UM SÁBIO NO SERTÃO

UM SÁBIO NO SERTÃO

Envolvido com a criação de bois e cavalos, a usina de algodão e a lavoura, Sebastião Ramos passou, em maio de 1917, sua parte na loja Sincera a Graciliano, que mergulhou de corpo e alma no negócio. Cedo podia ser visto no estabelecimento, de calça e paletó cáqui, como a maioria dos comerciantes. A loja já não se restringia a tecidos; oferecia desde miudezas a roupas, calçados, chapéus, perfumarias, artigos farmacêuticos, brinquedos, secos e molhados e até uma pipa de cachaça.

Ele cativou uma clientela fiel, que não desprezava o bate-papo diário no balcão nem seus conselhos ou opiniões sobre os mais diferentes assuntos. Rapidamente atraiu prestígio e a fama de sabichão. Durante o verão, punha cadeiras na calçada para jogar xadrez ou gamão e conversar com os amigos, em meio à brisa da tarde.

Segundo José Tobias de Almeida, à época adolescente, Graciliano não fazia distinção de cor ou raça, ou entre pobre e rico.

Sua inteligência invulgar atraía muita gente à loja. Ele gostava de ser consultado. Lembro-me que certa vez o dono do Elite Bar, Francisco Clemente, comprou uma motocicleta inglesa e ficou atrapalhado na hora de misturar gasolina com óleo combustível. Graciliano entrou no bar e, como fazia sempre antes de almoçar, pediu um conhaque Macieira. Ao ouvir o rapaz contar a história da moto, foi lá fora e ajudou-o a resolver o problema. Quando saiu, disse-lhe: “Olhe, quando precisar, apareça na minha loja”.

Já o comerciante Filadelpho Wanderley lembraria que Graciliano pilheriava quando alguém se aproximava para pedir-lhe uma opinião: “Lá vem esse burro!”. Os mais humildes deliciavam-se quando ele lhes contava grandes episódios da história universal, principalmente da Revolução Francesa.

Graciliano ia eventualmente a Maceió ou Recife para encomendar mercadorias e comprar livros. E ainda atendia no balcão, controlava os estoques e fazia a escrituração contábil. O seu ponto fraco era sensibilizar-se com os apertos financeiros dos conhecidos; não raro, vendia-lhes fiado. Nunca executava os devedores, preferindo mandar bilhetes amigáveis ou parcelar os débitos.

Algumas de suas manias logo chamaram a atenção. Relutava em manusear dinheiro, com nojo das notas sujas, emendadas com sabão e cera de abelha, ou rasgadas. Se precisava efetuar pagamento, abria a carteira e pedia à pessoa que tirasse a quantia devida. Há quem garanta que ele dava o troco segurando o dinheiro com as pontas de uma tesoura e que guardava cédulas novas dentro de livros para as despesas domésticas. Sua obsessão com higiene levava-o a lavar as mãos centenas de vezes ao dia, esfregando-as demoradamente com sabão.

A vida conjugal transcorria sem atropelos. Entendia-se bem com Maria Augusta, moça simples, sem ambições, que cuidava com denodo dos filhos pequenos: Márcio, Júnio e Múcio, nascido em 1919. Graciliano adorava jogar pôquer na casa do cunhado Odon Braga e prestigiava as companhias teatrais mambembes que de vez em quando apareciam em Palmeira. No carnaval, o casal apreciava as batalhas de confetes e os espalhafatosos blocos de sujos.

E o escritor, por onde andava? Entre 1916 e 1921, inexistem registros de produção literária. Assoberbado no comércio, só não se distanciava das leituras. Em parceria com o amigo e ex-aluno João Acióli de Morais, comprou pelo reembolso postal a coleção das obras completas de Eça de Queirós. Mantinha-se fiel aos clássicos, relia esporadicamente Aluísio Azevedo, Olavo Bilac e Manuel Antônio de Almeida, e descobria Machado de Assis, Euclides da Cunha e Graça Aranha.

