A CABEÇA A LÉGUAS DE DISTÂNCIA

A CABEÇA A LÉGUAS DE DISTÂNCIA

Na manhã de 27 de outubro de 1910, dia de seu aniversário, Graciliano Ramos, banhado de suor, apeou o cavalo, olhou em volta da praça da Independência e entrou na loja de tecidos Sincera, que seu pai acabara de abrir. A família mudara-se para Palmeira dos Índios, vizinha de Viçosa, e Sebastião o chamara de volta para ajudá-lo. Acabara de concluir o ginásio e não imaginava que fosse retornar de supetão, deixando para trás os voos literários.

Pendurado o paletó no cabide, Graciliano arregaçou as mangas. Os dezoito anos comemorados atrás do balcão. Como de seu feitio, Sebastião se limitou a um cumprimento seco pela data.

A prosperidade de Palmeira dos Índios – povoada no século XVI pela tribo dos xucurus – atraía gente de todos os cantos; a população já chegava a 5 mil habitantes. As lavouras costumavam ser lucrativas; a criação de gado era próspero negócio; e o comércio expandia-se a olhos vistos, como uma espécie de entreposto à entrada do Sertão. Alguns plantadores exportavam algodão para a Europa e, frequentemente, fazendeiros abastados adquiriam matrizes bovinas na Holanda.

Sebastião comprara do major Vieira de Brito, por cinco contos de réis, a loja, uma pequena fábrica a vapor para descaroçar algodão e a casa cercada por terras férteis que se estendiam à lagoa dos Caboclos. Mariquinha e oito filhos do casal (dois haviam morrido; outros cinco nasceriam em Palmeira) continuavam em Viçosa aguardando a mudança.

O ano de 1910 fora complicado em Alagoas: chuvas constantes, prejuízos incalculáveis. Os prognósticos para o Brasil não eram dos mais alentadores. O recém-eleito marechal-presidente Hermes da Fonseca representava um intervalo na política do café com leite, conchavo pelo qual as oligarquias paulistas e mineiras se revezavam no poder. O quadriênio de Hermes seria desastroso, com aumento da dívida externa e empobrecimento crescente das massas. Isso sem falar em conflitos como a Revolta da Chibata, reação dos marinheiros aos castigos e privações que lhes eram infligidos na Armada.

Absorvido pelas tarefas que o pai lhe confiava, Graciliano mal respirava. Conferia mercadorias, arrumava as prateleiras, cortava peças de fazenda e controlava o caixa. Com isso, Sebastião podia afastar-se aos poucos para cuidar da lavoura e da pecuária.

A adaptação à rotina de Palmeira não foi tão traumática quanto previa. Em carta à mãe, de 14 de novembro de 1910, comentava:

Aqui estamos todos bons nesta santa Palmeira, terra que, se não é boa, sempre é menos ruim do que eu julgava. Aqui não há cafés, há maus bilhares, pouca cerveja, nenhum divertimento. Enfim, gasta-se pouco dinheiro e vende-se alguma coisa, isto é, ganha-se mais do que se gasta.

Entre um freguês e outro, folheava livros, jornais e revistas. Quando cerravam as portas, ia para o fundo da loja escrever, usando o papel dos talonários de pedidos e notas fiscais. Sem regularidade, despachava sonetos e pequenas crônicas para O Malho, Jornal de Alagoas e Correio de Maceió. A correspondência com Joaquim Pinto da Motta Lima Filho, entre 1911 e 1914, mostra-nos um Graciliano ora se queixando do isolamento em Palmeira, ora se dizendo cansado ou cheio de achaques. As cartas invariavelmente são temperadas com bom humor; aqui e ali, pitadas do ceticismo que se vai tornando sua marca registrada. Os assuntos tratados vão desde brincadeiras com Pinto, namoros fortuitos e tópicos familiares a observações sobre poemas e leituras de ambos.

De forma divertida, Graciliano expunha sua ira contra a revisão malfeita de O Malho:

Eu tenho sido caipora, porque tudo quanto produzo é miseravelmente assassinado pelos senhores tipógrafos. [...] Eu escrevi: ‘Se o senhor Carlo parla greco’, saiu publicado: ‘Se o senhor Carlo parla grego’. Ora, não há grego em italiano – há greco. Demais o sr. Cano é Parlagreco e não gosta que lhe mudem o nome, como disse Eça de Queirós. Aí está, meu Pinto velho dos pés compridos. Eu sou um mártir dos revisores e dos tipógrafos.

