DOIDICES: O AMOR E A POLÍTICA

DOIDICES: O AMOR E A POLÍTICA

Uma competente articulação política levou Graciliano Ramos a concorrer à Prefeitura de Palmeira dos Índios nas eleições de 1927. A sucessão municipal estava em pauta desde que o prefeito Lauro de Almeida Lima fora assassinado, em fevereiro de 1926, após desentendimento com o fiscal de tributos João Ferreira de Gusmão e Melo. Este em seguida foi fuzilado pelo delegado de polícia local. O banho de sangue traumatizou a cidade. O vice-prefeito, Manuel Sampaio Luz, assumiu para cumprir o terço restante do mandato.

À medida que se avizinhava o pleito, as forças situacionistas se reagrupavam, comandadas por um triunvirato do qual faziam parte o jornalista e deputado federal Álvaro Paes e os irmãos Francisco e Otávio Cavalcanti. Os Cavalcanti, que dominavam a política palmeirense há quatro décadas, eram aliados do governador Costa Rego, cujo principal representante na região era Paes, todos do Partido Democrata.

Depois de rodadas de discussões, a cúpula se fixou no nome de Graciliano. Bem-sucedido como presidente da Junta Escolar, tinha fama de honesto, austero e culto, e era amigo dos caciques do partido. O relacionamento com os Cavalcanti vinha desde 1910, quando os Ramos chegaram de Viçosa. E com Álvaro Paes a convivência se estreitara pelas afinidades intelectuais.

Selado o acordo, faltava armar a arapuca para o candidato. No terraço da mansão dos Cavalcanti, Graciliano sentiu as pernas tremerem ao ouvir Otávio lançá-lo a prefeito. Refeito do susto, respondeu:

– Só se Palmeira dos Índios estivesse com urucubaca...

Saiu dali com os miolos ardendo. Por que diabo foram escolhê-lo? A Prefeitura jamais estivera em suas cogitações, ainda mais agora que a retração nas vendas o obrigava a dar o couro na loja. Sem falar nas horas que sonegaria a Caetés e nas dores de cabeça que teria com querelas políticas.

Horas depois, o convite caiu em domínio público. Mas ele não demonstraria a mínima intenção de aceitá-lo. Se vinham lhe encher a cabeça, reagia com impropérios. Não contava, porém, com a determinação dos Cavalcanti. Várias noites, Otávio e Chico o procuraram em casa para quebrar-lhe a resistência. O homem era duro na queda. “Na vida pública já alcancei o que desejava: sou eleitor e jurado.” Nem o pai conseguiria dissuadi-lo.

Quando tudo parecia perdido, Graciliano voltou atrás. Os adversários do Partido Conservador espalharam pela cidade que ele estava fugindo das urnas com medo de fracassar como prefeito e pôr a perder o seu prestígio. O sangue lhe subiu à cabeça e, repentinamente, mudou de opinião. Mandou um bilhete a Chico Cavalcanti: “Apareça o filho da puta que disse que eu não sabia montar em burro bravo!”.

Ninguém apareceu e ele venceu o pleito de 7 de outubro de 1927, com 433 votos, tendo como vice-prefeito José Alcides de Morais. Detalhes relevantes: Graciliano não participou da campanha eleitoral, não fez promessas nem se envolveu em composições políticas para a escolha dos conselheiros municipais (vereadores). “Todo mundo queria que ele fosse prefeito”, testemunharia Filadelpho Wanderley. “Havia confiança nele, pela sua honestidade nos negócios, por sua vida conhecida na cidade. Era um homem incapaz de cometer um ato indigno.”

Os Cavalcanti, como bons coronéis, encarregaram-se de cabalar eleitores. Afinal, as eleições na República Velha eram a bico de pena – votos a descoberto e currais eleitorais mantidos a ferro e fogo pela corrupção. O próprio Graciliano, anos depois, desdenharia do processo eleitoral: “Assassinaram o meu antecessor. Escolheram-me por acaso. Fui eleito naquele velho sistema das atas falsas, os defuntos votando”.

