O PRENÚNCIO DO CAOS

O PRENÚNCIO DO CAOS

Em meados de 1935, Graciliano desengavetou o romance que começara a esboçar meses antes. É o que contaria a Heloísa (ainda em Palmeira dos Índios) em 22 de março de 1935:

Acabo de almoçar e, como é natural, bebi um bocado de aguardente. Vou dormir. Em seguida retomarei o trabalho interrompido há cinco meses. Julgo que continuarei o Angústia, que a Rachel acha excelente, aquela bandida. Chegou a convencer-me de que eu devia continuar a história abandonada. Escrevi ontem duas folhas, tenho prontas 95. Vamos ver se é possível concluir agora esta porcaria.

Rachel é Rachel de Queiroz, jovem romancista cearense que se mudara para Maceió depois de se casar com o poeta alagoano José Auto. A presença dela no grupo de escritores do Café Central chocou o conservadorismo. “Era muito escandaloso, porque naquela época mulher não ia a bar. E olha que eu só tinha 24 anos e estava sempre acompanhada de meu marido”, recordaria Rachel.

De Graciliano, ela guardou a lembrança de “um amigo impecável, muito bom companheiro, de grande lealdade e gentil”. Ao primeiro contato, pareceu-lhe fechado e solene. Até jogando pôquer, em casa de José Lins do Rego, com Gilberto Freyre e Olívio Montenegro, ambos a passeio em Maceió, volta e meia Graciliano não dispensava um tratamento cerimonioso:

– Vossa Excelência quer cartas?

Mas a impressão de rigidez no trato se desfazia nos bate-papos com os intelectuais. O Graciliano retraído se soltava quando ficava meio alto após alguns copos de cachaça. Os amigos provocavam e ele desatava a falar, principalmente de literatura. Com uma ponta de pessimismo, encerrava a discussão exclamando:

– Isso tudo é uma palhaçada!

No ambiente familiar, o homem austero se desmanchava de afeto pelos filhos pequenos. Clara, de dois anos, desde cedo era agarrada com o pai. Certo dia, Rachel entrou na sala e só faltou morrer de rir. Graciliano estava sentado com Clara no colo, resmungando alguma coisa. Logo, a menina repetiria, como um papagaio, o que o pai dizia:

– Filho da puta, filho da puta!

Segundo Rachel, ele era o único do grupo cujos textos não passavam pelo crivo implacável de Aurélio Buarque de Holanda.

Desconfio que Graciliano sabia mais português que Aurélio. Embora ainda não fosse dicionarista, Aurélio era filólogo e supervisionava nossos livros. Quando a gente acabava de escrever, tinha uma briga enorme com ele. Era o que chamávamos de a “matança das vírgulas”, porque ele exigia que colocássemos as vírgulas nos lugares certos. Os barbarismos mais selvagens Aurélio conseguia evitar, mas sempre com brigas. Às vezes, salvávamos alguma coisa, como começar frases com pronomes indiretos. Isto Aurélio já aceitava. Não é à toa que, como lexicógrafo, foi um dos mais avançados do país, no sentido de assumir e permitir o coloquial, estimulando-nos a criar com brasilidade. A nossa geração, aproveitando as destruições da Semana de Arte Moderna, encontrou o terreno limpo e pudemos escrever como queríamos.

Rachel insistia para que Graciliano concluísse o livro. “De vez em quando [Rachel] dizia-me desaforos por não me resolver a meter a cara no Angústia, que ela acha melhor que os outros dois. Falta de entusiasmo. Sapequei uma folha ontem à noite, mas frio, bocejando.”

Escavando tempo em meio às suas obrigações na Instrução Pública, Graciliano engatou a marcha do romance, alternando momentos efusivos com dúvidas atrozes sobre a qualidade do trabalho. Em plena semana santa, parecia a mil. “Quinta-feira passei o dia numa excitação dos pecados”, contaria a Heloísa.

