O COMPLÔ DA REPARAÇÃO

O COMPLÔ DA REPARAÇÃO

A evolução da guerra influenciava decisivamente o quadro interno. Pressionado pela opinião pública após o afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães, Getulio Vargas mudou de lado, passando a apoiar os Aliados. Desde a entrada dos Estados Unidos no conflito, em 1941, Vargas afastara-se gradualmente do Eixo. A “política de boa vizinhança” do presidente Franklin Roosevelt colhia frutos em toda a América Latina. Aqui, o ditador não perdeu a chance de barganhar: em troca da instalação de bases na costa brasileira, os norte--americanos financiariam a montagem do nosso parque siderúrgico, fundamental à industrialização, e o reequipamento militar.

Do quartel da Polícia Especial onde estava enclausurado, Luiz Carlos Prestes recomendou aos democratas que cerrassem fileiras com o governo no esforço de guerra contra o fascismo. A maioria dos jornais tomou o partido dos países que combatiam o nazismo, rompendo a cadeia de silêncio até ali imposta pelo DIP. A gradual liberalização da imprensa não era fato isolado; a partir do segundo semestre de 1942, a correlação de forças no Palácio do Catete se alterou progressivamente. A linha-dura perdeu terreno com as exonerações do ministro da Justiça, Francisco Campos; do chefe de polícia, Filinto Müller; do chefe do Estado-Maior do Exército, general Góis Monteiro; e do diretor do DIP, Lourival Fontes.

A nova conjuntura, de certo modo, sancionava a aproximação da intelectualidade progressista com Vargas, mantidas, evidentemente, as divergências quanto à política interna. Jorge Amado, militante fiel do PCB, defendeu que escritores antifascistas atuassem nos organismos ligados à cultura, para aprofundar a resistência democrática.

A relativa distensão inspirou a homenagem prestada a Graciliano por ocasião de seu cinquentenário, em 27 de outubro de 1942. A comissão organizadora era integrada por Augusto Frederico Schmidt, Octavio Tarquínio de Sousa, Álvaro Lins, José Lins do Rego, José Olympio e Francisco de Assis Barbosa.

O jantar, realizado no restaurante Lido, em Copacabana, marcou época – cerca de cem dos mais expressivos intelectuais e artistas do país compareceram ou manifestaram adesão. “Foi uma maravilha aquela noite”, recordaria Joel Silveira. “Discursos, bebedeira até de madrugada. Você olhava em volta e só via grandes escritores.”

A festa tinha o deliberado propósito de desagravar Graciliano pelas humilhações sofridas na prisão. Para realçar esse caráter, os organizadores convidaram o ministro Gustavo Capanema a presidir a solenidade, durante a qual o romancista receberia da Sociedade Felipe de Oliveira o prêmio de 5 mil cruzeiros pelo conjunto de sua obra.

“Nós fizemos um complô para levar o Capanema, e ele topou na hora”, relembraria Francisco de Assis Barbosa.

Sendo um homem do Estado Novo, sua presença daria ao evento o sentido de reparação pelo que o regime havia feito contra esse grande escritor. Graciliano colaborava na revista Cultura Política, mas jamais abdicara de suas ideias. A rigor, ele não serviu ao Estado Novo, pois se manteve firme e coerente com tudo o que pensava.

Tímido até o último fio de cabelo, Graciliano ficou atarantado só de imaginar-se alvo de todos os olhares e comentários. Isso na aparência, porque por dentro esbanjava contentamento. Não fosse assim, teria recusado o dinheiro que os amigos lhe deram para comprar um impecável terno de casimira inglesa com o qual comparecereu à homenagem. A quantia arrecadada antecipadamente superara os gastos com o jantar, e a comissão organizadora julgara mais do que justo presenteá-lo.

A caminho do restaurante, Carlos Drummond de Andrade se encontrou no ônibus com o jornalista e escritor José César Borba. Tão recatado quanto Graciliano, Drummond arriscou um palpite sobre o comportamento do amigo no jantar:

– O Graciliano vai se sentir incomodado com o peso dessa demonstração pública de apreço por ele. Não é homem para essas coisas.

