UM MARXISTA NO MOSTEIRO
Já não era sem tempo: Graciliano selou as pazes com os leitores publicando, em menos de doze meses, três livros. Histórias de Alexandre (contos infantis) saiu em 1944; Dois dedos (coletânea de contos em edição de luxo); e Infância (memórias), em 1945.
Em Histórias de Alexandre, amarrou as narrativas em torno de duas personagens: Alexandre, “um homem cheio de conversas, meio caçador e meio vaqueiro”, e sua mulher, Cesária, “que fazia rendas e adivinhava os pensamentos do marido”. Alexandre, contador de lorotas, invoca a cumplicidade de Cesária para “autenticá-las”.
A originalidade reside na recuperação de histórias transmitidas, de geração em geração, pela memória oral do folclore nordestino. Crenças, costumes e mitos relatados em linguagem cativante, sem o rebuscamento tolo dos livros do velho barão de Macaúbas, que tanto irritavam Graciliano no grupo escolar de Viçosa.
Note-se a estreita conexão de Histórias de Alexandre com a fabulação regionalista presente em Vidas secas, em Infância e nas crônicas de Cultura Política. Graciliano extrai da memória a sua matéria ficcional, resgatando tanto suas raízes existenciais quanto um conjunto de tradições e heranças místicas do Nordeste. Como se ele, “emigrado à força” para o Rio, estivesse polindo a sua identidade cultural através do testemunho direto.
Infância inundou os suplementos literários de resenhas críticas. A revelação do tempestuoso e repressivo universo familiar e social que moldara a essência da personalidade de Graciliano causou forte impacto.
“Não sei de retrato mais azedo, mais áspero. As feridas do açoite infantil jamais se fecham, não cicatrizam”, resumiu Otto Lara Resende. “O autor é, às vezes, tão duro na transcrição da verdade que traumatiza a nossa sensibilidade. Este livro foi escrito com uma coragem quase desumana, além de inoculado dos venenos sutis do ressentimento”, pontuou Peregrino Júnior.
Em duas antológicas reflexões, Álvaro Lins e Octavio Tarquínio de Sousa destrincharam a complexidade das memórias. Segundo Álvaro Lins, “porque não se sentiu amado, nem teve uma infância de ternuras e afagos, o sr. Graciliano Ramos reagiu com sentimentos de indiferença e desprezo em face de toda a humanidade”. E prosseguiu: “Ele não escreveu estas memórias apenas por motivos literários, mas para se libertar dessas lembranças opressivas e torturantes. Escreveu a história de sua infância porque a detesta. Não se achou, por isso, obrigado a complacências para com os outros”.
Depois de julgar o livro “o mais bem escrito” da obra de Graciliano e de salientar a comoção diante do “espetáculo da infância desgraçada”, Álvaro Lins afirmou que “a prosa é moderna, no seu aspecto desnudado, no vocabulário, no gosto das palavras e das construções sintáticas, e é clássica pela correção e pelo tom como que marmorizado das frases”.
Para Octavio Tarquínio, “nos livros de Graciliano Ramos, o homem que ele foi está presente e nenhum ajudará melhor a restituí-lo à pureza de suas linhas estruturais do que Infância, obra-prima de um grande mestre”. Que denuncia “o drama de um menino cujo olhar já luzia a visão do futuro escritor – o olhar agudo e frio a que não escaparia, sob as mais enganadoras aparências, a realidade triste e dolorosa”.
Em uma dedicatória a Josué Montello, Graciliano definiu Infância como um “livro terrivelmente encrencado”. Encrencado em todos os níveis: demorara quase seis anos para exorcizar fantasmas e expurgar mágoas, usufruindo da liberdade ficcional.
E a família, como reagiu à exposição virtual de seus fragmentos? Segundo Ricardo Ramos, chegaram a Graciliano “ecos magoados” de parentes inconformados com os juízos sobre os pais.
