A SEDUÇÃO PARNASIANA
Um lamaçal cheio de ladeiras. Graciliano, adulto, pintaria assim a cidade onde passara parte da infância e da adolescência. Viçosa tem tradição libertária: na Serra da Barriga, travaram-se os últimos combates do Quilombo dos Palmares. O município prosperava com a cana-de-açúcar, mas, em 1900, quando os Ramos de Oliveira ali se instalaram, os engenhos já não tinham a pujança de antigamente. Com a crise econômica, o preço do açúcar atingira os níveis mais baixos das últimas décadas. O país vivia momentos de turbulência, e o rastilho de pólvora acionado pelo descontentamento social gerava movimentos como o liderado por Antônio Conselheiro no arraial de Canudos, esmagado militarmente depois de sangrentos combates.
Sebastião Ramos, porém, não tinha do que se queixar: a loja de tecidos, ferragens e miudezas, na praça do Quadro, ia de vento em popa. Ocupava o andar de baixo de um sobradão; na parte de cima, residia a família. Trabalhando de sol a sol, comprou uma pequena propriedade rural para criar gado.
Matriculado na escola pública, Graciliano caiu na tutela da professora Maria do Ó, figura robusta que inspirava pânico nos alunos. “Não há prisão pior que uma escola primária do interior”, desabafaria ele em Infância. Tomou gosto pela leitura no dia em que a carinhosa prima Emília lhe contou uma história sobre os astrônomos, “homens que liam nas estrelas”.
À falta de romances de capa e espada, Graciliano contentava-se com os livrinhos de histórias e com as efemérides e anedotas das folhinhas. “Esses retalhos me excitavam o desejo, que se ia transformando em ideia fixa. Queria isolar-me.”
Na biblioteca do tabelião Jerônimo Barreto, encontrou livros a granel, de várias cores e tamanhos, títulos estranhos, figuras misteriosas, mapas desconhecidos. Pelas mãos de Jerônimo, foi apresentado a índios, reis, príncipes, aventureiros, vilões e sedutoras donzelas. Nunca esqueceria a sensação experimentada ao terminar O guarani: “Talvez porque eu fosse demasiado ingênuo, aquele enredo intricado e belo parecia-me a coisa mais real possível.”
Em poucos meses, romances de José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Júlio Verne haviam sido “devorados” na escola, debaixo das laranjeiras do quintal, nas pedras do rio Paraíba, em cima de uma caixa de velas, junto ao dicionário “que tinha bandeiras e figuras”.
A febre literária alteraria o seu metabolismo interior: “Mudei de hábitos e linguagem. Minha mãe notou as modificações com impaciência. [...] Os caixeiros do estabelecimento deixaram de afligir-me e, pelos modos, entraram a considerar-me um indivíduo esquisito”. Esquisito porque não hesitava em largar as brincadeiras para folhear as brochuras. Esquisito porque recolhido dentro de si, sorumbático.
A educação severa, segundo o escritor Octavio Brandão, contemporâneo de Graciliano em Viçosa, fez dele um menino arredio, cheio de defesas. Julgava-se inferior aos amigos e vizinhos Rodolfo, Joaquim, Pedro e Paulo, filhos do farmacêutico Joaquim Pinto da Motta Lima. “Esses garotos, felizes, para mim eram perfeitos: andavam limpos, riam alto, frequentavam escola decente e possuíam máquinas que rodavam na calçada como trens. Eu vestia roupas ordinárias, usava tamancos, enlameava-me no quintal, engenhando bonecos de barro, falava pouco.”
Os pais não o dispensariam do ritual da iniciação religiosa, indicando-o para coroinha da matriz. Uma catástrofe. Desengonçado dentro das vestes, ficou a ver navios com a língua enrolada do padre – desconhecia o que fosse latim. Respiraria aliviado ao ser dispensado da tarefa.
A “provisão de sonhos” fornecida por Jerônimo seria reforçada por Mário Venâncio, agente dos Correios, literato e professor do Internato Alagoano. Sabia muito pouco de geografia, mas encantava os alunos com as histórias que arrancava dos livros e com os poemas que declamava.