O metabolismo do velho Graça tinha mesmo de se alterar. Até o cardápio do jantar era para mexer com o seu coração: creme de aspargos à Caetés, filé de robalo à São Bernardo, peru à Angústia, torta de maçãs à Vidas secas, arroz e café.

Pouco dado a liberar emoções, Graciliano transparecia satisfação em cada sóbrio cumprimento. Rompia-se naquela noite a couraça de sisudez, como observaria José César Borba:

Cordial, satisfeito, conversando num pequeno grupo com alguns amigos, parecia esquecido de que era o homenageado. Ou até, intimamente, talvez duvidasse de tudo, inclusive da realização da homenagem: última esperança de um tímido. Depois do jantar, meia-noite, pôde outra vez se recolher a outro limitado número de amigos, e acalmar definitivamente o seu pudor das manifestações.

Coube a Augusto Frederico Schmidt o discurso de saudação. Linhas dignas de um grande poeta, que agradaram a gregos e troianos:

Pediram a um homem gordo que saudasse no seu cinquentenário a um homem seco. Pediram a um homem que tem pecado às vezes por falar que dissesse a um homem capaz de longos silêncios o quanto esse homem é admirado. Pediram-me que lhe traduzisse, meu caro Graciliano Ramos, a nossa compreensão pela sua figura e pela sua obra, a você que tem sido tão duramente incompreendido. Pediram-me que falasse em nome de muitos a um homem solitário e que a vida provou, não raro, amargamente. E aqui estou eu extremamente comovido, consciente de que não posso errar nesta missão que me confiaram.
É que esta noite não se repetirá, é uma noite única para a sua vida, Graciliano. É uma noite de reparação, é uma noite em que devemos trazer a você, que é um ser tão desconfiado, a convicção de que sua existência, que você considera tão melancolicamente, é a existência que se realizou plenamente, é a existência de um homem que venceu, que se afirmou, que soube crescer sozinho, graças à sua força, graças a essa natureza retorcida, áspera, inconformada e cheia de dignidade que é a sua natureza, graças mesmo a esses sofrimentos que a vida, sem economia, lhe proporcionou, graças às injustiças que madrugaram para você e o foram sempre seguindo, até essa injustiça suprema de lhe tirarem a liberdade sem motivo, por um período certamente fecundo para sua experiência de romancista.

No agradecimento, Graciliano começou fazendo blague:

Confessando honestamente haver contraído uma dívida insolúvel para com os escritores nacionais e estrangeiros (felizmente esta palavra hoje pouco significa), é prudente limitar-se a uma referência coletiva, dizer que estou assombrado e tentar, se isto for possível, se não justificar, pelo menos explicar esta reunião.

A maior parte do discurso dedicou a uma revisão espirituosa de sua trajetória, desde o momento em que foi “pescado no sertão de Alagoas” pela dupla Schmidt-Rômulo de Castro.

Seria melhor que eu tivesse continuado a envelhecer na cidadezinha poeirenta, jogando o xadrez e o gamão, tratando dos meus negócios miúdos, ouvindo as intermináveis arengas das calçadas, refugiando-me à tarde na igreja matriz, enorme, onde fiz dezenove capítulos de São Bernardo. Seria melhor. Infelizmente, não me foi possível orientar-me. Os acontecimentos forçaram-me a deslocações imprevistas.

Relatou as circunstâncias adversas que o envolveram desde que saiu preso de Maceió, “sem pagar passagem”, até ser trazido para o Rio, “num navio sem significância”. Na plateia, a expectativa era que aproveitasse a ocasião para desforrar-se do Estado Novo, mas ele apenas ironizou a cadeia.

Muitos inconvenientes. E algumas vantagens: não íamos ao cinema, não concorríamos para homenagens indébitas a valores improvisados, não nos aborrecíamos com aluguel de casa, enfim éramos forçados a cultivar a economia, a mais útil das virtudes agora. Não nos alimentávamos em demasia. Também não nos atrapalhávamos. Deram-nos um longo repouso, quase espiritual – e isto muito contribuiu para melhorar os nossos costumes.

