer esse género de coisas mais vezes em público, para corrigir a impressão que as pessoas têm de si», disse Major. «Eu digo-o sempre que falo com os jornalistas, senhor primeiro-ministro», volveu ele. Major acenou vagamente com a cabeça, mas pareceu mais descontraído e afável. A partir daí a audiência correu bem. Não era a primeira nem a última vez que as pessoas descobriam que, depois de conseguir apagar dos olhos a caricatura de Rushdie que vinha nos tabloides, ele era na realidade bastante sociável. «Você engordou», disse subitamente Major. «Obrigado, senhor primeiro-ministro», respondeu ele. «Devia ter o meu trabalho», tornou o primeiro-ministro, «que emagrecia num abrir e fechar de olhos.» «Ótimo», ripostou ele. «Eu faço o seu trabalho e o senhor faz o meu.» Depois disso ficaram quase amigos.
Major exprimiu o seu acordo quanto à abordagem com visibilidade. «Você devia ir ao Japão e envergonhá-los, obrigando-os a tomar uma atitude», disse ele. Discutiram a obtenção de uma resolução da Commonwealth a fim de que o Irão não pudesse caracterizar a questão como uma divergência de opinião entre o Oriente e o Ocidente. Falaram do Tribunal Internacional de Justiça; Major não queria levar lá o caso porque não queria «deixar o Irão encurralado». E foram unânimes quanto à valia de uma audiência com o presidente Clinton. Ele reproduziu ao primeiro-ministro o que dissera Picco, o negociador dos reféns da ONU. A chave são os Estados Unidos. Major acenou afirmativamente e olhou para os seus ajudantes. «Vamos ver o que podemos fazer para ajudar», disse.
Quando a notícia da audiência foi divulgada, acompanhada de uma declaração do primeiro-ministro a condenar a fatwa, o jornal oficial do regime iraniano Kayhan reagiu encolerizadamente. «O autor de Os Versículos Satânicos vai literalmente levar uma tareia-mestra.» Isto era póquer de apostas elevadas. Ele tentava deliberadamente subir a parada, e até agora os iranianos estavam a aguentar firme e recusavam-se a passar. Mas agora só havia um caminho a seguir. Ele tinha de subi-la de novo.
Clarissa telefonou a dizer que tinha um caroço no peito, «e é quatro em cinco na escala de probabilidades de cancro». Ia fazer a lumpectomia daí a seis dias e o resultado saber-se-ia uma semana depois. Havia um tremor na sua voz mas estava também presente nela a sua habitual coragem estoica. Ele ficou muito abalado. Telefonou-lhe de volta uns minutos mais tarde e ofereceu-se para pagar o tratamento, o que fosse preciso. Falaram sobre a possibilidade de se evitar uma mastectomia total e ele transmitiu-lhe as informações que recolhera de Nigella e Thomasina sobre a elevada qualidade da unidade de cancro da mama do Guy’s Hospital e o nome do especialista, o Dr. Fentiman. O cancro da mama tinha sido tema de capa da revista do Sunday Times e lá aparecia outra vez Fentiman. Pensou: Ela tem de o vencer. Não o merece. Vai vencê-lo. Ele e Elizabeth fariam tudo o que pudessem. Mas perante uma doença fatal a pessoa está sempre só. E Zafar teria também de o enfrentar; Zafar, que tinha já passado quatro anos a temer por um dos pais. O golpe não viera da direção para onde ele estava a olhar. Era a mãe, a parte «segura», que estava agora em perigo. Não podia deixar de pensar no futuro. Como podia ele proporcionar a Zafar uma vida passível de ser vivida se o rapaz perdesse a mãe? Ele teria de viver na sua casa secreta, mas e a escola, os amigos, a sua vida no mundo «real»? Como podia ele ajudá-lo a sarar a ferida de uma perda tão terrível?
Disse a Elizabeth: dir-se-ia que metade da nossa vida é uma espécie de luta em direção à luz do sol. A certa altura conseguimos cinco minutos ao sol e a seguir voltamos a ser arrastados para a escuridão e morremos. Mal acabava de dizer isto, ouviu a personagem Flory Zogoiby, a mãe de Abraham em O Último Suspiro do Mouro, a dizê-lo também. Não haveria limites para a falta de vergonha da imaginação literária? Não. Não havia limites.
Informou o agente de «prot» Dick Billington acerca de Clarissa e da possibilidade de cancro, e Dick volveu: «Ah, as mulheres estão sempre a arranjar doenças.»
Sameen disse-lhe que tivera uma longa conversa com Clarissa, que queria recordar os velhos tempos. Fora corajosa mas achava que «já tinha tido a sua conta de azares». A doença de Clarissa pusera Sameen a pensar na sua própria mortalidade. Queria perguntar-lhe se ele assumiria a tutela das suas filhas se ela e o pai morressem.
Ele disse que sim, claro, mas ela devia ter um plano de recurso, considerando o perigo que impendia sobre a vida dele.
Chegaram os resultados das análises do Bart’s – o St. Bartholomew’s Hospital – e eram realmente muito maus. Clarissa tinha um carcinoma ductal invasivo, que devia ter uns dezoito meses e passara despercebido. Seria necessária cirurgia radical. O cancro tinha «provavelmente» alastrado ao sistema linfático. Ela teria de fazer análises ao sangue e os pulmões, o fígado e a medula óssea teriam de ser também analisados. Falava no seu tom mais controlado, mas ele percebia o terror por detrás das suas palavras. Zafar abraçara-a com muita força, dizia ela, e ficara à beira das lágrimas. Com uma força enorme, ela já se afizera à ideia da necessidade da mastectomia, mas que faria ela, perguntava, se houvesse más notícias quanto aos pulmões, ao fígado e à medula óssea? Como é que a pessoa enfrentava a inevitabilidade da morte?
Telefonou a Nigella. Havia um homem que ela conhecia que estava a experimentar técnicas novas no cancro do fígado e a obter algum êxito. Era uma hipótese a que se podiam agarrar, mas não mais que uma hipótese.
Zafar veio passar a noite com ele. Estava a abafar os sentimentos. A mãe fizera sempre a mesma coisa perante a adversidade. «Como está a mãe?» «Bem.» Era melhor deixá-lo lidar com as notícias devagar, ao seu próprio ritmo, em lugar de mandá-lo sentar e aterrorizá-lo. Clarissa falara com ele e empregara a palavra cancro. Ele respondera: «Já mo tinhas dito.» Mas não tinha.
Chegaram os resultados das novas análises. Os pulmões, o fígado e a medula óssea estavam isentos de cancro. Tratava-se, porém, de um «cancro mau», segundo lhe disseram. A mastectomia era inevitável e os gânglios linfáticos teriam de ser igualmente removidos. Ela queria uma segunda opinião. Ele queria que ela a obtivesse. Ele suportaria todos os seus custos. Ela foi a um oncologista altamente recomendado chamado Sikora, no Hammersmith Hospital, e Sikora não achava que fosse necessária a mastectomia. Agora que o caroço fora retirado, ela podia fazer quimioterapia e radioterapia e isso resolveria o problema. Quando ela soube que podia conservar os seios ficou imensamente animada. Era uma mulher bonita e fora-lhe difícil suportar a mutilação dessa beleza. Depois teve de ir falar com o cirurgião que iria fazer a lumpectomia, um homem chamado Linn, que se revelou um lambe-botas. Querida, chamou-lhe ele untuosamente, meu amor, porque é que se opõe tanto a esta operação? Disse-lhe que ela devia fazer a mastectomia, contradizendo diretamente o chefe da oncologia, Sikora, deitando-lhe por terra a recém-encontrada confiança e liquidando a sua justificação de ter mudado para o Hammersmith Hospital, deixando o Bart’s, onde tivera aconselhamento que prezava e médicos de que efetivamente gostava. Começou a entrar em pânico e esteve perto da histeria durante dois dias, enquanto não conseguiu voltar a falar com Sikora. Este reafirmou-lhe que a linha de ação que ele propunha era a que seguiriam. Ela acalmou-se e levou Zafar para umas férias de uma semana de ciclismo em França.
Sameen disse que o seu amigo Kishu, cirurgião em Nova Iorque, a informara de que com um cancro invasivo daquele tipo não se brincava e que ela devia avançar para a mastectomia. No entanto, a via da não-mastectomia tinha deixado Clarissa incomensuravelmente animada. Era dificílimo saber como aconselhá-la. Ela não queria o seu conselho.
Telefonou-lhe o seu advogado, Bernie Simons. O divórcio provisório fora decretado e a separação judicial de Marianne estaria consumada daí a umas semanas, quando fosse decretado o divórcio definitivo. Ah, pois é, recordou ele. Ainda estou em processo de divórcio.
Recebeu uma mensagem de Bernard Henri-Lévy. Eram boas notícias: iam atribuir-lhe um galardão suíço très important, o Prix Colette, o prémio da Feira do Livro de Genebra. No entanto, o governo suíço declarou-o visitante indesejável e informou que se recusaria a fornecer proteção policial durante a sua visita. Pensou no Sr. Greenup a dizer que ele estava a pôr o coletivo dos cidadãos em perigo por motivo do seu desejo de autoenaltecimento. Nesta ocasião os Greenups suíços tinham levado a melhor. Não haveria autoenaltecimento. O coletivo dos cidadãos da Suíça estaria a salvo. A única coisa que ele podia fazer era um telefonema para a sala da Feira do Livro de Genebra onde estava a ser atribuído o prémio. BHL fez um discurso a dizer que o prémio fora uma decisão unânime do júri. A presidente do júri, Mme Edmonde Charles-Roux, disse que o prémio era fiel ao «espírito de Colette», que «lutou contra a intolerância». Contudo, os herdeiros de Colette ficaram furiosos com o prémio, presumivelmente por não concordarem com Mme Charles-Roux em que a escolha de Salman Rushdie obedecesse ao «espírito de Colette». Expressaram a sua contrariedade recusando a utilização futura do nome de Colette. Foi assim que ele se tornou o último vencedor do Prix Colette.