Terminei a sua carta às dez horas. Pois daí até meio-dia, e das quatro da tarde à uma da madrugada, escrevi com uma rapidez que me espantou. Nunca trabalhei assim, provavelmente um espírito me segurava a mão. A letra era minha, embora piorada por causa da pressa, mas é possível que aquilo fosse mesmo feitiçaria. Ou efeito de aguardente.

Passava os fins de semana em casa (mudara-se para a rua da Caridade, perto da praia de Pajuçara), recolhido como um monge. Só abria exceção para o bate-papo com Aurélio Buarque, nas tardes de domingo. Certa vez, o filólogo surpreendeu o amigo de cuecas, na azáfama de Angústia:

Eu olhava pelo buraco da fechadura da porta de entrada, que dava para um alpendre, onde usava ficar o escritor, sentando a uma mesa nua, na qual se via, entre outras coisas, um maço de cigarros Selma, uma garrafa de aguardente, não me lembro bem se também uma garrafa térmica ou um bule, com café. Com a cachaça e o fumo, era o café um de seus materiais de trabalho – quase tão indispensável quanto o papel, a pena, o tinteiro, o dicionário de Aulete e uma régua. [...] A régua servia-lhe para os cortes de palavras, frases, períodos inteiros considerados inúteis. Que Graciliano não se limitava a riscá-los à mão livre, não; era um minucioso trabalho de desenhista: aplicava a régua na parte correspondente ao extremo superior das letras, passava um traço; no extremo inferior, novo traço; depois, enchia de tinta, inutilizando-o, sereno, com vagar, acaso com volúpia, o espaço entre dois riscos.

Graciliano aludiu a essa devoção à literatura em carta a Heloísa, de 3 de abril de 1935, como se fosse uma doença da qual não conseguia se curar.

Somos uns animais diferentes dos outros, provavelmente inferiores aos outros, duma sensibilidade excessiva, duma vaidade imensa que nos afasta dos que não são doentes como nós. Mesmo os que são doentes, os degenerados que escrevem história fiada, nem sempre nos inspiram simpatia: é necessário que a doença que nos ataca atinja outros com igual intensidade para que vejamos nele um irmão e lhe mostremos as nossas chagas, isto é, os nossos manuscritos, as nossas misérias, que publicamos cauterizadas, alteradas em conformidade com a técnica.

Dada a opção definitiva pela atividade literária, não admitia retornar a Palmeira dos Índios, hipótese levantada na correspondência com a mulher:

Comprando algodão ou vendendo fazenda, construindo o terrapleno da lagoa ou entregando os diplomas às normalistas, hei de fazer sempre romances. Não dou para outra coisa. Ora, aqui há uns dois ou três indivíduos que falam comigo. Aí não há nenhum.

* * *

Sob o pano de fundo da Maceió da década de 1930, Angústia é o terceiro romance narrado na primeira pessoa. Frustrado e solitário, o protagonista Luís da Silva apaixona-se por Marina, sua vizinha, moça fútil que sonha em ascender socialmente através do casamento. Luís, funcionário público enredado na falta de perspectivas, pede-a em casamento, mas não realiza o seu desejo, porque Marina se deixa seduzir por Julião Tavares, homem de posses, dinheiro e posição social. O desesperado sentimento da derrota impele Luís da Silva a tramar o assassinato do rival, o que leva a cabo, estrangulando-o.

Na visão de Antonio Candido, trata-se do livro tecnicamente mais complexo de Graciliano: “Senhor dos recursos de descrição, diálogo e análise, emprega-os aqui num plano que transcende completamente o naturalismo, pois o mundo e as pessoas são uma espécie de realidade fantasmal, colorida pela disposição mórbida do narrador”.