* * *

O prefeito eleito esboçava planos administrativos quando um furacão lhe arrebatou os sentidos. Em uma tarde abafada de dezembro, cruzou na rua com uma jovem de dezoito anos incompletos, que acabara de chegar de Maceió. “Foi um olhar profundo em mim”, relembraria Heloísa de Medeiros Ramos, que fora a Palmeira dos Índios, em companhia da avó Austrelina Leite de Medeiros, para assistir à primeira missa rezada por seu primo José Leite, ordenado padre.

Graciliano perdeu o sossego e logo procurou saber com Odon Braga, seu cunhado e, por coincidência, primo da moça, quem era aquela morena de fisionomia alegre e gestos delicados. Filha de Américo Medeiros, secretário do Tribunal de Justiça de Alagoas, Heloísa estava concluindo o curso normal e, para satisfazer o desejo da mãe, pretendia estudar música no Conservatório Brasileiro, no Rio de Janeiro, com a pianista Guiomar Novais. Desde os doze anos, dedicava-se ao piano, encantando quem a ouvisse executar o Noturno, de Chopin.

Heloísa reviu Graciliano na casa de padre Macedo, onde ela e a avó estavam hospedadas. A pretexto de conversar com o vigário, ele apareceu quase todas as noites na praça da Matriz. A súbita paixão o perturbava: como transformar a proximidade em assédio discreto? Heloísa notou os olhares furtivos, logo insistentes. Confessaria, décadas mais tarde, que se surpreendera ao saber que ele era o prefeito eleito:

Sempre imaginava que prefeito tinha de ser um homem gordo, de bigodes espessos, correntes de ouro sobre o estômago saliente. Em vez dessa imagem, o que vi foi um homem ágil, alto, magro, seco. O queixo quadrado, os traços marcantes e olhos profundos, com um olhar penetrante que substituía, às vezes, a voz. As mãos grandes, de longos dedos.

Amor à primeira vista? Apenas para Graciliano, que teve de se submeter ao pior dos sacrifícios para um ateu, só para vê-la: assistir às missas dominicais e até à missa do galo. Sentindo-se cortejada, Heloísa mantinha-se cerimoniosa – um simples descuido poderia ser flagrado pela avó. A primeira conversa a sós foi meteórica. Depois de muito hesitar, dirigiu-se à janela onde ela estava. Dois dedos de prosa, e só.

Na quermesse promovida por padre Macedo às vésperas do Natal, o cristal se quebrou. A brincadeira preferida dos jovens era libertar as moças “presas” na carceragem e, para isso, compravam rifas para as obras beneficentes. A paróquia deve ter arrecadado uma soma acima do previsto, porque Graciliano, atento, arrematou vários bilhetes para “libertá-la”.

Finalmente, no ano-novo, Heloísa concordou em “namorar de perto”, como então se dizia. O namoro teria curtíssima duração se Graciliano, cada vez mais apaixonado, não detonasse duas operações de guerra. A primeira para garantir a permanência de Heloísa e de d. Austrelina até a sua posse na Prefeitura, marcada para 7 de janeiro de 1928. E a segunda durante a recepção por ele oferecida na casa do velho Sebastião, no dia da transmissão do cargo.

Notando que padre Macedo pretendia retirar-se com Heloísa e a avó, Graciliano sugeriu que o vigário se recolhesse a orações em um quarto silencioso. E, sem aguardar pela resposta, mandou um empregado apanhar o breviário de Macedo na casa paroquial. Enquanto o padre orava, Graciliano o trancou dentro do quarto, metendo a chave no bolso. Com isso, ganhava tempo para ficar ao lado da namorada. Terminadas as suas obrigações para com Deus, padre Macedo quis sair e não pôde. O único jeito foi esmurrar a porta e gritar por socorro.

