A LEVE SUSPEITA DAS PALAVRAS
Viçosa, agreste alagoano, 1902. Ar abafado, poeira. Graciliano Ramos de Oliveira, dez anos incompletos, subia e descia a Ladeira da Matriz, quase em desespero. Estava atrás de coisas até então desconhecidas: aventuras, amor, vinganças, justiça. Não fazia muito tempo que se alfabetizara – e, por essas bandas, não se escapava de aprender gramática e tabuada sem dar as mãos à palmatória. Com ele não fora diferente. Mas por que lembrar disso agora, quando percorria a ladeira sem saber se devia entrar na casa do tabelião Jerônimo Barreto?
Bem que tentara fugir do contato direto com esse homem culto que encantava os matutos com suas histórias fabulosas sobre Robespierre e Marat. Ouviam-no crédulos, como se o imaginário da Revolução Francesa pudesse vencer o oceano e se descortinar a dois passos do sertão. Jerônimo haveria de se surpreender quando ouvisse o pedido exorbitante que lhe tinha a fazer. E foi para contornar o constrangimento que Graciliano buscara, em vão, intermediários.
Só lhe restava desfazer-se da agonia. Deu uma última olhadela, bateu à porta e em um minuto viu-se na ampla sala com estantes de pinho abarrotadas de volumes. Subitamente divorciado da timidez, Graciliano parecia irreconhecível no jorro de palavras com que procurava explicar a Jerônimo a razão do incômodo.
Simples e tão penoso: sonhava com livros. Não os enfadonhos compêndios escolares, menos ainda os almanaques e as folhinhas que andara a consumir como um sôfrego. Livros que saciassem o seu desejo de “mergulhar em uma espreguiçadeira e, empoeirado, sujo de cal, sentindo o cheiro das tintas, passar horas adivinhando a narrativa”. Como consegui-los em Viçosa senão recorrendo à sedutora biblioteca do tabelião, porta de entrada para terras inóspitas e segredos bem guardados?
Jerônimo sorriu gostosamente, alisando-lhe com a palma da mão os cabelos mirrados.
– Pegue o que você quiser, são seus – disse, quebrando a distância entre o menino de calça curta e a fortaleza de tomos encadernados.
Em uma cidade de solo abrasado e sertanejos de olhar melancólico, um garoto à procura de leitura. O tabelião, entrado em anos, já não imaginava que podia se espantar.
Esfogueteado, Graciliano jurou-lhe não dobrar as folhas nem maculá-las com saliva ou gordura. Jerônimo agiu rápido: retirou da estante um volume de percalina vermelha em cuja capa se lia O guarani.
– Leve este e volte quando quiser para me dizer se gostou.
Quando o garoto pôs os pés na rua, o corpo, com a leveza de uma pluma, não lhe obedecia as ordens. A ladeira persistia imóvel, os homens arrastando-se na indolência da hora do almoço. Pouco importava a vida entrevada. Graciliano fingiu velocidade na rotação – os olhos ameaçavam desabar de felicidade.
Quase quarenta anos depois, Graciliano se daria conta de que, naquele dia calorento, quando, às escondidas, protegeu com papel de embrulho a brochura, a densa névoa que encobria seus olhos começara a dissipar-se. O mundo tinha cores, os rostos eram mais que um feixe de músculos.
– Ali desembestei para a literatura.
* * *
O Brasil de 1892, ano em que o velho Graça nasceu, não parece tão distante assim. Crise econômica, ínfima participação popular, disputas políticas dentro do bloco de poder, promessas de mudanças no ar, incertezas quanto ao futuro.
Fazia três anos que a República fora proclamada por meio de um golpe militar que, entre outras medidas, baniu do país a família imperial, impôs censura à imprensa e organizou tribunais de exceção para julgar quem atentasse contra a “segurança do Estado”.
A descentralização econômica e financeira a partir de 1889 impulsionaria a transição para o capitalismo, beneficiando os setores hegemônicos das classes dominantes, em particular as oligarquias cafeeiras. Até 1929, viveríamos um círculo vicioso com o café. Principal item de exportação, nem por isso teria uma expansão planejada, gerando excedentes de produção e exigindo crédito permanente para manter o preço competitivo.