Como o ator que se retira sorrateiramente de cena ao término do espetáculo, para não se expor indefeso aos aplausos, Graciliano finalizou sua fala atribuindo a homenagem à “existência de algumas figuras responsáveis por meus livros – Paulo Honório, Luís da Silva e Fabiano”. As últimas palavras:

Apenas fiz o que pude para exibi-los, sem deformá-los, narrando, talvez com excessivos pormenores, a desgraça irremediável que os açoita. E possível que eu tenha semelhança com eles e que haja, utilizando os recursos de uma arte capenga adquirida em Palmeira dos Índios, conseguido animá-los. Admitamos que artistas mais hábeis não pudessem apresentar direito essas personagens, que, estacionando em degraus vários da sociedade, têm de comum o sofrimento. Neste caso, aqui, reduzo-me à condição de aparelho registrador – e nisto não há mérito. Acertei? Se acertei, todo o constrangimento desaparecerá. Associo-me aos senhores numa demonstração de solidariedade a todos os infelizes que povoam a Terra.

Em março de 1943, a Editora Alba publicou Homenagem a Graciliano Ramos, coletânea dos discursos pronunciados no jantar e dos artigos saídos na imprensa por ocasião do cinquentenário. O volume se tornou uma relíquia, já que foram impressos apenas quinhentos exemplares. Além dos discursos de Schmidt e de Graciliano, incluía textos de Rodrigo Otávio Filho (em nome da Sociedade Felipe de Oliveira), Francisco de Assis Barbosa, Otto Maria Carpeaux, Laura Austregésilo, José Lins do Rego, Astrojildo Pereira, José César Borba, Guilherme Figueiredo, Osório Borba e Rubem Braga.

* * *

Embora fiel, Graciliano poderia ter sido um amante mais constante da literatura se não se defrontasse com uma rival: a escassez de tempo. Inspetor de ensino, revisor e cronista, ainda cumpria a obrigação de escrever contos avulsos (capítulos de Infância e do futuro livro infantil Histórias de Alexandre) para atender às despesas de casa.

Participou também do romance Brandão entre o mar e o amor, escrito a dez mãos. A ideia, de Aníbal Machado, ganhara de pronto a adesão de Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Lins do Rego. Oito mãos – faltavam as duas de Graciliano, que não pensou duas vezes em juntar-se à brincadeira.

O processo de elaboração seria curiosíssimo: um autor preparava o capítulo e passava-o a outro, que tinha de dar sequência à trama. “O problema é que cada um fazia o seu capítulo encrencando mais a história para o companheiro seguinte resolver”, recordaria Rachel. Quando chegou a vez dela – era a última –, o recurso foi matar todos os personagens, pois não havia mais nada a fazer.

Concluído em cinco semanas, o romance foi publicado inicialmente em capítulos pela revista Diretrizes, que lançou um concurso premiando os leitores que descobrissem o autor de cada capítulo. Ninguém descobriu, no capítulo “Mário”, a marca retilínea de Graciliano. A Livraria Martins, de São Paulo, publicou a obra posteriormente.

Ainda em 1942, Graciliano inscreveu no concurso de obras didáticas do MEC o texto A pequena história da República, que escrevera entre 1938 e 1940. Tratava-se de uma breve revisão crítica dos principais acontecimentos no Brasil entre 1889 e 1940, em tom de farsa e ópera bufa. No Estado Novo, aquele atrevimento poderia dar cadeia. Eis o balanço sobre a Revolução de 30: “Como seria possível fazer uma revolução sem programa? Derrubar para quê? Conversa fiada, tempo gasto à toa, perdas de vida e fazenda – e, no fim, conquistado o poder, ficarem todos olhando uns para os outros, indecisos”.

Como não queria arder nas chamas da inquisição, Graciliano arquivou o texto – inédito até 1960, quando a revista Senhor o divulgou. Talvez para consolá-lo, José Olympio lhe passou a incumbência de avaliar uma profusão de textos enviados à editora. Uma tarefa de esfolar: “É maçada. Recebo dezenas de originais. São principiantes, geralmente dos estados, que desejam, é claro, alguns elogios. Já me aconteceu receber, na mesma semana, originais do Piauí e de Goiás. Eu devia fazer como José Lins: afirmar sem leitura que tudo é magnífico”.