Nessa noite agitada, Graciliano propôs casamento a Heloísa. Ela ponderou, com o coração disparado, que era um pouco cedo; gostava dele, mas ainda não o amava.

– Não faz mal – disse ele. – O amor que tenho por você é tanto que dá para nós dois.

Com a partida de Heloísa nos primeiros dias de janeiro, ele quase enlouqueceu de ansiedade. Entre 16 de janeiro e 8 de fevereiro, mandou sete cartas para ela, média de uma correspondência a cada três dias. O Graciliano que se revelava nessas linhas em nada se assemelhava ao homem tido como esquisito, seco e fechado. Carinhoso e amável, desmanchava-se em confidências.

Apaga-se a luz, deito-me. O sono anda longe. Que vieste fazer em Palmeira? Por que não te deixaste ficar onde estavas? [...] Por que me quiseste? Deram-te conselhos? Por que apareceste mudada em 24 horas? Eu te procurei porque endoideci por tua causa quando te vi pela primeira vez. [...] Amo-te muito. Espero que ainda venhas a gostar de mim um pouco.

Ou ainda:

Estou numa situação dos diabos, minha filha, por tua causa. Devo repetir-te que te amo como um doido? Não repito, porque me parece que não te é agradável ser amada de semelhante maneira. Provavelmente desejarias mais circunspecção, mais conveniência. O pior é que não me dou por metade. E desde que te vi (que horror, Deus do Céu!) meti os pés pelas mãos e foi aquela chusma de disparates que bem conheces.

Após uma semana, padre Macedo retornou de Maceió dando por cumprida a missão que lhe fora confiada por Graciliano: pedir a mão de Heloísa aos pais dela. Manobra esperta. Dificilmente o pedido, feito pelo vigário, seria recusado pela família, mesmo sendo ele viúvo, pai de quatro filhos e dezoito anos mais velho do que ela. Radiante, Graciliano escreveu a Heloísa:

É verdade que és minha noiva? Não é possível, sei perfeitamente que tudo isto é um sonho, que vou acordar, que ainda estamos em princípio de dezembro, que tu não tens existência real. Esta carta nunca te chegará às mãos, porque não tens mãos, és uma criatura imaginária. A flor que me deste e que agora vejo, murcha, é simplesmente um defeito dos meus nervos. Beijando-a, tenho a impressão de beijar o vácuo. Já tiveste em sonho a consciência de estar sonhando? É assim que me acho. Vem para junto de mim e acorda-me.

[...]

Causaste uma perturbação terrível no espírito dum pobre homem que nunca te fez mal nenhum.

[...]

Amo-te com ternura, com saudade, com indignação e com ódio. Confesso-te honestamente o que sou. Se não te agradam sentimentos tão excessivos, mata-me. Mas não me mates logo: mata-me devagar, deitando veneno no que me escreveres. Provavelmente, sabes fazê-lo. Não devias ser como és.

Estou a atormentar-te, meu amor. Perdoa. Se não fosses como és, eu não gostaria de ti. És uma extraordinária quantidade de mulheres. [...]

Na carta de 24 de janeiro, em meio a juras de amor, ele falou sobre si mesmo, escamoteando suas virtudes, como se fosse um ser humano desprezível.

Sabes lá quem eu sou, donde venho, para onde vou, que tenho feito neste mundo em 35 anos duramente arrastados? Nada conheces de mim. Esperanças desaparecidas, deslumbramentos rápidos, decepções, indiferença, comiseração desalentada para com os outros – ignoras tudo. Sou um animal muito complicado, meu anjo. Por que vieste para mim? Foi a loucura que te trouxe.

O casamento foi marcado, em tempo recorde, para 16 de fevereiro – dois meses depois de o casal ter se conhecido. Uma inquietação assaltou Graciliano: quem oficiaria a cerimônia religiosa? “Conheces algum padre que possa me casar sem confissão? Não quero ajoelhar-me aos pés de ninguém”, apelou a Heloísa. Padre José Leite celebraria o casamento em Maceió, dispensando o noivo da “penitência”.