Ao amigo, procurava dissimular sua aplicação nas tarefas intelectuais. Dizia que não estudava mais italiano e francês – estudava sim, nas horas vagas. Não lia tantos jornais como em Maceió, mas recebia assinaturas pelo correio. Podia não escrever amiúde, mas escrevia o máximo que podia. Moço ainda, camuflava atos, sentimentos e desejos, aguçando o instinto de autopreservação que carregava desde a infância atormentada.

O desânimo a que Graciliano se referia nas cartas tinha razão de ser. O pai não se cansava de tolhê-lo, quando o via escrevendo:

São nove horas, o correio vai sair, o velho Sebastião já mandou quatro vezes que eu largasse isto e fosse fazer a correspondência comercial. [...] O velho Sebastião como um Cérbero anda a me vigiar. Tem uma raiva desesperada das tolices que eu faço. Eu finjo que não entendo.

De todo modo, não se conformava em captar a existência exclusivamente da óptica de um balcão. Em 13 de fevereiro de 1914, informava a Pinto que começara a ler A origem das espécies, O capital, A adega, Napoleão, o pequeno, A campanha da Rússia, além de “uma infinidade de gramáticas e outras cacetadas”. E ainda teria lido rudimentos de Karl Marx três anos antes da Revolução Russa, e em francês.

Não parava aí a confissão das atividades literárias.

Não te mando agora alguma coisa, como combinamos, porque ainda estou a trabalhar naquele conto que me deixaste a fazer. Desenvolvi-o, ampliei-o, estão escritas já quase setenta tiras. Se chegar a concluí-lo – o que acho difícil, quase impossível, porque caí na tolice de me meter em certas funduras – talvez te mande uma cópia.

Depois de referir-se à tradução do poema “Désillusion” e a outros escritos, recomendava a Pinto, em 18 de fevereiro, sigilo sobre a correspondência: “Creio que é do nosso interesse mútuo que ninguém veja o que escrevemos”.

Nas horas de folga, gostava de andar por ruas e vielas de Palmeira dos Índios, que tinham nomes curiosos, como Galo Assanhado, Levanta-Saia, Pinga-Fogo, Esconde-Homem, Pitombeiras, Cassete Armado e Pernambuco Novo. Não dispensava o cafezinho com o primo Cícero da Silva Pereira, no bar do Hotel Palmeirense. Aos domingos, iam, na companhia dos amigos José Caetano, José Tobias Filho, José Pinto de Barros e Chico Cavalcanti, tomar banho próximo ao açude da Cafurna ou passear nos pomares dos sítios de d. Dondon Tobias, onde faziam piqueniques.

Segundo Cícero da Silva Pereira, Graciliano era “um rapaz bem-comportado, que falava pouco, retraído, de gestos solenes e graves. Tinha um andar de canguru”.

Os rapazes frequentavam saraus e, às vezes, davam escapulidas até a rua Pernambuco Novo, onde funcionava a zona do meretrício. No Bar Seridó, ali perto, Graciliano tomou pela primeira vez uma talagada de cachaça. Quando não tinha o que fazer, vestia o paletó e ia jogar sinuca. Se faltassem parceiros, punha-se horas a fio a exercitar-se sozinho, para espanto do dono do bilhar.

Graciliano, Cícero e José Pinto de Barros se alistaram na primeira turma do Tiro de Guerra 384, uma novidade colossal na cidade. Nos fins de semana, as famílias aglomeravam-se nas calçadas para assistir aos exercícios comandados pelo sisudo sargento Alfredo Oliveira. A qualquer pretexto, os praças eram mobilizados para desfiles cívicos, sempre saudados com entusiasmo.

Não é difícil supor o desconforto do introvertido Graciliano com as exibições em praça pública, ou mesmo seu tédio com as tarefas diárias no 384. Mas, segundo Cícero, ele cumpria rigorosamente as ordens, esforçava-se nos treinamentos e era incapaz de gracejos ou piadas de mau gosto. Certa vez, ao fazer uma palestra de duas horas para oficiais e soldados, arrancou aplausos da plateia ao enaltecer, em refinado português, o papel do Exército na formação do caráter do bom brasileiro.