A figura austera e esquiva de Graciliano costumava frear o ímpeto de jovens escritores em busca de conselhos e opiniões abalizadas. Era comum o indivíduo ficar olhando da vitrina da livraria a confraria de intelectuais conversando toda tarde, sem coragem de empurrar a porta e chegar perto dos ídolos.

Corria a fama de um Graciliano ríspido e impaciente com os iniciantes. Não era bem assim. Quando notava que a pessoa era desprovida de talento, tratava de despachá-la logo, lacônico: “Muito bem. Continue”. Mas, se percebia potencialidades, permitia-se comentários e, em certos casos, chamava a si a responsabilidade de orientar o promissor literato.

Vários testemunhos são elucidativos a esse respeito, como o de Guilherme Figueiredo. Com o aval de Menotti Del Picchia, enviara de São Paulo a José Olympio os originais de seu primeiro romance, Trinta anos sem paisagem, baseado na experiência de repórter no Tribunal de Justiça, cobrindo um crime que abalara o país. Vindo ao Rio meses depois, Guilherme, a mando do editor, procurou Graciliano, que lera e recomendara o livro.

– Pensei que você fosse mais velho – disse Graciliano, fitando o jovem de 23 anos.

– Por que, mestre?

– Porque seu livro é de uma pessoa mais velha.

– Então é ruim assim?

– Não, não. É muito bom. Velha no sentido de uma experiência que eu não imaginava que você tivesse. O romance parece ter sido escrito por um bacharel criminalista.

Os dois conversaram o resto da tarde sobre literatura francesa, Graciliano espantado com os conhecimentos do rapaz sobre Balzac e Stendhal. “Descobri uma pessoa afável como nunca poderia imaginar”, afirmaria Guilherme.

Graças à acolhida de Graciliano, as estreias de Dalcídio Jurandir (com Chove nos campos de Cachoeira) e de Breno Acioly (com João Urso) não passaram despercebidas da crítica. E, se não fossem os seus puxões de orelha, a jornalista e escritora Yvonne Jean não se livraria dos defeitos de principiante:

Ele foi franco comigo, dizendo que meus primeiros artigos não prestavam, não valiam nada, eram muito mal escritos. Mas explicou por que, corrigiu, discutiu. Foi a primeira ajuda positiva que recebi do mundo das letras, porque, até então, cada vez que mostrava meus rabiscos a um entendido só ouvia que eram formidáveis, magníficos, esplêndidos.

Outro a ficar boquiaberto seria Gasparino Damata, ex-marinheiro, que escrevera um livro com impressões de uma viagem às Antilhas, encaminhado a Graciliano por um amigo comum. Damata nunca poderia supor que, ao visitá-lo na José Olympio, fosse reconhecido pelo nome:

Encontramo-nos depois no Bar Lallet e vi que ele lera os originais. Senti que o romancista queria falar; pediu duas cervejas, acendeu novo cigarro e em poucos minutos bebíamos satisfeitos – ele muito sorridente, sorriso ainda medido e economizado, mas contando piadas danadas sobre mulheres. Descobri que Graciliano, como todo bom e genuíno sertanejo, apenas com as pessoas que lhe agradavam abria-se todo, era uma criança. Daquele homem azedo, ríspido e amargurado que inventaram, nem a sombra!

Não apenas os iniciantes recorriam a ele. Eneida de Moraes, que secretamente incursionava pela ficção, pediu-lhe uma opinião sobre o conto “Guarda-chuva”: “O velho Graça encheu-me de entusiasmo”, recordaria ela. “Aconselhou-me tanto que o conto quase perturba a minha vida. Seu estímulo fez-me escrever outros, e ainda incluiu-me numa antologia de contistas brasileiros.”

Quem modelava os textos sem erros gramaticais exercia sobre ele poder de sedução. Foi o caso do pernambucano José Carlos Borges, vencedor do concurso de contos promovido pela revista Dom Casmurro em 1940. Graciliano não apenas lhe deu o voto, como prefaciou o livro Neblina:

O sr. José Carlos Borges não comete os deslizes em que são férteis os campeões da lei gramatical. Também não pratica os erros voluntários de certos cidadãos que, escrevendo sistematicamente às avessas, são puristas falhados, tentam forjar uma língua capenga e falsa.