* * *

Bastaram 27 dias à frente da Prefeitura de Palmeira dos Índios, que ocupava um casarão colonial construído em 1919, para Graciliano perceber que a tarefa era infinitamente mais espinhosa do que imaginara. Não escondeu o desapontamento em carta a Heloísa, que ainda morava em Maceió, datada de 4 de fevereiro de 1928: “Para os cargos de administração municipal escolhem de preferência os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou gatuno, que tenho na cabeça uns parafusos de menos, mas não sou imbecil, não dou para o ofício e qualquer dia renuncio”.

As rugas franziram-lhe a testa ao examinar o balancete financeiro de seu antecessor: apenas 105 mil-réis em caixa. Era preciso pôr ordem na casa. Ele instruiu os fiscais a cobrar os impostos com rigor. As dívidas atrasadas teriam de ser pagas imediatamente, sob pena de execução judicial. E as isenções fiscais, que beneficiavam grandes proprietários, comerciantes abastados e chefes políticos, perderam validade.

No Relatório ao Governo do Estado de Alagoas, enviado ao governador Álvaro Paes em 10 de janeiro de 1929, prestando contas de seu primeiro ano de gestão, o prefeito descreveu o quadro de distorções que herdara.

Havia em Palmeira dos Índios muitos prefeitos: os cobradores de impostos, o comandante do destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do município tinha a sua administração particular, com prefeitos coronéis e prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses resolviam questões de polícia e advogavam.

Ele não contava com a relutância de contribuintes em atraso a quitar seus débitos.

Os devedores são cabeçudos. Eu disse ao Conselho, em relatório, que aqui os contribuintes pagam ao município se querem, quando querem e como querem. [...] Certos indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam com autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos.

Outra providência polêmica: determinou a limpeza de ruas e logradouros públicos, onde proliferavam animais vadios, lixo acumulado, lama e detritos. Os donos de cães e porcos, acostumados a deixá-los à solta, tomaram um susto quando os animais começaram a ser recolhidos. Mas resistiram, libertando novamente os animais.

Deram-se mal. Graciliano ordenou que todos os bichos encontrados nas ruas fossem mortos, e que se multasse quem reincidisse. Ao saber que Sebastião Ramos não acatara a ordem, mandou o fiscal multá-lo. Magoado, o pai teve de ouvir uma admoestação:

– Prefeito não tem pai. Eu posso pagar sua multa. Mas terei de apreender seus animais toda vez que o senhor os deixar na rua.

Em uma cidade de hábitos arraigados, essas ações moralizadoras despertaram logo inimizades e incompreensões, como ele assinalaria no Relatório.

Houve lamúrias e reclamações por se haver mexido no lixo preciosamente guardado em fundos de quintais; lamúrias, reclamações, ameaças, porque mandei matar centenas de cães vagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos nas praças.

Palmeira dos Índios não fugia ao figurino de cidades pequenas do Agreste, onde o poder dos grandes senhores se sobrepunha ao interesse coletivo e às normas vigentes. Graciliano, bulindo em casa de marimbondos, não escaparia das ferroadas. Até cartas anônimas com ameaças foram colocadas embaixo da porta da loja Sincera.

Mas ele não alterou seus planos, demonstrando aguda consciência das pressões à sua volta:

Para que semelhante anomalia desaparecesse, lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro. Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos; saíram os que faziam política e os que não faziam coisa alguma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles. Não sei se a administração é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior.

O Relatório em nada reproduzia os sonolentos documentos oficiais do gênero. O estilo paraliterário apoiava-se em uma linguagem coloquial e envolvente, às vezes cáustica, na apreciação dos investimentos. Ao mesmo tempo, era conciso e absolutamente objetivo e preciso ao descrever ações empreendidas na Prefeitura:

Gastei com obras públicas 2:908$350, que serviram para construir um muro no edifício da Prefeitura, aumentar e pintar o açougue público, arranjar outro açougue para gado miúdo, reparar as ruas esburacadas, desviar as águas, que, em épocas de trovoadas, inundavam a cidade, melhorar o curral do matadouro e comprar ferramentas. Adquiri picaretas, pás, enxadas, martelos, marões, maretas, carros para aterro, aço para brocas, alavancas etc. Montei uma pequena oficina para consertar os utensílios estragados.

