OS PROFETAS DO APOCALIPSE
Um ano terrível: 1950. O início até que trouxe bons prenúncios, com a mudança da família, em 2 de janeiro, para um apartamento de três quartos, em andar baixo, na rua Amiris (atual Desembargador Alfredo Russell), 62, no Leblon, pelo qual Graciliano pagaria de aluguel Cr$ 3.245,00.
Não demorou muito para Heloísa e os filhos perceberem algo de errado. Desanimado, com tristeza nos olhos, Graciliano estava bebendo além da conta. Os problemas com o patrulhamento ideológico o amarguravam, agravando uma tendência depressiva que vinha de antes, como sintoma de um acúmulo de tensões.
Heloísa articulou um tratamento de desintoxicação alcoólica em uma clínica na Ilha do Governador, onde trabalhava um médico ligado ao PCB, Sá Pires. Poderia descansar, revigorar-se física e mentalmente. Os dias passados lá o reanimaram bastante. Um grupo de doentes toda tarde se reunia em torno dele para ouvir histórias. E quem passasse de manhã por uma das praias quase virgens da ilha poderia ver aquele homem sedentário, avesso a esportes, dando longas caminhadas pela areia, ao lado da mulher e da filha Clara, em contato com a natureza. Parecia um veraneio.
De volta à casa e ao trabalho, traduziu A peste, de Albert Camus, lançado no mesmo ano pela José Olympio. Não fosse por necessidade financeira, teria recusado o serviço, pois achava que Camus escrevia mal. Tanto que fez uma tradução livre, quase reescrevendo o romance, assinando-a apenas com as iniciais GR.
Em interessante estudo publicado em 1979, o professor Cláudio Veiga, titular de língua e literatura francesa da Universidade Federal da Bahia, concluiu que o texto original de Camus “ficou mais magro” – foram suprimidos termos acessórios ou essenciais, e alterada sistematicamente a estrutura das frases. Diz Veiga:
Por essa violência contra o texto original, a tradução de Graciliano deixa a desejar. Tem-se a impressão de que o tradutor manipula o romance de Camus como se fosse um rascunho pessoal, o texto primitivo de um de seus romances. Parece aplicar em A peste o tratamento severo que, segundo Memórias do cárcere, deveria ter imposto a um de seus livros – cortar-lhe a terça parte. Não chega a cortar a terça parte de A peste, mas, sem exagero, não há uma página sequer do romance em que não tenha havido supressão ou condensação.
Não fora a primeira vez que cedera à tentação de endireitar a prosa alheia. Já ao traduzir Memórias de um negro, em 1940, dizimara dois capítulos de Booker Washington e eliminara, sem piedade, períodos inteiros. E ainda vangloriava-se da façanha:
– O homem vinha direito, umas observações ótimas, de repente se estrepava todo. A todo instante, repetia ideias, usava palavras desnecessárias, fazia círculos de peru. Cortei uma infinidade de asneiras, e ainda ficaram muitas. Negro burro.
* * *
Em abril de 1950, Graciliano viajou quatro horas de avião até Salvador para prestigiar o III Congresso dos Escritores. A ABDE, controlada pelo PCB, perde-ra o dinamismo e a representatividade. Às vésperas do congresso, a revista Fundamentos publicou um editorial isentando o PCB de culpa na cisão de 1949. A divisão entre os escritores fora provocada pelas “correntes que procuram atrelar o Brasil ao carro do imperialismo guerreiro norte-americano e apoiam a onda de terror que assola o país”. Astrojildo Pereira acrescentava: “Os falsos democratas, se bem que explorando sempre o falso princípio do ‘apoliticismo’, viram-se forçados a botar a máscara, aparecendo em público tais quais são na realidade – agentes da reação, agentes das classes dominantes, agentes do imperialismo”.
Escritores que sempre foram aliados dos comunistas na política interna da associação não escaparam de insultos. “No clima da Guerra Fria, a grosseria no ataque ao pensamento divergente valia como virtude proletária e manifestação de combatividade revolucionária”, observa o filósofo Leandro Konder.
Por conta da ortodoxia, sublinha o historiador José Antonio Segatto, “os intelectuais que não instrumentalizassem seu trabalho teórico segundo as ordenações táticas partidárias eram, comumente, acusados de desvios burgueses”.
