UM ESTRANHO NO NINHO
O pavilhão, em forma de U, era uma construção ampla, de dois andares, com cinquenta cubículos, onde se comprimiam cerca de duzentos presos envolvidos na insurreição, a maioria jovens militares. Dividiam os xadrezes com professores, médicos, jornalistas, advogados, sindicalistas, operários e funcionários públicos. Em uma cela dupla do pavimento superior, encontravam-se dez mulheres, entre elas Olga Benario, Beatriz Bandeira, Maria Werneck de Castro, Nise da Silveira, Eneida de Moraes, Elisa Ewert (com traumas mentais pelas torturas sofridas na Polícia Especial), Eugênia Álvaro Moreyra e Carmen Ghioldi.
Quando os prisioneiros do Manaus entraram no enorme salão do andar térreo, sujos, barbados e abatidos pela estafante viagem, foram apanhados de surpresa por uma ruidosa manifestação de boas-vindas. Passaram no meio de duas filas formadas por quarenta homens que, de punhos erguidos, cantaram o Hino Nacional, depois A Internacional e o Hino da Aliança Nacional Libertadora. O refrão deste último, superposto à melodia do Hino da Independência, era de arrepiar: “Aliança, Aliança/ Contra vinte ou contra mil!/ Mostremos nossa pujança/ Libertemos o Brasil!”. A Graciliano não passara despercebido que os presos do comitê de recepção vestiam pijamas ou apenas cuecas, e usavam tamancos.
Apesar da precariedade das condições carcerárias – comida intragável, celas apertadas, higiene sofrível –, os presos haviam conquistado franquias. Podiam circular, até sete horas da noite, pelo pátio central, batizado de Praça Vermelha. O Coletivo, eleito democraticamente, não só os representava junto à direção do presídio, como organizava protestos e greves de fome. Cabia a ele fazer a ponte com o mundo exterior, através das famílias, e distribuir doces, frutas, bolos e biscoitos que as visitas traziam. Promovia também cursos de matemática, filosofia, marxismo, línguas, história e alfabetização, ministrados por prisioneiros ilustres como Rodolfo Ghioldi, Agildo Barata, os professores Leônidas de Rezende, Hermes Lima, Castro Rebelo e Luís Carpenter Ferreira, este com oitenta anos, e o médico Valério Konder. “Era necessário que tivéssemos todas as horas ocupadas”, relembraria Eneida.
Uma solução engenhosa facilitava a comunicação entre a Praça Vermelha e as celas do segundo andar – inclusive a das mulheres. O “voador” era uma engrenagem semelhante à de um elevador, só que improvisada com linhas de crochê e carretéis transformados em roldanas. Bilhetes e exercícios dos cursos de marxismo ministrados por Ghioldi e Olga subiam e desciam discretamente entre os dois pavimentos.
Graciliano foi se ambientando com reserva e prudência. Conversava pouco, não se aproximava de grupos. “Contenho-me ao falar a desconhecidos, acho-os inacessíveis, distantes; qualquer opinião diversa das minhas choca-me em excesso; vejo nisso barreiras intransponíveis – e revelo-me suspeitoso e hostil. Devo ser desagradável, afasto as relações.”
Uma adaptação de hábitos: aprendeu a equilibrar-se nos tamancos e a comer só com colher – garfo e faca eram luxos. A comida, aliás, causava-lhe fastio, mas a engolia para arrefecer a fraqueza contraída no Manaus. Ao sacrifício de dormir em colchão estreito e duro, somavam-se as picadas dos percevejos que infestavam a detenção.
À noite, acostumou-se a ouvir a P. R. ANL, a Voz da Liberdade, a “estação de rádio” improvisada pelos presos. O locutor oficial da Rádio Libertadora era o jovem médico Manuel Venâncio Campos da Paz Júnior, voz possante que lia o script do dia. O início das “transmissões” obedecia a um ritual: primeiro, todos cantavam A Internacional e, depois, o hino da ANL.
A criatividade da Libertadora encantou Graciliano. “Não era apenas um divertimento arranjado com o fim de matar o tempo e elevar o ânimo dos presos: vieram notícias de jornais, comentários, acerbas críticas ao governo, trechos de livros, o Hino do Brasileiro Pobre, algumas canções patrióticas, sambas.”