Após oito meses de serviço militar, voltou a dividir-se entre a loja Sincera, os versos e as leituras. Por pouco tempo. Os amigos conseguiram convencê-lo a ministrar um curso noturno de português. O ensino no município era precário: duas professoras primárias tinham de lecionar para 150 alunos; não havia ginásio.

A fama de homem letrado corria solta. Para evitar que as aulas se prestassem a algazarras, cobrava mensalidades. Quatorze alunos verdadeiramente interessados foram até o fim, aprendendo as lições básicas de gramática e noções de francês, italiano, esperanto e até de jornalismo. Quase toda a turma faria carreira fora da cidade, projetando-se na imprensa, na literatura, no magistério, na política ou nos negócios. Nas décadas seguintes, os ex-alunos não perderiam oportunidade de manifestar gratidão pelos conhecimentos adquiridos com o exigente e metódico mestre. Adalberon Cavalcanti Lins, que se tornaria escritor e membro da Academia Alagoana de Letras, creditaria a Graciliano sua iniciação no “prazer de ler, ler tudo que lhe vinha às mãos”. Foi o professor quem lhe emprestou os primeiros romances, de Júlio Verne e Eça de Queirós.

Certa vez, um aluno indagou a Graciliano por que não prosseguira com seus estudos. “Preferi não ter um canudo de papel, mas saber ler e escrever”, respondeu com irreverência. “Não me amole; não vou ter um anel de doutor. Tenho dedos magros e esquálidos.”

A cabeça de Graciliano, na verdade, estava a léguas de distância de tudo aquilo. Vivia do salário ganho na loja e da escassa renda que provinha da fazendola e das cabeças de gado que ganhara, aos doze anos, dos avós maternos. Há pouco saíra da casa dos pais para morar em uma república da rua de baixo, mas isso pouco representava. Queria escrever e, se possível, trabalhar em coisas bem diferentes das que fazia. As cartas enviadas a Pinto, no primeiro semestre de 1914, atestam a sua insatisfação.

Eu tenho andado um bocado desgostoso. [...] Fiz um caderno com 36 cadernos de papel e estou a copiar tudo quanto fiz o ano passado. Ponho em ordem todas as minhas coisas, porque ando com um pressentimento ruim. Isto por aqui está cada vez mais pau.

Como Pinto também ansiava por sair de Viçosa, os dois começaram a amadurecer a ida para o Rio de Janeiro, onde já se encontravam dois dos irmãos Motta Lima – Pedro e Rodolfo –, iniciando-se no jornalismo.

A prendê-lo em Palmeira apenas a namorada, a costureira Maria Augusta Barros, filha de pequenos agricultores. Um namoro, aliás, avançado para os padrões daquela sociedade tão conservadora. Causava frisson à vizinhança ver Graciliano de pé na calçada, de costas para a rua, beijando a namorada debruçada na janela de casa. Os mexericos não o atingiam; limitava-se a morder a ponta do cigarro com um sorriso irônico. Irritado com os fuxicos e zelando pelo bom nome dos Ramos, o velho Sebastião estrilou, mas o filho fez ouvidos de mercador, prometendo à namorada reatar quando voltasse do Rio de Janeiro.

Os pais tentaram demovê-lo de viajar, mas ele se mostrou irredutível. A caminho de Maceió, mandou, de Viçosa, uma breve carta ao pai, peremptório:

Não quero emprego no comércio – antes ser mordido por uma cobra. Sei também que há dificuldades em se achar um emprego público. Também não me importo com isso. Vou procurar alguma coisa na imprensa, que agora, com a guerra, está boa a valer, penso.

Quando Graciliano desembarcou do navio Itassucé, no cais do porto do Rio de Janeiro, em fins de agosto de 1914, multidões formavam filas nas bilheterias para assistir aos dois grandes sucessos da temporada: a peça Amor de perdição, de Camilo Castello Branco, montada pela Companhia Dramática João Caetano; e o filme Casamento forçado, estrelado por Max Linder, o “rei dos cinemas”. Mas nem tudo era festa. A população exigia uma legislação mais severa para conter a onda de violência na cidade. O número de homicídios quase duplicara.