Tinha um vizinho abelhudo com que se haver, um cavalheiro idoso chamado Bertie Joel. O Sr. Joel veio ao portão e disse, pelo intercomunicador, que queria que alguém fosse a casa dele «nos próximos quinze minutos». Elizabeth saíra, de forma que teve de lá ir um dos elementos da equipa. Toda a gente estava tensa; teria sido desvendada a identidade do Sr. Anton? Mas era apenas uma questão do entupimento de um esgoto que passava entre as duas propriedades. O novo chefe da equipa de proteção, Frank Bishop, era um homem mais velho, bem-falante, jovial e apaixonado pelo críquete, sócio do Marylebone Cricket Club. Acontece que Bertie Joel era também sócio e tinha conhecido o pai de Frank. A ligação do críquete dissipou todas as suspeitas. «Os operários disseram-me que toda a casa estava a ser blindada, de forma que eu suspeitei de ligações à Mafia», disse Bertie Joel, e Frank riu-se da ideia e pô-lo à vontade. Quando voltou, contou a todos o que acontecera e a equipa ficou quase histérica de alívio. «Safei-me bem ali, Joe», disse Frank. «É o que se chama safar-se bem.»
Houve outros momentos semelhantes. Um dia os portões elétricos encravaram e ficaram abertos e um homem que se parecia exatamente com o poeta Philip Larkin entrou por ali dentro e começou a esquadrinhar o pátio da frente. Noutro dia apareceu um homem no passeio com uma escada de mão, a tentar tirar fotografias da casa por cima da sebe. Soube-se que estava a escrever um artigo para um jornal sobre devoluções de casas da rua. Noutro dia ainda foi um homem numa motocicleta e um Volvo estacionado do outro lado da rua com três homens lá dentro «a agir de maneira estranha». Nesses dias ele pensava: Talvez haja mesmo assassinos nas proximidades e eu esteja prestes a ser morto. Mas eram todos falsos alarmes. A casa não foi «exposta».
***
Vítima de morte súbita, desapareceu Bernie Simons, o cativante e indispensável Bernie, advogado de toda uma geração da esquerda britânica, o mais sensato e amável dos seres humanos, que o tinha ajudado a defender-se nos processos muçulmanos contra ele e fora um inestimável aliado na batalha contra a ameaça de Howley e Hammington de retirarem a proteção. Bernie tinha cinquenta e dois anos apenas. Estava numa conferência em Madrid e acabara de jantar, subira ao quarto, tivera um tremendo ataque cardíaco e caíra de borco na alcatifa. Um final rápido depois de uma boa refeição. Pelo menos isso era apropriado. Havia pessoas em toda a cidade de Londres a telefonarem umas às outras manifestando o seu pesar. Ele falou com Robert McCrum, Caroline Michel e Melvyn Bragg. A Robert disse: «É terrível… Dá-me vontade de telefonar ao Bernie e pedir-lhe para resolver isto.»
Era cedo demais para começar a procurar os seus contemporâneos nas necrologias, mas no dia seguinte lá vinha Bernie, como viera Angela e como ele receava que Clarissa acabasse por vir em breve. E Edward Said tinha LLC, leucemia linfocítica crónica, e Gita Mehta também tinha um cancro e ia ser operada. As asas, as asas adejantes. Quem estava previsto que fosse morrer era ele, mas as pessoas iam tombando a toda a sua volta.
No princípio de junho, Elizabeth levou Clarissa ao Hammersmith Hospital para outra dose de cirurgia exploratória. O resultado foi promissor. O cirurgião Dr. Linn disse que «já não se via cancro». Por conseguinte, talvez o tivessem detetado suficientemente cedo e ela sobrevivesse. Clarissa tinha toda a certeza de que eram boas notícias. A radioterapia destruiria quaisquer células que restassem e, uma vez que «só um, o mais pequeno» dos nódulos linfáticos estava infetado, ela podia passar sem quimioterapia, segundo pensava. Ele tinha as suas dúvidas, mas guardou-as para si.
Edward Said disse-lhe que a sua contagem de glóbulos brancos estava a aumentar e podia precisar de fazer quimioterapia em breve. «Mas eu sou um milagre ambulante», disse. O médico dele era o que «tinha escrito o livro» acerca da LCC, um clínico de Long Island de origem indiana chamado Dr. Kanti Rai; as fases da doença eram conhecidas como «fases Rai» devido ao seu trabalho na definição da natureza da doença. Por conseguinte, Edward, que sempre fora um tanto ou quanto hipocondríaco até adoecer de verdade, para então se tornar imediatamente num corajoso herói, tinha o melhor dos médicos que era possível e estava a combater a doença com todas as suas forças. «Tu também és um milagre ambulante», disse. «Nem um nem outro temos o direito de estar vivos, mas estamos.» Disse que lera uma entrevista com o aiatola Sanei da Recompensa no New York Times. «Tem uma caricatura tua a arder no inferno na parede por trás da cabeça. Disse: O caminho para o paraíso será mais fácil quando Rushdie estiver morto.» Soltou-se uma enorme risada a Edward, ao mesmo tempo que agitava os braços, a descartar o comentário do Recompensador.
No dia dos seus quarenta e seis anos teve amigos em casa ao jantar. Por esta altura havia uma lista de pessoas aprovadas pelo Special Branch, amigos íntimos que tinham acabado por conhecer com os anos e sabiam que eram discretos e dignos de confiança. Bill Buford levou um excelente Côtes du Rhone e Gillan levou um Puligny-Montrachet. Recebeu uma cama de rede de Pauline Melville e uma camisa de linho azul muito bonita de Nigella. John Diamond tinha a sorte de estar vivo depois de um autocarro ter passado um sinal vermelho e embatido a 65 quilómetros por hora mesmo em cheio na porta do condutor do seu carro. Felizmente, a porta aguentara.
Antonia Fraser e Harold Pinter levaram uma edição limitada dos poemas de Harold. (Se Harold tivesse o número de fax da pessoa, esses poemas apareciam de quando em quando e tinham de ser elogiados com a maior brevidade possível. Um dos poemas intitulava-se «Len Hutton», em honra do grande batedor de Inglaterra. Vi Len Hutton no seu apogeu / Outra vez / Outra vez. Era tudo. O grande amigo de Harold e colega, o dramaturgo Simon Gray, esqueceu-se de comentar esta peça e Harold telefonou-lhe a admoestá-lo. «Desculpa, Harold», disse Simon. «Não tive tempo de a acabar.» O Sr. Pinter não percebeu a piada.)
***
O eminente escritor e jornalista argelino Tahar Djaout foi alvejado na cabeça e morreu; era o terceiro grande intelectual, a seguir a Farag Fouda, no Egito, e Ugur Mumcu, na Turquia, a ser assassinado num ano. Ele tentou suscitar a atenção para os seus casos nos meios de comunicação ocidentais, mas o interesse foi reduzido. A sua própria campanha parecia estar em ponto morto. Christopher Hitchens tinha ouvido dizer ao embaixador britânico em Washington, Sir Robin Renwick, que qualquer audiência com Clinton não teria lugar antes do outono, no mínimo. Frances e Carmel discutiam frequentemente uma com a outra e depois discutiam ambas com ele. Ele exprimiu-lhes o seu quase desespero e insistiu com elas para porem o seu espetáculo novamente em marcha e elas congregaram-se.
Fez uma segunda deslocação a Paris para falar numa reunião da Académie Universelle des Cultures num grandioso salão do Louvre cheio de dourados, frescos e escritores: Elie Wiesel, Wole Soyinka, Yashar Kemal, Adonis, Ismail Kadaré, Cynthia Ozick… e Umberto Eco. Ele tinha acabado de fazer ao romance de Eco O Pêndulo de Foucault a pior crítica que alguma vez fizera a um livro. Eco aproximou-se dele e depois comportou-se com imensa elegância. Abriu os braços e exclamou: «Rushdie! Eu sou a merrrda do Eco!» Depois disso ficaram de excelentes relações. (Em tempos que viriam juntaram forças com Vargas Llosa para montarem um número literário triplo a que Eco chamou os Três Mosqueteiros, «porque primeiro fomos inimigos e agora somos amigos». Vargas Llosa criticara Salman por ser demasiado de esquerda, Eco criticara Mario por ser demasiado de direita e Salman tinha criticado a escrita de Eco, mas quando se conheceram deram-se lindamente. Os Três Mosqueteiros atuaram com êxito em Paris, Londres e Nova Iorque.)
O dispositivo de segurança era loucamente excessivo. Os bons homens do RAID tinham obrigado o Museu do Louvre a fechar nesse dia. Havia um grande número de homens com metralhadoras por todo o lado. Não lhe foi permitido estar ao pé de nenhuma janela. E à hora do almoço, quando os escritores atravessaram a pirâmide de vidro de I. M. Pei para descerem a fim de almoçar, o RAID obrigou-o a entrar num carro que percorreu talvez uns cem metros da ala do Louvre onde decorrera a reunião da Académie até à pirâmide, com homens armados, de óculos espelhados, a caminharem a toda a volta dele, com armamento pesado a postos. Era pior do que louco: era embaraçoso.
No final do dia as forças de segurança informaram-no de que o ministro do Interior, Charles Pasqua, lhe recusara autorização para pernoitar em França, porque seria demasiado caro. Mas, objetou ele, fora-lhe oferecido alojamento particular nas casas de Bernard Henry-Lévy, Bernard Kouchner e Christine Ockrent e da filha de Jack Lang, Caroline, de forma que não custaria nada. Bem, nesse caso, é porque identificámos uma ameaça específica à sua pessoa, de maneira que não podemos garantir a sua segurança. Nem sequer o Special Branch acreditou nessa mentira. «Eles teriam partilhado essa informação connosco, Joe», observou Frank, «e não o fizeram.» Caroline Lang disse: «Se quiser desafiar a ordem do RAID ficamos todos aqui a ocupar o Louvre consigo e trazemos camas, vinho e amigos.» Era uma ideia divertida e tocante, mas ele recusou-a. «Se eu fizer isso, nunca mais me deixam entrar em França.» Depois Christopher Mallaby negou-se a deixá-lo ficar na embaixada; mas alguém, os britânicos ou os franceses, conseguiu persuadir a British Airways a transportá-lo de regresso a Londres. Assim, pela primeira vez em quatro anos, ele voou, sem quaisquer problemas por parte da tripulação ou dos passageiros – muito dos quais vieram expressar a sua amizade, solidariedade e simpatia – num avião da BA. Depois da viagem, porém, a British Airways disse que o voo fora acertado sob pressão francesa «a nível operacional local» e que tinham tomado medidas «para garantir que tal nunca mais acontecesse».