Luís da Silva integra-se ao rol de personagens – João Valério, Paulo Honório e, mais tarde, Fabiano – através das quais Graciliano desenvolve uma das ideias-força de sua obra: a permanente atitude de resistência face ao destino e à ordem estabelecida. Resistência passiva, se circunscrita ao mundo interior, ou ativa, se pressupõe a busca da afirmação individual ou social. Observa o crítico português Fernando Cristóvão:

Todas as personagens que estão empenhadas nessa luta são rebeldes e pessimistas quanto à ordem estabelecida. O combate nada tem de heroico, e as personagens combatem sozinhas contra inimigos numerosos e de grande poder. Não há verdadeiras alianças, e os afrontamentos terminam em fuga para o anti-herói, sem o glorificante das “retiradas estratégicas”, até porque não há planos nem estratégia.

Ao lado da intenção recorrente de examinar o psiquismo humano, Graciliano capta a atmosfera exterior sombria da primeira metade da década de 1930, transformando a província em microcosmo dos conflitos que assolavam o Brasil e o mundo, com a ascensão do fascismo, a recessão brutal após a crise de 1929 e as contradições que marcavam a transição da sociedade semicolonial brasileira para a etapa capitalista.

Nesse quadro adverso, Luís da Silva espelha, em sua impotência trágica, a consciência do despreparo das massas para assegurar uma efetiva transformação social. Desconfia e descrê da ação coletiva para redirecionar o processo político, hegemonizado pela burguesia emergente em associação com as oligarquias remanescentes da República Velha e com os interesses internacionais. E por que as mudanças de fato não se processavam? Porque ainda inexistia no país, segundo Carlos Nelson Coutinho, uma classe burguesa orgânica que estivesse em condições de promover uma autêntica revolução democrática.

Graciliano problematiza assim a ideia de revolução, que desde 1930 permeava o imaginário coletivo. Quando Luís da Silva reflete sobre a via revolucionária, é catapultado pelo ceticismo. “História! Esta porcaria não endireita. Revolução no Brasil! Conversa! Quem vai fazer a revolução? Os operários? Espere por isso. Estão encolhidos, homem. Os camponeses votam no governo, gostam do vigário.” Como não reconhece à volta a perspectiva da libertação, o seu desequilíbrio interior distorce a realidade e o impele à obsessão do crime como saída para o impasse – o que nada mais é do que uma manifestação patológica de alienação e de conformismo.

Para arrancar alguma coisa sobre o andamento de Angústia, os amigos tinham de carregar pedras. Rachel de Queiroz o provocava dizendo que era o Flaubert brasileiro. Ele apenas sorria, enigmático. “A gente suspeitava as reações dele, porque raramente as externava”, sublinharia Rachel.

Talvez a pressão psicológica advinda do próprio romance – o filho Ricardo Ramos arriscaria dizer, décadas depois, que fora “o seu livro mais sofrido” – tenha levado Graciliano a exceder-se na bebida.

Certo dia, em um acesso alucinatório, jogou fora os originais. Foi um corre-corre dos diabos. Heloísa, que por feliz coincidência estava em Maceió, chamou Rachel, e as duas, feito loucas, saíram atrás dos papéis. Rememoraria Rachel:

Como diretor da Instrução Pública, ele era o mais consciencioso dos homens. Fora do trabalho, porém, estava bebendo além da conta. Angústia era movido a cachaça. Uma manhã, Heloísa, muito apreensiva, me chamou lá e fomos procurar os originais. Ele os havia jogado fora depois de uma noite especialmente angustiado. Afinal, achamos os papéis, bastante sujos, no meio de uma cesta com restos de frutas e legumes, no quintal. Limpamos os papéis e passamos uma descompostura muito grande nele. Com aquela cara antipática, não disse nada. No fundo, ele estava gozando o alarme que tinha provocado.

Os amigos se desforraram. José Lins do Rego – que costumava dizer que Graciliano escrevia com máquina de costura, pois tinha uma letra bem desenhada – ofereceu uma versão completamente diferente sobre o sumiço de Angústia. Segundo ele, Graciliano enrolara os originais em papel impermeável, escolhera no quintal uma lata bem limpa para depositar o livro, cobrindo-o com folhas. Depois, fizera um escarcéu. “Era uma molecagem do Zé Lins, o enfant terrible de nosso grupo, que nos divertia a todos. Graça ficava enfurecido quando ouvia essa história”, relembraria Rachel.