Talvez o episódio mais significativo da série tenha sido o da escritora baiana Alina Paim. De passagem pelo Rio antes de viajar para o I Congresso dos Escritores, que se realizou em janeiro de 1945, em São Paulo, Alina lhe entregou um exemplar do primeiro romance, Estrada da liberdade. Só um ano depois voltaria a procurá-lo.

Graciliano a recriminou por ter sumido:

– Eu li seu livro, mas se passou um ano e eu não tenho na memória o que queria lhe dizer. Não se incomode. Vou ler o livro outra vez e lá para o fim da semana volte aqui.

No dia combinado, Alina entrou como uma bala na livraria para ouvir de Graciliano que o romance tinha naturalidade, enfocava os assuntos com coragem, mas se ressentia de maior domínio da técnica narrativa. Ele a incentivou a concluir o segundo livro, A sombra do patriarca, que se desenrolava em uma usina de cana do Nordeste. “Isso mesmo, fale de sua gente”, recomendaria.

Depois de lê-lo, Graciliano deu o veredicto:

– Olha, a primeira parte é fraca. Agora, a segunda parte é completamente outra. Você achou o seu caminho!

Devolveu os originais indicando onde Alina claudicara. “A qualidade essencial de quem escreve é a clareza, é dizer uma coisa que todos entendam da forma que você quis. Para escritor que é de ofício autodidata, isso custa anos, porque não está na gramática, nem em livro algum”, ensinou.

A terceira experiência emocionou Alina Paim. Graciliano marcou encontro às nove horas da manhã na estação dos bondes para Santa Teresa. Queria discutir o romance Simão Dias um dia inteiro, em um local tranquilo. “Deve estar uma calamidade para ele pedir um dia todo”, pensou ela.

Durante a viagem, para desespero de Alina, Graciliano permaneceu mudo. Quando chegaram ao ponto final, no Silvestre, foram para um restaurante, vazio àquela hora. Graciliano pediu algo para beber e advertiu o garçom para não ser mais importunado. Não suportando mais a ansiedade, ela perguntou:

– Como é, Graciliano?

Ele deu um tapa na pasta antes de sentenciar:

– Acho esse romance bom.

– E por que levou tanto tempo para dizer isso?

– Porque hoje você vai aprender coisas para o resto da vida.

Novamente o texto trazia correções gramaticais e pontos assinalados para discussão sobre a estrutura de cenas e personagens. Depois de horas de lição, que, segundo a romancista, nortearam para sempre a sua carreira, Graciliano observou:

– Eu acabo de lhe dar um presente. Você chegaria a tudo isso, mas levaria de seis a oito anos cometendo erros até ter o domínio completo do idioma. Eu acabo de lhe dar seis a oito anos de ganho de experiência.

Revisado o livro, a recompensa para Alina: ele aceitou assinar o prefácio de Simão Dias.

* * *

Esse cidadão apaixonado pelos desvãos das letras era refratário a expressar-se fora do papel. Ao longo da vida, não concedeu mais do que uma dezena de entrevistas. Quando procurado, recorria a alguma manobra diversionista: “Mas por que eu? Não tenho nada para dizer...”.

Francisco de Assis Barbosa foi um dos jornalistas que conseguiu quebrar a sua resistência em meados de 1942. Em seu livro Achados ao vento, relatou a experiência:

Homem de poucas palavras, Graciliano Ramos é um problema para o repórter que se propõe a biografá-lo. O autor de São Bernardo nada tem de expansivo. Ainda que amabilíssimo, encolhe-se todo diante do jornalista. Tem medo, penso eu, de parecer herói a fornecer dados para a posteridade. Nada de poses. Nada de convencionalismos.