Já na última década do século XIX, as relações de força traduziam-se em supremacia do Sudeste cafeicultor, tendo São Paulo como polo de desenvolvimento. A aparente igualdade jurídica introduzida pela Federação ocultava, na verdade, profundas desigualdades regionais. A desvalorização da moeda, o desemprego e a contenção de crédito traziam infortúnios aos mais carentes. O romancista Aluísio Azevedo escreveu, em 1893, um libelo contra essa situação: “O povo não pode distrair sua atenção das misérias em que vegeta ou dos perigos que o ameaçam”.
Voltemos os olhos para o Nordeste, particularmente para Alagoas, cuja economia, ontem como hoje, estava centrada na cana-de-açúcar. Graciliano viveu seus primeiros anos no Agreste seco e propício à pecuária e à agricultura de subsistência, castigado pela estiagem. Espremida entre a caatinga e o litoral, a Zona da Mata concentrava os grandes engenhos. Em uma área atrasada e pobre, a agroindústria açucareira ainda conferia distinção, riqueza e privilégios.
Para tentar recuperar o terreno perdido ao café, no fim do Segundo Império os engenhos começaram a ser substituídos por usinas, que asseguravam maior produtividade e contornavam parcialmente o problema de mão de obra surgido com a abolição da escravatura. O obstáculo, porém, eram as cotações favoráveis ao similar cubano no mercado internacional.
À medida que o ciclo do açúcar perdia fôlego, o Nordeste algodoeiro-pecuário se afirmava como alternativa mais vantajosa para a comercialização no exterior. No limiar da República, o declínio da economia canavieira alterou as bases da ordem política e social da região: os coronéis do algodão e da pecuária, de um lado, e o Estado oligárquico, de outro, tornaram-se os agentes e a forma da estrutura do poder.
Longe do império dos canaviais, filho de um senhor de engenho arruinado e curiosamente inclinado às artes, Sebastião Ramos de Oliveira, 38 anos, empenhava-se para levar à frente sua modesta loja de tecidos, em Quebrangulo. Comedido, economizava o que podia, não vendia fiado e era a discrição em pessoa. Às quatro horas da tarde de 27 de outubro de 1892, largou o balcão para correr à casa e conhecer Graciliano, o primeiro dos dezesseis filhos de sua união com Maria Amélia Ferro e Ramos, então com catorze anos. Depois nasceriam Leonor, Otília, Clodoaldo, Otacília, Clodoaldo (o primeiro havia morrido), Amália, Anália, Maria (Marili), Carmen, Carmen (a primeira havia morrido), Clélia, Lígia, Vanda, Clóvis e Heitor.
Muito tempo depois, Graciliano revelaria a primeira impressão do mundo exterior à sua casa, em Quebrangulo, aos dois anos: “A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta”.
Encravada na montanha, a cidade em nada diferia dos pequenos vilarejos: comércio de ocasião, trabalho no roçado, boas pastagens para a pecuária e vida arrastada. Mas havia a expectativa de progresso com a chegada dos trilhos da Great Western; Maceió ficaria a um pulo.
Quebrangulo acabaria se tornando referência sentimental. Em 1895, cedendo aos argumentos dos sogros, prósperos fazendeiros no Sertão pernambucano, Sebastião liquidou com a loja e se mudou para Buíque, na vizinhança da Fazenda Maniçoba, endereço dos Ferro. Que deixasse o comércio para enriquecer com criação de gado, aconselhava Pedro Ferro, pai de Maria Amélia. Foi o que fez, juntando as economias para comprar a Fazenda Pintadinho, para onde levou a mulher e os filhos (acabara de nascer Leonor).
A paisagem de Pintadinho foi desconcertante para o pequeno Graciliano: bois, vaqueiros, empregados, tiros, vozes ásperas, “berros de animais ligando-se à fala humana”. Nas reminiscências incluídas em seu livro Infância, avultam-se as imagens perturbadoras que ia formando dos pais. “Meu pai e minha mãe conservavam-se grandes, temerosos, incógnitos. Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas, finas e leves, transparentes.”
Sebastião e Maria Amélia, a Mariquinha, ganhavam contornos mais nítidos – e assustadores. O menino não demorou a perceber que, à medida que a família crescia, as preferências positivamente não recaíam nele. Os gestos de ternura eram suplantados pela impaciência.