José Lins, logo depois transferido para o Rio de Janeiro, acabou sendo intermediário nos entendimentos entre Graciliano e o editor José Olympio para a publicação de Angústia. Vindo de São Paulo, José Olympio acabara de instalar no Rio a sua prestigiosa editora.

Como planejava lançar o romance ainda em 1935, aproveitando a projeção de Caetés e São Bernardo, José Olympio recorreu a Jorge Amado, que trabalhava no setor de publicidade da editora, pedindo-lhe que intercedesse para apressar a entrega dos originais. Jorge despacharia a carta para Maceió: “Botaremos no prelo imediatamente. Sairá logo. É verdade que você já acabou o livro? Se é, mande por avião. É para esse seu velho amigo escrever dizendo o que é o Angústia, contando sua vida e seus planos”.

Para um artesão como Graciliano, a exiguidade de prazo se constituía em barreira intransponível. José Olympio teve de esperar seis meses até que o romance lhe pousasse nas mãos. Curioso é que o capítulo final de Angústia – o solilóquio de Luís da Silva – saiu num vômito. Mais de dez páginas impressas, sem um parágrafo. Começou a trabalhar de manhã e entrou pela noite.

Em compensação, perdeu nada menos que 27 dias para concluir o capítulo em que Julião Tavares é assassinado por Luís da Silva. O crime repugnou o próprio autor, que confessaria tê-lo descrito à custa de excitantes – “o maço de cigarros ao alcance da mão, o café e a aguardente em cima do aparador”. Esse momento da escritura de Angústia ficou tão entranhado em Graciliano que, ao recordá-lo em Memórias do cárcere, transpôs para o papel até a paisagem que o circundava na época: “Rumor das ondas, do vento. Pela janela aberta entravam folhas secas, um sopro salgado; a enorme folhagem de um sapotizeiro escurecia o quintal”.

Durante a revisão do romance, Graciliano recebeu carta do tradutor argentino Benjamín de Garay, pedindo-lhe exemplares de Caetés e de Angústia. Garay vivera e trabalhara como jornalista no Rio e em São Paulo, conhecendo escritores brasileiros, com os quais se corresponderia ao regressar à Argentina. Em Buenos Aires, ele se dedicava à difusão de nossa literatura, traduzindo cerca de trinta livros, entre os quais Os sertões e Casa-grande e senzala. As resenhas sobre Caetés publicadas pelo Boletim de Ariel chamaram a sua atenção. Como lera uma nota sobre Angústia, imaginava que a obra já tivesse sido lançada; por isso solicitou um exemplar na carta datada de 18 de julho de 1935. Graciliano respondeu em 17 de agosto, enviando Caetés e São Bernardo, de que o argentino não ouvira falar.

Em cartas seguintes, Garay insistiu para que lhe remetesse algum conto, mas Graciliano esclareceria em 13 de dezembro:

Muito lhe agradeço a lembrança amável de publicar uma página minha nessa revista de trezentos mil exemplares. Mas é o diabo, seu Garay. Eu nunca escrevi contos, e nem sei se me seria possível, enchendo-me de boa vontade, arranjar uma história decente. Não lhe serviria um capítulo de romance? Estou agarrado com unhas e dentes ao meu Angústia...

Garay desejava mesmo um conto para publicar em jornal ou revista de Buenos Aires. Não restava a Graciliano outra alternativa senão desviar-se momentaneamente de Angústia para bolar uma história – o certo é que não perderia os pesos prometidos pelo argentino.

* * *

No explosivo ano de 1935, só os incautos colocavam a cabeça em paz no travesseiro. As tensões políticas, no Brasil e no mundo, exacerbavam-se. O setor industrial tornara-se o centro dinâmico da economia brasileira, ampliando o contingente de trabalhadores urbanos. O pacto com as elites costurado por Getulio Vargas assegurava a base de apoio para a expansão capitalista sob a égide de um Estado forte, mas impedia maior participação popular nas esferas decisórias. Por outro lado, as reivindicações sociais e trabalhistas ganhavam ímpeto com o surto de industrialização. No plano internacional, a escalada fulminante do fascismo na Europa contribuía para inquietar os espíritos.