O toque irreverente ficava por conta do jornalista Aparício Torelly, o Barão de Itararé, humorista de mão-cheia que dirigira o Jornal do Povo, empastelado pela polícia. Aporelly, como o chamavam, contava piadas satirizando a situação política do país. Só se referia, por exemplo, ao carrancudo general Góis Monteiro como “Gás Morteiro” e adorava compor paródias a músicas famosas como Cidade maravilhosa e O orvalho vem caindo.
Antes do toque de silêncio, a voz suave e doce de Beatriz Bandeira relaxava os espíritos, entoando canções francesas. Uma das preferidas era esta: “Não sei por quê/ Estás triste ao meu lado/ Sem nada dizer./ Sinto em mim o coração amargurado/ Na ilusão de um velho sonho reviver/ O silêncio que nos fala do passado”. Décadas depois, emocionada, Beatriz recordaria: “Durante bastante tempo não dei grande valor àquele meu hábito de cantar para os colegas de prisão. Hoje, guardada a distância crítica, posso entender melhor como a música tinha o poder mágico de união, de identificação. O cárcere ficava menos árido”.
Rodolfo Ghioldi, encarregado pelo Coletivo de saudar os revolucionários do Nordeste, foi um dos primeiros presos a espicaçar a curiosidade de Graciliano. De cueca, subiu alguns degraus da escada e arrancou aplausos e lágrimas ao proclamar, em um arrebatado discurso de trinta minutos, em sonoro castelhano, sua crença inabalável na vitória das forças democráticas contra o fascismo, aqui e no exterior.
Graciliano se tomou de verdadeiro espanto com a facilidade de expressão daquele homem franzino e carismático. E o procurou em sua cela para parabenizá-lo. Ghioldi, com ardor cívico, cumprira a tarefa confiada pelo Coletivo. Na verdade, não acreditava em uma só das palavras triunfalistas que pronunciara – ele sabia que Hitler, Mussolini, Franco e Salazar, bem como seus discípulos no governo brasileiro, ainda estavam longe de perder terreno. Mas cedera aos argumentos de que era preciso incutir ânimo nos companheiros. Por isso, mentiu quando perguntado por Graciliano se tinha convicção no que acabara de falar em público.
– Eu acredito em rigorosamente tudo o que falei para vocês.
Graciliano insistiu:
– Não sei exatamente qual é a sua história, mas eu sou do Nordeste e conheço bem o meu povo. E esse é um povo que está tão atrasado, tão embrutecido pela miséria, que creio que não poderá fazer a revolução jamais.
Ghioldi tentou demovê-lo:
– O mujique russo era muito mais atrasado que o nordestino e, no entanto, fez uma revolução que vai mudar a face do mundo. A revolução não depende apenas do grau cultural de um povo. E sem esses camponeses russos, atrasados e embrutecidos, não teria existido a Revolução Russa.
Sem se convencer, Graciliano desviou o assunto.
* * *
Decorridas as primeiras semanas, Graciliano tratou de se mexer contra a depressão. Tomava aulas de inglês e rudimentos de russo, lia muito, jogava xadrez e pôquer, entabulava esquivas conversas literárias. Ficou assombrado com a rapidez com que o russo naturalizado brasileiro Rafael Kamprad, o Sérgio, entendido em filosofia e matemática, lia o que lhe caísse às mãos, sem se ater a pormenores ou extravasar emoções.
“Isso me desagradava. São as minúcias que me prendem, fixo-me nelas, utilizo insignificâncias na demorada construção das minhas histórias. [...] Comovo-me em excesso, por natureza, e, por ofício, acho medonho alguém viver sem paixões.”
Já se podia ver Graciliano em pequenas rodas, ainda que calado e fumando. A primeira impressão que ele causara a Francisco Chermont, ligado à ANL e filho do combativo senador Abel Chermont, fora a de “um misantropo, quase hostil a qualquer convivência”. Mas o tempo se encarregaria de modificar aquele conceito. “Embora de temperamento retraído, Graciliano gostava de ouvir tudo o que lhe contávamos. Falava baixo e pausadamente. Nós o estimávamos por sua modéstia e compostura.”
Com Hermes Lima, a identificação foi imediata.