Conhecendo a idolatria dos literatos palmeirenses por Rui Barbosa, Graciliano tratou de provocá-los. Em uma ocasião, quando um deles exaltava as virtudes do Águia de Haia, murmurou:

– Rui é um fóssil.

Os amigos entreolharam-se, mas o ódio durou segundos.

– Eu estava brincando com vocês. Rui é um gênio – emendaria Graciliano, esbaldando-se de rir por dentro.

Duas vezes por semana, ia à agencia dos Correios verificar se havia encomenda. Passavam por seus olhos exemplares atrasados do Correio da Manhã e do Diário de Pernambuco. Pelos jornais, acompanhou o desenrolar da guerra e tomou conhecimento da Revolução Russa de 1917. A opinião pública foi bombardeada pelas informações mais desencontradas a respeito dos bolcheviques. A Noite, do Rio de Janeiro, teve o desplante de divulgar que “de Lenin e seus comparsas não há notícia, acreditando-se mesmo que já tenham procurado asilo em lugar seguro”. Falhou também a bola de cristal de O Imparcial: “Já não há dúvidas sobre a situação na Rússia; o sr. Kerensky dominará a desordem leninista”.

O impacto da Revolução em Palmeira dos Índios pode ser avaliado pela decisão de Graciliano de voltar a assinar jornais do Rio. Apesar do escasso noticiário, ele simpatizara de imediato com os bolcheviques, não se deixando contagiar pelos que se esmeravam em apresentá-los como enviados do demônio.

O ano de 1920 seria sombrio para Graciliano. Em 23 de novembro, morreria Maria Augusta, aos 24 anos, vítima de complicações no parto do quarto filho do casal, uma menina depois batizada de Maria Augusta.

Umbelina Paes e Silva, amiga dos Ramos, recordaria aqueles dias terríveis: “Vimos Graciliano chorar alucinado, um homem forte derramando lágrimas sentidas”. O comércio cerrou as portas em sinal de pesar, e a cidade seguiu o enterro.

Durante sete dias, Graciliano guardou luto. Os filhos foram levados, primeiro, para a casa dos avós; mais tarde, a irmã Anália se encarregou de ajudá-lo a cuidar deles. Por insistência do pai, Graciliano se mudou para uma casa próxima à sua.

Reassumindo a loja, passou um ano vestindo-se de preto, com os cabelos cortados à escovinha. Magro, a cara chupada, sem ânimo, mal cumprimentava as pessoas na rua e limitava-se a atender os pedidos dos fregueses. Andava cabisbaixo e arredio, falando sozinho e agitando as mãos. De madrugada, perambulava pelos cômodos, fumando muito. Permitia-se apenas ler ou dar longos passeios sem rumo.

Em 10 de maio de 1921, em uma carta ao amigo Pinto, que ainda vivia no Rio e com quem há muito não se correspondia, Graciliano comentou o infortúnio.

Pedes-me que te fale da minha vida e de meus filhos. Que te posso eu dizer, meu bom amigo? Sou um pobre-diabo. Vou por aqui, arrastando-me, mal. Há cinco anos não abro um livro. Doente, triste, só – um bicho. Tenho quatro filhos: Márcio, Júnio, Múcio e Maria. Esta, coitadinha, provavelmente não viverá muito: está à morte. Se morrer, será uma felicidade. Para que viver uma criaturinha sem mãe? Os outros são três rapazes endiabrados. O mais velhinho, de quatro anos, conhece as letras e já começa a ler os títulos dos artigos dos jornais. São desenvolvidos, mas o segundo, Júnio, é de uma estupidez que espanta. Será feliz, talvez. Muito atirado, vaidoso, não tem amizade a ninguém. Não conhece uma letra nem quer saber das rezas que uma tia tenta meter-lhe na cabeça.

Melancólico, dizia que sua atividade em Palmeira se concentrava “em coisas que andavam muito distantes do cérebro”. Um dado interessante é que ele afiançava a Pinto que, se não fosse pelos filhos pequenos, teria voltado para o Rio. “Malgrado as desilusões, a cidade ainda me tenta. Se um dia me for possível, voltarei. É um sonho absurdo, talvez.”