Isso pode ser comprovado nos números 13, 14 e 15 de Fundamentos. Isaac Akcelrud chamou Hermes Lima de “safado” e “socialista de direita”. Rivadávia Mendonça acusou Sérgio Milliet de “pelego”, “beneficiário do Estado Novo” e “propagador do preconceito de raça”. Para o mesmo Rivadávia, Antonio Candido, Mário Neme e Arnaldo Pedroso D’Horta não passavam de “agentes e militantes da decadência e do divisionismo no meio intelectual”, porque haviam rompido com a seção paulista da ABDE. Rossine Camargo Guarnieri trocou açucarados poemas de exaltação a Stalin por diatribes contra Sérgio Buarque de Holanda, ex-integrante do conselho de Fundamentos, agora incluído na “nefasta camarilha de politiqueiros e aproveitadores sem escrúpulos”.
Os ataques prosseguiram nos números 3, 4 e 5 de outra publicação do PCB, a revista Para Todos, dirigida por Álvaro Moreyra, Dalcídio Jurandir e Floriano Gonçalves. Emílio Carréra Guerra alvejou a poesia de Carlos Drummond de Andrade: “Essa doença que lhe faz ver tudo negro, num mundo de problemas e contradições sem saída, é própria de sua gente, da classe pobre, arcaica, degenerada, moribunda”.
Faltava aos comunistas, conforme Leandro Konder, a convicção de que era possível e necessário persuadir uma grande variedade de pessoas com pontos de vista distintos dos do PCB, neutralizando algumas das objeções à política partidária e mobilizando-as em torno de lutas democráticas. Como não se tinha clareza disso, os intelectuais não comunistas perdiam automaticamente qualquer importância como interlocutores válidos.
A linha estreita também não permitiu ao partido avaliar corretamente o boom cultural a partir de 1948. Com a expansão da sociedade urbana e a acumulação de capital decorrente da industrialização, a burguesia paulista passara a investir na nascente indústria cultural, financiando a produtora cinematográfica Vera Cruz e o Museu de Arte de São Paulo (1947), o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o Teatro Brasileiro de Comédia (1948), a I Bienal de Artes Plásticas (1951), sem falar no advento da televisão. Os mais radicais consideravam essas iniciativas “expressões da arte burguesa comprometida com o imperialismo”. Reduzindo a questão a um plano ideológico dogmático, não atinavam para a importante renovação estética que se processava no país, influenciando toda uma geração de artistas e intelectuais.
O III Congresso transcorreu sem brilho, esvaziado pela ausência dos principais escritores do país. Graciliano movia-se em um pântano com a história do realismo socialista. Mas jamais evidenciava, para o público externo, as divergências. A fatura a pagar, ele o sabia, era alta: em nome da disciplina, tinha de sublimar as contradições com a política cultural.
No texto “Lembranças do III Congresso”, datado de 1o de maio de 1950, ele criticou o afastamento de muitos escritores da ABDE, com malabarismos retóricos para não ferir os inúmeros amigos que haviam deixado a associação e ao mesmo tempo não burlar o enfoque desejado pelo PCB.
Ausentes da ABDE os representantes verdadeiros da literatura nacional, achei absurdo exibirmos as nossas fraquezas. Somos, na opinião desses homens notáveis, uns pobres-diabos analfabetos. Desejávamos admirá-los, e quando um batia o pé, ameaçava afastar-se de nós, gaguejávamos com sincero receio:
– Não, não. Tudo, menos isso.
E corríamos a satisfazê-lo.
Trabalho perdido. Os mestres ásperos, em manifesto cruel, nos abandonaram expondo, com legítimo orgulho e rude franqueza, as suas vantagens e as nossas deficiências. Por isso, ouvindo falar no congresso, alarmei-me:
– Que diabo vamos fazer? Não damos um caldo.
À intelectualidade reacionária, que fazia o jogo do anticomunismo, mandou um recado:
Os nossos inimigos, que acatamos e adulamos pacientemente, disseram de nós cobras e lagartos, referiram-se a vagos intuitos vermelhos. Éramos bichos perigosos à ordem. Sim, senhor. Cadeia. Quando se sentem mal, pedem cadeia para os viventes que os incomodam.
Graciliano foi assediado no congresso por jovens baianos que o idolatravam. Pedro Moacir Maia e quatro amigos o procuraram para que autografasse uma pilha de livros. “Nós apreciávamos tanto o mestre Graça que, de uma mesma obra, tínhamos às vezes duas ou três edições diferentes”, recordaria Pedro Moacir. O grupo se surpreendeu com a acolhida por parte de Graciliano. “O homem áspero, intratável para alguns, passou a tarde inteirinha conosco, respondendo a nossas perguntas e contando-nos casos e anedotas.”