– O senhor, aqui? – reagiu Graciliano, ao ser apresentado ao professor, a quem conhecia de artigos na imprensa.
– Passei a noite nessa miséria só para satisfazer a vontade de saudá-lo.
Graciliano riu e, segundo Hermes, soltou um palavrão simpático que era bom começo de amizade. Daí em diante, os dois eram vistos sempre juntos. “Hermes Lima foi a pessoa mais civilizada que já vi”, diria. Admiração recíproca:
Graciliano aparentava asperezas de mandacaru e era, pessoalmente, seco de físico e de maneiras. Elas o defendiam da mistura, da promiscuidade, defendiam seu direito não tanto de ser só como de ser ele próprio. Precisava dar crédito, sentir afinidade, para vencer, de alguma sorte, o pudor de falar de si mesmo.
Talvez Hermes não imaginasse que, por trás do Graciliano introvertido, a vagar de pijama, silencioso, pelos corredores, estava um arguto observador da espécie humana confinada no Pavilhão dos Primários. Com olhos de lince, fixou personalidades e sensibilidades. Apreendeu, no mundo infame do presídio, dramas, aspirações, frustrações e destroços, ocultos ou visíveis. Como se fosse um rastreador da alma alheia, averiguou palavras e gestos, cotejou reações, dissimulações e verdades.
Nessa galeria de seres esculpidos por um artista exigente, perfeccionista, às vezes compreensivo e geralmente mordaz ou amargo, vão-se sucedendo contrastes morais, intelectuais e políticos, inclusive de próceres comunistas.
Rodolfo Ghioldi:
Era Rodolfo que nos amparava no desânimo. [...] Enquanto ele discorria, eu lhe examinava as gengivas, banguelas, os dentes escassos. E zangava-me. Estupidez invalidar uma criatura assim, matar uma inteligência. Fraco e doente, Rodolfo nos animava.
Agildo Barata:
Esquisita pessoa, Agildo. Minguado, mirrado. A voz fraca e a escassez de músculos tornavam-no impróprio ao comando. A sua força era interior. Dizia a palavra necessária, fazia o gesto preciso, na hora exata.
Antônio Maciel Bonfim, o Miranda, ex-secretário-geral do PCB acusado de delatar camaradas sem o menor escrúpulo:
Sabia dizer tolices com terrível exuberância. Se lhe faltava a expressão, afirmava a torto e a direito, desprezando o contexto, vago e empavonado: “Isto é muito importante”. Isso me incomodava e aborrecia. Pois aquele animal do interior, sertanejo baiano, estava assim vazio, não tinha nada para comunicar-nos além da importância cretina?
Aparício Torelly:
Tencionava compor a biografia do Barão de Itararé. [...] Correram semanas. Não se resolvia, porém, a iniciar a obra, coordenar as ironias abundantes que lhe fervilhavam no interior. Absorvia-se na improvisação, exibia fragmentos já lançados no hebdomadário. Impossível dedicar-se a tarefa longa, julguei.
Castro Rebelo:
Meia-idade, nariz semítico, falava martelando o pormenor e detestava conclusões apressadas. A erudição acompanhava-o nos casos mais simples.
Leônidas de Rezende:
Vivia retraído, murcho, deitado, a engordar, logros e desânimos ocultos debaixo da coberta; distinguiam-se apenas um olhar cansado e um sorriso fraco.
Eneida de Moraes:
Quem seria aquela mulher de fala dura e enérgica? [...] Quem seria a criatura feminina de pulmões tão rijos e garganta macha?
Referiu-se, com fina ironia, aos militares que participaram do levante no Rio e que, na cadeia, mantinham-se ajustados ao molde dos quartéis:
Tinham sido eliminados do Exército, mas ainda vestiam farda, guardavam hábitos da caserna; eram assíduos na ginástica, não se tinham eximido à hierarquia e à disciplina; deram-me a impressão de olhar para os paisanos com desdém, julgá-los fracos e imóveis; o espírito de casta ainda permanecia.