O velho se espantou, se irritou vendo que não o entendiam. Como não foi uma coisa direta, não pedia nem teve resposta. Ora, se ele próprio aparece no livro como um menino troncho e esquisito, como poderia abrandar o perfil dos demais? Seria um desconchavo. Ele nos falou muito a respeito disso. E perguntava-se: “Eu tenho lá problema com ninguém?”. Creio que não tinha mesmo, e até dizia, quando estava de bom humor, que ia dormir para sonhar com a mãe dele.
Em meio às objeções, deve ter sido confortador para Graciliano receber a carta enviada por Carlos Drummond de Andrade, magnetizado pelo que acabara de ler.
Meu caro e grande Graciliano:
Até o mais espinhoso dos amigos – ou dos críticos – reconhecerá em Infância a obra de arte que ela realmente é. Nada lhe falta, nada lhe sobra. A palavra justa exprimindo sempre uma realidade psicológica ou ambiente; a notação precisa, a dosagem sábia, a economia absoluta de efeitos, notações, recursos. Enfim, um desses livros que a gente desejaria ter tutano para escrever, e que lê com uma admiração misturada de raiva pelo danado que conseguiu compô-la: raiva que é o maior louvor, tanto vem ela impregnada de entusiasmo e prazer.
Obrigado pelo exemplar que você me deu. Um grande presente. E um abraço solidário.
* * *
Em 25 de janeiro de 1946, Graciliano começou efetivamente a redigir Memórias do cárcere. Tantas vezes adiado, o projeto chegara a ser ensaiado em 1937. Em carta a Benjamín de Garay, de 13 de maio daquele ano, informava:
Tenho a ideia de fazer uns livros a respeito da prisão, mas está claro que não escreverei agora. Quero ver se, antes de entregá-los ao editor, consigo publicá-los num jornal estrangeiro. Vou esperar alguns meses, alguns anos, não sei. Tenho um bom assunto, uns tipos curiosos, e acho-me na obrigação de aproveitar o material que o governo me ofereceu.
No começo de setembro, arrolou, em oito tiras de papel, os nomes de 190 personagens. No alto de cada tira, indicou a procedência deles ou os lugares onde estiveram presos (Rio Grande do Norte, Alagoas, Colônia Correcional, Pavilhão dos Primários, Sala da Capela). Em papel de carta, datado de 16 de setembro de 1937, escreveu o texto intitulado “Primeiras notícias da Colônia”, abandonado na quarta página. E ainda esboçou a versão inicial dos três primeiros capítulos do volume 1, em onze folhas, escritas na frente e no verso.
O trabalho encalhou nesse ponto, por fatores extraliterários. Graciliano tinha consciência de que o Estado Novo vedaria a publicação do livro. Por outro lado, a manutenção da família o obrigava a concentrar-se nas colaborações para jornais e revistas. Ora, um livro com a complexidade de Cadeia – como a princípio se chamaria – exigia uma disponibilidade impensável naqueles tempos de sufoco.
No ambiente propício da redemocratização, Graciliano se reanimou para a empreitada. Em outubro de 1945, emitiu os primeiros sinais de fumaça, em entrevista à Vamos Ler:
No livro que tenciono escrever um dia, falarei sobre coisas que não puderam ser ventiladas ainda... Os casos ordinários da minha vida têm pouca importância, mas as criaturas vistas à sombra daquelas paredes surgem muito grandes hoje, até os malandros, os vagabundos. Paraíba, um vigarista que me ensinou o pulo do nove; Gaúcho, um ladrão que todas as noites me explicava em gíria particularidades do seu ofício.
Externou a Alina Paim dúvidas quanto ao fôlego para a tarefa.
– Você está escrevendo um novo livro? – indagou ela.
– Tenho as memórias da prisão. Estou pensando muito, recordando, tomando algumas notas, e devo começar logo. Mas não sei se tenho vida para esse livro.
– Por quê?
– Infância eu levei sete anos escrevendo. O que tenho sobre a cadeia deve dar para quatro volumes. Quatro vezes sete, 28. Quer dizer, vou precisar aí de uns 28 anos para terminar o livro. Será que tenho isso de vida?