Assis Barbosa arrancou de Graciliano uma apreciação comparativa sobre estilos de criação:

Não sou como José Américo, que primeiro escreve na cabeça e depois transporta o livro para o papel. A obra de criação, para mim, é quase sempre imprevista. E espontânea. Refaço tudo, depois. Escrever dá muito trabalho. A gente muitas vezes não sabe o que vai fazer. Sai tudo diverso do que se imaginou. Lembro o caso do Zé Lins, por exemplo. Zé Lins pretendia contar a história de Usina. No fim do quarto ou quinto capítulo, enveredou sem querer por outro lado. Usina acabou sendo o quinto volume da série que o romancista, depois, intitulou “Ciclo da cana de açúcar”.

Dias antes de completar cinquenta anos, em 27 de outubro de 1942, Graciliano voltou a falar a Francisco de Assis Barbosa. Na reportagem publicada por Diretrizes, o jornalista descreveu as etapas do processo de elaboração dos textos, a partir dos originais que lhe foram mostrados pelo romancista:

Via de regra, Graciliano escreve em papel sem pautas, de um só golpe, ao calor da composição. A forma definitiva vem depois. Emenda muito. E até mesmo quando passa a limpo, com a sua letra explicativa de escrevente de cartório, corta muita coisa, tudo o que depois vai achando ruim. Às vezes, risca linhas inteiras. As palavras morrem sob o traço forte de tinta de uma igualdade assombrosa, como feito à régua.

Graças à paciência e à determinação do jovem jornalista Newton Rodrigues, os leitores da revista Renovação tiveram o privilégio de flagrar Graciliano discorrendo sobre os rumos da literatura brasileira. Deus conhece o sacrifício imposto a Newton para obter a entrevista. Graciliano tentou de tudo para desvencilhar-se do assédio. Mas a perícia do repórter prevaleceu, e ele acabou falando.

Publicado na edição de maio-junho de 1944, portanto no declínio do Estado Novo, o depoimento é precioso pelo que contém de apreciações críticas sobre as relações entre os romancistas ditos sociais e as massas. A entrevista vinha assinada por Ernesto Luiz Maia, pseudônimo usado por Newton para evitar que, no mesmo número, seu nome aparecesse em várias matérias.

O título não poderia ser mais apropriado para sintetizar a argumentação de Graciliano: “Os chamados romances sociais não atingiram as massas”. A pergunta de Newton fora fulminante: acreditava na existência de escritores populares no Brasil?

Não acredito, não. Acho que as massas, as camadas populares, não foram atingidas e que nossos escritores só alcançaram o pequeno-burguês. Por quê? Porque a massa é muito nebulosa, é difícil interpretá-la, saber do que ela gosta. Além disso, os escritores, se não são classe, estão em uma classe que não é, evidentemente, a operária. E do mesmo modo que não puderam penetrar no povo, não podem dizer o motivo pelo qual não conseguiram isso. Somente um inquérito entre o próprio povo poderia dizer dos motivos.

Segundo Graciliano, o único gênero literário popular era o folhetim, “que a massa vai aceitando como entorpecente”. E explicava: “Nas massas iletradas o romantismo é de mais fácil êxito, e Jorge Amado talvez as tenha tocado porque é principalmente um romântico”.

Indagado sobre como concebia um romance social, disparou:

Qualquer romance é social. Mesmo a literatura “torre de marfim” é trabalho social, porque só o fato de procurar afastar os outros problemas é luta social. [...] Um escritor pode escrever para a massa e o operário nem o ler. Eu já tentei isso quando escrevi São Bernardo, mas o povo não o leu e continuo sem saber por quê. De qualquer modo, o romance social terá que ser sentido e é preciso que o personagem seja o próprio autor.

Poderia um escritor manter-se alheio à guerra, ao desemprego e às crises econômicas? “Não há arte fora da vida, não acredito em romance estratosférico. Logo, não pode. O escritor está dentro de tudo que se passa, e se ele está assim, como poderia esquivar-se de influências?”

Quando uma obra se enclausura em temas subjetivos, o ficcionista, segundo Graciliano, tende a compor “criações mais ou menos arbitrárias, complicações psicológicas, às vezes um lirismo atordoante, espécie de morfina, poesia adocicada, música de palavras”.