A Luiz Carlos Prestes, Graciliano reservou três páginas simpáticas, que oscilavam entre o ceticismo sobre a Coluna (ainda que destacando o mérito da rebeldia contra a ordem instituída) e o magnetismo pela “figura de apóstolo” que reconhecia no líder comunista encarcerado pela ditadura Vargas:
Eu não tinha opinião firme a respeito desse homem. Acompanhara-o de longe em 1924, informara-me da viagem romântica pelo interior, daquele grande sonho, aparentemente frustrado. Um sonho, decerto: nenhum excesso de otimismo nos faria ver na marcha heroica finalidade imediata. Era como se percebêssemos na sombra um deslizar de fantasma ou sonâmbulo. Mas essa estranha figura de apóstolo disponível tinha os olhos muito abertos, examinava cuidadosamente a vida miserável das nossas populações rurais, ignorada pelos estadistas capengas que nos dominavam. Defendia-se com vigor, atacava de rijo; um magote de vagabundos em farrapos alvoroçava o exército, obrigado a recorrer aos batalhões patrióticos de Floro Bartolomeu, ao civismo de Lampião. Que significava aquilo? Um protesto, nada mais. Se por milagre a Coluna alcançasse a vitória, seria um desastre, pois nem ela própria sabia o que desejava. Sabia é que estava tudo errado e era indispensável fazer qualquer coisa. [...] Depois de marchas e contramarchas fatigantes, o exílio, anos de trabalho áspero. E quando, num golpe feliz, vários antigos companheiros assaltaram o poder [Revolução de 1930] e quiseram suborná-lo, o estranho homem recusava o poleiro, declarara-se abertamente pela revolução.
Os nervos de Graciliano foram colocados à prova na estreia como membro do Coletivo. A contragosto aceitara a eleição, temendo não se ajustar a certos métodos de decisão. “Afirmativas enérgicas, lançadas por duas ou três pessoas, bastavam para fingir um julgamento coletivo.” Fora assim quando Bagé, um dos mais exaltados, praticamente impusera no grito uma greve de fome inconsequente. Ghioldi discordara da intempestiva proposta, mas se curvara à deliberação de uma maioria questionável.
Das cinco sugestões apresentadas por Graciliano à discussão, quatro foram derrubadas. O estivador Desidério, porta-voz da ala obreirista, desdenhou:
– Besteira. O companheiro é um burocrata e está querendo meter dificuldades no trabalho.
A ira recalcada por pouco não transbordou, mas preferiu a resistência passiva à contenda verbal. “Aceitei o revés como quem bebe um remédio amargo.” Não adiantaria revidar porque a lógica de Desidério era compensatória – a sua posição de superioridade no Coletivo descontava a inferioridade intelectual e social.
Em outra ocasião, o autocontrole não funcionou. Desde a chegada dos militares presos no navio Pedro I, o esquema das refeições mudara. Os faxineiros do presídio apenas traziam os caixões de comida, que passou a ser servida por alguém escolhido pelo Coletivo. Naquele dia, era o capitão Euclides de Oliveira, que nos tempos de caserna brindava os colegas com Bach e Mozart no violão. Na sua vez, Graciliano propôs a Euclides trocar uma banana e uma laranja por duas bananas, com o que não concordou o capitão. Ao vê-lo parado na fila, impedindo a passagem dos outros presos, Euclides perguntou:
– Que é que há?
– Estou esperando a sobremesa.
– Já dei.
– Perfeitamente. Deu, mas não concordou em trocá-la. Eu restituí, não se lembra?
– Já dei.
– O senhor está equivocado. Ora essa! – disse Graciliano, indignado. – O senhor julga que lhe venho furtar duas bananas? Que é isso?
Em meio ao alvoroço, Graciliano voltou à cela, onde, em um acesso de cólera, jogou o prato no chão. Outro preso, o capitão Walter Pompeu, recriminou-lhe a grosseria contra Euclides, sendo prontamente rechaçado:
– Ele é que foi grosseiro comigo.
Pompeu caiu na asneira de dizer:
– E depois ele é um capitão do Exército. Você devia pensar nisso.
Graciliano se ergueu tomado de ódio:
– Um capitão do Exército, sim, senhor. Devia ter pensado. Você também é capitão. Na sua presença ficamos de pé, firmes, em posição de sentido, fazendo a continência. Somos cabos. “Pronto, seu capitão!” É o que vocês desejam. Capitães. Gente horrorosa. Vocês são todos umas pestes.