Ainda em 1945, chegou a escrever três capítulos, sem referir-se a pessoas da família ou conhecidos de Alagoas. Segundo Heloísa Ramos, não seria dessa vez que o projeto deslancharia:
Grace não estava certo das soluções a utilizar no livro, e a leitura desse primeiro esboço não lhe trouxe entusiasmo. Também me parece que as coisas ficavam um pouco no ar. Ele tinha escrúpulos em mencionar pessoas vivas. Pouco a pouco, lembrando fatos antigos, passou a achar natural trazer a público pequenos casos pessoais.
As condições objetivas para tocar o projeto foram viabilizadas por José Olympio. Com o fechamento de Cultura Política, a Graciliano restaram o emprego de inspetor de ensino, crônicas e contos esparsos na imprensa e os minguados direitos autorais. Em abril de 1945, acertou com o editor um contrato pelo qual receberia, mensalmente, 2 mil cruzeiros, durante um ano, pelos direitos das primeiras edições de Infância e Insônia (volume de contos), das terceiras de Angústia e São Bernardo e das segundas de Vidas secas e Caetés.
No caso de Memórias do cárcere, José Olympio adiantou, a partir de julho de 1947, mil cruzeiros mensais, pelo prazo de três anos, assumindo Graciliano o compromisso de entregar três capítulos por mês.
Embora compensador, o acordo não bastava para suprir o seu orçamento. Por isso, aceitou encargos paralelos, como um contrato com a Editora da Casa do Estudante do Brasil para organizar uma antologia de contos brasileiros, ao preço de 8 mil cruzeiros em dez prestações mensais de oitocentos cruzeiros. Sem contar trabalhos avulsos em jornais, como A Tribuna de Santos, que lhe pagou, em 1946, 3 mil cruzeiros por doze artigos e contos. Restava-lhe a esperança de pingarem cruzeiros por conta de eventuais traduções de seus romances no exterior (a primeira delas fora a de Angústia, no Uruguai, em 1944).
Somando tudo isso, chegaremos a uma quantia bastante modesta, muito aquém do que merecia um escritor de seu porte. Nada que pudesse assegurar a bonança, pois eram serviços de fruição temporária.
Durante os seis anos dedicados a Memórias do cárcere, Graciliano se comportou como um soldado da escrita. Quase diariamente estava frente a frente com a exumação das vivências dolorosas nos soturnos xadrezes da ditadura. Isso não significa que pilhas de manuscritos jorrassem de sua escrivaninha. O processo de composição seria mais vagaroso do que o habitual, porque importava em vasculhar previamente o baú de lembranças atordoantes. E havia outro elemento perturbador, pois lidava com personagens reais que poderiam se descontentar com as suas impressões. Sentia-se como um macaco em casa de louças.
Às vezes, os três capítulos mensais prometidos reduziam-se a dois ou até a um. Mas José Olympio jamais descontou um centavo da remuneração combinada. Percebendo o seu desânimo, Heloísa tratou de incentivá-lo.
Grace estava sem escrever há semanas. Eu achava que era preguiça e procurava motivá-lo. Ele me respondia: “A única pessoa que acredita na minha literatura é você”. Numa conversa que tivemos, prometeu-me que escreveria no mínimo duzentas palavras por dia. Não é que contava até os artigos, as vírgulas e os travessões para chegar à soma certa? Às vezes, fingia que estava lendo e, por trás do livro, ficava olhando o jeito dele. Era um tal de apontar o lápis a todo momento... De vez em quando, ele percebia que estava sendo olhado e se desculpava: “São esses seus lápis que não prestam”. Em compensação, quando escrevia mesmo, a gente até ouvia o barulho que a pena ia fazendo no papel. Foi assim que escreveu Memórias do cárcere, entre vontade e obrigação.