Nesse tempo, meu pai e minha mãe estavam caracterizados: um homem sério, de testa larga, uma das mais belas testas que já vi, dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, bossas na cabeça mal protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos maus, que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura. Esses dois entes difíceis ajustavam-se. Na harmonia conjugal, a voz dele perdia a violência, tomava inflexões estranhas, balbuciava carícias decentes. Ela se amaciava, arredondava as arestas, afrouxava os dedos que nos batiam no cocuruto, dobrados, e tinham dureza de martelos. Qualquer futilidade, porém, ranger de dobradiça ou choro de criança, restituía-lhe o azedume e a inquietação.
As adversidades enfrentadas pelo garoto magro e introvertido não poderiam ser mais emblemáticas da sociedade patriarcal do Nordeste. Os Ramos nada mais eram do que um microcosmo da rígida tradição familiar sertaneja, na qual a noção de hierarquia representava um totem. A supremacia da figura paterna como fonte de transmissão de valores desencorajava resistências e dissensões.
A educação confundia-se com “bolos, chicotadas, cocorotes e puxões de orelhas”. A mínima transgressão implicava admoestações humilhantes e/ou castigos brutais. Em uma síntese magistral, Graciliano descreveria o impacto desses corretivos na sua alma: “Medo. Foi o medo que me orientou nos primeiros anos. Pavor”.
O pior ainda estava por vir. A empáfia da autoridade levaria Sebastião a tentar ensinar-lhe o alfabeto. Aos cinco anos, Graciliano, a muito custo, aprendeu as cinco primeiras letras. Mas empacou aí, confundindo, por exemplo, o d com o t. Irado, o pai não o perdoaria: “Aprendi a carta do ABC em casa, aguentando pancada. [...] Meu pai era terrivelmente poderoso. [...] Éramos repreendidos e batidos”.
A pedagogia da palmatória se mostrou um fracasso, e o menino pagou com lágrimas, soluços, mãos inchadas “que latejavam como se funcionassem relógios dentro delas”. Chegou a dispensar-se das brincadeiras para remoer as punições:
Assaltava-me, às vezes, um desassossego; aterrorizava-me a lembrança do exercício penoso [...]; uma corda me apertava a garganta, suprimia a fala: e as duas consoantes inimigas dançavam: d, t. Esforçava-me por esquecê-las, revolvendo a terra, construindo montes, abrindo rios e açudes.
A segunda tentativa de alfabetização foi com Mocinha, irmã natural de Graciliano por parte de pai, que vivia com a família. Se o livrou da truculência, ela lhe pôs minhocas na cabeça, ao ler um provérbio: “Fala pouco e bem; ter-te-ão por alguém”.
– Mocinha, quem é o Terteão?
Ela coçou a cabeça, sem saber o que responder.
Na escola de Buíque, Graciliano foi apresentado ao “grosso volume escuro” da cartilha do barão de Macaúbas. E não é que lá apareceria de novo o tal do Terteão?
A professora coibia aos gritos os garranchos na caligrafia. E fiscalizava diuturnamente se as orelhas dos alunos estavam limpas. Graciliano implicou com a cartilha, que relatava a história de um menino que, ao se virar para um passarinho, dizia: “Passarinho, queres tu brincar comigo?”. Forma esquisita de perguntar, pensou. E não houve jeito de reconciliá-lo com o barão. “Examinei-lhe o retrato e assaltaram-me presságios funestos. Um tipo de barbas espessas [...], carrancudo, cabeludo. E perverso. Perverso com a mosca inocente e perverso com os leitores.”
Graciliano acabou dando sorte porque as constantes idas à fazenda do avô materno interromperiam o aprendizado.
O terceiro livro que lhe deram não poderia ter sido mais estapafúrdio: Os Lusíadas.
Sim, senhor: Camões, em medonhos caracteres borrados – e manuscritos. Aos sete anos, no interior do Nordeste, ignorante da minha língua, fui compelido a adivinhar, em língua estranha, as filhas do Mondego, a linda Inês, as armas e os barões assinalados. Um desses barões era provavelmente o de Macaúbas, o dos passarinhos, da mosca, da teia de aranha.
Resultado: abominou o complicadíssimo Camões.