A polarização ideológica entre esquerda e direita ficou claramente delimitada. A Ação Integralista Brasileira (AIB), fundada em 1933, e a Aliança Nacional Libertadora (ANL), criada em março de 1935, desenvolveram uma mobilização de massas sem precedentes no período republicano, pregando a urgente transformação social do país. As receitas eram absolutamente antagônicas. A AIB, pró-fascista e anticomunista, opunha-se à democracia liberal e defendia o modelo corporativo do Estado Novo português. A ANL propugnava a tática de frente popular, aglutinando comunistas, socialistas e liberais contra a maré fascista, o imperialismo e o latifúndio.

Os comunistas, que exerciam hegemonia dentro da ANL, acabavam de receber importantes adesões de ex-militares, à frente dos quais Luiz Carlos Prestes, escolhido presidente de honra da Aliança. O herói da Coluna ingressara no PCB por imposição de Moscou, depois de ter sua filiação vetada pelo Comitê Central, dominado por tendências ultraesquerdistas e obreiristas.Embalada por comícios e atos públicos que reuniam milhares de pessoas, a ANL não demorou a radicalizar suas posições, não só em confrontos de rua com os integralistas, mas no famoso manifesto à nação de Prestes, em 5 de julho de 1935. O “governo podre de Vargas” era definido como principal adversário dos aliancistas, que deveriam se preparar para o “assalto ao poder, que amadurece na consciência das grandes massas”.

Uma semana depois da divulgação do manifesto, Graciliano interrompeu os despachos na Instrução Pública, perplexo com a notícia de que Vargas, apoiado na nova Lei de Segurança Nacional (LSN), decretara o fechamento da ANL. Uma resposta incisiva e autoritária a Prestes e aos embates entre aliancistas e integralistas.

No Bar Central, a crise política tornou-se assunto obrigatório. O grupo de literatos era praticamente todo antifascista e antigetulista. Apenas três pessoas tinham vínculos com o comunismo: Alberto Passos Guimarães, secretário regional do PCB; Rachel de Queiroz havia rompido com o partido e se aproximado dos trotskistas, juntamente com seu marido, José Auto. Os demais, segundo Rachel, “eram quase todos cor-de-rosa, isto é, esquerdizantes que não chegavam a ser vermelhos”. Mas nem Alberto apoiava a luta armada contra Vargas, embora tivesse de acatar a linha oficial.

Graciliano encarava a ANL com um misto de simpatia pela mobilização antifascista e profundas reservas quanto à sua prática política, como relataria em Memórias do cárcere: “A Aliança Nacional Libertadora surgia, tinha uma vida efêmera em comícios, vacilava e apagava-se. Estaria essa política direita? Assaltavam-me dúvidas. Muito pequeno-burguês se inflamara, julgando a vitória assegurada, depois recuara”.

Ele desconfiava da coligação de interesses divergentes em uma frente única (“isso me parecia um jogo perigoso”) e não acreditava no êxito de uma rebelião para a tomada do poder. “Em geral, a revolução era olhada com medo ou indiferença. [...] Muitos anos seriam precisos para despertar essas massas enganadas, sonolentas.” Apontava deficiências no trabalho da ANL: “Organização precária. Agitação apenas, coisa superficial. Reuniões estorvadas pela polícia, folhas volantes, cartazes, inscrições em muros, pouco mais ou menos inúteis”.

Os comunistas, mesmo na clandestinidade, intensificavam a agitação nos quartéis, onde crescia a insatisfação da baixa oficialidade e dos soldados com o duro regime de trabalho e as constantes transferências por motivos políticos.

No segundo semestre de 1935, preocupado com o clima de enfrentamento, Graciliano escreveu a Heloísa: “A encrenca política está num beco sem saída: ninguém sabe como esta porcaria vai acabar. É melhor pensar em outra coisa. Enfim, tudo vai muito mal, no pior dos mundos possíveis. É preciso que o Alberto endireite isto”.