Atraídos por esse “homem miúdo, com rosto fino como focinho de rato”, Graciliano e seu primo Cícero de Vasconcelos não titubeariam em aderir à ideia de fundar um jornal. A agência dos Correios seria logo transformada em redação – ou “asilo de doidos”, segundo Graciliano. Venâncio fabricava artigos e notícias, reduzindo os diretores que constavam no expediente – os dois garotos – a simples testas de ferro.
O número 1 de O Dilúculo, “órgão do Internato Alagoano”, circulou em 24 de junho de 1904. Publicação bimensal, com quatro páginas impressas em Maceió, tiragem de duzentos exemplares e distribuição de porta em porta feita pelo estafeta Buriti. A assinatura mensal custava quinhentos réis adiantados. O “desgraçado título” (significa alvorada) fora escolhido por Mário Venâncio, “fecundo em palavras raras”.
Pois, nesse pasquim, Graciliano Ramos estrearia, aos onze anos, com o conto “O pequeno pedinte”. O texto foi emendado por Venâncio “com tantos arrebiques e interpolações que do original pouco se salvou”. O gosto do mentor intelectual era realmente duvidoso:
Tinha oito anos.
A pobrezinha da criança sem pai nem mãe, que vagava pelas ruas da cidade pedindo esmola aos transeuntes caridosos, tinha oito anos.
Oh! Não ter um seio de mãe para afogar o pranto que existe no seu coração.
Pobre pequeno mendigo.
Quantas noites não passara dormindo pelas calçadas exposto ao frio e à chuva, sem o abrigo do teto.
Quantas vergonhas não passara quando, ao estender a pequenina mão, só recebia a indiferença e o motejo. Oh! Encontram-se muitos corações brutos e insensíveis.
É domingo.
O pequeno está à porta da igreja, pedindo, com o coração amargurado, que lhe deem uma esmola pelo amor de Deus.
Diversos indivíduos demoram-se para depositar uma pequena moeda na mão que se lhes está estendida.
Terminada a missa, volta quase alegre, porque sabe que naquele dia não passará fome.
Depois vêm os dias, os meses, os anos, cresce e passa a vida, enfim, sem tragar outro pão a não ser o negro pão amassado com o fel da caridade fingida.
Venâncio apostava, profético, no potencial de Graciliano, vendo nele sinais de Coelho Neto e de Aluísio Azevedo. “Isto me alarmava. Acanhado, as orelhas ardendo, repeli o vaticínio: os meus exercícios eram composições tolas, não prestavam. Sem dúvida, afirmava o adivinho. Ainda não prestavam. Mas eu faria romances.”
O garoto passou dias de inquietação, persuadido de que jamais seria capaz de criar enredos e personagens como os que agora conhecia. “Examinei-me por dentro e julguei-me vazio”, diria décadas depois. “Meus primeiros trabalhos foram pequenos contos, simples ensaios sem estética, sem forma, sem coisa alguma. Verdadeiras criancices.”
Com onze para doze anos, poderia ter sido diferente?
Por timidez ou vergonha, assinou os contos com pseudônimos. Para os leitores de O Dilúculo, era Ramos, G.; Ramos de Oliveira; Ramos Oliveira; ou Feliciano.
A amizade com Venâncio facilitou a compra de livros por via postal. De posse dos catálogos das Livrarias Garnier e Francisco Alves, do Rio de Janeiro, sempre que podia encomendava uma remessa. Mas como obtinha dinheiro? Habituara-se a furtar moedas na loja do pai, escondendo-as em um frasco bojudo no meio das fronhas e toalhas no compartimento superior da cômoda.
Entre níqueis e pratas surgiam cédulas – e enchi as prateleiras da estante larga, presente de aniversário. Esses delitos não me causavam remorsos. Cheguei a convencer-me de que meu pai, encolhido e avaro por natureza, aprovava-os tacitamente. Desculpava-me censurando-lhe a sovinice, tentando agarrar esperanças absurdas.