O falatório no plenário logo o entediou. Durante uma exaustiva homenagem ao falecido Monteiro Lobato, acenou para o poeta baiano João Moniz acompanhá-lo até o saguão.
– Que maçada! Nunca tive vocação para viúva.
E levou Moniz para tomar um cafezinho que se prolongaria até o fim da sessão.
* * *
Os dissabores se sucederam a partir de agosto. Na manhã do dia 26, Graciliano transtornou-se ao saber que o filho Márcio, depois de se desentender com um companheiro de pensão na Tijuca, matara-o com um tiro. Márcio era um rapaz de valor, inteligente, mas desde adolescente sofria de sérios problemas psicológicos. Dos filhos do primeiro casamento, fora o mais afetado pela decomposição da família, com a morte de Maria Augusta e os atropelos da vida de Graciliano. No Rio, afeiçoara-se a Rachel de Queiroz e ao marido dela, o médico Oyama, que sempre o assistiam e o aconselhavam. Oyama, inclusive, medicava-o nas crises nervosas.
Paulo Mercadante, que se encarregou da assistência jurídica a Márcio, relatou horas depois a Graciliano como tudo acontecera:
Senti a dor pesada cair-lhe sobre o rosto e suas mãos cobrirem o rosto inteiro, deslizando devagar até o queixo. Era o sentimento contido, a dignidade da dor, traduzida num silêncio que devia estar dilacerando a alma. Ficamos por minutos e minutos sem qualquer reação até que falou sobre a tragédia. Os destinos do filho e do moço unidos numa só desgraça.
Durante quatro dias, Márcio ficou aos cuidados de familiares. Com o coração despedaçado, Graciliano conversou longamente com o filho, enquanto se preparava a sua apresentação à polícia. Mas o rapaz, completamente perturbado, acabou se suicidando no dia 30 de agosto.
Os seus anjos da guarda, Rachel e Oyama, em viagem à Europa, não estavam por perto. “Tenho convicção de que se eu estivesse no Brasil, quando se deu a tragédia, o Márcio, em vez de se matar, teria corrido para nós. Eu me culpei sempre por isso. Era comigo e com Oyama que ele contava nessas ocasiões difíceis”, lamentaria Rachel.
* * *
A rede de intrigas contra Graciliano recrudesceu no segundo semestre de 1950, com a divulgação do Manifesto de Agosto. Nesse documento, o Comitê Central do PCB cristalizou o processo de esquerdização iniciado em 1948, pregando a luta armada, a ser empreendida por um “exército popular de libertação nacional”, além da nacionalização dos bancos, dos serviços públicos e das empresas industriais e comerciais monopolistas, e do confisco, sem indenização, dos grandes latifúndios. No plano das lutas sociais, recomendava aos militantes operários que se insurgissem contra os sindicatos oficiais e criassem entidades paralelas. Enfim, o partido assumia, na definição de um de seus quadros mais qualificados, Armênio Guedes, “uma visão ao mesmo tempo catastrófica e apocalíptica da revolução”.
Essa plataforma sectária, que antevia a tomada do poder e a implantação do socialismo da noite para o dia por um grupo de iluminados, isolou ainda mais o PCB. Dos 200 mil filiados no pós-guerra, restavam menos de 20 mil. Os sindicalistas perderam influência junto às suas bases, o mesmo acontecendo no meio estudantil. O povo ignorou a pecha de “agente do imperialismo” atribuída a Getulio Vargas e o reconduziu nas urnas ao Palácio do Catete. Os comunistas haviam se batido pelo voto em branco.
Graciliano discordou do Manifesto com os mesmos argumentos de 1948: o PCB, em descompasso com a realidade, havia se dissociado da dinâmica social. Carlos Marighella tentou convencê-lo a aceitar a “linha justa”, afirmando que, progressivamente, as classes exploradas seriam mobilizadas para o salto necessário à conquista do poder.
Testemunha da conversa, Paulo Mercadante registrou a réplica no diário:
Graça aguardava o final da longa justificativa para fazer a primeira pergunta. Como poderia o partido ganhar as massas getulistas? E o campo? Chegaria a palavra de ordem ao interior, se faltavam ao partido os meios necessários de comunicação, principalmente escrita? Por fim, qual o exemplo de uma revolução qualquer sem as condições históricas de deterioração das classes dirigentes? Os argumentos eram rebatidos por Carlos, sem muita certeza, e Graça, afinal, concordou com o êxito da revolta apregoada, porém indagando: vitoriosa a revolução, como conseguiremos nos manter no poder em face de uma realidade geopolítica tão adversa?