Por acaso sugeria que o comunismo pudesse endireitar o país? Vamos por partes. Não há dúvida de que, desde a Revolução de 1917, Graciliano fora mordido pelos ideais marxistas. Não só lera textos de Marx, Engels e Lenin em italiano e francês, como se integrara à utopia libertária despertada pela vaga bolchevique.

Em carta escrita em 1926 a Joaquim Pinto da Motta Lima Filho, comentando a súbita conversão do amigo ao marxismo, deixara entrever que, anos antes, tentara guiá-lo ao comunismo. “Mais interessante é te haveres tornado comunista, um comunista com Deus e almas do outro mundo. Ora aí está como a gente é. Antigamente, quando eu abria o livro de Karl Marx, tu tapavas os ouvidos, querias refugiar-te nos Fatos do espírito humano.

A despeito da influência de Eça de Queirós em seus primeiros escritos, Graciliano cultivava os clássicos russos – Dostoiévski, Tolstoi, Górki e Gógol. Seu conterrâneo, Brena Wanderley, lembraria que, em fins da década de 1920, ainda em Palmeira dos Índios, Graciliano não ocultava suas inclinações:

Certa vez, confessou-me a sua admiração pelo povo russo e pelo socialismo. Recomendou-me a leitura de Marx e depois Dostoiévski, que lia em francês. Muitas vezes criticava fortemente o governo. Era um revoltado com as injustiças que se cometiam em nosso país. Sofria com o drama dos nordestinos. Talvez fosse comunista no termo lato, mas antes de tudo amava o Brasil como bom patriota.

Nas Memórias, Graciliano explicitaria suas convicções naquela época em que o nazifascismo arrebanhava multidões: “Não sou de ideais, aborreço empolas. O que eu desejava era a morte do capitalismo, o fim da exploração. Ideal? De forma nenhuma. Coisa inevitável e presente: o caruncho roía esteios e vigas da propriedade”.

Apesar da inclinação pelo socialismo, ele não tinha qualquer vínculo com os comunistas, como afiançaria Rachel de Queiroz: “Era um homem com tendência igual à que se chama hoje de social-democrata. Colocava-se, como nós, contra os poderosos, contra o governo, contra a opressão. Talvez fosse até mais anarquista do que qualquer outra coisa”.

Alberto Passos Guimarães ratificaria:

As posições dele eram as de um liberal progressista. Não admitia um passo além disso. Suas ideias, em certos pontos, coincidiam com as nossas, mas ele não era comunista. Tinha opiniões próprias, independentes e bem elaboradas, mas não radicais ou revolucionárias. Não era homem de conversa fiada.

Se tivesse pensado em cooptá-lo, Alberto esbarraria em obstáculos dentro do próprio PCB. Os militantes da seção alagoana reproduziam o sectarismo que prevalecia no partido em escala nacional. Adeptos da luta armada e do grevismo levavam às últimas consequências a oposição aos governos Getulio Vargas e Osman Loureiro. Ora, Graciliano, como diretor da Instrução Pública, observava lealdade a Loureiro, cuja administração era tachada de “semi-integralista e reacionária” pelos comunistas.

E ainda restaria à frente de Alberto uma verdadeira Cordilheira dos Andes – o temperamento arredio do amigo. É o que lemos em Memórias do cárcere: “Desculpava-me a ideia de não pertencer a nenhuma organização, de ser inteiramente incapaz de realizar tarefas práticas. Impossível trabalhar em conjunto. As minhas armas, fracas e de papel, só podiam ser manejadas no isolamento”.

Um documento significativo sobre a visão de Graciliano nesse período é a carta enviada ao crítico Oscar Mendes, em 5 de abril de 1935. A pretexto de agradecer a resenha sobre São Bernardo publicada na Folha de Minas, discorreu sobre as relações entre literatura e política, criticando os novelistas russos modernos que transformavam “a literatura em cartaz, em instrumento de propaganda política”. Os ficcionistas brasileiros, a seu ver, também deveriam combater o proselitismo.