Graciliano não poderia supor a repercussão de sua ousadia estilística em uma corriqueira prestação de contas.

Apesar das intimidações, o prefeito alcançou uma vitória com a aprovação, pelo Conselho Municipal, do Código de Posturas, calhamaço com 82 artigos que disciplinava os costumes na cidade, estabelecendo pesadas multas aos infratores.

Em janeiro passado não achei no município nada que se parecesse com lei, fora as que havia na tradição oral, anacrônicas, do tempo das candeias de azeite. Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem. Afinal, em fevereiro, o secretário descobriu-o entre papéis do Império. Era um delgado volume impresso em 1865, encardido e dilacerado, de folhas soltas, com aparência de primeiro livro de leitura de Abílio Borges. Um furo. Encontrei no folheto algumas leis, aliás bem redigidas, e muito sebo. Com elas e com outras que nos dá a Divina Providência consegui aguentar-me, até que o Conselho, em agosto, votou o código atual.

As medidas previstas no Código eram avançadas, regulamentando direitos e deveres dos cidadãos e do poder público. Eis alguns: animais não poderiam andar soltos nas ruas; os comerciantes eram impedidos de açambarcar mercadorias de primeira necessidade em época de carestia; os farmacêuticos, proibidos de vender determinados remédios sem receita médica; os hoteleiros, obrigados a ter em ordem o livro de hóspedes e a afixar a tabela de preços em locais visíveis; o comércio não poderia funcionar além das 21 horas nem abrir aos feriados e fins de semana; açougueiros não poderiam vender carne de rês doente e teriam de passar a recolher impostos.

Obstinado, Graciliano cumpriu rigorosamente a lei, mesmo desgastando-se politicamente. Uma das primeiras trombadas foi com o conselheiro Capitulino José de Vasconcelos, que protestara contra os fiscais que ameaçavam fechar-lhe o açougue se não pagasse o imposto devido. Ora, Capitulino votara a favor do Código e agora não queria acatá-lo. O prefeito, irritado, revidou:

– Eu não tenho culpa de você ser burro e assinar papel sem ler. Não pleiteei a Prefeitura, não farei favores.

E encerrou o diálogo:

– Pague o imposto antes que tenha de fazê-lo pela coerção da lei.

A firmeza de Graciliano foi colocada à prova durante a construção da estrada para Palmeira de Fora. Os operários esbarraram na disposição de um fazendeiro de não permitir obras em suas terras. O prefeito compareceu ao local e mandou cortar as roças de milho. De nada valeram os protestos do latifundiário.

– Seu milho ia dar aqui a noventa dias, mas o senhor já o colheu agora. Vá à prefeitura receber o seu dinheiro.

* * *

Graciliano e Heloísa só namoraram depois de casados, já que mal se tocaram nos dois meses anteriores.

Nos fins de semana, escapuliam para longos e românticos passeios de bicicleta pelos arredores. Acampavam, improvisavam piqueniques, tomavam banhos e faziam caminhadas bucólicas pela fazenda de Sebastião Ramos. Ele só não gostava de andar a cavalo – nutria indiferença por animais de uma forma geral.

Heloísa descobriu no marido um homem gentil, embora de humor variável. Chamava-a por apelidos carinhosos: Ló, sinhá Ló, Lozinha ou Lozíssima. E ele para ela era Grace, como a família sempre o chamara. Um homem sensível capaz de levar três horas a explicar como nascem os bebês aos irmãos caçulas. Falava palavrões em abundância, mas, segundo Heloísa, “era terrivelmente tímido em relação às coisas íntimas, de um pudor muito grande”.