À medida que os meses se sucediam, Graciliano, 29 anos, reunia forças para equilibrar-se emocionalmente. Aceitara lecionar francês no Colégio Sagrado Coração e retomara o curso noturno, que se iniciava pontualmente após o jantar. Entre os alunos, estavam suas irmãs Marili e Clélia, que destacariam a paciência em orientá-las e o rigor com a ortografia. “Ele conseguia despertar o nosso interesse, ninguém faltava às aulas”, recordaria Clélia. “Aprendi noções de francês e italiano em uma época em que nem sabia direito o português!”

A mãe de Adalberon Cavalcanti Lins tinha enfiado na cabeça que o filho, quando crescesse, deveria bacharelar-se em Recife. Repetira a ladainha para Graciliano, que nada dissera. Em uma aula, após ouvir uma péssima exposição feita pelo garoto, aconselharia:

– Cavalcanti, deixe para lá essa droga de português, que não vale nada. O bom mesmo é ser doutor. Seu pai arranja um pistolão e dentro de pouco tempo você meterá um anelão de bacharel no dedo. Mande o resto para o inferno.

As orelhas de Adalberon incendiaram-se. Mas ele já se acostumara ao jeito daquele professor que não lhe batia com a palmatória e preferia a ironia em vez de castigos. A ironia, entretanto, valia apenas no curso, porque Graciliano era duro na educação dos filhos. “Ele se empenhava para que gostássemos de estudar e ler”, contaria o filho Júnio. “Às vezes, era rígido. Não preparou a lição, comia fogo.” Nos momentos de irritação, batia nos meninos sem piedade, reproduzindo, de certo modo, os métodos de seus pais.

A capacidade de Graciliano de discorrer sobre personalidades históricas impressionaria Adalberon. “Ele falava em Lenin como se o conhecesse pessoalmente. Soltou uma palavra inteiramente desconhecida no meio ambiente: ‘maximalismo’.” O termo maximalismo era empregado pela imprensa em lugar de bolchevismo, o que comprova o seu interesse pelo andamento da Revolução.

Às vésperas de lançar o jornal O Índio, em janeiro de 1921, o vigário da paróquia de Palmeira dos Índios, padre Francisco Xavier de Macedo, convidou Graciliano a colaborar com a publicação. A amizade dos dois deixava muita gente intrigada. O dono da loja Sincera não era ateu convicto? O dinamismo do vigário despertara a atenção de Graciliano, cuja honestidade de propósitos, por sua vez, seduzira padre Macedo. Ao longo da vida, conservariam a admiração mútua, cada qual com seus pontos de vista.

Três décadas depois, padre Macedo se comoveria ao recordar o convívio, em uma entrevista a Thiago de Mello, da Manchete:

Um grande amigo. Sujeito às direitas era aquele. Lembro-me dele sempre com saudade. Não havia noite em que não desse um pulo até aqui para conversar. [...] Não admitia que ninguém falasse mal do vigário. Mandava que os filhos me tomassem a bênção. [...] Nunca acreditei que fosse comunista. A vida dele, a sua conduta eram a negação do comunismo. [...] Graciliano era bom homem, bom amigo, sujeito direito, tinha bom coração e sempre fazia justiça ao vigário. A misericórdia de Nosso Senhor é muito grande. Desconfio, sim, que Graciliano foi para o céu.

O número 1 de O Índio foi comemorado com missa campal, sessão solene na casa paroquial, banda de música e espocar de rojões. Graciliano escreveu no semanário até 15 de maio, com os pseudônimos de J. Calisto, para as crônicas da seção “Traços a esmo”, e de Anastácio Anacleto, para os epigramas da coluna “Fatos e fitas”.

Os textos – datilografados em sua primeira máquina de escrever, uma Remington de doze teclas – primavam pelo sarcasmo. Já ao apresentar-se, J. Calisto bulia com o leitor: “Sou um hóspede nesta folha. Quando me der na telha, arrumo a trouxa e vou-me embora. Em minha rápida conversação contigo, meu interesse é muito limitado. Se tiveres paciência de ouvir-me, bem; senão, põe o teu chapéu e raspa-te”.