Qualquer atraso de monta poderia ser fatal. O aluguel era pago com o dinheiro recebido da José Olympio. Quando as dificuldades apertavam, Graciliano recorria ao expediente de separar um capítulo para publicá-lo como conto.
O cronograma de Memórias do cárcere se alongou até o início da década de 1950, assim dividido: o primeiro volume, de 25 de janeiro de 1946 a 28 de maio de 1947; o segundo, de 29 de maio de 1947 a 12 de setembro de 1948; o terceiro, de 15 de setembro de 1948 a 6 de abril de 1950; o quarto, iniciado em 6 de abril de 1950 e interrompido em 1o de setembro de 1951, ficaria inacabado. O mais demorado, portanto, foi o terceiro – dezenove meses para esmiuçar a vida sub-humana na Colônia Correcional Dois Rios. Ao todo, de acordo com levantamento feito pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos, 237 personagens povoam as 681 páginas do livro.
Metódico, assim que concluía um capítulo, entregava-o para Heloísa datilografar na repartição em que agora trabalhava (o Serviço Nacional da Malária, depois Serviço de Endemias Rurais). Ela copiava fielmente os originais, inclusive as indicações de parágrafos e emendas. Poderia ter cedido à tentação de sugerir alterações em cenas nas quais aparece retratada de forma um tanto desfavorável (os ciúmes que incomodavam o marido, por exemplo). Mas, gostando ou não, respeitava o pensamento do autor até a mais singela vírgula.
As correções variavam de capítulo para capítulo. Às vezes, a premência de tempo falava mais alto e ele alterava pouco o texto para poder levá-lo no prazo a José Olympio. Perfeccionista, alimentava o desejo de, quem sabe, reescrever determinadas passagens.
Se 1945 fora um ano de turbulências políticas e de militância, 1946 parece ter sido um chamamento ao ofício literário. Além da labuta em Memórias do cárcere, Graciliano revisou Insônia, editado no ano seguinte pela José Olympio. Com pequenas supressões e acréscimos, Insônia reúne basicamente os contos incluídos em Histórias incompletas, tais como “Dois dedos”, “O relógio do hospital”, “Um ladrão”, “Paulo” e “Minsk”.
São treze contos, por vezes sarcásticos, sobre a vida literária, os escaninhos burocráticos, as relações conjugais, as recordações da infância e a luta política. Otto Maria Carpeaux assim os analisou: “Em relação às grandes obras de Graciliano, é trabalho muito mais modesto, mas nada desprezível, que caracteriza bem a sua atitude em face da vida, diurna e noturna. Nesses contos, é confundível sua voz amargurada com o travo das cinzas da ironia na boca”.
Ele terminou também a seleção dos contos para a Casa do Estudante do Brasil. Não fora nada fácil preparar a antologia em três volumes (um para o Norte-Nordeste, outro para o Sudeste e o último para o Centro-Oeste e o Sul). Nenhuma das academias de letras e pouquíssimos críticos se dispuseram a responder às suas cartas com pedidos de colaboração. Tivera de suar a camisa pesquisando jornais e revistas na Biblioteca Nacional.
A correspondência com Wilson Martins, crítico então radicado em Curitiba, dá-nos uma visão dos critérios adotados por Graciliano na elaboração dos volumes.
Quererá o senhor remeter-me o que lhe pareça mais aceitável no seu estado? Relendo papéis velhos, talvez lhe seja possível efetuar alguma exumação proveitosa. Refiro-me a leitura, sem dúvida, mas seria absurdo exigir que a produzida no Acre e em Fernando de Noronha fosse igual à de Machado de Assis. Compreende-se que haja severidade para os escritores do Rio e condescendência para os de Mato Grosso. Com certeza a coisa sairá meio desconexa, mas não pretendo exibir uma coleção de obras-primas. O meu intuito é dar ao leitor uma impressão de conjunto.