Não tinha o menor jeito para os afazeres domésticos. “Grace passaria a vida toda mal sabendo bater um prego na parede”, diria ela, que, apesar de jovem, se saía bem no desafio de ajudá-lo na educação dos quatro filhos do primeiro casamento. Desde que o pai assumira a Prefeitura, Márcio e Múcio, adolescentes, tinham ido trabalhar na loja Sincera, junto aos antigos empregados. Diariamente, Graciliano levava Júnio – que não se desenvolvia fisicamente como os meninos de sua idade – para dar voltas e voltas na praça, em um ritmo cadenciado. “Grace acreditava que aqueles exercícios fariam bem, como fizeram, à saúde do filho”, lembraria Heloísa. “Veja como ele estava adiante no tempo. Hoje, as pessoas fazem caminhadas para cuidar do corpo.”

À noite, quando os filhos iam dormir, Graciliano aproveitava o silêncio na sala para escrever páginas de Caetés. Trabalho lento, pela falta de tempo. Ao terminar um capítulo, lia para a mulher, em busca de opiniões.

Se de um lado a postura desassombrada do prefeito contrariava interesses sedimentados, por outro ganhava a simpatia da gente comum, pelas obras realizadas. Construiu três escolas nos povoados de Serra da Mandioca, Anum e Canafístula; abriu um posto de saúde; acabou com a imundície provocada pelo abate de gado miúdo no pátio da feira, instalando um abatedouro na cidade; aterrou a área que separava a cidade do bairro da Lagoa; reformou o prédio da Prefeitura.

Um de seus orgulhos era a estrada ligando o centro do município a Palmeira de Fora, com oito metros de largura. Ao deixar a Prefeitura, entregou trinta dos setenta quilômetros do prolongamento até Santana do Ipanema. Mesmo sem ter completado o projeto, calou a boca da oposição ao apresentar o balanço dos gastos: enquanto o Estado gastava, por quilômetro construído, quatro contos de réis, ele fazia a estrada – com as mesmas dimensões – investindo apenas a metade.

Graciliano lançava com mão de ferro o registro geral de despesas da Prefeitura. Ele próprio controlava, com anotações à tinta da finalidade do gasto, a quantia paga e o nome do beneficiado – como se pode comprovar no livro contábil exposto hoje na Casa Museu Graciliano Ramos, em Palmeira dos Índios.

Mas o seu modo de administrar era informal. Saía cedo para vistoriar obras, andava pelo comércio com o Código de Posturas na cabeça e não hesitava em aplicar multas de próprio punho, se constatasse irregularidades. Recebia qualquer pessoa em seu gabinete, sem hora marcada. E deixava muita gente boquiaberta ao conversar descontraidamente com o operário Alfredo Lipa, que trabalhava na obra da estrada, ou com o fiscal Antônio Muritiba. Quando tinha folga, não desprezava uma prosa com o barbeiro José Mendes Ferreira.

Não adiava para amanhã o que precisava dizer hoje. Na farmácia de José Tobias Filho, o ex-prefeito Antônio Pantaleão lembrava que passara o poder ao sucessor com dinheiro em caixa. Graciliano não fez por menos:

– Você fez isso? Muito bem. A maioria dos prefeitos que andam por aí é de ladrões. De cada dez, oito roubam.

Cobrava resultados aos auxiliares, ignorando se tinham padrinhos. Por julgá-lo incompetente, afastou do cargo o tesoureiro da Prefeitura, o que provocaria a renúncia do irmão dele, o vice-prefeito José Alcides de Morais. Pensam que Graciliano se importou?

Antônio Almeida da Silva, o Antônio Engraxate, personagem folclórico, cultivaria uma gratidão eterna pelo prefeito, que, ao ouvi-lo cantarolar uma valsinha enquanto engraxava seus sapatos, perguntou:

– Pretinho, você deseja ser músico?