Havia mais.

Sobre o carnaval: “O país é preguiçoso. Dormir é a grande felicidade da vida. Coerentemente, a cidade dorme ou sonha acordada. Acordada? Engano. Vive numa modorra. [...] Positivamente despertos só estamos durante o carnaval. Pudera! Se o entrudo é a instituição nacional por excelência!”.

Sobre o futebol:

Pensa-se em introduzir o futebol, nesta terra. [...] Vai ser, por algum tempo, a mania, a maluqueira, a ideia fixa de muita gente. Vai haver por aí uma excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um mês. [...] Não seria, porventura, melhor exercitar-se a mocidade em jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo? [...] A rasteira! Este sim é o esporte nacional por excelência! Todos nós vivemos mais ou menos a atirar rasteiras uns nos outros.

Sobre o pavor ao comunismo após o triunfo da Revolução Russa:

Um velho amigo, que tentou, sem resultado, mascarar-se com o extravagante pseudônimo de Lobisomem, enviou-me uma carta a pedir que lhe dissesse alguma coisa a respeito de certo casamento maximalista efetuado no Rio. [...] Um partidário das teorias subversivas de Lenin e Trotski [...] procurou uma companheira que professasse como ele o credo rubro e jurou ligar-se a ela pelos “laços indissolúveis do amor”. [...] Foi um casamento perfeitamente burguês, como muito bem compreendeu o meu velho amigo Lobisomem. [...] Julgo que, se o matrimônio bolchevista é semelhante ao que no Brasil se fez, não há na Rússia dos sovietes o amor livre.

O padre Macedo deve ter tido vertigens ao ler certas heresias escritas por Graciliano. Tamanha era sua irreverência que não poupava nem as paroquianas que pediam donativos para os santos: “É uma profissão rendosa. A mulher que pede esmolas faz festas com uma parte do dinheiro arrecadado. São novenas em que se cantam coisas terríveis numa língua atrapalhada e esquisita, benditos medonhos”. Em outra crônica, implicava pela enésima vez com o jejum da semana santa, dizendo que “o beato contemporâneo faz despesas, estraga a saúde e não aperfeiçoa coisa nenhuma”.

Os epigramas eram curtos e diretos.

Começa hoje este jornal uma campanha contra o analfabetismo. É uma coisa lamentável, realmente, o grande atraso em que vivemos. Mas não pensem que a atitude desta folha seja motivada por patriotismo. Qual! História! O que a direção deseja é aumentar o número de assinantes.

Consta que ele teria se desligado de O Índio por causa de uma nota sobre o aniversário do velho Sebastião. Tudo estaria bem se o tópico parasse aí. Mas alguém acrescentara: “... pai de nosso querido colaborador e ex-companheiro de redação Graciliano Ramos”.

Se escrevia sob pseudônimo, era porque não queria ser identificado. Mandou uma carta esbravejando contra a suposta inconfidência do redator. Ora, em uma cidade pequena como aquela, quem ignorava que ele escrevia as crônicas? Esquisitice, diriam logo. O fato é que um herege como aquele não poderia continuar por mais tempo em um semanário católico (e não é demais imaginar: para alívio do vigário).

Na primeira metade da década de 1920, Graciliano refluiu para os negócios, que oscilavam conforme o processo inflacionário e as cotações do algodão. A hegemonia cafeeira freava a recuperação agrícola do Nordeste. O quadro de pauperização, agravado pela seca, forçava a emigração para o Sul e abria o flanco para o cangaço.

A estagnação econômica estimulou as rebeliões tenentistas de 1922 e 1924, que se opunham, com um discurso liberal-burguês, às oligarquias. Artur Bernardes governou quatro anos sob estado de sítio. Graciliano pressentira o caos ao escrever, em 4 de agosto de 1921, para Pinto: “Faço votos para que o Artur Bernardes não seja nunca o presidente da República. Creio que é o mesmo que desejar-te paz e segurança no emprego”. E completava, com fina percepção das circunstâncias que o poder deseja sempre ocultar ou falsear: “Vives tranquilo? Eu não vivo. Em geral ninguém está bem cá por baixo. A respeito dos que estão por cima, nada sabemos, ou apenas sabemos o que nos dizem, o que é saber mal”.