* * *
Nesse instante, Euclides entrou no cubículo para desculpar-se pelo ocorrido, entregando-lhe as duas bananas. Surpreendido com o gesto, Graciliano assistiu impassível aos dois capitães retirarem-se após o incidente. “O meu juízo a respeito dos militares desmoronava-se, um sujeito de farda aplicara-me lição bem rude.”
Testemunha do episódio, o então tenente da Aviação Gay da Cunha consideraria circunstancial a animosidade para com os militares: “Nós, os tenentes e capitães presos, éramos muito jovens, tínhamos a metade da idade dele e a arrogância da juventude”. Apolônio de Carvalho, outro ex-tenente, concordaria com Gay: “Graciliano tinha o senso da dignidade, de autonomia e independência, mas também traços de militante. Claro, ele não podia aprovar a atitude dos militares, ainda mais que olhávamos os outros prisioneiros com o queixo erguido, prepotentes”.
* * *
Na primeira semana de maio de 1936, Heloísa de Medeiros Ramos deixou os filhos pequenos com o pai e a irmã Helena em Maceió e tomou um vapor para o Rio. Dois meses praticamente sem notícias de Graciliano. O único sinal de vida fora um bilhete enviado em 27 de março, que, antes de ser postado, passou, como de praxe, pelo crivo dos censores da Delegacia Especial de Segurança Política e Social. Nele, Graciliano falava sobre o dia a dia na prisão:
Heloísa: Até agora vou passando bem. Encontrei aqui excelentes companheiros. Somos 72 no pavilhão onde estou. Passamos o dia em liberdade. Hoje comecei a estudar russo. Já você vê que aqui temos professores. O Hora estuda alemão. Entre os livros existentes, encontrei um volume do Caetés, que foi lido por um bando de pessoas. Companhia ótima. Se tiver a sorte de me demorar aqui uns dois ou três meses, creio que aprenderei um pouco de russo para ler os romances de Dostoiévski. Nas horas vagas jogo xadrez ou leio a História de Portugal. Julgo que sou um dos mais ignorantes aqui. Pediram-me uma conferência sobre a literatura do Nordeste, mas não tenho coragem de fazê-la. As conferências aqui são feitas de improviso, algumas admiráveis. Tudo bem. As camas têm percevejos, mas ainda não os senti. Quanto ao mais, água abundante, alimentação regular, bastante luz, bastante ar. E boas conversas, o que é o melhor. Não lhe pergunto nada, porque as suas cartas não me seriam entregues. Abraços para você e para todos. Beijos nos pequenos.
O Rio de Janeiro foi uma aventura para Heloísa. Aos 26 anos, partira sozinha para uma grande cidade desconhecida, com um conto de réis na bolsa. O convívio com Graciliano havia mudado a cabeça dela, tornando-a uma mulher consciente politicamente. “Grace nunca dizia para eu pensar dessa ou daquela forma, pois tinha horror ao tom professoral. Recomendava-me a leitura de alguns livros ou então contava as coisas e esperava o efeito. Foi assim ao me explicar a Revolução Russa. Fui compreender Marx dessa forma.”
Logo ao desembarcar, Heloísa se hospedou no Hotel Catete, onde estava a madrinha de Helena, dirigindo-se em seguida ao complexo penitenciário da Frei Caneca para obter o cartão que lhe daria acesso ao Pavilhão dos Primários. As visitas eram restritas a um dia da semana, por apenas trinta minutos. Ansiosa por se comunicar com o marido, deu uma gorjeta a um guarda para entregar-lhe um envelope fechado.
Ao abri-lo, Graciliano se transtornou. Heloísa colocara dentro do envelope uma fotografia dos três filhos do casal. “Num assombro, olhei as figurinhas distanciadas por tantos sucessos imprevistos; devo ter ficado minutos sem nada entender, suspenso”, confessaria. “Num instante as crianças me apareceram vivas e fortes: tinham deixado a praia, a areia branca de Pajuçara, feito longa viagem, transposto diversas grades – e estavam no cubículo 35.”
Atrás da foto, Heloísa escrevera algumas linhas, informando que chegara ao Rio e iria visitá-lo. Em uma reação incompreensível, e por ele próprio definida como bestial, Graciliano exclamou:
– Que diabo vem fazer no Rio essa criatura? Que estupidez!