O que é certo é que não podemos, honestamente, apresentar cabras de eito, homens da bagaceira, discutindo reformas sociais. Em primeiro lugar, essa gente não se ocupa com semelhante assunto; depois, os nossos escritores, burgueses, não poderiam penetrar a alma dos trabalhadores rurais.

Ele se referiu ainda ao tema palpitante do momento: a possibilidade de uma revolução no Brasil. A sua análise é simultaneamente séria e irônica; aspira à transformação social, mas suspeita que, como escritor, não se adapte ao figurino revolucionário.

O senhor não quer nenhuma revolução. Eu desejo que as coisas mudem, embora me pareça que isto não me trará vantagem. Pergunto a mim mesmo que trabalho me dariam se o cataclismo chegasse agora. Não sendo operário, não poderia fabricar nenhum objeto decentemente. Faria um livro, com dificuldade, matutando, trocando palavras.

E completou, com o exagero peculiar: “Creio que a revolução social me levaria à fome e ao suicídio. Mas como, segundo o Evangelho, nem só de literatura vive o homem, é razoável que se procure o bem-estar dos outros trabalhadores”.

Contrariando a linha de frente popular, a Internacional Comunista (IC) aceitou a tática da luta armada no Brasil, baseada nos informes ufanistas sobre a viabilidade de um levante apresentados pelos delegados brasileiros no VIII Congresso. A IC endossou a visão golpista, mas, como enfatizaria Prestes, a responsabilidade pela rebelião desencadeada em 23 de novembro de 1935 fora da própria direção do PCB, iludida por avaliações voluntaristas e dissociadas da realidade concreta.

O movimento revolucionário irrompeu em Natal e dois dias depois em Recife, surpreendendo o comando do PCB. Em solidariedade, Prestes ordenou, na madrugada de 27 de novembro, a sublevação do 3o Regimento de Infantaria e da Escola de Aviação Militar, no Rio, logo sufocada. Em Natal, com apoio popular, os revoltosos administraram a cidade por quatro dias, sendo presos depois pelo Exército. Em Recife, houve até uma marcha do quartel do Socorro ao centro da cidade, afinal dissolvida pelas tropas governistas.

No fim de semana em que se precipitaram os fatos, Graciliano havia se trancado em casa para dar a versão final ao capítulo de Angústia em que Julião Tavares é morto. Enviara carta a Heloísa prometendo isolar-se do mundo:

Ignoro completamente o que se passa da porta do corredor para fora. Presumo que não houve nenhum terremoto. Pelo menos aqui seu Américo não me disse nada a este respeito. Mas se houve algum aqui na rua do Macena e não quiseram trazer-me uma notícia assim desagradável, espero tomar conhecimento do desastre na segunda-feira.

Enfim, não imaginava que o movimento pudesse ser desencadeado. Nos dias que o antecederam, estivera ocupadíssimo com a elaboração do orçamento da Instrução Pública para 1936, que previa dois terços dos recursos disponíveis para pagamento de pessoal e um terço para obras e aquisição de material escolar.

Osman Loureiro colocara a polícia de prontidão, mas os praças não precisaram sair dos quartéis, porque, em Alagoas, a repercussão do levante se limitou aos muros pichados por militantes comunistas conclamando o povo a aderir.O primeiro boletim do PCB local após o assalto ao poder em Natal era triunfalista: “O povo está absolutamente pronto para fazer o mesmo, não só no Rio Grande do Norte, mas em todo o Brasil!”.

Essa euforia, na verdade, escondia divergências internas no partido, a começar por Alberto Passos Guimarães, para quem a insurreição fora um erro político. Semanas antes, ele havia conversado com Graciliano e as posições coincidiram no sentido de que não havia condições objetivas para a eclosão de uma revolução. “Havia um ambiente favorável à esquerda, mas não para a tomada do poder”, pontuaria Passos Guimarães.