Graciliano debruçava-se no cotidiano de escassez das classes subalternas em meio ao processo de consolidação capitalista em um país periférico. Para ele, as análises sobre o sistema social estariam comprometidas se deixassem de apreciar fatores econômicos centrais para a hegemonia burguesa entre nós. Recriminava os romancistas que não se detinham nas imbricações entre a dimensão política e a infraestrutura material. Mas não resvalava no discurso determinista do marxismo vulgar, que reduz as criações culturais a simples reflexos da base econômica. O distanciamento da realidade traduzia, no entender de Graciliano, um tipo de literatura “que só se ocupa de coisas agradáveis, não se molha em dias de inverno, e por isso ignora que há pessoas que não podem comprar capas de borracha, [...] acha que tudo está direito, que o Brasil é um mundo e que somos felizes”. Ao silenciar sobre a hegemonia de um modo de produção perverso, os escritores abriam mão de questionar a força das classes dominantes na fixação das pautas do poder e suas danosas consequências. No desengajamento intencional, transparece o desejo de ficar a distância medida da violência social e dos choques de interesses na arena política.

Graciliano ressaltava que o compromisso social não poderia obrigar o criador a atrelar-se a dogmas políticos e aos dirigismos ideológicos – posição que, como veremos adiante, sustentará na teoria e na prática, à custa de incompreensões.

Eu não admito literatura de elogio. Quando uma ala política domina inteiramente, a literatura não pode viver; pelo menos até que não haja mais necessidade de coagir, o que significa liberdade outra vez. O conformismo exclui a arte, que só pode vir da insatisfação. Felizmente para nós, porém, uma satisfação completa não virá nunca.

Se os editores de Renovação tivessem optado por publicar a entrevista na edição seguinte, as palavras de Graciliano não teriam chegado até nós. No dia 4 de julho de 1944, Newton Rodrigues recebeu um ofício, assinado pelo diretor do DIP, Amílcar Dutra de Menezes, informando laconicamente que fora suspenso o registro da publicação, o que a impedia de continuar circulando. O número 3 já estava composto na gráfica. No mesmo despacho, o DIP fechava as revistas Diretrizes, O Mundo Médico e – pasmem – O Mensageiro de Nossa Senhora Menina.

* * *

Em meados de 1943, os Ramos se instalaram em um apartamento na rua Conde de Bonfim, 752, na Tijuca. Heloísa providenciou tudo, já que Graciliano não suportava os atropelos de mudanças. Saía cedo de casa, depois de trancar sua papelada, e só voltava à noitinha, contando que sua escrivaninha estivesse no lugar adequado e os livros em ordem. Dessa vez, chegou ao requinte de só conhecer a casa depois de tudo consumado – e por pouco não se perdeu na Tijuca. Heloísa recordaria:

Precisei ensinar a ele como chegar ao novo endereço. Ele anotou tudo no maço de cigarros Selma. Mas, como era muito distraído, expliquei umas três vezes que ele deveria tomar o bonde Muda – o único que tinha quatro letras, e lhe mostrava os dedos da mão –, no sentido contrário daquele que costumava tomar. Não é que ele jogou o maço do cigarro fora, e lá se foi o endereço! Como eu já previa, falei para as meninas irem passear perto da parada do bonde, de tarde, assim elas trariam o pai direitinho. Grace acertou o bonde, desceu no ponto final, só que não sabia o endereço novo. A minha intuição dera certo, e as meninas lhe mostraram o caminho de casa.

O apartamento era praticamente do mesmo tamanho do da Lagoa (sala e dois quartos, em um prédio de três pavimentos com quatro unidades por andar). Uma vantagem – dava para um quintal onde havia árvores e um pequeno lago povoado por gansos – e uma desvantagem – a escrivaninha não coube no quarto do casal e ficou em uma saleta anexa à sala de jantar.

A primeira boa notícia do ano era a vinda, em caráter definitivo, de Ricardo para o Rio, depois de concluído o ginásio em Maceió. O filho descobriu em Graciliano não o pai autoritário de que lhe falavam os irmãos Márcio, Júnio e Múcio, mas um homem liberal.

O teste inicial foi com cigarros. O adolescente Ricardo fumava escondido, com pavor de que Graciliano o pegasse com os dedos sujos de nicotina e o hálito empesteado. Certo dia, ao acender o cigarro, o pai lhe perguntou de estalo:

– Rapaz, você fuma? Que dizer?