A presença da mulher no Rio abalou os alicerces de um homem compulsoriamente entregue à inércia. “Percebi no aviso a ameaça de aborrecimentos e complicações inevitáveis”, diria ele, com um pessimismo que logo se dissolveria como sal na água. O reencontro perturbava-o porque teria de encarar os embaraços causados por sua prisão à família e ao próprio casamento. “Medonho confessar isto: [na prisão] chegamos a temer a responsabilidade e o movimento.”
A realidade exterior, de repente, invadia o seu exíguo espaço existencial, reavivando um turbilhão de inquietações adormecidas. Problemas conjugais voltariam a aflorar? Como poderia sustentar a família com alguns mil-réis esgotando-se no bolso? Por que submeter Heloísa à dureza da vida no Rio e às hostilidades da burocracia policial? Como ser o mesmo homem se os seus desejos sexuais, inexplicavelmente, haviam desaparecido? “Achava-me inútil: não serviria para nada à criatura. Para nada, para nada. Repetia essa convicção obtusa”, afirmaria nas Memórias.
No dia da visita, as perturbações caíram por terra – mais uma evidência de que o ceticismo crônico não era para ser levado muito a sério. Desde cedo, contava os segundos na expectativa de revê-la. Ao ser chamado à secretaria, arrumou-se depressa e saiu em disparada pelo pátio, onde “os pardais se escondiam nas ramagens curtas e mofinas, educadas a tesoura”.
De longe, avistou Heloísa, sentada em um dos bancos largos, e sentiu o coração apertar ao vê-la chorando, exatamente como na despedida na estação da Great Western, em Maceió. O longo abraço de saudade arrancou lágrimas também de Luccarini, antigo auxiliar de Graciliano na Instrução Pública, que, em tratamento de saúde no Rio, decidira prestar-lhe solidariedade e a distância observava a cena.
Heloísa contou a Graciliano que, em 7 de março, enviara a Benjamín de Garay o conto “A testemunha”. Em uma carta a lápis, escrita no Forte das Cinco Pontas, recomendara à mulher que não esquecesse de providenciar a remessa. E até a primeira visita permanecera na dúvida se o conto seguira para Buenos Aires. “Permitiria o correio, obediente à censura, a exportação dessas letras? Era uma história repisada, com voltas infinitas em redor do mesmo ponto, literatura de peru.” Traduzido por Garay, “A testemunha” foi publicado em junho de 1936 em El Hogar.
* * *
Determinada a guerrear pela libertação do marido, Heloísa percorreu os Ministérios da Guerra e da Justiça, o Palácio do Catete e a Chefatura de Polícia em busca de dados sobre sua situação penal. Estupefata, comprovou a inexistência de qualquer acusação formal ou processo.
A mesma iniquidade, diga-se de passagem, o regime praticou contra os professores Hermes Lima, Castro Rebelo, Leônidas de Rezende e Luís Carpenter. Como Graciliano, foram privados da liberdade e escorraçados, sem responder sequer a um interrogatório. Em seu livro de memórias, Alzira Vargas do Amaral Peixoto, filha e auxiliar direta de Getulio Vargas, apresentou as razões apontadas pelo pai para comprometer-se com essa ignomínia. Vargas lhe teria dito: “Foi uma exigência dos chefes militares. Consideraram uma injustiça serem punidos os oficiais presos de armas na mão, enquanto os instigadores de tudo, os intelectuais que pregavam as ideias subversivas, continuavam em liberdade.”
As mulheres dos prisioneiros, organizadas em comitê, não esmoreceram na resistência ao arbítrio. Como elementos de ligação, levavam e traziam cartas e relatórios, estabeleciam contatos com parlamentares, personalidades e advogados, arrecadavam fundos, denunciavam os maus-tratos e apoiavam as famílias. “Eram tantas as tarefas que não sentia o tempo passar”, diria Heloísa.
Ela e Maria Barata, mulher de Agildo, costumavam levar manifestos com reivindicações ao deputado Café Filho, que os divulgava na Câmara. Convencida de que estava sendo seguida por policiais, Heloísa tomou cuidado para não descobrirem onde morava – na pensão não sabiam que era mulher de preso político. Pegava três conduções para ir do presídio ao Catete, procurando fazer itinerários diferentes.