De acordo com Mercadante, Graciliano sofria com a incoerência da liderança partidária, que optava novamente pela via insurrecional.
Certa vez, Graça desabafou conosco: como é possível tanta ingenuidade, tanta improvisação? O partido subestima a elite burguesa do país, constituída por velhas raposas. Apega-se à experiência soviética, fruto de outras circunstâncias, de um quadro social e político diverso do nosso.
A diretriz cultural, evidentemente, não se alterou com o Manifesto de Agosto. Pelo contrário, a radicalização avalizava o filão do zdanovismo e deixava o trânsito livre para as patrulhas.
Em outubro de 1950, aumentaram as intrigas contra Graciliano, conforme Mercadante:
Permanecem as observações sectárias a respeito da obra de Graça. Murmúrios de muitos meses de que se ressente ela de debilidades ideológicas. Não teria conseguido o velho superar a condição de realista crítico. Todos sabemos do quadro esquerdista que o partido esboça em relação ao assunto. Invenção do Zdanov, procurei resumir. [...] A Zdanov falta autoridade necessária, pois até a sua morte escreveu tolices sobre ciência. Mas Graça não está seguro e refuta-nos. Acredita que a sua formação pequeno-burguesa impede uma compreensão justa do ponto de vista stalinista de um real socialismo, ou seja, um realismo socialista. Porque o que ele sabe fazer é descrever a sua gente, a sua terra.
Um velho amigo foi um dos confidentes de Graciliano: Candido Portinari, também em dificuldades com o PCB. Aos domingos, na casa de um ou de outro, dialogavam até altas horas. Portinari falando o triplo e arranjando um jeito de desviar o assunto para a arte, em particular, a pintura. Gostava de mostrar os quadros recém-pintados a Graciliano, que os observava calado, sentindo para dentro. Uma vez, depois de apreciar uma das exposições do pintor, deixou um bilhete: “Querido Portinari: Estive uma hora hoje a admirá-lo. Não valia a pena vir ontem – dia de gente fina. Voltarei depois muitas vezes, naturalmente”.
Segundo a viúva do pintor, Maria Portinari, ele encarava Graciliano como um irmão mais velho, consultando-o sobre tudo, como se fosse um guru. “Creio que a grande afinidade que existia entre eles decorria de vários fatores: ambos eram do interior e muito sofridos, preocupavam-se com a miséria de nosso povo e estavam unidos pela mesma crença política.”
Os dois angustiavam-se com as incompreensões, porque, de acordo com Maria, eram entusiastas do partido e acreditavam no socialismo.
Eles eram tidos, em certos grupos, como muito pessimistas. E também como burgueses. Ora, como não ser pessimista diante da situação do país? O pessoal do partido às vezes exigia coisas que eram fogo. Por exemplo, mandaram uma vez Portinari vender jornais na rua. E ele reagiu dizendo: “Eu não vou vender não, porque se aparecer um policial, vou sair correndo de medo e sou capaz de largar os jornais na rua”. Sobre a pintura, de vez em quando davam palpites, mas Portinari não ligava, não cedia. Aliás, nem comentava. Os dois queixavam-se de certas posições. Era difícil para eles, porque o pessoal era muito sectário.
Apesar das objeções do PCB aos intelectuais burgueses, Graciliano e Portinari não abandonaram a roda literária da José Olympio. Naturalmente evitavam discussões políticas, mas não se distanciavam dos amigos. Nunca apareceram na imprensa comunista agredindo quem quer que fosse. “Eram homens esclarecidos, que não confundiam a ideologia com a vida literária. Sabiam perfeitamente separar as coisas”, testemunharia Francisco de Assis Barbosa.
Sempre preocupado em não arranhar a lealdade ao PCB, Graciliano compareceu a uma segunda reunião sobre o realismo socialista. Durante três dias, na casa do jornalista Newton Rodrigues, à rua Barata Ribeiro, 723, em Copacabana, mais de vinte escritores e intelectuais discutiram a questão da forma e do conteúdo na obra de arte e na literatura. Entre os presentes, Floriano Gonçalves, Ary de Andrade, Dalcídio Jurandir, Edison Carneiro, Emílio Carréra Guerra, Oswaldino Marques e Newton. Debateram interminavelmente as teses de Zdanov. “Foi uma reunião de caráter disciplinar, como se fosse para transmitir instruções de uma linha política”, resumiria Newton Rodrigues, que ali estava quase que por acaso, na condição de anfitrião, pois não pertencia à base dos escritores.