A uma consulta de Martins sobre se medalhões poderiam ser incluídos na seleção, respondeu:
Não devemos omitir, suponho, esses medalhões a que v. se refere. São figuras representativas. Volta o adjetivo pérfido. Pelo menos representam o lugar-comum, que teve largo consumo e em vão nos esforçaremos por eliminar de chofre. Se quiséssemos exibir a literatura nacional sem ele, ficaríamos em grande aperto.
Afora os contos, o que Graciliano lia e sobre quem escrevia, aos 54 anos? O lugar cativo na biblioteca continuava ocupado pelos clássicos, mas resenhou as obras recentes de Oswald de Andrade, Aurélio Buarque de Holanda e Antônio Olavo Pereira. Admiração incondicional, entre os contemporâneos, só por José Lins do Rego, “o maior de todos nós”. Na poesia, Drummond e o Manuel Bandeira de A cinza das horas.
Sobre Bandeira, há uma história que entrou para o folclore da José Olympio. Graciliano teria dito aos mais íntimos que o poeta, por pudor, modificara o último verso de “Desafio”, que conhecemos assim: “Uma só coisa faltava/ No meu barco remador:/ Ver assentado na popa/ O vulto do meu amor”. O verso original seria outro: “Ver assentada na popa/ A bunda do meu amor”.
Graciliano preocupava-se, cada dia mais, com os impasses do mercado editorial. O número de leitores não aumentava na proporção ideal, o volume de títulos expandia-se, mas os autores brasileiros perdiam terreno para os estrangeiros. Um dia, azedo, comentou com Luís da Câmara Cascudo:
– Na casa dessa burguesia rica você pode encontrar dez penicos de porcelana, mas não encontra dez livros. Não é que eu deseje tê-la como leitora de meus livros, mas isso mostra a indiferença pela divulgação literária e a falta de estímulo à produção intelectual.
Ele esfregava os olhos e não identificava um prisma de renovação no romance brasileiro. “Tão cedo não teremos livros como Banguê, Jubiabá e João Miguel.” Abordou essa questão no ensaio “A decadência do romance brasileiro”, publicado na revista Literatura, dirigida por Astrojildo Pereira e cujo conselho editorial era integrado pelo próprio Graciliano, Álvaro Moreyra, Aníbal Machado, Arthur Ramos, Manuel Bandeira e Orígenes Lessa.
A seu ver, os dois movimentos de ruptura com o “academicismo estéril” – o Modernismo e a geração de romancistas nordestinos de 30 – haviam se esgotado, por razões diversas. Os modernistas porque, depois de cortarem os laços que nos prendiam ao século passado, estancaram e não souberam criar “material romanceável”. A geração de 30 traçara uma curva ascendente até 35 e daí em diante perdera o fôlego. “Os nossos romances atuais são direitos, comedidos, inofensivos”, frisaria ele. “Desapareceram os mocambos, os sobradões onde se alojavam trabalhadores e vagabundos, as cadeias sujas, as bagaceiras e os canaviais, as fábricas, os saveiros, a escola da vila. [...] As personagens branquearam. E, timidamente, aproximam-se da Academia.”
A necessidade de o intelectual retratar o mundo vivido foi um dos temas centrais da correspondência entre Graciliano e Candido Portinari, no primeiro semestre de 1946. Os pontos de vista eram convergentes no sentido de que a arte deve interligar-se ao meio social como expressão de anseios, em particular, das camadas oprimidas.
Graciliano acrescentou uma fecunda reflexão sobre o sentido ético do trabalho artístico, sobretudo quando aborda as desigualdades, as injustiças, a pobreza e a miséria. Essa arte sobreviveria em uma sociedade justa, sem exploração do homem pelo homem?
Vejamos trechos das cartas.
Portinari, de Brodósqui, 28 de janeiro:
Além de ter desenhado esse nosso povo que você conhece melhor do que ninguém, tenho falado muito de política. Todo esse povo é comunista, mas com muito medo. Tenho me esforçado para lhes tirar o temor, mas até agora sempre foram enganados e é natural que não acreditem no que lhes digo.