Crescia socado dentro de casa, transformada em prisão. “Se eu pudesse correr, molhar-me, enlamear-me, deitar barquinhos no enxurro e fabricar edifícios de areia, com o Sabiá novo, certamente não pensaria nessas coisas.”
Afastado dos outros meninos, que lhe causavam inveja e receio, não podia jogar bola, empinar papagaios ou brincar com carrinhos de lata. Divertia-se com as irmãs, construindo casas de encerado e arreios de animais, ou revolvendo milho no depósito.
O tratamento arbitrário que o pai lhe dispensava variava de acordo com o humor. Se os negócios na loja que abrira na vila Buíque iam bem, os filhos obtinham “generosidades imprevistas”; se havia retração nas vendas, suportavam o rigor.
A mãe reprovava-lhe curiosidades. Graciliano queria saber, por exemplo, a origem dos cometas e se existia mesmo o diabo, coisas faladas a três por dois na fazenda. Por azar, não entendia direito o sentido figurado das explicações de Mariquinha. Se insistia nas perguntas, ouvia ser chamado de “animal”. O pai, em uma ocasião, espancou-o por causa de um cinturão que supunha ter sido achado ou escondido pelo filho. O injusto suplício doeu-lhe para sempre: “Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça”.
Uma renitente inflamação nas pálpebras o obrigou a andar com bandagens nos olhos, sofrendo dores terríveis. Os sedativos não surtiam efeito. “Torturava-me semanas e semanas, eu vivia na treva, o rosto oculto em um pano escuro.” Se já se sentia encarcerado, muito mais motivos teria para se julgar vítima de perseguição. Mariquinha extravasou a impaciência com dois apelidos que o estigmatizariam por bom tempo: bezerro-encourado e cabra-cega. “Bezerro-encourado é um intruso. Quando uma cria morre, tiram-lhe o couro, vestem com ele um órfão que, nesse disfarce, é amamentado. A vaca sente o cheiro do filho, engana-se e adota o animal. Devo o apodo ao meu desarranjo, à feiura e ao desengonço”, explicaria ele.
À síndrome da feiura seria somado o complexo de rejeição, provocado pelos desacatos e pela indiferença que os pais lhe devotavam. Os apelidos, por exemplo, trituravam a sua autoestima: “Essa injúria revelou muito cedo a minha condição na família: comparado ao bicho infeliz, considerei-me um pupilo enfadonho, aceito a custo”.
O instinto da rejeição o atormentou também na escola, em função das censuras das professoras e das picuinhas de colegas. O uniforme – com medidas imprecisas – reforçava-lhe o jeito desengonçado. “Censurando-me a inferioridade, talvez quisessem corrigir-me”, sublinharia. Seu impulso era o de fechar-se cada vez mais para os outros, escudando-se de possíveis agressões.
Paradoxalmente, em um dos raros momentos de afeto da mãe, Graciliano percebeu, pela primeira vez, o “valor enorme das palavras”. Como não podia se locomover pela cegueira temporária, ouvia de Mariquinha ternas cantigas e lendas infantis. Abstraía-se nas fantasias. Apesar de não suportar os métodos de alfabetização empregados na escola, começou a suspeitar de que nos livros havia outras histórias interessantes de homens que suplantavam o mal e viviam felizes pela eternidade.
Leve suspeita das palavras, por enquanto.
Graciliano se movia com cautela no relacionamento com familiares. Fazia clara distinção entre os avôs materno e paterno. Enquanto Pedro Ferro – remanescente do senhorio colonial – seria evocado com rude frieza (“Nenhum pensamento estranho o perturbava, nenhum escrito ia modificar o velho Deus agreste e pastoril”), Tertuliano Ramos mereceria a compaixão do narrador de Infância:
Legou-me talvez a vocação absurda para coisas inúteis. Era um velho tímido, que não gozava, suponho, muito prestígio na família. Possuíra engenhos na mata; enganado por amigos e parentes sagazes, arruinara-se e dependia dos filhos. Às vezes endireitava o espinhaço, o antigo proprietário ressurgia, mas isto, rabugice da enfermidade, findava logo e o pobre homem resvalava na insignificância e na rede. Bom músico, especializara-se no canto.
Das personagens agregadas ao universo da fazenda, o menino se entrosou com a negra Vitória, a prima Emília, o capataz José Baía, o moleque José e o cabo José da Luz. Nesse convívio, a aparente ferocidade do mundo parecia atenuar-se.