Os jornais – capitaneados pelo Correio da Manhã, de Edmundo Bittencourt, o principal diário de oposição – escancaravam manchetes sobre a Primeira Guerra Mundial, deflagrada na Europa. A imigração ia de vento em popa: cerca de um milhão de pessoas tinham vindo para o Brasil em apenas oito anos de vigência da lei de povoamento do solo.

O primeiro endereço de Graciliano foi um quarto de pensão no Largo da Lapa, zona boêmia da cidade. Ele se mudaria sucessivamente, pressionado pelos reajustes dos aluguéis ou por enjoar de determinadas pensões. Na pensão, quase toda ocupada por estudantes de outras cidades, Graciliano pagava 80 mil-réis por mês. O dinheiro era curto, segundo Joaquim Pinto da Motta Lima Filho: “O primeiro terno que fizemos no Rio nos custou 100 mil-réis. As botinas, 25. O tostão tinha prestígio. Proporcionava-nos o jornal, o cafezinho, o bonde, o sapato engraxado”.

Começou a trabalhar, em 23 de setembro, como foca no Correio da Manhã, passando, dezoito dias depois, a suplente de revisão. Juntando o baixíssimo salário com os rendimentos da fazendola que o pai periodicamente lhe remetia, dava para ir levando, em economia de guerra. Trabalhava de nove horas da noite até duas da madrugada, movido a duas enormes xícaras de café, dois pães e um pedaço de queijo. Acordava ao meio-dia, engolia um copo de leite com pão torrado, acalmando o estômago até sete da noite, quando jantava.

Como suplente, só assumia a revisão das provas tipográficas se o titular faltasse ou se o serviço acumulasse. Uma chatice. E precisava arrumar outro emprego para reforçar o orçamento, o que acabaria conseguindo, temporariamente, em O Século, de Brício Filho, ainda como suplente de revisor. Em carta à irmã Leonor, desabafou:

Eu continuo a passar aqui uma vida mais ou menos estúpida. Imagina tu que agora tenho de usar nada menos de três ortografias. Se no Correio da Manhã aparecer alguma vez Brazil, com z, eu tenho de substituir o z por s; se no Século vier a mesma palavra com s, tenho eu de trocar o s por z. De sorte que uso a ortografia do Correio, a do Século e a minha, porque eu tenho uma, que é diferente das deles. Um horror! Trabalha-se pouco, ganha-se pouco, dá-se afinal com os burros na água, com todos os diabos.

Em menos de dois meses, as primeiras recordações saudosas e nostálgicas de Alagoas.

Esse desejo doido de voltar para a aldeola que ficou lá, muito longe, entre montanhas, é uma coisa muito natural. Ele, eu, todos enfim, temos essa nostalgia que nos faz ver a torre da igreja, as paredes brancas do cemitério, os atalhos verdes semeados de florzinhas. Mas a gente reage, faz-se forte e... fica. O que é preciso é o sujeito estar preparado para receber todos os choques da adversidade.

Debaixo das árvores do Passeio Público, olhando as cegonhas à beira do lago artificial, ele e Pinto liam as cartas que recebiam de casa. Os dois viam-se diariamente, faziam longas caminhadas na orla do Leme e de Copacabana, habitada por mansões, e sentavam-se nos cafés para observar o corre-corre. Em um dia de chuva fina, pegaram um bonde no Largo de São Francisco até o fim da linha, na Piedade, unicamente para conhecer as ruas do subúrbio.

No início de 1915, contratado como revisor de A Tarde, queixou-se à família das “intriguinhas” na redação, sustentando, porém, a disposição de não arredar pé do Rio. “Em uma palavra, malgrado todas as dificuldades que tenho encontrado, acho melhor trabalhar numa banca de revisão que num balcão. É que a gente pode ter a consciência tranquila quando trabalha. E eu aí havia de ser sempre preguiçoso.”

Entre março e junho, voltou a escrever crônicas para o Jornal de Alagoas, usando o pseudônimo R.O., e passou a colaborar com o semanário Paraíba do Sul, da cidade fluminense de mesmo nome.

Para um jovem de 22 anos, autodidata, recém-chegado do interior alagoano, os textos revelam um nível de informação e uma visão crítica dignos de nota. Com exatidão gramatical, fluência e humor, ele focalizava fatos do cotidiano e satirizava as manhas de nossas elites políticas.