Graciliano, 15 de fevereiro:
A sua carta chegou muito atrasada, e receio que esta resposta já não o ache fixando na tela a nossa pobre gente da roça. Não há trabalho mais digno, penso eu. Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações; contudo, as deformações e a miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram.
O que às vezes pergunto a mim mesmo, com angústia, Portinari, é isto: se elas desaparecessem, poderíamos continuar a trabalhar? Desejaríamos realmente que elas desapareçam ou seremos também uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos desgraças?
Dos quadros que v. me mostrou quando almocei em Cosme Velho pela última vez, o que mais me comoveu foi aquela mãe a segurar a criança morta. Saí de sua casa com um pensamento horrível: numa sociedade sem classes e sem miséria, seria possível fazer-se aquilo? Numa vida tranquila e feliz, que espécie de arte surgiria? Chego a pensar que faríamos cromos, anjinhos cor-de-rosa, e isto me horroriza.
Felizmente a dor existirá sempre, a nossa velha amiga, nada a suprimirá. E seríamos ingratos se desejássemos a supressão dela, não lhe parece? [...]
Graciliano aplicou algumas ideias sobre os vínculos da arte com o tecido social ao redigir o texto de apresentação da mostra de Portinari no Museu de Arte Moderna. Parco em louvores, não se conteve diante do espetáculo visual:
Homem estranho, Portinari, homem de grande exigência com a sua criação, indiferente ao gosto dos puros, capaz de gastar anos enriquecendo uma tela, descobrindo hoje um pormenor razoável, suprimindo-o amanhã, severo, impiedoso. Dessa produção contínua e contínua destruição ficou o essencial, o que lhe parecera essencial. Não é arte fácil: teve um longo caminho duro, impôs-se um custo nestes infelizes dias de logro e charlatanismo, de poemas feitos em cinco minutos. E até nos espanta que artista assim, tão indisposto a transigências, haja alcançado em vida uma consagração.
A sensibilidade para as artes plásticas não se limitava aos quadros de Candido Portinari. Amigo de Di Cavalcanti e de Augusto Rodrigues (que lhe desenhou várias caricaturas), gostava de ouvi-los, na José Olympio. “Graciliano não era um expert, nem frequentava muito exposições, mas respeitava demais as obras e as opiniões dos artistas, especialmente os mais engajados”, recordaria Augusto. “Tinha um senso crítico apurado, que se manifestava em relação à arte de maneira geral. Devotava amor pela forma, buscava incessantemente a forma significativa, a essência do ser humano.”
* * *
É digna de nota a correção com que Graciliano se desincumbia, nessa época, das monótonas atribuições de fiscal de ensino. Sob sol a pino ou chuva forte, de bonde ou de lotação, lá ia ele toda tarde aos colégios, em bairros distantes. Como se aquele homem magro, de passadas largas, humilde servidor da União, não fosse o autor de Vidas secas. Em uma entrevista, Homero Senna lhe perguntou se gostava do emprego. “É-me indiferente. Trata-se de uma sinecura como outra qualquer. Em todo caso, nunca tive uma falta nem tirei licença”, responderia.
No início, sem conhecer direito o Rio, contou com a ajuda de Heloísa para chegar de bonde ao primeiro colégio a inspecionar, o 28 de Setembro, na rua 24 de Maio, no Méier. O diretor do estabelecimento, Liberato Bittencourt, afeiçoou-se a ponto de presenteá-lo com uma pilha de livros positivistas.
Gastou sola de sapato de um canto a outro, fiscalizando as normas baixadas pelo Ministério da Educação a respeito de currículos, exames regulamentares, avaliações pedagógicas e estado de conservação dos prédios.
A cada escola inspecionada correspondia um informe por escrito ao diretor do ensino secundário. Até nesses ofícios protocolares o escritor reluzia. A mesma escrita enxuta e lapidada, clássica na forma e atrevida nas ideias, que, há duas décadas, surpreendera o governador de Alagoas com seus relatórios de prefeito de Palmeira dos Índios.