A gigantesca digressão Zooropa dos U2 chegou ao estádio de Wembley e Bono telefonou-lhe a perguntar se ele gostaria de ir ao palco. Os U2 queriam fazer um gesto de solidariedade e esse era o maior que podiam imaginar. Surpreendentemente, o Special Branch não pôs objeções. Talvez pensassem que não devia haver muitos assassinos islâmicos num concerto dos U2, ou talvez quisessem simplesmente assistir ao espetáculo. Levou Elizabeth e Zafar com ele e durante a primeira meia hora do espetáculo ficaram sentados no estádio a assistir. Quando ele se levantou para ir aos bastidores, Zafar disse: «Papá… não cantes.» Ele não fazia tenção de cantar e os U2 ainda estavam menos dispostos a deixar que ele o fizesse, mas para arreliar o filho disse: «Não vejo porque não. É uma banda de fundo bastante boa, esta banda irlandesa, e estão aqui oito mil pessoas, portanto… talvez cante.» Zafar pareceu agitado. «Não estás a perceber, papá», retorquiu. «Se cantares, vou ter de me matar.»
Nos bastidores deparou com Bono envergando o seu traje de MacPhisto – o fato de lamé dourado, a cara branca, os corninhos de veludo vermelho – e nuns minutos ensaiaram um pequeno diálogo entre os dois. Bono fingiria ligar-lhe pelo telemóvel e enquanto «falavam» ele subiria ao palco. Quando entrou compreendeu a sensação que era ter oito mil pessoas a aplaudir. A assistência média numa apresentação de um livro – ou mesmo numa grande noite de gala como o espetáculo de beneficência do PEN em Toronto – era um pouco mais pequena. As raparigas não tendiam a pôr-se às cavalitas dos namorados e eram desencorajados os mergulhos do palco. Mesmo nos melhores eventos literários, havia apenas um ou dois supermodelos a dançar junto da mesa de mistura. Isto era maior.
Quando escreveu O Chão Que Ela Pisa foi-lhe útil ter uma noção do que era estar debaixo do peso de toda aquela luz, impossibilitado de ver o monstro que rugia da escuridão. Fez o possível por não tropeçar em nenhum dos cabos. Depois do espetáculo, Anton Corbijn tirou uma fotografia para a qual o persuadiu a trocar de óculos com Bono. Por um momento foi-lhe permitido parecer semelhante a um deus com os óculos de sol envolventes Fly do Sr. B., enquanto a estrela de rock o perscrutava benignamente através dos seus óculos literários, nada sofisticados. Era uma expressão gráfica da diferença entre os dois mundos que, graças ao generoso desejo dos U2 de o ajudar, se tinham episodicamente encontrado.
Uns dias mais tarde Bono telefonou-lhe, referindo querer evoluir como letrista. Num grupo de rock o letrista tornava-se apenas uma espécie de condutor para os sentimentos que havia no ar; não eram as palavras que governavam o trabalho, mas sim a música, a menos que se viesse de uma tradição folk como Dylan, mas ele queria mudar. Está disposto a sentar-se e falar do seu trabalho? Queria conhecer pessoas novas, pessoas diferentes. Parecia faminto de alimento intelectual e daquilo a que chamava apenas uma boa discussão. Ofereceu a sua casa no sul de França. Ofereceu amizade.
Tinha sido fadado, dizia aos amigos, com uma vida interessante, que por vezes lhe parecia um mau romance seu. Uma das suas piores características de mau romance era que podiam aparecer a qualquer momento personagens principais que estavam desligadas do resto da história, sem prefiguração, acotovelando-se para entrar na narrativa e ameaçando desviá-la. 27 de maio era a data em que, quatro anos mais tarde, nasceria o seu segundo filho, Milan, tomando posse da data para sempre, mas em 1993 assinalou a entrada de um indivíduo muito diferente, o escritor turco, editor de jornais e provocador Aziz Nesin.
Cruzara-se com Nesin apenas uma vez, sete anos antes, quando era o escritor turco que estava em apuros. Harold Pinter convidara um grupo de escritores para a casa de Campden Hill Square a fim de organizar um protesto porque Nesin soubera que a Turquia decidira cassar-lhe o passaporte. Perguntava a si mesmo se Nesin se lembraria de que o futuro autor de Os Versículos Satânicos firmara de bom grado o protesto, e desconfiava que não. A 27 de maio foi informado de que tinham sido publicados trechos não especificados de Os Versículos Satânicos no jornal de esquerda Aydinlik, do qual Nesin era chefe de redação, sem ter sido solicitado qualquer acordo do autor, numa tradução turca que não lhe tinham enviado (era prática habitual as traduções serem lidas por alguém independente para verificação da sua qualidade e rigor antes da publicação), desafiando a proibição do livro na Turquia. O cabeçalho por cima dos excertos dizia: salman rushdie pensador ou charlatão? Nos dias subsequentes houve mais trechos, e o comentário de Nesin a esses trechos deixava claro que ele estava firmemente do lado da «charlatanice». A agência Wylie escreveu a Nesin dizendo-lhe que pirataria era pirataria e, se ele lutara durante muitos anos pelos direitos dos escritores, como dizia, estaria na disposição de objetar ao atropelo desses direitos pelo aiatola Khomeini? A resposta de Nesin foi o mais petulante possível. Publicou a carta da agência no jornal e comentou: «Que tenho eu que ver com a causa de Salman Rushdie?» Disse que continuaria a publicar e, se Rushdie pusesse objeções, «pode pôr-nos em tribunal».
O Aydinlik foi objeto de perseguição, o seu pessoal foi preso, a distribuição cessou e foram confiscados exemplares. Numa mesquita de Istambul um imã declarou uma jihad contra o jornal. O governo turco, defendendo os princípios secularistas da Turquia, decretou que o jornal fosse distribuído, mas a controvérsia continuou e o ambiente manteve-se mau.
Ele sentia que mais uma vez ele e a sua obra se haviam tornado peões no jogo de outrem. O seu amigo escritor turco Murat Belge comentou que Nesin fora «infantil» mas, ainda assim, não se podia permitir que as forças que o atacavam levassem a melhor. O mais doloroso de tudo isto era que também ele era um secularista empenhado e esperaria porventura melhor tratamento por parte dos secularistas da Turquia. Um desaguisado no seio das forças do secularismo só podia ser motivo de gáudio para os inimigos do secularismo. Esses inimigos não tardaram a reagir aos excertos do Aydinlik, e com extrema violência.
No princípio de julho, Nesin foi a uma conferência secularista na cidade de Sivas, na Anatólia (a Anatólia era a parte da Turquia onde o islamismo extremista tinha mais adeptos). Foi descerrada uma estátua de Pir Sultan Abdal, um poeta local que fora morto por apedrejamento devido a blasfémia no século XVI. Segundo relatos posteriores, Nesin proferira um discurso em que declarava o seu ateísmo e fizera certas críticas ao Alcorão. Isto podia ser ou não verdade. Nessa noite o Madimak Hotel, onde todos os delegados estavam alojados, foi cercado por extremistas que entoavam palavras de ordem e ameaças e seguidamente incendiado. Trinta e sete pessoas morreram nas chamas – escritores, caricaturistas, atores e bailarinos. Aziz Nesin salvou-se, ajudado a abandonar o edifício por bombeiros que não o reconheceram. Quando se aperceberam de quem era, começaram a espancá-lo e houve um político local que gritou: «Este é o diabo que devíamos realmente ter matado.»
Na imprensa mundial, o horror do massacre de Sivas foi apelidado de «desordem Rushdie». Ele foi à televisão denunciar os assassinos e escreveu irados artigos para o Observer de Londres e também para o New York Times. O facto de a desordem receber o seu nome era injusto, mas a questão não era essa. Os assassínios de Farag Fouda, Ugur Mumcu e Tahar Djalut e os mortos de Sivas constituíam uma prova eloquente de que o ataque contra Os Versículos Satânicos não era um incidente isolado, mas parte de uma ofensiva islâmica global contra os pensadores livres. Fez tudo o que estava ao seu alcance para exigir ação, por parte do governo turco, da reunião do G7 que estava a ter lugar em Tóquio, do mundo. Houve uma maldosa tentativa – imagine-se – no Nation, de o acusar de «insulto malévolo» aos secularistas turcos (escrita por Alexander Cockburn, um dos grandes mestres contemporâneos do insulto malévolo), mas isso tão-pouco importava. Aziz Nesin e o autor cuja obra ele roubara e denegrira nunca seriam amigos, mas perante um tal ataque ele estava ombro a ombro com todos os secularistas turcos, incluindo Nesin.
No Majlis iraniano e na imprensa, inevitavelmente, houve discursos de apoio aos assassinos de Sivas. Aquele mundo era assim: aplaudia assassinos e vilipendiava homens que viviam (e por vezes morriam) da palavra.
Horrorizado com a atrocidade de Sivas, o célebre «jornalista infiltrado» alemão Günter Wallraff, que, no seu livro de imenso sucesso Cabeça de Turco, se fizera passar por um trabalhador turco emigrante para expor o terrível tratamento dado a esses trabalhadores pelos racistas alemães e mesmo pelo Estado alemão, entrou em contacto com ele e insistiu que tinha de se pôr termo ao «mal-entendido» Nesin-Rushdie. Nesin continuara a dar entrevistas a atacar o autor de Os Versículos Satânicos e o seu horroroso livro, e Wallraff e Arne Ruth, o chefe de redação do diário sueco Dagens Nyheter, andavam a tentar empenhadamente pôr-lhe travão. «Se eu conseguir convencer Nesin a vir visitar-me aqui a casa, você pode vir também, por favor, para resolvermos isto?», perguntou Wallraff. Ele respondeu que isso dependia do espírito com que Nesin estivesse disposto a abordar um encontro desses. «Até agora foi insultuoso e depreciativo e isso tornaria difícil a ida lá.» «Deixe isso comigo», retorquiu Wallraff. «Se ele disser que vem com uma atitude positiva, você fará o mesmo?» «Sim, está bem.»