No primeiro artigo para o Jornal de Alagoas, Graciliano demonstrava perfeita compreensão do jogo de forças que manipulava o Poder Executivo em benefício dos interesses do bloco agrário hegemônico.

Possuímos, segundo dizem os entendidos, três poderes – o Executivo, que é o dono da casa; o Legislativo e o Judiciário, domésticos, moços de recados, gente assalariada para o patrão fazer figura e deitar empáfia diante das visitas. Resta ainda um quarto poder, coisa vaga, imponderável, mas que é tacitamente considerado o sumário dos outros três. [...] Aí está o rombo na Constituição quando ela for revista, metendo-se nele a figura interessante do chefe político, que é a única força de verdade. O resto é lorota.

Nas crônicas publicadas no Paraíba do Sul, evidenciava conhecimentos de mitologia grega; debochava do “literato em esboço, um sujeito que tem sempre no cérebro um pactolo de ideias e que ordinariamente não tem na algibeira um vintém”; exaltava os vendedores de jornais que “desconhecem hierarquias e vaidades tolas” ao gritar no meio da rua as manchetes sobre “todos os cabecilhas da República”; e esbanjava cultura literária ao comparar os perfis dos criados transformados em personagens de romances por José de Alencar, França Júnior, Paulo de Kock, Mark Twain, Júlio Verne, Balzac e Flaubert.

As palavras mais arrebatadas, surpreendentemente, ele reservava para o cinema, ao qual ia com frequência assistir a filmes estrangeiros que já monopolizavam os letreiros. O cinema brasileiro planejava construir o primeiro estúdio de vidro, aproveitando a luz solar. A Graciliano, naquele momento, importava mais desfrutar do fascínio da sala escura, como escreveria em 13 de maio de 1915:

O cinema! Ah! O cinema é uma grande coisa! É quase como o amor – é decantado e posto em prática por toda a gente. [...] Aquilo é delicioso. Eu adoro o cinema. [...] Decididamente, eu sou doido pelo cinema. Todo mundo é assim, todo mundo gosta de cinema. E se alguém o censurar, o vilipendiar em vossa presença, podeis afirmar convictamente que esse alguém é um despeitado.

No tocante às leituras, Graciliano se embrenhou em Eça de Queirós, a ponto de protestar, no Jornal de Alagoas, contra o apedrejamento do monumento ao escritor, em Lisboa. “Ele [Eça] não é apenas o escritor mais querido dos dois países, é uma individualidade à parte, adorada, idolatrada. Temos por ele uma admiração que chega às raias do fanatismo.”

Os círculos literários do Rio não o atraíam. Em carta à mãe de 4 de fevereiro de 1915, lamentava que intelectuais sem valor galgassem posições graças às amizades que faziam. Irritavam-no os escritores que se gabavam de discutir colocação de pronomes e de discorrer sobre Taine e Machado de Assis.

Preciosidade na correspondência desta fase: Graciliano proclamava a condição de ateu, questionando os dogmas e tabus que envolvem a conversão religiosa. Há quem especule que a recusa ao catolicismo tenha origem remota no caráter repressivo da iniciação religiosa. Era praxe nos confins nordestinos as crianças serem catequizadas sob o tacão do tradicionalismo de uma Igreja retrógrada. A figura divinizada do sacerdote, associada a um duplo simulacro de poder – espiritual e temporal –, amedrontava e impunha a transmissão dos mandamentos sagrados. À medida que se foi aprofundando em Graciliano a rejeição à ordem constituída, os pilares da religião desabaram, pelo que representavam de monolitismo de consciência.

Toda vez que abordava o tema, ele acionava potentes mísseis de ironia. Sebastião Ramos deve ter tido engulhos ao receber a carta datada de 24 de maio de 1915, na qual o filho açoitava o catolicismo:

Aqui não sou propriamente um santo, mas vou “em caminho do céu”, apesar de o senhor pensar que sou um bocado ateu. Essa suposição do senhor não quer dizer nada. Eu não me pareço ateu, como está em sua carta. Sempre o fui, graças a Deus, como dizia o saloio.