Por que gastar horas preciosas em ofícios do MEC? Ora, Graciliano não seria Graciliano na transgressão do dever, ainda que esse fosse mal remunerado.
“Em qualquer situação, ele era um homem que não transigia com a dignidade”, salientaria Heloísa. “Eu tinha pena de saber que ele se dispersava, trabalhando muito em outras coisas que não a literatura. Mas foi arrastado a isso, quando poderia ter se acomodado, submetendo-se às exigências de diversas ofertas. Grace não fazia concessões.”
Se obedecesse à ordem banal das coisas, produzindo insípidos informes a seu chefe imediato, ele estaria dinamitando uma de suas pontes com a vida: a magia das palavras. Por isso, buscava sempre experimentar no modo de se exprimir, como se perseguisse em cada lauda a solução de um problema vital.
Reparem a metamorfose do inspetor de ensino em Graciliano Ramos neste relatório, de 4 de novembro de 1948, sobre as condições de funcionamento do Instituto Central do Povo, localizado à rua Rivadávia Correia, 188, na Zona Portuária.
Falecendo-me dados indispensáveis a um parecer, quase cheguei a conclusão desfavorável; imaginei, porém, vendo as obras que se executam no prédio, achar-me diante de uma possibilidade, talvez de uma probabilidade. Em conversa longa com os diretores, inquiri o projeto, sondei os meios de que dispõem para levá-lo a cabo. Não o supondo exequível, pareceu-me digno de interesse exibirem no papel as coisas expostas. Pedi a história, em resumo, do Instituto, a planta da casa, fotografias. [...]
Eximindo-me de um juízo precipitado, busquei orientar-me ouvindo pessoas estranhas à escola e examinando o bairro onde ela se localiza. Obtive opiniões muito lisonjeiras de gente insuspeita, e a aparência do lugar justifica a pretensão que nos ocupa. [...] A declarada inexistência de lucro é verdadeira: uma vista de olhos nos convence.
Poderíamos enxergar perigo no fato de a instituição receber dinheiro do estrangeiro. Excluem este receio embaraços econômicos depois de quarenta anos de vida intensa. O auxílio exterior provém de uma organização religiosa, alheia, presumo, a qualquer interferência política em nosso país. Aliás, o governo brasileiro também subvenciona o Instituto. Isto é suficiente para desvanecer escrúpulos.
Como inspetor do MEC, Graciliano viveu uma passagem curiosa no Colégio São Bento. Pôs as convicções anticlericais à prova, pois se ligou profissionalmente a um dos mais tradicionais centros de ensino religioso da cidade. Contrariando as expectativas, tudo correu às mil maravilhas – o colégio funcionava por “música”. Tudo organizado em mínimos detalhes, austeridade absoluta.
Quando ele se apresentou, os monges ficaram preocupados; afinal, era notoriamente comunista – e, naquele tempo, catolicismo e comunismo eram dois campos inteiramente antagônicos. Para surpresa geral, Graciliano se entrosou rapidamente com três monges – dom Basílio Penido, então reitor; dom Afonso Maria Weiger, responsável pela secretaria; e dom Gerardo Martins, um dos mais respeitados professores.
Ao lembrar a “convivência cordial e amiga” com o romancista, dom Basílio Penido atribuiu a aproximação, entre outros fatores, à posição liberal dos monges, influenciada pelo pensador católico Jacques Maritain.
É preciso verificar o quadro da época, em que a maioria da Igreja era muito conservadora, subordinada ao poder público, simpática ao governo e aduladora dos poderosos da terra. Ora, Graciliano, como comunista, abominava essa linha seguida pela hierarquia religiosa. Nós formávamos um pequeno grupo mais aberto e compreensivo; éramos liberais no sentido humanista, não nos atrelávamos, vamos dizer assim, às forças conservadoras e ao governo. Com a nossa visão ele certamente podia dialogar, mesmo sem acreditar no catolicismo.