Graciliano se ligou a um elenco invejável de autores: Aluísio Azevedo, Victor Hugo, Daniel Defoe e Cervantes. Com mania de ler, frequentava a Instrutora Viçosense, “uma sociedade que dormia o ano inteiro, acordava na posse da diretoria e, concluídos os discursos, tornava ao sono”. Ponto de encontro de literatos e estudantes, dispunha de duas estantes de livros e uma mesa comprida com jornais e revistas que recebia gratuitamente, inclusive da França, da Inglaterra, da Itália, de Portugal e da Argentina.
As extravagâncias não agradavam aos pais, que preferiam vê-lo mais dedicado às lições escolares. Como não havia ginásio em Viçosa, decidiram matriculá-lo no Colégio Quinze de Março, do professor Agnelo Marques Barbosa, em Maceió, em regime de internato. Coincidindo com a partida de Graciliano, O Dilúculo deixou de circular em abril de 1905, após dezessete números.
Os cinco anos passados em Maceió confirmariam a inclinação autodidata. Disciplinado, ele se enfurnava nos estudos de português e de línguas estrangeiras (latim, inglês, francês e italiano). Adquiriria um hábito para o resto da vida: consultar dicionários. “Dicionários, para mim, nunca foram apenas obras de consulta. Costumo lê-los e estudá-los. Como escritor, sou obrigado a jogar com as palavras, preciso conhecer-lhes o valor exato”, justificaria.
Nas férias de 1906, retornou a Viçosa e ao grupo da Instrutora. O amigo Joaquim Pinto da Motta Lima Filho, o Pinto, guardou na memória Graciliano em sua casa saboreando pamonha e canjica de milho verde. “Embora dissessem que ele era de pouca conversa, o convívio conosco era ameno e afetivo”, afirmaria Pinto. Ao entrar certa vez na casa dos Ramos, surpreendeu Graciliano com uma das irmãs menores no colo, cantarolando a toada sertaneja: “Mulata, suspenda a saia/ Não deixe a renda arrastar/ Que a renda custa dinheiro/ Dinheiro custa a ganhar”.
Novamente incentivado por Mário Venâncio, ajudou a editar o jornal Echo Viçosense, que durou apenas quinze dias. Entre o primeiro e o segundo números, a cidade foi sacudida pelo suicídio de Venâncio. Um choque vê-lo morto:
Esse amável profeta bebeu ácido fênico. Levantei-me da espreguiçadeira, onde me seguravam as novidades e os sofrimentos da artrite e de uma novela russa, fui encontrar o infeliz amigo estirado no sofá, junto à mesa coberta de papéis, brochuras, pedaços de lacre, almofadas e carimbos.
Em edição extra, o Echo divulgaria a tragédia, sua última notícia.
À medida que o aprendizado de línguas evoluía, Graciliano ousou enfrentar Balzac e Zola, já de olho em Dostoiévski e Tolstoi. Mesmo apanhando do francês, não desistiu. “A língua francesa, direta, facilita os autodidatas que somos todos nós”, assinalaria em 1939. “Familiarizei-me principalmente com os romancistas. Balzac foi para mim um deslumbramento. Zola impressionou-me também, mas não conseguiu desviar a fascinação pela obra balzaquiana. Que surpresa de técnica!”
Aos treze anos, arriscou os primeiros sonetos. Como acontecia com nove entre dez aprendizes de poeta da época, seria influenciado pelos guias do parnasianismo, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia. Daí o rigor com a métrica e a rima, a preferência por temas amorosos, em primeira pessoa.
Em conluio com Joaquim Pinto da Motta Filho, mandou sonetos para a revista O Malho, do Rio de Janeiro, que abria espaço a novos poetas. “Incompreensível” e “Confissão” foram publicados em 29 de junho e 6 de julho de 1907, respectivamente. Assinava-os como Feliciano Olivença e Feliciano de Olivença. A revista, que circulava desde 1902, fundia humor com literatura e política. No quadro de colaboradores, Bilac, Guimarães Passos, Emílio de Menezes e Bastos Tigre, ao lado de chargistas como J. Carlos e Luís Peixoto. Ainda com pseudônimos, saíram, entre 1909 e 1911, no Jornal de Alagoas e no Correio de Maceió, “sonetos idiotas”, como os qualificaria em carta à irmã Leonor, em 1915.