E prosseguia:

Mas o simples fato de um animal ser ateu não prova que ele não possa ser um santo. Eu penso que entre os milhares de sujeitos que a igreja canonizou devia haver muito ateu, muito ímpio esperto que preferia o céu ao inferno apenas por uma simples questão de bem-estar cá na Terra. Na Espanha, na Idade Média, houve homens sensatos que não acreditavam em Deus, mas que, com medo das grelhas do Santo Ofício, se meteram em conventos e por lá viveram santamente. É que eles preferiram “queimar a ser queimados”, como disse um moderno escritor socialista. Naturalmente, alguns deles hoje são santos e fazem milagres. Oh! Eu respeito muito a religião que tem o poder de, acendendo algumas piedosas fogueiras com azeite humano, chamar a seu grêmio os mais encarniçados inimigos.

Não era a primeira vez que se referia à religião. Em uma carta a Pinto, ainda em Palmeira dos Índios, havia mencionado “dois malucos” que vira na igreja entretidos em “umas rezas que nunca mais se acabam”. Com sarcasmo, acrescentava:

Quem me dera poder afastar tanta gente da igreja! Quem me dera poder libertar os dois pobres-diabos que ali estão! Idiotas, verdadeiros pobres-diabos. Há gente que vive do prazer de ser enganada. Que triste prazer? Dize-me com franqueza – tu acreditas nessas coisas? Eu não posso.

Escrevendo à mãe em 2 de abril de 1915, implicava com a tradição dos cristãos de não comer carne de boi na Sexta-Feira Santa.

Grande dia. Dia em que a cristandade chora alegremente a morte de seu Deus e a d. Helena [a dona da pensão] nos obriga a jejum, surrupiando-nos piedosamente o almoço e o jantar. Temos de procurar comida fora por causa da econômica devoção dos outros. Uma maçada.

Mas nem sempre esquivava-se dos ritos cristãos tão zelados pelos Ramos. No Natal, Sebastião exigia fidelidade à ceia, em que não faltavam queijo do reino e macarrão. Graciliano não estava ao lado da família em 1914, mas pediu à irmã Leonor que lhe relatasse “tudo o que se passar por aí durante o Natal. Novenas, missas, procissões, tudo”.

(Adiantemo-nos aos fatos. Ao longo da vida, vão cobrar de Graciliano a sua mania de dizer “graças a Deus”, “Deus meu”, “Santo Deus”, “se Deus quiser”, “meu bom Deus”, “valha-me Deus”, “homem de Deus”, “Deus do céu”, “Nosso Senhor”. Logo ele, um ateu confesso. “Não sou o que falo, sou o que escrevo”, responderia com sorriso malicioso. Outra curiosidade: a Bíblia será um de seus livros de cabeceira. O Antigo Testamento aparecerá todo anotado à mão nas margens. Dizem os parentes que ele apreciava os elementos de retórica, as imagens e os ensinamentos bíblicos, sobretudo do Livro dos Provérbios e do Eclesiastes.)

Depois de saturar-se do trabalho no Correio da Manhã, O Século e A Tarde, Graciliano custou a arranjar emprego. A maior praga foi continuar na mesmice de suplente de revisão, quase um papel decorativo. Viviam lhe prometendo uma ocupação diferente, mas de concreto, nada. “Enquanto a questão segue tão complicados trâmites, eu embarco pacificamente para as Alagoas, num vapor do Lloyd. Creio que é o que tenho de mais acertado a fazer”, disse ao pai, sem muita convicção.

Para queimar suas reservas de paciência, o “medonho, terrível e insuportável” calor carioca o sufocava. “Deito-me na cama, em cima de uma coberta muito fina, abro um livro. Coisa pavorosa! Parece que os olhos me fervem e as letras dançam.” O tempo livre, preenchia-o escrevendo uma ou outra coisa para o Jornal de Alagoas e o Paraíba do Sul, lendo, tomando com Pinto uma xícara de café com um cálice de anis no Café do Rio e esgotando as palavras sobre a literatura e a desgraça da guerra na Europa. Quando ficava sozinho no quarto da pensão, escrevia cartas para a família e divagava sobre a gravata nova que compraria no dia em que voltasse a faturar. “Eu sou sempre o homem das gravatas”, brincava com a irmã Leonor.

No fundo, Graciliano estava dividido: o Rio acenava-lhe com uma possível carreira jornalística e literária e uma vida diametralmente oposta à do Sertão; ao mesmo tempo, em Palmeira dos Índios teria estabilidade material e, claro, as pinhas de dar água na boca.