Ainda na gestão de Bernardes, a grandiosa Coluna Prestes, chefiada por Luiz Carlos Prestes e Miguel Costa, abalou a opinião pública. Durante dois anos, 1.500 rebeldes, entre civis e militares, armados com oitocentos fuzis máuser e poucos fuzis-metralhadoras, percorreram 25 mil quilômetros, pregando a derrubada do regime. Mesmo sem conseguir remover as injustas estruturas sociais, os insurrectos conquistaram no périplo a simpatia de populações oprimidas e desmoralizaram os esquemas traçados pelo Exército para detê-los.

Não apenas em conspirações militares podia-se captar o espírito de transformação que desafiava o status quo na década de 1920. A influência da Revolução Russa se fez sentir nos grupos que se filiavam ao ideário socialista. A fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 25 de março de 1922, expressava o desejo do movimento operário de se organizar e atuar politicamente em função da nossa realidade.

No plano estético, o fermento da contestação resultou na Semana de Arte Moderna, realizada de 13 a 20 de fevereiro daquele ano, no Theatro Municipal de São Paulo. O movimento modernista, que pretendia transformar a cultura em matéria-prima do projeto de redescoberta do Brasil, apresentava-se ao público de corpo e alma.

No Nordeste, o Modernismo encontrava resistências no Centro Regionalista, fundado em Recife por Gilberto Freyre e voltado para a preservação das tradições e dos valores da região. Em Alagoas, confundido com o Futurismo do italiano Filippo Tomaso Marinetti, levou estocadas de vozes conservadoras, como a de Lima Júnior, para quem a “poesia futurista” era “anêmica, clorótica, desordenada e fútil”.

Graças à assinatura de jornais do Sul, Graciliano se inteirou da repercussão da Semana e de seus desdobramentos. Com o passar do tempo, avaliaria o legado de 22 de forma muito nítida. Como reação ao passadismo, fora perfeito, abrindo perspectivas para a renovação literária e estética. Mas, a seu ver, fracassara no trabalho de criação, praticamente limitando-se a experimentos de linguagem e ao proselitismo.

Não pouparia os modernistas de ácidas críticas pela incapacidade de construir uma obra literária de vulto, chegando a dizer que o excesso de liberdade literária gerou “os poemas de cinco minutos e os romances escritos em oito dias”. Irritavam-no também o relaxamento com a gramática e os estrangeirismos assimilados por certos autores. “Como podem escrever tão mal?”

Em diversas ocasiões, destilou bílis contra o movimento, que julgava “uma tapeação desonesta”. Com raríssimas exceções, “os modernistas brasileiros eram uns cabotinos; enquanto outros procuravam estudar alguma coisa, ver, sentir, eles importavam Marinetti”.

Não perdoava também o espírito de clã dos líderes da Semana de Arte Moderna, que, em seu entender, estimulara o maniqueísmo intelectual.

Os modernistas, confundindo o ambiente literário do país com a Academia, traçaram linhas divisórias, rígidas (mas arbitrárias) entre o bem e o mal. E, querendo destruir tudo que ficara para trás, condenaram, por ignorância ou safadeza, muita coisa que merecia ser salva. Vendo em Coelho Neto a encarnação da literatura brasileira – o que era um erro –, fingiram esquecer tudo quanto havia antes, e nessa condenação maciça cometeram injustiças tremendas.

Ao responder a uma enquete da revista Dom Casmurro, em 12 de novembro de 1942, Graciliano enfatizou a distância com a raiz do Modernismo: “Eu vendia fazendas no interior quando soube do movimento. Naquela época, lia tudo e acompanhava o barulho de longe. Apenas aplaudi”. O repórter Osório Nunes indagou se não se sentia ligado à rebelião de 22. “De modo nenhum”, frisou. “Eu não fui modernista nem sou pós-modernista. Sou apenas um romancista de quinta ordem. Estava fora e estou.”