Às vésperas de morrer, Graciliano instruiria o filho Ricardo sobre os critérios que adotara para assinar a produção poética e as crônicas da juventude:
O que assinei com meu nome pode publicar; no que usei as iniciais GR, leia com cuidado, veja bem; no que usei RO, tenha mais cuidado ainda; o que fiz sem assinatura ou sem iniciais não presta, deve ser tudo besteira, mas pode escapar uma ou outra página, menos infeliz. Já com pseudônimo não, não sobra nada, não deixe sair. E, pelo amor de Deus, poesia nunca; foi tudo uma desgraça.
Seguindo à risca essas disposições, concluiríamos que a maioria dos sonetos veiculados na imprensa alagoana era imprestável, pois trazia as rubricas de S. de Almeida Cunha, Almeida Cunha, Soares de Almeida Cunha e Soeiro Lobato. E, se pensarmos bem, eram mesmo para ser esquecidos.
Os temas dessa fase são recorrentes: paixão irrealizada, nostalgia, frustração e ceticismo. O estilo, sofrível. Vejamos, por exemplo, o poema “Céptico” (Jornal de Alagoas, 10 de fevereiro de 1909), com a assinatura de Almeida Cunha:
Quanto mais para o céu ergo o olhar compungido
De tristeza repleto e de esperança vazio
Mais encontro impiedoso, agitado e sombrio
Sempre o céu que me abate e me torna descrido.
É em vão que a crença busco, embalde fantasio
Meu passado sem névoa, um passado perdido...
Só sinto o coração pulsando colorido
Ao peso glacial de um cepticismo frio.
Tenho a cabeça em brasa e o pensamento enfermo.
A alma me compunge e tudo é triste e ermo
Nos arcanos sem fim de um peito esquelético.
Pesada treva envolve o meu olhar ardente
E mais fico agitado e mais fico descrente
Quanto mais para o céu ergo os olhos de céptico.
Graciliano voltou a colaborar com O Malho entre 1909 e 1913, usando pseudônimos semelhantes aos dos jornais de Maceió. Chegou ao requinte de datar sonetos de 1900 e indicar os locais onde teriam sido escritos, como São Paulo e Porto (Portugal). Na série de quatro sonetos “Velhas páginas”, publicada por O Malho em 7 de janeiro de 1911, incluiu uma nota explicando que o autor era “Manuel Maria Soeiro Lobato, brasileiro, nosso amigo, residente em Viçosa, estado de Minas, e que, por muito tempo, residiu também em Portugal”. Tudo para dificultar a identificação de um poeta capaz de cometer, em “A coruja” (1911), esta primeira estrofe assustadora: “Baixe o quarto crescente a sua toalha/ Ou o plenilúnio esparja a sua luz vermelha,/ Ei-la sempre a gritar numa voz que assemelha/ O agoureiro rumor de um rasgar de mortalha”.
Ele ficou incrédulo ao ser procurado pelo Jornal de Alagoas, em 1910, para responder a um inquérito sobre predileções literárias. Tinha dezoito anos, já o reconheciam no reduzido círculo literário da capital, a despeito de sistematicamente menosprezar-se. “Devo dizer que o jornal cometeu um erro grave colocando-me entre os literatos alagoanos. Minhas ideias têm pouco valor, porque de literatura pouco conheço.”
A enquete, publicada em 18 de setembro, saiu assinada por G. Ramos de Oliveira. Por pouco não assumira o seu nome completo; consciente ou inconscientemente, deixava rastros.
O reexame do inquérito – descoberto em 1959 pelo pesquisador alagoano Moacir Medeiros de Sant’Ana – projeta um Graciliano com inegáveis progressos intelectuais. Certo, ainda não fazia firulas dignas de um astro. Mas convenhamos que, para um jovem há pouco saído de uma cidadezinha do interior e dispondo de modestos recursos para se instruir, demonstrava obstinação de saber.