Voou de Biggin Hill para Colónia e, em casa de Günter, o grande jornalista e a mulher foram ruidosos, joviais e acolhedores, e Wallraff fez questão de jogar imediatamente pingue-pongue. Wallraff revelou-se um bom jogador e ele perdeu a maior parte das partidas. Aziz Nesin, um homem baixo, entroncado e de cabelo grisalho, não foi até à mesa de pingue-pongue. Tinha o aspeto daquilo que era: um homem fortemente abalado que também se sentia mal com a companhia que tinha. Sentou-se a um canto a cismar. Aquilo não era promissor. Na primeira conversa formal entre eles, com Wallraff a servir de intérprete, Nesin continuou a ser desdenhoso como fora no Aydinlik. Tinha a sua própria luta, contra o fanatismo turco, e não queria saber desta para nada. Wallraff explicou-lhe que estavam na mesma luta. Depois de Ugur Mumcu ter sido morto dissera-se na Turquia que «os que condenaram Rushdie mataram agora Mumcu». Uma derrota na batalha entre o secularismo e a religião era uma derrota em todas as batalhas semelhantes. «O Salman apoiou-o no passado, e pronunciou-se em toda a parte sobre Sivas», disse, «de modo que você tem de apoiá-lo agora.» Foi um longo dia. O amor-próprio de Nesin parecia ser um obstáculo à reconciliação, porquanto ele sabia que teria de recuar e admitir que fora deselegante. Mas Wallraff estava determinado a não deixar as coisas acabarem mal e finalmente Nesin, murmurando e resmungando, estendeu a mão. Houve um breve aperto de mãos seguido de um abraço ainda mais breve e uma fotografia em que todos estavam com um ar constrangido, após o que Wallraff exclamou «Ótimo! Agora somos todos amigos!», e a seguir levou-os a dar um passeio de barco a motor no Reno.
O pessoal de Wallraff tinha filmado todo o acontecimento e montou uma peça noticiosa com Nesin e ele na qual denunciavam conjuntamente o fanatismo religioso e a debilidade das reações que o Ocidente lhe opusera. Aziz Nesin e ele não tiveram mais contactos. Nesin viveu mais quatro anos, até um ataque cardíaco o levar.
Caro Harold,
Obrigado por teres proporcionado que Elizabeth, eu e os rapazes fôssemos ver a tua produção de Oleanna, de Mamet, e pelo jantar no Grill St. Quentin que se seguiu. Provavelmente é uma incorreção minha exprimir as reservas que tenho em relação à peça, embora eu tenha realmente dito, quer-me parecer, várias coisas favoráveis sobre a tua produção dela. Foi claramente incorreto da minha parte mudar de assunto e começar a falar com Antonia do livro sobre a Conspiração da Pólvora. (Confesso que atualmente me interesso por pessoas que querem fazer explodir coisas.) Vi pelo canto do olho que tinhas começado a deitar fumo pelos ouvidos e que o teu núcleo do reator tinha principiado a derreter. A Síndrome da China era uma inegável possibilidade. Para o evitar, disse: «Harold, será que me esqueci de te referir que a tua produção de Oleanna era o caraças de um trabalho de um perfeito génio?» «Sim», disseste tu, com os dentes a reluzir desconsoladamente. «Sim, de facto esqueceste-te de o referir.» «Harold», disse eu, «a tua produção de Oleanna é o caraças de um trabalho de um perfeito génio.» «Bem, assim já está melhor», disseste tu, e a calamidade nuclear foi evitada. Orgulho-me há muito de poder dizer com veracidade que nunca fui «pinterizado». Fico aliviado por ter encontrado uma maneira de manter esse cadastro.
Deslocou-se a Praga para se encontrar com o presidente Václav Havel e este acolheu-o com imenso calor – Finalmente encontramo-nos! – e falou publicamente dele com tal generosidade que o seu grande rival, o primeiro-ministro de direita Václav Klaus, se «distanciou» da audiência, dizendo que se tratava de uma audiência «privada» e que não tivera conhecimento dela (embora a polícia checa tivesse pedido emprestado um dos automóveis de Klaus para uso do seu visitante). Klaus disse esperar que isso não «ferisse» as relações checas com o Irão.
Participou numa conferência do PEN Internacional em Santiago de Compostela – a Iberia não levantou dificuldades – e foi interrogado sobre notícias recentemente saídas na imprensa segundo as quais o príncipe Carlos o atacara. Respondeu reproduzindo o que Ian McEwan dissera aos jornalistas numa visita ao país por ocasião da publicação de um livro na semana anterior: «A proteção do príncipe Carlos é muito mais cara que a de Rushdie e ele nunca escreveu nada que interesse.» De regresso a Londres, deu com o Daily Mail a acusá-lo de qualquer coisa semelhante a traição porque se atrevera a dizer uma piada sobre o herdeiro ao trono. «Ele abusa da liberdade que nós pagamos», declarava a colunista, Mary Kenny. Cinco dias mais tarde Os Filhos da Meia-Noite era declarado o «Booker dos Booker», o melhor livro a vencer o prémio nos seus primeiros vinte e cinco anos. Ele mal teve um dia para gozar a distinção antes de o pêndulo oscilar e a terrível calamidade se abater de novo.
Na manhã seguinte ao seu regresso a Oslo, vindo da Feira do Livro de Frankfurt, Wiliam Nygaard aprestava-se a ir de carro para o trabalho quando viu que tinha um pneu traseiro em baixo. Não sabia que o pneu fora rasgado por um pistoleiro escondido nos arbustos atrás do automóvel. O pistoleiro calculara que William avançaria na sua direção para abrir o porta-bagagens e tirar o pneu suplente e, uma vez nessa posição, seria um alvo fácil. Mas William era o presidente de uma grande editora e não fazia tenção de ser ele a mudar o pneu. Puxou do telemóvel e ligou para uma oficina. Isso criou um problema ao pistoleiro: deveria sair do esconderijo e expor-se a fim de poder ter o alvo na mira, ou disparar do local onde estava, apesar de William não estar onde ele queria? Decidiu disparar. Wiliam foi atingido três vezes e tombou no chão. Um grupo de miúdos de treze anos viu um homem «escuro, de pele defeituosa» a fugir, mas o pistoleiro não foi apanhado.
Se William não fosse um homem atlético teria quase certamente morrido. Mas o antigo ás do esqui mantivera a forma física e isso salvou-lhe a vida. O mais extraordinário foi que, mal William saiu dos cuidados intensivos, os médicos puderam dizer que a sua recuperação seria completa. As trajetórias das balas através do seu corpo, segundo lhe disseram, eram as únicas três que podiam ter seguido sem o matar ou deixá-lo paralítico. William Nygaard, um grande editor, era também um homem de sorte.
Quando ele teve conhecimento de que Nygaard tinha sido alvejado, soube que o amigo levara tiros que lhe eram destinados. Recordou-se do orgulho de William no dia da receção no jardim da Aschehoug, no ano anterior. A mão de William mantivera-se poisada no seu ombro enquanto o editor o conduzia através da multidão surpreendida, apresentando-o a este escritor, àquele cantor de ópera, a um magnata empresarial aqui, a uma figura política além. Um gesto de liberdade, dissera William, e agora estava às portas da morte por causa dele. Porém, graças à sua relutância em mudar pessoalmente o pneu, e depois ao milagre das trajetórias, sobrevivera. Chegou o dia em que o editor se encontrou suficientemente bem para falar brevemente ao telefone. O seu colega Halfdan Freihow, da Aschehoug, ligou para Carmel a dizer que William estava ansioso por falar com Salman e perguntava se ele podia ligar para o hospital. Claro que sim. Quem atendeu o telefone foi um enfermeiro, que o avisou de que William tinha a voz muito fraca. Depois passou o telefone a William e, mesmo depois do aviso, foi um choque perceber como ele parecia fraco: respirava com dificuldade, falhava-lhe o inglês, habitualmente impecável, e havia desconforto em cada sílaba.
A princípio nem sequer percebera que fora atingido, mantendo-se consciente até à chegada da polícia e dando o número do telefone do filho. «Gritei que me fartei», disse, «e rebolei uma porção de vezes por uma pequena colina abaixo, e foi isso que me salvou, acho eu, porque fiquei oculto.» Teria de passar muito tempo hospitalizado, mas, arquejou, sim, era possível a recuperação completa. «Não atingiram nenhum órgão.» A seguir disse: «Só quero que saibas que tenho muito orgulho em ser o editor de Os Versículos Satânicos, em fazer parte do Caso. Talvez agora tenha de viver mais ou menos como tu, a menos que apanhem o homem.» Lamento imenso, William, tenho de te dizer que me sinto responsável por isto… William interrompeu as desculpas e disse, debilmente: «Não digas isso. Não está certo que digas isso.» Mas como posso eu deixar de sentir… «Sabes, Salman, eu sou uma pessoa crescida, e quando aceitei publicar Os Versículos Satânicos compreendia que havia riscos, e corri esses riscos. A culpa não é tua. Quem deve ser responsabilizado é o homem que disparou a arma.» Sim, mas eu… «Outra coisa», tornou William, «acabo de encomendar uma grande reedição.» Elegância sob pressão, chamava-lhe Hemingway. Coragem verdadeira aliada a princípios elevados. Uma união que nenhuma bala podia destruir. E as balas tinham sido umas filhas da mãe bem grandes, .44, de ponta romba, concebidas para matar.
A imprensa escandinava ficou indignada com o atentado contra Nygaard. A associação norueguesa de editores exigiu saber qual seria a resposta do governo norueguês ao Irão. E um ex-embaixador iraniano que se passara para o grupo oposicionista Mujahideen-e-Khalq, ou PMOI (Mujahedin do Povo do Irão), anunciou que tinha avisado a polícia norueguesa quatro meses atrás de que estava a ser planeado um atentado contra William.
Os governos nórdicos ficaram irados, mas o atentado assustara as pessoas. O ministério da Cultura holandês tinha planeado convidá-lo para ir a Amesterdão, mas agora fazia marcha atrás, tal como a Royal Dutch Airlines. O Conselho Europeu, que dera o seu acordo a um encontro meses antes, cancelou-o. Gabi Gleichmann, que liderava a «Campanha Rushdie» na Suécia – embora ele e Carmel Bedford estivessem constantemente em conflito – tinha recebido proteção policial. Na Grã-Bretanha, os ataques ad hominem continuavam. Um artigo do Evening Standard chamava-lhe «presumido» e «louco», ridicularizava-o por querer tanta atenção e dizia escarninhamente que ele não a merecia por se ter comportado tão mal. E a estação de rádio da BBC londrina estava a levar a efeito uma sondagem em que perguntava ao público britânico «se devemos continuar a apoiar Rushdie», e no Telegraph vinha uma entrevista com Marianne Wiggins na qual chamava ao ex-marido «lúgubre, disparatado, cobarde, vaidoso, burlesco e moralmente ambíguo». Clive Bradley, da Associação Britânica de Editores, disse que Trevor Glover, da Penguin UK, estava a bloquear uma declaração sobre William. Ele telefonou a Glover, que a princípio pretendeu não o ter feito, que pensava ter sido «apenas uma conversa casual», mas «meu Deus, agora andamos todos um bocado mais nervosos; será de fazermos barulho público?», e por fim concordou em telefonar a Bradley para levantar o veto da Penguin.