Teve afinidade quase instantânea com dom Penido. O monge o levou a conhecer as relíquias do Mosteiro de São Bento, as peças sacras em madeira de lei. Conversavam sobre literatura francesa, paixão comum. O reitor do São Bento havia sido educado na França e, com quinze anos, lia, por exemplo, André Gide e François Mauriac.
Em mais de uma ocasião, os dois falaram sobre a Bíblia, particularmente o Antigo Testamento, que Graciliano apreciava desde adolescente.
Percebia que ele realmente conhecia a Bíblia. Não era uma leitura no sentido cristão, teísta, mas uma interpretação do ponto de vista humano. Não havia, da parte dele, propriamente uma concordância no plano da crença, mas uma admiração da Bíblia como obra humana e por sua indiscutível beleza enquanto expressão literária. Eu não afasto a possibilidade de Graciliano ter sido impregnado, na infância, pelas raízes cristãs muito fortes da família nordestina. Quem sabe essa influência familiar não deixou resquícios em seu subconsciente? A gente não mata o subconsciente.
Graciliano evitou polemizar sobre religião ou política. “Ele nunca me deu o menor sinal de querer conversar sobre Deus”, diria dom Penido. “Demonstrava absoluto respeito pelas nossas ideias e expunha as opiniões com prudência e equilíbrio. Sempre achei-o inteligentíssimo, muito seguro, de uma integridade visível.”
Os beneditinos jamais tiveram problemas com as inspeções de Graciliano, que confiava na severidade de dom Afonso Weiger no cumprimento das normas. Em um dia de humor azedo, arrancou risos dos monges e estupefação dos funcionários da secretaria do colégio ao dizer, apontando para a bandeira do Brasil:
– Mas que bandeira feia a nossa! Parece um papagaio.
Fora dos muros do São Bento, Graciliano permitia-se comentários avulsos sobre religião. Como o que faria ao escritor Antônio Carlos Villaça, na Livraria José Olympio, afirmando que a fé religiosa era “fenômeno do passado, anacronismo, posição anticientífica”. Instado a opinar sobre o mosteiro, responderia com certeza total:
– É uma casa medieval, pura Idade Média, vivem fora da vida.
O vínculo com os beneditinos foi mencionado no jantar oferecido por Octavio Tarquínio de Sousa e Lúcia Miguel Pereira a Graciliano, no começo de 1947, ao qual compareceram o crítico Antonio Candido e sua mulher, Gilda. O primeiro contato de Graciliano com Candido havia sido em uma carta na qual agradecia os cinco rodapés dedicados a um balanço de sua obra no Diário de São Paulo, por ocasião do aparecimento de Infância. Candido recordaria:
No jantar, Graciliano falou pouco. Lembro que manifestou a sua estima pelos frades do São Bento, de cujo colégio era inspetor e com os quais almoçava frequentemente. Gabou também a linguagem irregular e poderosa dos romances de José Lins do Rego, e falou sobre as memórias da prisão que estava escrevendo. Desse encontro guardei a imagem de um homem severo, de grande distinção e cortesia, exprimindo-se com parcimoniosa precisão.
Em junho de 1948, os monges o convidaram à cerimônia de sagração do superior da Ordem, dom Martinho Michler. Antônio Carlos Villaça o encontrou sentado ao lado de Alceu Amoroso Lima e Murilo Mendes, em uma das primeiras filas do mosteiro. O comunista de carteirinha junto a dois intelectuais conservadores e católicos fervorosos.
No fim, Villaça perguntou a Graciliano o que achara da solenidade.
– Ópera bonita – respondeu com ar compenetrado.
Convidado para o almoço de confraternização, gentilmente recusou. Descendo a ladeira, à saída, deixou escapar:
– Não posso sentar-me na mesma mesa com aquele homem.
O homem era Adroaldo Mesquita da Costa, ministro da Justiça do presidente Eurico Dutra, que acabara de formalizar a cassação do registro eleitoral do PCB.