A despeito de não ter embarcado na canoa, e de ter birra dela, não deixou de reconhecer que as amarras do academicismo haviam sido rompidas pela voragem de 22. “A revolução concretizada na Semana teve um serviço: limpar, preparar o terreno para as gerações vindouras.”

No decorrer de 1924, os dilemas existenciais voltaram a molestar Graciliano. Sentia-se só, enfadado e angustiado. Os negócios “andavam encrencadíssimos”, como declararia depois. “Achei-me numa situação difícil – ausência de numerário, compromissos de peso, umas noites longas cheias de projetos lúgubres.”

Apesar da insistência dos amigos para que aparecesse para jogar pôquer ou bilhar, raramente se divertia após o trabalho. A única válvula de escape à depressão eram, como sempre, as estantes de livros na sala da biblioteca que havia construído na parte lateral da casa. Quando precisava respirar, saía pedalando a bicicleta. Enredado em pensamentos sombrios, nem percebia os olhares lânguidos que algumas moças lhe dirigiam; sem que o soubesse, era um viúvo disputado.

Nessa fase de perturbação, Graciliano chegou a pensar em suicídio:

Encontrei dificuldade séria, pus-me a ver inimigos em toda parte e desejei suicidar-me. Realmente julgo que me suicidei. Talvez isto não seja tão idiota como parece. Abandonando contas correntes, o diário, outros objetos da minha profissão, havia-me embrenhado na sociologia criminal. Que me induziu a isso? Teria querido matar alguns fantasmas que me perseguiam?

Os tratados de sociologia criminal dos italianos César Lombroso e Enrico Ferri foram consumidos nas noites de insônia e isolamento. Neles, tentou entender o conjunto de motivações psicossociais que conduzem à patologia do crime – quem sabe em busca de elementos para a configuração de personagens que lhe rondavam a mente. Sentado na mesa da sala de jantar, fumando e bebendo café, inspirou-se para escrever. “Esforcei-me por distrair-me redigindo contos ordinários e em dois deles se esboçaram uns criminosos que extinguiram as minhas apoquentações.”

No primeiro conto, intitulado “A carta”, teria origem o romance São Bernardo, cujo protagonista, Paulo Honório, já aparecia como “um criminoso, resumo de certos proprietários rijos existentes no Nordeste”. É possível, segundo Graciliano, que o personagem refletisse “alguma tendência que no autor existisse para matar alguém, ato que na realidade não poderia praticar um cidadão criado na ordem, acostumado a ver o pai, homem sisudo e meio-termo, pagar o imposto regularmente”.

Reavaliado na década de 1940, o texto seria guilhotinado pelo próprio autor: “diálogo chinfrim, sintaxe disciplinada, arrumação lastimosa, uma pinoia”.

Fabricou um segundo conto, “Entre grades”, no qual se inspiraria mais tarde para compor seu terceiro romance, Angústia. O personagem principal, Luís da Silva, era neurótico e possessivo como Paulo Honório – e como este cometeria um assassinato. “Com essas duas figuras, comecei a construir uma galeria de criminosos”, observaria.

Não é preciso dizer que, exigente ao extremo, reprovou o segundo conto. “Nunca vi porcaria igual”, escreveria a Pinto, em 1926. “Se tiver tempo, tiro uma cópia de um deles e mando-ta, que aqui não tenho a quem mostrá-los. Naturalmente, hás de dizer-me que está uma coisa muito benfeita, e eu ficarei satisfeito e direi a mim mesmo: que artista se perdeu!”

A literatura o ajudou a sair do poço depressivo, como reconheceria: “As preocupações que me afligiam desapareceram, pelo menos adelgaçaram: ressurgi, desenferrujei a alma [...]. Aventuro-me a admitir, depois, que o suicídio se tenha de fato realizado”.