Recebeu uma carta ameaçadora, a primeira desde há muito, a avisá-lo de que o seu «tempo estava a aproximar-se», porque «Alá via todas as coisas». A carta era assinada por D. Ali, do «Partido Socialista dos Trabalhadores e Liga Antirracista de Manchester». Os seus membros estavam a vigiar todos os aeroportos, dizia ele, e tinham gente em todos os bairros – «Liverpool, Bradford, Hampstead, Kensington» – e, como a escuridão do inverno era «melhor para eles fazerem o seu trabalho», não tardaria a «regressar ao Irão».
Houve uma noite no apartamento de Isabel Fonseca com Martin Amis, James Fenton e Darryl Pinckney, e Martin deixou-o deprimido ao dizer-lhe que George Steiner achava que ele se «dedicara a armar uma data de sarilhos», e o pai de Martin, Kingsley Amis, dissera que «quando a pessoa se dedica a armar sarilhos, não tem nada que se queixar quando eles lhe caem em cima», e Al Alvarez dissera que ele «tinha feito aquilo porque queria ser o escritor mais famoso do mundo». Para Germaine Greer, por sua vez, ele era um «megalómano», e John le Carré chamara-lhe «imbecil» e a ex-madrasta de Martin, Elizabeth Jane Howard, e Sybille Bedford eram de opinião que ele «tinha feito aquilo para ganhar dinheiro». Os seus amigos ridicularizavam estas afirmações, mas no final da noite ele sentia-se muito incomodado e só o amor de Elizabeth o fez voltar ao normal. Talvez devessem casar, escreveu ele no seu diário. Quem podia amá-lo melhor, ser mais corajosa, ter melhor feitio ou dar mais de si própria? Ela dedicara-se a ele e não merecia menos em troca. Em casa, ao comemorarem o seu primeiro ano no número 9 da Bishop’s Avenue, passaram um serão amoroso e ele sentiu-se melhor.
Nas suas marés beckettianas, corcovado no seu escritório forrado de madeira, era um homem perdido num vazio trocista: simultaneamente Didi e Gogo, entregue a jogos contra o desespero. Não, era a antítese de ambos: eles estavam à espera de Godot, ao passo que aquilo de que ele estava à espera nunca viria. Quase todos os dias havia momentos em que ele deixava cair os ombros para depois os endireitar de novo. Comia de mais, deixou de fumar, tinha pieira, discutia com o vazio, esfregando os punhos nas têmporas, e sempre a pensar, a pensar como um incêndio, como se pensar pudesse incinerar os seus males. Quase todos os dias eram assim: uma batalha contra a desesperança, muitas vezes perdida, mas nunca perdida para sempre. «Dentro de nós», escrevera José Saramago, «há uma coisa que não tem nome; essa coisa é o que somos.» A coisa que não tinha nome dentro dele acabava sempre por vir em seu auxílio. Cerrava os dentes, sacudia a cabeça para desanuviar os pensamentos e ordenava a si próprio que seguisse em frente.
William Nygaard deu os primeiros passos. Halfdan Freihow dizia que William resolvera mudar de casa devido ao «perigo dos arbustos», que o impediria de «fazer uma mija no jardim a altas horas da noite». Estavam a procurar-lhe um prédio de apartamentos de alta segurança para morar. O assassino contratado não fora encontrado. William «não tinha para onde dirigir a sua raiva». Mas estava a melhorar. O editor dinamarquês do romance, Johannes Riis, dizia que as coisas estavam calmas na Dinamarca, e que ele tinha «a vantagem de uma mulher calma». Ele imaginava o perigo comparável ao atravessar a estrada, segundo dizia, e o seu autor, ao ouvir isto, sentiu-se mais uma vez rendido na presença da verdadeira coragem. «Estou furioso», acrescentou Johannes, «por semelhante obscenidade continuar a fazer parte do quadro em que vivemos.»
Na primeira reunião do chamado «Parlamento Internacional de Escritores» em Estrasburgo ele preocupou-se com o nome, porque não tinham sido eleitos, mas os franceses encolheram os ombros e disseram que em França un parlement era unicamente um lugar onde as pessoas falavam. Ele insistiu que a declaração que estavam a redigir devia incluir referências a Tahar Djaout, Farag Fouda, Aziz Nesin, Ugur Mumcu e à recém-atacada escritora do Bangladesh Taslima Nasreen, além dele próprio. Susan Sontag entrou veementemente, abraçou-o e falou apaixonadamente em francês fluente, chamando-lhe un grand écrivain, que representava a decisiva cultura secularizada que os extremistas muçulmanos queriam reprimir. A presidente da Câmara de Estrasburgo, Catherine Trautmann, queria nomeá-lo cidadão honorário. Catherine Lalumière, do Conselho Europeu, prometeu que o Conselho advogaria a sua causa. Nessa noite houve uma receção para os escritores visitantes e ele foi abordado por uma iraniana loucamente apaixonada, «Hélène Kafi», que o censurou por não fazer causa comum com a Mujahideen-e-Khalq. «Não estou a ser agressiva, Salman Rushdie, mas je suis un peu deçue de vous54, você devia saber quem são os seus verdadeiros amigos.» No dia seguinte declarou aos meios de comunicação social que ela, e por intermédio dela o PMOI, se tinha associado à «comissão Rushdie» francesa e as granadas que haviam sido lançadas contra a embaixada francesa e os escritórios da Air France em Teerão se deviam a isso. (Deviam-se efetivamente à decisão da França de conceder asilo político à líder do PMOI, Maryam Rajavi, e nada tinham que ver com o «caso Rushdie».)
Sentou-se num pequeno sofá vermelho com Toni Morisson, que acabava de ganhar o prémio Nobel, e Sontag, que exclamou: «Meu Deus, estou sentada entre os dois escritores mais famosos do mundo!» – após o que tanto ele como Toni começaram a garantir-lhe que a sua vez de Estocolmo não havia decerto de tardar. Susan perguntou-lhe o que andava ele a escrever. Tinha posto o dedo na ferida que mais o preocupava. Para liderar a campanha contra a fatwa deixara praticamente de ser um escritor em atividade. Era este o efeito aplainador de a pessoa se envolver na política. Os seus pensamentos tinham-se enchido de companhias aéreas e ministros e queijo feta e haviam-se afastado dos doces recessos da mente onde a ficção espreitava. O seu romance estava em ponto morto. Seria na realidade esta campanha, que as pessoas diziam que ele estava a dirigir tão bem, uma maneira de se diminuir quer aos olhos do mundo, quer aos seus? Estaria realmente a contribuir para se tornar em nada mais que a caricatura aplainada, bidimensional, que estava no âmago do «Caso Rushdie» e a abdicar do seu direito à arte? Tinha passado de Salman a Rushdie, de Rushdie a Joseph Anton, e agora estava porventura a fazer de si um zé-ninguém. Era um lobista a fazer lóbi por um espaço vazio que já não continha um homem.
Respondeu a Susan: «Fiz uma jura de no próximo ano ficar em casa a escrever.»
Para chegar ao cume – uma audiência com um presidente – era preciso chegar a ele a partir de várias direções ao mesmo tempo. A abordagem ao Monte Clinton fora feita por ele pessoalmente, pela comissão de defesa de Rushdie e pela Article 19, pelo embaixador britânico em Washington em nome do governo britânico e pelo PEN American Center. Arieh Neier, da Human Rights Watch, Nick Veliotes, da Associação de Editores Americanos e Scott Armstrong, do Fórum da Liberdade, contavam-se entre os que pugnavam pela audiência. Além disso, Christopher Hitchens tinha andado a instar os seus contactos na Casa Branca a fazer com que ela se concretizasse. Christopher não era um admirador de Bill Clinton, mas tinha boas relações com George Stephanopoulos, conselheiro próximo do presidente, e falou diversas vezes com ele. Afigurava-se que o pessoal de Clinton estava dividido entre os que lhe diziam que a fatwa não era assunto que dissesse respeito à América e aqueles que, como Stephanopoulos, queriam que ele fizesse o que era devido.
Dois dias depois do seu regresso a Londres, veio a «luz verde de Washington». Primeiramente, Nick Veliotes foi informado de que o presidente não estaria presente na audiência. Esta seria com o conselheiro nacional de segurança, Anthony Lake, sendo que o vice-presidente Gore «apareceria por lá». Na embaixada dos Estados Unidos em Grosvenor Square, o seu contacto Larry Robinson confirmou que seria uma audiência com Lake e Gore. Ser-lhe-ia dada «proteção porta a porta», quer dizer, desde o avião até ao Massachusetts Institute of Technology (onde ele iria ser distinguido – Alan Lightman, autor de Os Sonhos de Einstein, que era professor no MIT, tinha-lhe telefonado para lhe oferecer uma cátedra honorária), do MIT até D.C. e em D.C. até voltar a deixar o país. Dois dias depois Frances soube que Gore estaria no Extremo Oriente e que a audiência seria com o secretário de Estado Warren Christopher e com «o número dois de Lake». O encontro com Warren Christopher seria na Sala dos Tratados, com fotógrafos. Ele falou com Christopher Hitchens que receava que este fosse um daqueles casos em que Clinton «se metia nas encolhas». Nessa noite o acordo tornou a alterar-se. A audiência seria com Anthony Lake, Warren Christopher e o secretário de Estado adjunto para a Democracia, Direitos Humanos e Trabalho, John Shattuck. O presidente «não estava confirmado». Seria na véspera do Dia de Ação de Graças e o presidente tinha muito que fazer. Tinha de perdoar um peru. Podia não ter tempo para ajudar também um romancista.