Em junho de 1915, a Gazeta de Notícias se interessou em republicar as crônicas feitas para o Paraíba do Sul e ofereceu uma vaga na revisão. Um amigo lhe pediu “uma foto e umas notas sobre a sua pessoa” para a revista Concórdia, que publicaria uma crônica sua. O tímido estremeceu. Em carta à irmã Leonor, de 10 de julho de 1915, ele, primeiro, considerava esse pedido “uma coisa extremamente desagradável, principalmente quando a gente não tem retrato e vive encolhido no seu canto com medo de aparecer”.

Medo de aparecer que não o impediu, paradoxalmente, de admitir o orgulho de ser editado por “uma ótima revista, muito benfeita, no formato da Ilustração Francesa”:

Quando se é moço, e arrojado a valer, tem-se o desplante impagável de andar jogando à publicidade todas as sandices que vão pingando do bico da pena. Depois, com a idade, vem o receio, a dúvida. [...] Vem-nos, por fim, uma reflexão decisiva. Se nossas produções ficarem sempre inéditas, nunca poderemos, por nosso próprio julgamento, saber se elas prestam. É preciso ser afoito, imodesto, cínico até. Não poderás saber a quantidade de pedantismo necessária a um tipo desta terra, onde tudo é fita, para embair a humanidade.

A divulgação dos textos em uma revista prestigiosa revolvera tanto o seu ego que não hesitou em confessar a Leonor que talvez tivesse de golpear o acanhamento, se quisesse mesmo projetar-se. “Eu sou de uma timidez obstinada. Não posso corrigir-me. E, contudo, preciso modificar-me, fazer réclame, estudar pose. Santo Deus! É terrível!”

Pena que Graciliano não tenha tido tempo de dar sequência à iniciação literária na capital. Quando mais ardentemente desejava testar o seu poder de fogo, uma tragédia familiar apagou bruscamente o pavio. Em fins de agosto, recebeu, alarmado, telegrama do pai comunicando a morte, em um só dia, de três irmãos (Otacília, Leonor e Clodoaldo) e um sobrinho, vítimas da epidemia de peste bubônica que assolava Palmeira dos Índios desde junho. A mãe e duas irmãs estavam em estado grave. Não havia mais como permanecer no Rio.

Extenuado com a maratona da viagem – dias de navegação até Maceió e horas de trem para o Agreste –, Graciliano saltou na estação da Great Western, em Viçosa, antes de seguir até Quebrangulo e pegar a montaria para Palmeira dos Índios. A chegada em Palmeira trouxe alento à família enlutada. Graciliano se surpreendeu ao encontrar Maria Augusta desdobrando-se na assistência aos doentes. Mesmo com risco de contágio, ela não arredava pé da casa dos Ramos. Os namorados se abraçaram e trocaram afagos.

Dois meses depois, convencido por Sebastião a casar-se. “para endireitar a vida”, oficializou o pedido ao pai de Maria Augusta, Aprígio Barros. Mas sem cumprir o protocolo. Ao entrar na sala de visitas com o braço sobre o ombro da namorada, deu de cara com Aprígio conversando com seus pais.

– O senhor já soube que eu vou me embirar com sua filha?

Aprígio ficou sem ação; Sebastião e Mariquinha procuraram um buraco para ocultar a vergonha diante do atrevimento do filho.

A 21 de outubro de 1915, Graciliano e Maria Augusta se casaram sem pompas no civil. Católica fervorosa e filha de Maria, bem que tentou convencer o noivo a realizar o sonho de subir ao altar, mas perdeu a parada. Não haveria de ser Graciliano que se curvaria ao sermão divino. Decorridos dois anos, por insistência da mãe de Maria Augusta, inconformada com o sacrilégio, Graciliano acabou concordando em formalizar o casamento no religioso, com a condição de ser uma cerimônia mixuruca, restrita aos pais. O padre Sebastião Veridiano do Espírito Santo Lessa – primo do noivo – os abençoou em 31 de outubro de 1917, na matriz de Palmeira dos Índios. Dois dos quatro filhos do casal já haviam nascido: Márcio (1916) e Júnio (que tinha um mês de vida).