Em meados de 1925, Graciliano podia ser flagrado, no fundo da loja Sincera ou em casa, rascunhando papéis – era o terceiro conto da série. Com nítida influência da prosa naturalista de Eça de Queirós, evidenciava um foco temático diferente dos anteriores: o cotidiano monótono de uma cidadezinha do interior nordestino. A narrativa centrava-se em João Valério, empregado de uma firma comercial que se torna sócio do patrão, apaixona-se pela mulher deste, Luísa, e tem com ela um caso amoroso que acaba denunciado, por carta anônima, ao marido. Desesperado, este se suicida. O romance se desfaz, e João Valério retoma sua vida parasitária.

A grande novidade é que Graciliano introduzira abundantes diálogos, tornando a narrativa ágil. Claro esforço de aprendizado na carpintaria literária. Só não esperava que o conto crescesse tanto de tamanho.

O terceiro conto estirou-se demais e desandou em romance, pouco mais ou menos romance, com uma quantidade apreciável de tipos miúdos, desses que fervilham em todas as cidades pequenas do interior. Várias pessoas se julgaram retratadas nele e supuseram que eu havia feito crônica, o que muito me aborreceu.

E mais:

Nessas páginas horríveis, onde nada se aproveita, um fato me surpreendeu: as personagens começaram a falar. Até então as minhas infelizes criaturas, abandonadas, incompletas, tinham sido quase mudas, talvez por tentarem expressar-se num português certo demais, absolutamente impossível no Brasil. O livro que menciono saiu cheio de diálogos, parece drama.

Durante a elaboração de Caetés – o conto que viraria romance –, Graciliano parecia elétrico. Em uma noite, ouvindo violão no Rancho Fundo, excedeu-se nos cálices de conhaque temperados por xícaras de café forte. O coquetel etílico deu resultado. “Chegou a inspiração!”, comentou com Cícero Pereira, saindo em disparada pela escuridão.

Mais sociável, Graciliano concordou em participar do Clube dos 18. De clube, apenas o nome, porque, na verdade, era um grupo de amigos que se reuniam aos domingos para conversar e beber. A cada semana, o encontro era na residência de um deles. As mulheres ficavam de fora, e a única que conseguia assuntar era a dona da casa, pois cuidava do almoço. Certa vez, bêbados, escandalizaram Palmeira saindo à rua para brincar de cobrinha – uns empurrando os outros, em sinuosa fila indiana.

Os sócios do clube somavam forças também em coisas sérias. Por volta de 1926, o bando de Lampião ameaçava saquear a cidade. As pilhagens eram frequentes em todo o Sertão, sobretudo nas áreas em que os fazendeiros recusavam dar dinheiro aos cangaceiros em troca de segurança. A delegacia só dispunha de meia dúzia de praças, o que seria um prato feito para o assalto. Diante do pânico generalizado, o major José Lucena, comandante do destacamento policial, recorreu aos proprietários de terras, que lhe ofereceram pistoleiros, cavalos e burros para transportar as pessoas que quisessem ajudar a cavar trincheiras e fazer barricadas. Graciliano e amigos mobilizaram moradores e comerciantes para a tarefa.

A população viveu horas de apreensão, porque Lampião enviava bilhetes ameaçadores à prefeitura, ao mesmo tempo que espalhava mais de cem homens nas proximidades de Palmeira. Na crônica “Comandante dos burros”, publicada pelo Jornal de Alagoas em 27 de maio de 1933, Graciliano recordaria o episódio, troçando do exibicionismo dos cangaceiros:

Corriam pela estrada real, bem montados, espalhafatosos, pimpões, chapéus de couro enfeitados de argolas e moedas, cartucheiras enormes, alpercatas que eram uma complicação de correias, ilhós e fivelas, rifles em bandoleira, lixados, azeitados, alumiando.