No JFK havia oito automóveis à espera, em lugar dos mais discretos três que lhe haviam sido prometidos. O oficial encarregado, Jim Tandy, de falas mansas e prestável, um homem alto e magro, de bigode, com um rosto sério e olhos grandes, era uma grande melhoria em relação ao tenente Bob. Foi conduzido primeiro ao apartamento de Andrew, onde a polícia estava a dar grande importância à sua chegada, chegando a proibir os outros residentes do edifício de usarem os elevadores. Aquilo seria popular, pensou ele. Presumia-se que ele fosse um diplomata paquistanês chamado Dr. Ren, mas ninguém se deixava enganar.
No interior do apartamento de Andrew estavam amigos para o cumprimentar. Norman Mailer desejou-lhe felicidades e Norris Mailer disse: «Se vir o Bill dê-lhe cumprimentos meus.» Quando era nova tinha trabalhado na campanha de Clinton, quando ele estava a concorrer a governador do Arkansas. «Cheguei a conhecê-lo muito bem», disse ela. Está bem, disse ele educadamente a Norris, eu falo-lhe disso. «Não», volveu ela, poisando-lhe a mão elegante no braço, como Margaret Thatcher no auge do seu jeito de tocar nas pessoas. «Não estás a perceber. Quero dizer que o conheci muito bem.» Ah. Pronto. Sim, Norris. Nesse caso dar-lhe-ei sem dúvida saudades tuas.
Encontrou-se com Paul Auster e Siri Hustvedt, que foram muito afetuosos; era o princípio daquilo que se tornaria uma das suas maiores amizades. Don DeLillo encontrava-se também lá. Estava a trabalhar num livro «enorme e que crescia descontroladamente», disse. Chamar-se-ia Submundo. «Eu sei alguma coisa de submundos», retorquiu ele. Paul e Don queriam produzir um folheto com um texto sobre a fatwa que fosse inserido em todos os livros vendidos na América a 14 de fevereiro de 1994, mas tinham-lhes dito que a sua produção custaria mais de 20 000 dólares e que isso era irrealista. Peter Carey chegou e disse com o seu habitual humor seco: «Olá, Salman, estás com um aspeto de merda.» Susan Sontag, que aceitara ser a sua «testa de ferro» no MIT, aguardava ansiosamente o pequeno enredo que tinham montado. David Rieff estava cheio de tristeza por causa da Bósnia. Annie Leibovitz falou um pouco das suas fotografias da Bósnia, mas pareceu estranhamente relutante em evidenciar-se na presença de Susan. Sonny e Gita Mehta apareceram e Gita parecia doente e esgotada. Diziam que ela agora estava bem, recuperada do cancro, e ele esperava que estivessem a falar verdade. E de repente Andrew disse: «Oh, meu Deus, esquecemo-nos de convidar o Edward Said.» Isso era muito mau. Edward levaria certamente a mal.
Elizabeth e ele dormiram em casa de Andrew e ao acordar depararam com uma fila de limusinas pretas estacionadas na rua, bem como de uma grande e pouco subtil furgoneta com o canhestro letreiro brigada anti-bomba. Seguiu-se a viagem por estrada até Concord, no Massachusetts, onde seriam hóspedes de Alan e Jean Lightman. Alan levou-os a passear a pé à volta do lago Walden e, ao chegarem aos restos da cabana de Thoreau, ele disse a Alan que se alguma vez escrevesse sobre esta viagem lhe chamaria «De uma Cabana de Madeira à Casa Branca». A cabana ficava desapontadoramente perto da cidade, e Thoreau poderia facilmente ter ido a pé beber uma cerveja, se lhe apetecesse. Não era propriamente um refúgio em plena natureza.
Na manhã seguinte conduziram-no a um hotel de Boston e Jean Lightman levou Elizabeth a ver a cidade. Andrew e ele ocuparam-se de telefonemas para saber que progressos se tinham feito ou poderiam fazer-se. Tornou-se evidente que Frances e Carmel estavam em conflito com Scott Armstrong, embora Christopher Hitchens o defendesse. Dentro da Casa Branca, acrescentou Hitch, Stephanopoulos e Shattuck estavam a favor dele e a tentar convencer o presidente, mas não havia nada de definido a comunicar. Um funcionário governamental, Tom Robertson, telefonou para dizer que a reunião tinha sido antecipada meia hora e seria das 11.30 ao meio-dia. Que significava isso? Significaria alguma coisa? Scott e Hitch disseram mais tarde que a alteração se dera imediatamente a seguir a George Stephanopulos e outros se encontrarem com a pessoa que tratava da agenda do presidente… e por isso… talvez. Fizeram figas.
De tarde foi com Andrew Wylie visitar a casa de infância de Andrew. A nova proprietária, uma senhora dos seus cinquenta e tal anos, com um grande sorriso, chamada Nancy, olhou para o cortejo automóvel e perguntou: «Quem é toda aquela gente lá fora?» Logo a seguir exclamou: «Oh» e perguntou-lhe se ele era quem parecia ser. Inicialmente ele disse: «Não, infelizmente», e ela retorquiu: «Deve querer dizer “felizmente”. O pobre homem não deve ter uma vida muito agradável, não acha?» Mas tinha todos os seus livros, de modo que ele acabou por confessar, ela ficou entusiasmada e quis que ele lhos autografasse. A casa evocava muitas lembranças a Andrew porque grande parte dela, incluindo até o papel de parede do andar de cima, se mantinha tal como há trinta anos, e as letras AW estavam ainda riscadas na madeira das estantes da biblioteca, e na orla de uma porta os noventa centímetros de altura do jovem Andrew Wylie estavam ainda marcados e identificados.
Jantaram no MIT, a convite de um reitor espetacularmente estrábico, e chegou a hora do Evento. Ele nunca tinha recebido sequer um grau honoris causa, de modo que ficou um pouco emocionado com esta cátedra honorária. O MIT não era muito de atribuir doutoramentos honoris causa, ao que lhe disseram, e só uma vez na sua história concedera uma cátedra honorária a quem quer que fosse. Essa pessoa era Winston Churchill. «Uma companhia bastante elevada para um escrevinhador, Rushdie», disse ele de si para si. O Evento figurava no programa como uma noite com Susan Sontag, mas quando Susan se levantou para falar disse à assistência que só estava ali para apresentar outro escritor cujo nome não podia ser previamente anunciado. Falou então dele com afeto e descreveu a sua obra numa linguagem que teve mais significado para ele do que a cátedra. Finalmente ele entrou na sala de conferências por uma pequena porta das traseiras. Foi breve e a seguir leu excertos de Os Filhos da Meia-Noite e da história «Colombo e Isabel». Depois, ele e Elizabeth foram rapidamente levados dali e houve um voo noturno tardio para Washington. Chegaram pouco depois da meia-noite ao apartamento de Hitchens, num estado de alguma exaustão. Conheceu a filha de Hitch e Carol, Laura Antonia, e pediram-lhe para ser seu «despadrinho»55. Aceitou de imediato. Com ele e Martin Amis como mentores ímpios, pensou, a rapariga não tinha qualquer hipótese. Sentia a garganta inflamada e tinha um dente partido que lhe arranhava a língua. As últimas notícias sobre Clinton não passavam de um talvez. Hitch confessou que detestava Carmel, que andava a estragar tudo por ser desajeitada, disse ele, e estava na hora de dormir e amanhã compor as coisas.
A manhã trouxe uma briga entre amigos. Scott Armstrong apareceu para dizer que a Casa Branca decidira não propor Clinton nem Gore. Tinham-lhe dito: «Boa tentativa, mas não.» Carmel lançara uma campanha telefónica envolvendo Aryeh Neier e outros que tinham sido «contraproducentes». Quando Carmel e Frances chegaram, a tensão explodiu e todos começaram a gritar uns com os outros, com acusações e contra-acusações, argumentando Frances que fora Scott que dera cabo de tudo. Finalmente ele teve de propor uma trégua. «Temos uma coisa a conseguir aqui e eu preciso da vossa ajuda.» Scott tratou de que a conferência de imprensa após a ida à Casa Branca fosse no Clube da Imprensa Nacional, de forma que pelo menos havia uma coisa já feita. A seguir a discussão voltou a deflagrar. Quem iria com ele à Casa Branca? Só o autorizavam a levar duas pessoas. As vozes subiram outra vez de tom. Eu telefonei a fulano de tal. Eu fiz isto e mais aquilo. Andrew retirou-se rapidamente da competição e Christopher disse que não tinha razão para ser um dos escolhidos, mas as ONGs estavam engalfinhadas.
Mais uma vez, ele pôs termo à disputa. «A Elizabeth vai comigo», disse ele, «e gostaria que a Frances fosse também». Houve rostos carrancudos e ensombrados que se refugiaram em cantos do apartamento de Christopher ou para lá dele. Mas a discussão ficou por ali.
O cortejo automóvel estava à espera para os levar ao número 1600 da Pennsylvania Avenue. Uma vez no automóvel que lhes estava atribuído, foram os três acometidos por um acesso de riso nervoso. Perguntavam a si mesmos se, afinal, as tarefas de Clinton com Tom, o Peru, o manteriam ausente da reunião com eles e, se assim fosse, o que diriam os cabeçalhos das notícias no dia seguinte. «Clinton perdoa peru», improvisou. «Rushdie fica em lume brando». Ah ah ah ah ah ah ah ah! Daí a pouco estavam na «entrada dos embaixadores», a porta lateral, e foram autorizados a entrar. A política mundial, o grande jogo sujo, era no fim inevitavelmente canalizada para aquela pequenota mansão branca na qual um grande homem rosado numa sala oval fazia opções de sim ou não, apesar de ensurdecido pelos balbuciantes talvezes dos seus colaboradores.