Como tínhamos visto, Graciliano temia pela sorte da ANL, tanto pelas falhas de organização como pela precipitação de certas facções. O fracasso confirmou suas apreensões. Em correspondência a Heloísa, de 14 de dezembro de 1935, comentou: “Não tenho lido jornais, ignoro a guerra dos pretos, a política, a trapalhada revolucionária e agora reacionária que há por aí além”.

Em Memórias do cárcere, ele se estenderia nas reflexões sobre o insucesso da ação armada:

Viera a derrota – e agora queria persuadir-me de que findara um episódio e a luta ia continuar. Certamente haveria mais precaução no desempenho do segundo ato. E aquele revés tinha sido conveniente, pois não existia probabilidade de se aguentar no Brasil uma revolução verdadeira. Se ela vencesse internamente, os nossos patrões do exterior fariam a intervenção. Uma escaramuça, portanto.

A repressão aos comunistas foi feroz. Com respaldo no Exército de Góis Monteiro e de Eurico Gaspar Dutra, Vargas decretou estado de sítio, suspendendo as garantias constitucionais. As perseguições se disseminaram por toda parte, superlotando as prisões com parlamentares, professores universitários, sindicalistas, militares, jornalistas, intelectuais e quem pudesse ser alcançado pela pecha de subversivo. Só em Recife foram para a cadeia 3 mil pessoas. No Rio, o navio Pedro I se transformou em prisão flutuante para abrigar os excedentes da Casa de Detenção. A Polícia Política institucionalizou a tortura em seus porões. O comunista alemão Harry Berger, que viera para o Brasil colaborar na preparação do levante, enlouqueceria com os maus-tratos sofridos.

Quem poderia se tranquilizar diante de um quadro aterrador como esse? Graciliano não participara nem da ANL nem da insurreição, mas se alarmava com a constatação de que tínhamos sido atirados ao mais selvagem dos regimes – uma ditadura de fato. O obscurantismo era tamanho que, no carnaval de 1936, as batalhas de confetes só foram permitidas nos clubes. Assim Graciliano descreveria nas Memórias o cenário repressivo:

Tudo se desarticulava, sombrio pessimismo anuviava as almas, tínhamos a impressão de viver numa bárbara colônia alemã. Pior: numa colônia italiana. Mussolini era um grande homem, e escritores nacionais celebravam nas folhas as virtudes do óleo de rícino. [...] Uma beatice exagerada queimava incenso defumando letras e artes corrompidas, e a crítica policial farejava quadros e poemas, entrava nas escolas, denunciava extremismos. [...] O Congresso apavorava-se, largava bambo as leis de arrocho..

Mas não se podia abater totalmente, porque precisava finalizar Angústia, mandar os contos para a Argentina e dar conta do expediente na Instrução Pública. Em meio a essa balbúrdia mental, desacertos com Heloísa azedavam-lhe o humor. Daí às explosões descontroladas seria um passo, como nesta carta à mulher:

Esperei-a sexta-feira e sábado. Álvaro Paes me disse que você viria sexta-feira. Imagine se tenho razão para estar assustado. Para lhe ser franco, devo dizer que acho tudo isso muito irregular. Estou quase a pensar que seria melhor uma separação definitiva. Que diabo faz você em Palmeira? É irritante. Estaria melhor na rua do Macena, com sua família. Seria mais decente. Assim como você quer, a coisa tem a aparência de abandono.

Os ciúmes de Heloísa o aborreciam, mas ele reconhecia que as dificuldades financeiras complicavam as coisas. Tinham de evitar gastos, não passeavam nem davam festas. Heloísa questionou esse célebre ciúme em uma entrevista ao Jornal do Brasil, em 15 de junho de 1984:

– O Grace é que era ciumento, mas ele não admitia. Dizia que era zelo de todos os homens, e que a ciumenta era eu. Mas eu não me achava.

Seja como for, os problemas conjugais seriam café pequeno perto das tormentas que se prenunciavam.