O engraxate chorou de emoção quando Graciliano chamou a seu gabinete o maestro da Filarmônica 16 de Setembro e lhe pediu que ensinasse música “a esse negro, que é gente minha”.

As atitudes enérgicas davam-lhe credibilidade junto aos moradores, habituados à indolência dos antecessores. Roceiros e feirantes tinham mania de urinar na porta do açougue, provocando um cheiro insuportável. O prefeito mandou construir um sanitário público, mas o problema persistia. Furioso, Graciliano colocou dois guardas de plantão em frente ao açougue para inibir (e educar) os recalcitrantes.

Às sextas-feiras, havia uma tradição na cidade: uma turba de aleijados e mendigos batia de porta em porta atrás de esmolas. Graciliano, a princípio, tolerou a mendicância. Mas, percebendo que entre os necessitados se escondiam espertalhões, tratou de separar o trigo do joio. Reuniu os pedintes em frente à prefeitura para perguntar quanto recebiam de donativos a cada sexta-feira.

– Eu lhes ofereço o dobro do que costumam ganhar para que vocês trabalhem na construção do muro em torno do aterro da lagoa – propôs o prefeito.

Um dos homens ponderou:

– Mas, meu senhor, sou aleijado...

– Você não tem as pernas, mas tem as mãos e pode trabalhar.

Nunca mais a legião de pedintes apareceu em Palmeira dos Índios. Com os presos da cadeia pública, não seria menos rigoroso. Para acabar com a ociosidade no xadrez, decidiu convocá-los para trabalhar na estrada de Palmeira de Fora para Santana do Ipanema. “Eu prendia os vagabundos, obrigava-os a trabalhar. E consegui fazer um pedaço de estrada e uma terraplenagem difícil”, contaria ele em 1948.

Ao final do segundo ano de gestão, Graciliano encaminhou outro Relatório ao governador Álvaro Paes, com o mesmo apuro estilístico, a ironia corrosiva e a exatidão informativa do primeiro. As finanças estavam saneadas e a arrecadação crescera 50%, mas se queixava da insuficiência de recursos para tocar determinadas obras, como a construção do novo cemitério: “Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam”.

O parágrafo sobre o resultado da aplicação de multas comprovava sua inflexibilidade no trato da coisa pública, combatendo transgressões de qualquer ordem e pagando, não raro, o preço das incompreensões:

Arrecadei mais de dois contos de réis de multas. Isto prova que as coisas não vão bem. E não se esmerilharam contravenções. Pequeninas irregularidades passam despercebidas. As infrações que produziram soma considerável para um orçamento exíguo referem-se a prejuízos individuais e foram denunciadas pelas pessoas ofendidas, de ordinário gente miúda, habituada a sofrer a opressão dos que vão trepando. Esforcei-me por não cometer injustiças. Isto não obstante, atiraram as multas contra mim como arma política. Com inabilidade infantil, de resto. Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.

As melhorias foram subordinadas à disponibilidade orçamentária. Não gastar nada além do que se arrecadava, para evitar déficit e endividamento públicos. Daí não fazer promessas para o futuro.

Projetos. Tenho vários, de execução duvidosa. Poderei concorrer para o aumento da produção e, consequentemente, da arrecadação. Mas umas semanas de chuva ou de estiagem arruínam as searas, desmantelam tudo – e os projetos morrem. Iniciarei, se houver recursos, trabalhos urbanos. [...] Empedrarei, se puder, algumas ruas. Tenho também a ideia de iniciar a construção de açudes na zona sertaneja. Mas para que semear promessas que não sei se darão frutos? Relatarei com pormenores os planos a que me referia quando eles estiverem executados, se isto acontecer. Ficarei satisfeito se levar ao fim as obras que encetei. É uma pretensão moderada, realizável. Se não realizar, o prejuízo não será grande. O município, que esperou dois anos, espera mais um. Mete na Prefeitura um sujeito hábil e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos.