Ao meio-dia fizeram-nos subir uma escada estreita para o acanhado gabinete de Anthony Lake, passando por uma lufa-lufa de sorridentes e excitados assessores. Ele disse ao conselheiro nacional de segurança que era emocionante estar finalmente na Casa Branca e Lake, de olhar cintilante, disse: «Aguente aí, porque está prestes a tornar-se um bocado mais emocionante.» O presidente tinha aceitado encontrar-se com ele! Às 12.15 dirigir-se-iam ao Old Executive Building e encontrar-se-iam ali com o Sr. Clinton. Frances começou a falar rapidamente e conseguiu persuadir Lake de que devia estar também presente. Por conseguinte, a pobre Elizabeth teria de ficar para trás. Havia muitos livros para serem autografados no gabinete exterior de Lake e ele estava a assiná-los quando Warren Christopher chegou. Elizabeth ficou a fazer companhia ao secretário de Estado enquanto Lake e ele se dirigiram a pé ao encontro do presidente. «Isto devia ter acontecido há anos», disse-lhe Lake. Depararam com Clinton num átrio sob uma cúpula cor de laranja e George Stephanopoulos estava também lá, exibindo um largo sorriso, bem como duas assessoras que também pareciam encantadas. Bill Clinton era ainda mais alto e rosado do que ele imaginava e muito afável, também, mas foi direito ao assunto. «Que posso eu fazer por si?», quis saber o presidente dos Estados Unidos. O ano de campanha política tinha-o preparado para a pergunta. Quando somos nós o Requerente, devemos sempre saber o que queremos do encontro, aprendera, e pedir sempre qualquer coisa que esteja ao alcance da pessoa dar.
«Sr. Presidente», disse ele, «quando sair da Casa Branca tenho de ir ao Clube da Imprensa Nacional e há de estar lá uma porção de jornalistas à espera de saber o que o senhor disse. Eu gostaria de poder dizer-lhes que os Estados Unidos se associam à campanha contra a fatwa iraniana e apoiam as vozes progressistas em todo o mundo.» Clinton acenou afirmativamente e sorriu. «Sim, pode dizer isso», retorquiu, «porque é verdade.» Fim da audiência, pensou o Requerente, com um sobressaltozinho de triunfo no coração. «Temos amigos comuns», declarou o presidente. «O Bill Styron, o Norman Mailer. Eles têm andado a desafiar-me a seu respeito. Sabe que a mulher do Norman, a Norris, trabalhou na minha primeira campanha política? Ficámos a conhecer-nos bastante bem.»
O Requerente agradeceu ao presidente a audiência e disse que ela se revestia de grande importância simbólica. «Sim», comentou Clinton. «Deve enviar uma mensagem a todo o mundo. Pretende ser uma demonstração do apoio americano à liberdade de expressão e do nosso desejo de que os direitos do tipo dos da Primeira Emenda se desenvolvam em todo o mundo.» Não houve fotografia. Isso seria demonstração a mais. Mas a audiência realizara-se. Isso era um facto.
Ao caminharem de regresso ao gabinete de Anthony Lake, ele reparou que Frances D’Souza exibia um enorme sorriso pateta. «Frances», perguntou ele, «porque é que estás com esse enorme sorriso parvo?» A voz dela tinha qualquer coisa de distante, de meditativo. «Não achas», perguntou ela langorosamente, «que ele me pegou na mão durante um bocadinho de tempo a mais?»
Quando voltaram, Warren Christopher estava mais ou menos apaixonado por Elizabeth. Christopher e Lake foram imediatamente unânimes em reconhecer que a fatwa estava «mesmo no topo da agenda americana com o Irão». O seu desejo de isolar o Irão ainda era maior que o dele. Também eles eram favoráveis a um congelamento do crédito e estavam a trabalhar para o conseguir. A reunião demorou mais de uma hora e após esta, de regresso ao apartamento de Hitchens, todos os Requerentes se sentiam tontos com o êxito. Christopher disse que Stephanopoulos, que tinha feito grandes esforços para que a audiência com Clinton se realizasse, estava também extasiado. Telefonara a Hitchens assim que ela ocorrera. «A águia poisou», disse.
A conferência de imprensa – setenta jornalistas na véspera do Dia de Ação de Graças, melhor do que Scott Armstrong receara – correu bem. O amigo de Hitch, Martin Walker, do Guardian, disse que tinha sido «feita com perfeição». Veio então a compensação, a entrevista exclusiva a David Frost, que, uma vez terminada, não podia estar mais feliz e o encheu de supers e de emocionantes e queridos e maravilhosos durante séculos, e que queria absolutamente tomar uma bebidinha em Londres antes do Natal.
Jim Tandy, o chefe do destacamento de segurança, introduziu uma nota discordante. «Um homem suspeito do Médio Oriente» tinha andado a espreitar à volta do edifício. Fizera um telefonema e a seguir fora-se embora num carro com mais três homens. Tandy perguntou: «Quer ficar aqui, ou transferimo-lo para outro sítio qualquer?» Ele disse «Ficar», mas a decisão final tinha de ser de Christopher e Carol. «Ficar», disseram ambos.
O embaixador britânico ofereceu-lhes uma receção. Foram recebidos na embaixada por uma tal Amanda, de voz apetitosa, que lhes disse tratar-se do único edifício Luytens da América, e a seguir: «Claro que ele construiu tanto em Nova Deli… Alguma vez esteve na Índia?» Ele deixou passar. Os Renwicks foram anfitriões atenciosos. A mulher de Sir Robin, francesa, Annie, perdeu-se imediatamente de amores por Elizabeth, que se fartou de fazer conquistas em D.C. «Ela é tão doce, tão franca, tão calma: parece que a pessoa a conhece há imenso tempo. Uma pessoa muito especial.» Apareceu lá Sonny Mehta, que disse que Gita estava bem. Kay Graham também foi e não disse quase nada.
Passaram o Dia de Ação de Graças com os interminavelmente hospitaleiros Hitchens. Os jornalistas e documentaristas britânicos Andrew e Leslie Cockburn apareceram, com a sua espertíssima filha de nove anos, Olivia, que explicou com grande fluência a razão exata por que era fã de Harun e o Mar de Histórias e que, quando crescida, veio a ser a atriz Olivia Wilde. Estava lá um adolescente ruivo – muito mais acanhado do que Olivia, apesar de ser vários anos mais velho – que disse que quisera ser escritor, mas agora já não, «porque veja o que lhe aconteceu a si».
A audiência com Clinton vinha em todas as primeiras páginas, e a cobertura era quase uniformemente positiva. A imprensa britânica parecia minimizar a importância do encontro com Clinton, mas as previsíveis reações fundamentalistas a ela faziam correr muita tinta. Também isso era previsível.
Depois do Dia de Ação de Graças Clinton pareceu vacilar. «Só estive com ele uns minutos», disse. «Houve pessoal meu que quis que eu o recebesse. Espero que as pessoas não o interpretem mal. Não houve intenção de insultar ninguém. Eu só quis defender a liberdade de expressão. Penso que fiz o que estava certo.» E assim por diante, de maneira bastante gelatinosa. Não parecia o Líder do Mundo Livre a tomar posição contra o terrorismo. O New York Times achou a mesma coisa e publicou um editorial que dizia: «Deixe-se de Rodeios, Por Favor!», incentivando o presidente a ater-se à sua boa ação sem sentir a necessidade de se desculpar por ela; a ter a coragem das suas convicções (ou seriam as de George Stephanopoulos e Anthony Lake?). No programa Crossfire, Christopher Hitchens foi confrontado com um muçulmano aos gritos e com Pat Buchanan a dizer que «Rushdie era pornográfico» e a sua obra era «obscena» e a atacar o presidente por conceder uma audiência a semelhante pessoa. Assistir ao programa foi deprimente. Telefonou a Hitch a altas horas da noite e soube que o apresentador do programa, Michael Kinsley, achava que a oposição tinha sido «zurzida», que trazer outra vez «ao primeiro plano» a questão era uma coisa boa e que Clinton estava a «manter a postura» apesar de haver uma luta de bastidores entre o grupo de Lake e Stephanopoulos e os assessores virados para a segurança. Christopher teve palavras sensatas também para ele. «O facto é que nunca se consegue nada de graça. Todas as vezes que marcares um ponto, os velhos argumentos contra ti hão de ser desenterrados e novamente trazidos à baila. Mas isto também significa que serão novamente deitados por terra, e eu deteto uma crescente indisponibilidade no seio dos inimigos para virem à liça. Por conseguinte, não terias tido um editorial do Times se não tivesse havido rodeios, e o efeito geral disso é fortalecer os teus defensores. Entretanto ainda tens a declaração do Clinton e o encontro com o Christopher e o Lake, e isso ninguém te pode tirar. Por isso, anima-te.»
Christopher tornara-se rapidamente – juntamente com Andrew – o amigo mais dedicado que ele tinha nos Estados Unidos. Uns dias mais tarde telefonou a dizer que John Shattuck, do Departamento de Estado, tinha sugerido a criação de um grupo informal constituído por ele, Hitch, Scott Armstrong, do Fórum da Liberdade, e talvez Andrew Wylie, para «prosseguir» a resposta dos Estados Unidos. Hitch tinha falado com Stephanopoulos numa receção, onde as pessoas estavam a ouvir, e George dissera firmemente: «A primeira declaração é aquela a que nos mantemos fiéis; espero que não pensem que tentámos retirar alguma coisa.» Uma semana depois enviou uma nota por fax – ah, a era dos faxes, já lá vai tanto tempo! – sobre uma reunião «espantosamente» boa com o novo chefe do antiterrorismo, o embaixador Robert Gelbard, que estava a levantar o caso em vários fóruns do G7 mas que encontrava «relutância» por parte dos japoneses e – imagine-se – dos britânicos. Gelbard prometia suscitar a questão das companhias aéreas junto da Autoridade Federal da Aviação, cujo novo chefe da segurança, o almirante Flynn, era um «amigalhaço». Além disso, segundo informava Christopher, Clinton tinha dito a alguém que gostaria de ter estado mais tempo com o autor de Os Versículos Satânicos, mas Rushdie estava com «imensa pressa». Isto era divertido e mostrava, segundo Hitch pensava, que ele estava satisfeito por a audiência se ter realizado. Tony Lake andava a dizer às pessoas que a audiência fora um dos pontos altos do seu ano. Scott Armstrong estava também a ajudar, dizia Hitch. Nenhum deles estava impressionado com Frances e Carmel, o que era preocupante e que, quase de imediato, precipitou uma crise.