A inesperada resistência levou Lampião a mudar de planos, tomando o rumo de Mossoró, no Rio Grande do Norte. O major Lucena relaxou a prontidão da tropa e mandou que os praças dividissem os burros emprestados pelos fazendeiros em dois lotes: um seguiu para um engenho de Viçosa e outro para um sítio de Palmeira. Até aí, nada de mais. Acontece que, tempos depois, visitando a região, o governador de Alagoas se deparou com um soldado “com duas fitas, um botão fora da casa, chapéu embicado, faca de ponta à cinta”, segundo a descrição de Graciliano. O praça bateu continência e apresentou-se:

– Cabo Fulano, comandante dos burros do major Lucena.

Era o encarregado de cuidar dos animais que tinham servido para afugentar Lampião.

(Vamos dar um salto no tempo. Se em 1926 Palmeira dos Índios se livrara dos cangaceiros, não teria a mesma sorte no início de 1940, quando um bando pilharia os povoados de Lagoa da Areia e Canafístula, matando quatro pessoas e espancando outras. Graciliano escreveria, alarmado: “Até Palmeira dos Índios, lugar de ordem, recebe visitas incômodas e assusta-se em telegramas compridos. É incrível. Afinal não há razão para sangue e barulho. Que deseja essa gente?”.)

Ainda em 1926, Graciliano foi nomeado presidente da Junta Escolar de Palmeira dos Índios, “prebenda que tomava tempo e não dava dinheiro”. O lastimável quadro de carência do ensino o deixou perplexo. “As escolas estão pessimamente instaladas. Cada aluno leva a sua cadeira, cada professora, a sua banca”, acentuava em relatório encaminhado às autoridades estaduais.

A Junta Escolar, bem ou mal, desviava-o dos aborrecimentos. Comprara um estoque grande de algodão, a 40 mil-réis a arroba. Não demoraria muito para o preço despencar para 12 mil-réis. O tecido pelo qual havia pago 5 mil-réis o metro passara a valer a metade. Não teria saída senão renegociar a dívida com os fornecedores.

O velho Sebastião tentou ajudá-lo a sair daquela encruzilhada. Em uma de suas idas a Maceió, procurou a firma que vendera os tecidos para propor uma operação triangular: ele pagaria com o algodão de sua fazenda as promissórias e, depois, acertaria tudo com o filho. Voltou feliz da vida a Palmeira, crente de que solucionara o problema.

Faltou sensibilidade a Graciliano para perceber generosidade no gesto do pai. Irritado por não ter sido consultado sobre o acordo, recusou-se a endossá-lo, e ainda repreendeu Sebastião:

– Meu pai, não lhe dei autorização para fazer esse conchavo em Maceió. Vou pagar como puder.

No começo de 1927, Graciliano conheceu o escritor pernambucano José Lins do Rego. Recém-chegado a Alagoas para trabalhar como fiscal de tributos, rumara para o interior, acompanhando o governador Pedro da Costa Rego. Os dois esticaram a viagem até Palmeira dos Índios, onde vivia o “homem que sabe mais mitologia em todo o Sertão”, como dissera a José Lins o tabelião de Mata Grande. “Aquele camarada é um sabidão. Passa o dia no balcão da loja de tecidos lendo Anatole France.”

Ao chegar à prefeitura de Palmeira, José Lins encontrou o “sábio sertanejo” conversando com o deputado Chico Cavalcanti sobre plantação de mamona. O prefeito os apresentou:

– Este é o professor Graciliano Ramos.

– Professor de coisa nenhuma – replicou.

Enquanto o governador falava aos correligionários, Graciliano encolhia-se em um canto da sala, “os olhos desconfiados, com um sorriso amargo na boca”.

José Lins buscou um modo de se aproximar. “Quis provocá-lo, e tive medo da mitologia. Mas aos poucos fui me chegando para o sertanejo quieto, de cara maliciosa. Falou-me de uns artigos que havia lido com a minha assinatura, com tanta discrição no falar, com palavras tão sóbrias que me encantaram.”

E então José Lins ficaria sabendo que ele era comerciante e ateu, tinha família grande, estivera no Rio, fizera sonetos, sabia inglês, francês, falava italiano. O sábio também entendia de Balzac, de Zola, de Flaubert, como se respirasse literatura.