As visitas semanais movimentavam o Pavilhão dos Primários. A ansiedade dos presos era tanta que muitos acordavam de madrugada para iniciar os preparativos. Os homens barbeavam-se com esmero, vestiam roupas limpas e engraxavam os sapatos. Na ala feminina, os cuidados com a aparência eram redobrados: maquiavam-se e perfumavam-se para receber os maridos e parentes. Os casais mal podiam se tocar, dada a estreita vigilância, mas aproveitavam o tempo escasso para trocar afetos e esperanças, falar dos filhos, repassar notícias e saborear um chocolate que fosse juntos.
Para agradar Graciliano, Heloísa ia sempre arrumada, cabelos penteados e unhas feitas. Os dois haviam se reconciliado plenamente – se é que algum dia tinham deixado de apostar que caminhariam juntos. Ela exultou ao informá-lo de que providenciara a remessa por via aérea dos originais de Angústia, por insistência do editor José Olympio. Ao ser preso em 3 de março, Graciliano havia finalizado o livro, mas não o despachara para o Rio, pois faltava conferir a cópia datilografada com os manuscritos. Preocupado com a possibilidade de a polícia revistar seus pertences, pedira à mulher que enterrasse os papéis no quintal da casa de sua irmã Otília – exatamente como ocorrera com Caetés em 1930.
Ao saber que Angústia estava na composição, Graciliano temperou a satisfação com pitadas de descrença. “A edição encalharia no depósito, a amarelar, roída pelos bichos. Não se venderiam cem exemplares.” Seu maior receio, porém, era de que o livro fosse apreendido, já que não passava de um “autor excomungado pelas normas vigentes”.
Mas procurou acalmar a preocupação, menosprezando o valor da obra. “Asilava-me numa esperança débil: a narrativa era medíocre, tão vagabunda que passaria facilmente despercebida. Os sujeitos da ordem não esbanjariam tempo com ela.” A apoquentá-lo também a impossibilidade de fazer uma revisão final, para “suprimir as repetições e os desconchavos”.
* * *
Em meados de junho, Heloísa cogitou viajar a Alagoas para rever os filhos. Graciliano estrilou:
– Se até agora não aconteceu nada com as crianças, é porque elas podem se aguentar sem você um pouco mais.
Ela não tardou a verificar o acerto de sua decisão de telegrafar ao pai comunicando que adiara o regresso. Em questão de dias, aumentaram os rumores de que vários presos da Casa de Detenção seriam levados para a Colônia Correcional Dois Rios, na Ilha Grande, litoral sul do estado do Rio de Janeiro.
O pânico tomou conta do Pavilhão dos Primários ao ser divulgada a lista de prisioneiros transferidos para a Ilha Grande. Nem Rodolfo Ghioldi se arriscou a fazer um discurso otimista: pronunciou duas ou três palavras de despedida. A Colônia Correcional era sinônimo de violências, torturas e até assassinatos. As celas se enchiam de medo a cada relação lida pelos guardas. “Quando a lista aparecia, chegava-me à grade, atento à leitura, esperando que me chamassem. Isto não se dava – e despedia-me dos homens em fila, a bagagem no chão, de banda, recolhia-me”, recordaria Graciliano.
Incluído na primeira leva, Francisco Chermont voltou da Ilha Grande uma semana depois. Parecia um farrapo humano, a ponto de não ser reconhecido. O seu relatório sobre os horrores da Colônia demoliu a todos. O pavilhão se apagou em silêncio lúgubre.
Certa noite, um guarda surgiu no corredor para anunciar, com enfado, mais remanejados para a Ilha Grande. Habituado àquela chorumela, Graciliano não se apavorava tanto como no início. Se tivesse de ir, já teria ido. Ledo engano. Ao ouvir seu nome entre os convocados, estremeceu. O guarda lhe exibiu a relação datilografada – era um dos primeiros citados. “Mas por que diabo me mandavam para aquele inferno?”, ainda se perguntaria.
Atarantado, arrumou a bagagem de qualquer jeito. As mãos frias e úmidas. Depois de se despedir dos companheiros nos cubículos, olhou em volta da Praça Vermelha e constatou que viajariam com ele os revolucionários de Natal. Mau agouro: o pesadelo do Manaus iria recomeçar?