Apareceu no Guardian um relato da aventura americana, e no artigo Scott Armstrong e Christopher Hitchens tinham ambos expresso as suas dúvidas quanto à utilidade de Frances e Carmel para a causa. «Minaste gravemente a Article 19 nos Estados Unidos», disse Frances ao telefone, num tom de extrema e justa raiva. «O Armstrong e o Hitchen nunca deviam ter falado como falaram sem o teu acordo tácito.» Ele tentou dizer-lhe que nem sequer sabia que tal peça estava em preparação, mas ela disse: «Tenho a certeza de que estás por detrás de tudo isto», e informou-o de que, em consequência do que ele fizera, a Fundação MacArthur podia retirar o financiamento essencial à Article 19. Ele respirou fundo, escreveu uma carta ao Guardian a defender Frances e Carmel e telefonou a título confidencial a Rick MacArthur, que disse, o que não deixava de ser razoável, que suportava metade do orçamento de Frances. Era política da fundação levar as organizações ao ponto em que pudessem «diversificar a sua base de financiamento», e isso significava obter grande visibilidade nos Estados Unidos. Frances é que tinha a culpa, segundo ele, de não conseguir chamar a atenção para o papel de liderança da Article 19 no «caso de direitos humanos mais importante do mundo». Continuou a falar com Rick até a MacArthur concordar em não fazer cortes, para já.
Quando desligou, ele próprio estava muito zangado. Acabava de levar Frances consigo à Casa Branca, elogiara o trabalho da Article 19 em todas as subsequentes conferências de imprensa, e sentia-se injustamente acusado. O fax seguinte de Carmel Bedford – «A menos que consigamos desfazer o mal que estes interesseiros provocaram, haverá razão para continuarmos?» – ainda piorou mais as coisas. Enviou por fax a Frances e a Carmel uma nota a dizer-lhes o que pensava das suas acusações e porquê. Não falou da sua conversa confidencial com Rick MacArthur nem do seu resultado. Uns dias depois Carmel mudou de tom e mandou-lhe faxes apaziguadores, mas de Frances nem uma palavra. Amuou como Aquiles na sua tenda. O choque das suas acusações não se atenuou.
***
Carmen Balcells, a lendária agente literária espanhola todo-poderosa, telefonou de Barcelona a Andrew Wylie dizendo que o grande Gabriel García Márquez estava a escrever uma «romanceação baseada na vida do Sr. Rushdie». Seria, acrescentava ela, «inteiramente escrita pelo escritor, que é um autor muito conhecido». Ele não soube como responder. Deveria sentir-se lisonjeado? Porque não se sentia lisonjeado? Agora ia ser a «romanceação» de outra pessoa? Se os papéis estivessem invertidos, ele não se sentiria no direito de se intrometer entre outro escritor e a história da sua vida. Mas a sua vida tinha talvez passado a ser propriedade de todos e, se ele tentasse deter o livro, parecia-lhe ver já as parangonas. rushdie censura márquez. E o que queria dizer «romanceação»? Se García Márquez estava a escrever sobre um autor latino-americano que tinha arranjado problemas com fanáticos religiosos cristãos, que tivesse muita sorte. Mas se Márquez se propunha meter-se na sua própria cabeça, sentiria isso como uma invasão. Pediu a Andrew para exprimir as suas preocupações e seguiu-se um longo silêncio de Balcells, ao qual se sucedeu uma mensagem a dizer que o livro de Márquez não era sobre o Sr. Rushdie. Então, interrogava-se ele, o que vinha a ser todo aquele estranho episódio?
Gabriel García Márquez nunca publicou uma «romanceação» de qualquer coisa que tivesse alguma semelhança com aquilo que Carmen Balcells propusera. Mas a abordagem de Balcells tinha remexido na ferida que ele infligira a si próprio. García Márquez quisera, ou não queria, escrever uma obra de ficção ou não-ficção acerca dele, mas ele não escrevera uma palavra de ficção em todo o ano… Não, há muito mais que um ano. A escrita estivera sempre no centro da sua vida, mas agora havia coisas marginais que tinham jorrado e preenchido o espaço que ele sempre mantivera livre para o seu trabalho. Gravou uma introdução televisiva a um filme sobre Tahar Djaout. Teve a oferta de uma coluna mensal a ser distribuída mundialmente pela cadeia do New York Times e pediu a Andrew que aceitasse.
O Natal estava à porta. Ele achava-se exausto e, apesar de todos os êxitos políticos do ano, em baixo. Falou com Elizabeth acerca do futuro, acerca de terem um filho, de como poderiam viver, e apercebeu-se de que ela não se imaginava a sentir segurança sem proteção policial. Ele conhecera-a no meio da teia de aranha e a teia era a única realidade em que ela confiava. Se um dia ele chegasse a um ponto em que a «prot» terminasse, não teria ela demasiado medo para ficar com ele? Era uma pequena nuvem no horizonte. Cresceria até encher o céu?
Thomasina Lawson morreu, com trinta e dois anos de idade apenas. Clarissa estava a fazer quimioterapia. E Frank Zappa morreu também. O passado veio repentinamente ao seu encontro quando o viu nos jornais, emboscando-o com poderosas e inesperadas emoções. Num dos primeiros encontros que tivera com Clarissa, tinham ido ouvir os Mothers of Invention ao Royal Albert Hall e, no meio do espetáculo, um negro pedrado, com uma camisa roxa brilhante, subira ao palco e exigira tocar com o grupo. Zappa ficou imperturbável. «Pois sim, senhor», disse ele, «e qual é o instrumento que escolhe?» Camisa Roxa murmurou qualquer coisa acerca de uma corneta e Zappa gritou: «Deem uma corneta a este homem!» Camisa Roxa começou a flautear desafinadamente. Zappa escutou durante uns compassos e depois, num aparte, disse: «Hum. Vamos lá a ver o que é que podemos arranjar para acompanhar este homem na sua corneta. Já sei! O poderoso e majestoso órgão de tubos do Albert Hall!» Dito isto, um dos Mothers subiu para o banco do órgão, abriu todos os registos e tocou «Louie Louie», enquanto Camisa Roxa flauteava desafinada e inaudivelmente lá em baixo. Era uma das primeiras lembranças felizes que ambos tinham, e agora Zappa desaparecera e Clarissa estava a lutar pela vida. (Pelo menos o emprego dela salvara-se. Ele telefonara aos seus chefes da A. P. Watt e chamara a atenção para o mau aspeto que teria despedirem uma mulher que estava a lutar com um cancro e era a mãe do filho de Salman Rushdie. Gillon Aitken e Liz Calder telefonaram igualmente, a pedido dele, e a agência compadeceu-se. Clarissa não sabia que ele tinha alguma coisa a ver com isso.) Convidou-a para passar o dia de Natal com eles. Ela foi com Zafar, sorrindo debilmente, com um ar perturbado, e parecia que o dia lhe agradara.
***
As pessoas também lhe escreviam cartas, como as cartas imaginárias que ele tinha na cabeça. Cem escritores árabes e muçulmanos em conjunto publicaram um livro de ensaios escrito em muitas línguas e editado em francês, Pour Rushdie, em defesa da liberdade de expressão. Cem escritores que compreendiam sobretudo aquilo de que ele falara, que vinham do mundo do qual o seu livro nascera, e que, mesmo quando não gostavam do que ele dizia, estavam dispostos a defender, como Voltaire teria defendido, o seu direito a dizê-lo. Com ele o gesto profético foi aberto aos quatro ventos do imaginário, escreviam os editores do livro, e a seguir vinha a cavalgada das grandes e pequenas vozes do mundo árabe. Da Síria, o poeta Adonis: A verdade não é a espada / Nem a mão que a sustém. E Mohammad Arkoun, da Argélia: Gostaria de ver Os Versículos Satânicos disponíveis a todos os muçulmanos, para que pudessem refletir de uma maneira mais moderna sobre o estatuto cognitivo da revelação. E Rabah Belamri, da Argélia: O caso Rushdie revelou muito claramente a todo o mundo que o islão… demonstrou agora a sua incapacidade de sujeitar-se com impunidade a qualquer género de exame sério. E da Turquia, Fethi Benslama: No seu livro Salman Rushdie foi ao fundo, de uma vez por todas, como se quisesse realmente ser, sozinho, todos os diferentes autores que nunca conseguiram existir na história da sua tradição. E Zhor Ben Chamsi, de Marrocos: Devíamos realmente estar agradecidos a Rushdie por ter aberto outra vez o imaginário aos muçulmanos. E Assia Djebar, a argelina: Este príncipe dos escritores… não está senão perpetuamente nu e sozinho. Ele é o primeiro homem a ter vivido na condição de uma mulher muçulmana (e… é também o primeiro homem a conseguir escrever sob a perspetiva de uma mulher muçulmana). E Karim Ghassim, do Irão: Ele é nosso vizinho. E Émile Habibi, palestiniano: Se nós não conseguirmos salvar Salman Rushdie – Deus não o permita! – a vergonha perseguirá a civilização global no seu todo. E o argelino Moahammed Harbi: Com Rushdie, reconhecemos o desrespeito, o princípio do prazer que é a liberdade na cultura e nas artes, como uma fonte de frutífero exame do nosso passado e do nosso presente. E o sírio Jamil Hatmal: Escolho Salman Rushdie em lugar dos turbantes homicidas. E Sonallah Ibrahim, do Egito: Toda a pessoa de consciência deve acorrer em auxílio deste grande escritor em dificuldades. E o escritor franco-marroquino Salim Jay: O único homem hoje verdadeiramente livre é Salman Rushdie… Ele é para mim o Adão de uma biblioteca que há de vir: uma biblioteca de liberdade. E Elias Khoury, do Líbano: Temos a obrigação de lhe dizer que ele personifica a nossa solidão e que a sua história é a nossa. E o tunisino Abdelwahab Meddeb: Rushdie, escreveste o que nenhum homem escreveu… Em vez de te condenar, em nome do islão, eu felicito-te. E Sami Naïr, franco-argelino: Salman Rushdie deve ser lido.
Obrigado, meus irmãos e irmãs, respondeu ele silenciosamente às cem vozes. Obrigado pela vossa coragem e compreensão. Desejo-vos a todos um feliz ano novo.
51 Da escola de Frank Raymond Leavis, crítico literário inglês, nascido em 1895 e falecido em 1978. (N. do T.)
52 Em francês no original: por analogia com a expressão consagrada le tout-Paris, que designa as pessoas mais notáveis, toda a gente que conta na cidade. (N. do T.)
53 Os condutores (cf. pág. 169). (N. do T.)
54 Em francês no original: estou um pouco desapontada consigo. (N. do T.)
55 Ungodfather, no original, uma variante da palavra godfather que alude ao ateísmo (ungodliness) do autor. (N. do T.)