– Fumo.

– Então, tome aqui um.

Em pouco tempo, a cabeça de Ricardo mudaria. Por influência do avô, ele trazia, ao chegar ao Rio, um distintivo da Congregação Mariana na lapela do paletó.

– Não vou falar nada. Quando ele quiser, tira aquilo – comentou Graciliano com Heloísa.

Convivendo em uma atmosfera completamente diferente da de Maceió, Ricardo um dia apareceu sem o distintivo, alegando que o havia perdido.

Com o passar dos anos, o traço marcante da relação entre pai e filho foi a infinita capacidade de discutir, às vezes asperamente, sobre tudo e todos:

Conversávamos muito e o velho tinha o hábito de me provocar adoidado. Discutíamos até dizer chega. Foi então que percebi que a história do exame de admissão, quando de minha estada no Rio em 1939, fora na verdade uma provocação dele comigo, e que ele só levara adiante porque eu aceitara. Eu era rebelde, e ele, provocador. Depois, ele diria à minha mãe que fazia isso para ver até onde eu ia nas discussões... Até eu perceber que era provocação, demorei um bocado. Acontece que havia um fundo didático em quase tudo aquilo que discutia comigo. Uma vez, cheguei na estante para pegar um livro, mas vi que era em francês e desisti. “Mas por que, rapaz?”, perguntou-me. E eu: “Isso vai me dar um trabalho danado, tem que traduzir com dicionário... Vou ler em português mesmo”. Aí o velho não se conformou: “Não faz isso, pelo amor de Deus! Lê em francês, homem, faz um esforço para aprender a língua!”. Resolvi ler e foi ótimo.

Ricardo se espantou não apenas com a disciplina férrea do pai para escrever, como também com a baixa produção diária. Ao fim da tarefa, não mais que dez ou vinte linhas escritas. Depois de datilografadas, davam no máximo uma página. Os manuscritos denunciavam cortes e emendas, e, segundo o filho, “era difícil, à primeira vista, encontrar nexo naquele emaranhado”. Mas o costume de observar os papéis o convenceu de que ali havia uma lógica, um padrão, uma simetria: “Os textos eram sempre encurtados, nunca aumentados, pois o velho tendia ao concentrado, e não ao derrame”.

Uma vez, Graciliano usou uma metáfora para explicar a Joel Silveira como um escritor deve proceder para cortar gorduras no discurso:

– Você faz como as lavadeiras de Alagoas. Elas pegam a roupa suja para a primeira lavada, espremem, ensaboam, batem na pedra, dão outra lavada, passam anil, espremem novamente, botam no sol para secar, depois apertam. Quando não sai mais uma gota, aí você publica.

Heloísa chegou a brincar com o marido por causa dessa ideia fixa de enxugar o texto. Vendo-o ceifar palavras na revisão da segunda edição de Vidas secas, afirmou:

– Grace, você corta tanto que, na quinta edição, o livro vai sair em branco...

Certas manias do pai intrigavam Ricardo, como lavar as mãos dezenas de vezes, passar um pano por dentro dos sapatos antes de calçá-los, fumar quatro maços de cigarros ao dia e soltar palavrões em ocasiões impróprias. O pai nunca saía à rua de camisa esporte, só de terno e gravata, colarinho engomado. Tinha bom gosto, mas escolhia invariavelmente cores e padrões iguais. No tempo em que eram namorados, Heloísa pensava que ele usava as mesmas roupas. Depois de casados, ela descobriu 12 ternos, 24 camisas e vários pares de sapatos – todos muito parecidos.

Os ouvidos de Ricardo vieram para o Rio repletos de histórias sobre o mau humor de Graciliano. E, logo, fez o seu juízo a respeito:

Não digo que não fosse aqui ou acolá meio intempestivo, muito eventualmente rude. Com mulher era de uma delicadeza extrema, a ponto de beijar as mãos e ceder lugar no bonde. Agora, qualquer coisa que o irritasse ele descia os pés. Fora disso, conversava amigavelmente, era muito de contar histórias, de lembrar coisas, aquele tipo de conversa de coronel do interior.