E, por fim, sublinhava avanços alcançados em diferentes áreas:

Favoreci a agricultura livrando-a dos bichos criados à toa; ataquei as patifarias dos pequeninos senhores feudais, exploradores da canalha; suprimi, nas questões rurais, a presença de certos intermediários, que estragavam tudo; facilitei o transporte; estimulei as relações entre o produtor e o consumidor.

Estabeleci feiras em cinco aldeias: 1:156$750 foram-se em reparos nas ruas de Palmeira de Fora.

Canafístula era um chiqueiro. Encontrei lá o ano passado mais de cem porcos misturados com gente. Nunca vi tanto porco. Desapareceram. E a povoação está quase limpa. Tem mercado semanal, estrada de rodagem e uma escola.

 

Parecia cansado. Como se não bastassem os embates para extinguir os privilégios e dignificar a gestão da coisa pública, Graciliano enfrentava problemas com a loja Sincera. A crise de 1929 arrastara o país à bancarrota, fazendo ruir os alicerces da economia cafeeira. Em Palmeira dos Índios, as colheitas quebraram, as mercadorias sumiram das prateleiras das lojas que não tinham como repô-las, o poder aquisitivo diminuíra a olhos vistos. A Sincera naufragava em dívidas.

As dificuldades financeiras acumulavam-se na medida em que ele ganhava subsídios simbólicos como prefeito e não se locupletava com a corrupção. Empobrecera em dois anos de mandato.

Caso decidisse retomar as rédeas dos negócios, teria de começar praticamente do zero. Não se sentia com ânimo para a empreitada, muito menos para eternizar-se como comerciante. Com quase quarenta anos, equilibrava-se em um fio de alta-tensão, a família crescendo. Em janeiro de 1929 nascera seu primeiro filho com Heloísa, Ricardo; um ano depois, o segundo, Roberto, que morreria aos seis meses, de desidratação.

Mas uma porta, de repente, abriu-se.

Em março de 1930, o governador Álvaro Paes, seu amigo, convidou-o a assumir a direção da Imprensa Oficial do Estado, em Maceió. Desde que lera o primeiro Relatório, Paes tencionava chamá-lo para colaborar com seu governo, impressionado com a austeridade à frente da Prefeitura.

Pelo estilo inusitado, a prestação de contas do prefeito, publicada no Diário Oficial, causaria sensação. Para o Jornal de Alagoas, tratava-se de “documento dos mais expressivos e interessantes”. Em uma reação em cadeia, outros periódicos alagoanos – O Semeador e o Correio da Pedra – o transcreveram. Até no Rio de Janeiro houve ecos. O Jornal do Brasil e A Esquerda, dirigido por Pedro Motta Lima, publicaram trechos.

O furor da imprensa surpreendeu Graciliano, que, anos depois, comentaria:

Como a linguagem dos Relatórios não era habitualmente usada em trabalhos dessa natureza, e porque neles se dava às coisas seus verdadeiros nomes, causaram um escarcéu medonho. O primeiro teve repercussão que me surpreendeu. Foi comentado no Brasil inteiro. Houve jornais que o transcreveram integralmente.

O segundo Relatório, também noticiado em jornais de Maceió e do Rio, foi publicado no Diário Oficial com uma mensagem de louvor do governador: “A administração de Palmeira dos Índios continua a oferecer um exemplo de trabalho e honestidade, que coloca o município em uma situação de destaque”.

Graciliano aceitou sem pestanejar o convite de Álvaro Paes, renunciando à Prefeitura de Palmeira dos Índios em 30 de abril de 1930, 27 meses depois de assumir o cargo. “Houve quem tivesse comemorado a sua saída. Eram pessoas que tiveram interesses contrariados, porque ele não fazia cambalachos, nem dispensava multa de ninguém”, relembraria José Tobias de Almeida.

Em questão de semanas, Graciliano liquidou o estoque para fazer caixa e vendeu a loja. Dos vinte contos de réis arrecadados, dezoito foram para pagar as dívidas.