Apontou Aluísio Azevedo como o escritor que mais o influenciara, citando também “o realismo cru de Adolfo Caminha e a linguagem sarcástica de Eça de Queirós”. Ao elogiar Azevedo, compartilhou preocupações políticas e estéticas:
E o mais sincero de quantos manejam a pena em nosso país; porque, afrontando uma sociedade atrasada e uma imprensa parcial e injusta, teve forças para derrubar o romantismo caduco; porque, em sua vasta obra e fecunda, existe o que há de mais verdadeiro e mais simples.
Declarou preferir a prosa à poesia, embora fosse fã dos “versos verdadeiramente artísticos” de Bilac, Alberto de Oliveira, Guimarães Passos, Luiz Murat e Luiz Guimarães. Com fé no realismo como “a escola literária do futuro”, acrescentou: “Se tenho feito alguns trabalhos poéticos, esquecendo a prosa – por que não confessá-lo –, é porque não tenho talento para cultivar a escola que prefiro: a escola realista. E o verso ocupa menos espaço nos jornais”. A seu ver, o realismo, “rompendo a trama falsa do idealismo, descreve a vida tal qual é, sem ilusões nem mentiras. Antes a ‘nudez forte da verdade’ que ‘o manto diáfano da fantasia’”.
Aos que criticavam os realistas porque só enxergavam o “lado negativo das coisas”, respondeu: “Mas, que querem? A parte boa da sociedade quase não existe. De resto, é bom a gente acostumar-se logo com as misérias da vida. É melhor do que o indivíduo, depois de mergulhado em pieguices românticas, deparar com a verdade nua e crua”.
No tópico final, Graciliano deu um tranco forte nos intelectuais que adoravam os fardões da Academia Brasileira de Letras (ABL). (Ele será coerente a vida inteira no desprezo à Academia como instituto de consagração literária.) E aproveitou para atacar os escritores alagoanos que pretendiam fundar, em Maceió, uma sucursal da ABL.
Será uma associação que não trará desenvolvimento algum à literatura no nosso estado. Sempre o espírito da imitação! Uma Academia, em Alagoas, não será mais que a caricatura da Academia Brasileira de Letras. E o resultado? Teremos meia dúzia de “imortais” que, escorados em suas publicações de duzentas páginas, olharão por cima dos ombros os amadores que estiverem fora da panelinha acadêmica.
As cartas que enviou à recém-lançada revista literária Argos, de Maceió, entre setembro e dezembro de 1910, sob o pseudônimo de Soeiro Lobato, revelavam parcimônia ao expor traços inconfundíveis de seu perfil literário. “Não sou literato, nem poeta, nem simples amador. Escrevo pouco, raramente publico o que escrevo. Tenho sempre pensado comigo mesmo que não tenho o direito de cultivar coisas que minha inteligência não chega a compreender.”
Apesar da autodepreciação, não se furtou a mandar o soneto “Argos”, inspirado na mitologia grega, com um recado aos editores: “Se quiserem, por falta de matéria ou qualquer coisa, publicar meus versos, rogo que não alterem a ortografia de certas palavras (Kolchis, Orpheus etc.) que escrevi à imitação de César Canti”.
Argos reproduziu sem erros o soneto, que curiosamente tinha o nome da revista. Graciliano não teve a mesma sorte ao remetê-lo a O Malho, que o publicaria em 20 de setembro de 1913 com algumas incorreções – a palavra Kolchi, por exemplo, apareceria grafada como Koldis.
Soeiro Lobato não contava que a redação de O Malho elogiasse a sua “boa carta literária acompanhada de inspirados e bem trabalhados versos”, pedindo-lhe ainda que declinasse o verdadeiro nome. Naturalmente, Graciliano não se identificou, mas manifestou “gratidão infinita” pela “generosa e benévola” acolhida.
Por fim, uma confissão histórica e uma senha para decifrarmos a tendência à introversão, que se perpetuará mesmo depois da consagração literária:
Geralmente o indivíduo de procedência humilde, sentindo-se colocado em um plano superior, fica pretensioso, torna-se fátuo e pedante. Comigo dá-se exatamente o contrário; sempre que alguém elogia qualquer coisa que eu faço, julgo estar aquém do juízo feito a meu respeito. E daí tornar-me acanhado, tímido, medroso. Consequência talvez de educação, defeito orgânico, talvez.