Vitória, que apesar de adoentada trabalhava como uma moura, transmitia-lhe calor humano: “Defendia-nos dos perigos caseiros, enrolava-nos na saia de chita, protegia-nos as orelhas e os cabelos com ternura, resmungona, esquisita expressão de maternidade gora”.
Com “rosto sereno, largos olhos pretos, um ar de seriedade”, a doce Emília o conquistou com a paciência que faltava aos pais para contar histórias. E José Baía, a despeito da submissão plena a Sebastião, parecia-lhe provido de compreensão, soltando gargalhadas diante das diabruras infantis.
O “sutil e tortuoso” moleque José lhe marcou a carne e o espírito. Vendo o pai aplicar uma sova no empregado, por ter insistido em negar “uma traquinada insignificante”, Graciliano achou de auxiliá-lo na execução da pena. “O meu ato era a simples exteriorização de um sentimento perverso, que a fraqueza limitava”, admitiria. Com o feixe molhado, apenas roçaria na pele do negrinho. Foi a sua desgraça. José pôs a boca no trombone, como se sulcos de sangue tivessem sido abertos em seu corpo. Sebastião largou de pronto o moleque, levantou o filho pelas orelhas e deu-lhe uma surra impiedosa.
Para impregná-lo de respeito e obediência, o pai incutiu em Graciliano um medo generalizado pelo sobrenatural e pela autoridade estabelecida: “A princípio os lobisomens, que, por serem invisíveis, nenhum efeito produziam; em seguida, a religião e a polícia, reveladas nas figuras de padre João Inácio e José da Luz”.
Ele se manteve temente apenas aos poderes incontestáveis do padre, que decidia entre o céu, o purgatório e o inferno. Ficou apavorado ao saber pela mãe que no inferno havia “fogueiras maiores que as de São João em tachas de breu derretido”. A religião era uma força onipresente, associada ao destino das pessoas. Tudo o espantava: os demônios, as ladainhas pela graça divina, a reverência com que João Inácio era tratado, as penitências aos pecadores, as leituras religiosas nas quais a mãe descobria profecias sobre o fim do mundo.
A imagem da polícia como poder coercitivo era simbolizada pelos soldados “insolentes e grosseiros” que vagavam ameaçadores, sempre dispostos à cachaça e ao exibicionismo da força. José da Luz constituía exceção à regra. Simpático e amável, sempre puxava conversa no balcão do armazém, como Graciliano lembraria em Infância:
Esse mestiço pachola teve influência grande e benéfica na minha vida. Desanuviou-me, atenuou aquela pusilanimidade, avizinhou-me da espécie humana. Ótimo professor. Acho, porém, que era um mau funcionário. O Estado não lhe pagava etapa e soldo para desviar-se dos colegas, sujos e ferozes, e encher com lorotas as cabeças das crianças. Um anarquista.
Mas não se apagariam de sua memória outras formas do exercício do poder na região. A violência no meio rural – com mortes atribuídas a pistoleiros a mando de fazendeiros e chefes políticos – preservava o domínio das oligarquias. A injusta estrutura fundiária vedava aos pobres a posse da terra. As condições de vida dos trabalhadores rurais eram degradantes. “Os cabras rurais do velho Frade morriam em abundância, e a gente se habituava aos cadáveres que manchavam a cidade.” Ao mesmo tempo, observaria ele, “só raramente em casos de ofensas pessoais, questões de família, eliminavam-se membros da classe elevada”.
A seca em Buíque se prolongou, para desespero de Sebastião Ramos. O açude secou, os bois minguaram no pasto, as plantas murcharam e enegreceram, faltou água em casa. “Tive sede e recomendaram-me paciência”, relembraria Graciliano. O flagelo da estiagem: gado perdido da noite para o dia, retirantes em disparada, reinado da caatinga.
Sebastião só escaparia à completa miséria se voltasse ao comércio. Em Viçosa, teria a ajuda de amigos e parentes, como Ismael Brandão – aliado político da oligarquia dos Malta. Mariquinha e os filhos permaneceriam em Buíque até que pudesse buscá-los meses depois. A seca infernal, comentava-se, era sinal dos tempos – faltava um ano para a virada do milênio e tudo poderia ir pelos ares.