No informe, Floriano Gonçalves reiterava que a formulação estética deveria sujeitar-se ao conteúdo revolucionário. Graciliano foi o único a questionar “as enormidades que se queriam transformar em dogmas para os escritores”, como relembraria Ary de Andrade:
Vi-o erguer-se, rubro de cólera, e dizer algumas verdades a respeito da obrigação, a que não pode eximir-se nenhum escritor digno desse nome, de escrever bem, de cuidar da forma. Que nos disse Graciliano Ramos? Apenas que entre a forma e o conteúdo não devem existir desequilíbrios. Hão de ser harmônicos entre si. Trouxe-nos o exemplo de Romain Rolland, do qual fez longa citação de memória, que foi de um efeito extraordinário sobre todos.
Diógenes Arruda encerrou a reunião respondendo a Graciliano:
– Companheiro, o partido o considera o seu maior escritor. Por isso mesmo, nós temos o direito de exigir que nos ofereça uma obra com conteúdo revolucionário.
Concluiu com uma frase cacofônica:
– Caso contrário, você corre o risco de apresentar-nos uma taça aurilavrada com nada dentro.
Graciliano não usou a tréplica. Se quisesse, demoliria com facilidade os argumentos de Arruda, um homem habituado a ler apenas documentos doutrinários.
“Graça deve ter percebido que era inútil bater boca”, especularia Ary de Andrade.
Só mesmo uma cegueira terrível impedia alguém de ver o notável compromisso social de sua obra. Acontece que, naquele momento, o PCB vivia sob uma perseguição estúpida, como reflexo da Guerra Fria, o que fazia com que não enxergasse a realidade com clareza e cometesse graves equívocos. Por isso, ficamos trancados três dias, como se fosse o fim do mundo, perdendo tempo com besteiras.
Graciliano acabrunhou-se, porque, afinal de contas, fora admoestado. Na época, a maioria dos presentes não poderia supor que a reunião era mais uma etapa de uma guerra surda cujo alvo, se saberia depois, era Memórias do cárcere.
Pelos insistentes rumores, Graciliano, a família e os amigos próximos se convenceram de que o pomo de discórdia com o partido era Memórias do cárcere. Informes de alguém que comparecia às leituras dos capítulos davam ciência ao Comitê Central do conteúdo da obra. As recriminações veladas influíram no ânimo de Graciliano, que interrompeu diversas vezes o trabalho.
Por que o livro incomodava tanto? Por várias razões. Em primeiro lugar, ao traçar um quadro das prisões do Estado Novo, Graciliano não hesitou em expor suas restrições ao levante de novembro de 1935: “uma bagunça”, “um erro político”. Ora, a rebelião era um tabu dentro do PCB. Em segundo lugar, os perfis dos dirigentes comunistas presos como ele na Frei Caneca não se coadunavam com a mitologia revolucionária.
Quarenta anos depois, Ricardo Ramos comentaria:
Memórias do cárcere incomodou e irritou porque o velho preservava a sua independência intelectual. Incomodou e irritou pela crítica ao movimento de 35, visto como uma quartelada; pelo militarismo dos tenentistas que tinham aderido depois ao partido; pelas contradições que ele mostrou dentro da prisão, como por exemplo o fato de o então secretário-geral do PCB, Miranda, ter colaborado com a polícia; pela compreensão que tinha da situação dos presos comuns e de certos policiais, o que fugia ao esquematismo, pois apresentava a polícia como instrumento de dominação e os presos como pobres-diabos, humanizando-os. Os melhores retratos de Memórias do cárcere irritavam muito os retratados. Agildo Barata ficou danado da vida quando soube que era descrito pelo velho como baixinho e falando fino, embora também aparecesse como líder nato.
Sem ter lido a obra, Agildo Barata, tesoureiro do PCB, queixou-se a Paulo Mercadante:
– O Graciliano está pintando um retrato ridículo meu.
Mercadante discordou:
– Agildo, eu li esse capítulo e posso lhe assegurar que não tem nada de ridículo; pelo contrário, o Graça acentua um aspecto seu: você é uma pessoa de baixa estatura, com aparência frágil, mas de grande força, a ponto de serem necessários três guardas para contê-lo durante um protesto na cadeia.
Moacir Werneck de Castro ouviu lamúrias de Diógenes Arruda:
Arruda apontava, contrariado, certas observações, como a do homem de voz fina, no caso, Agildo. Graciliano escrevia um livro em que havia líderes comunistas importantes e ele não os exaltava como heróis da revolução. Ao referir-se a eles, aplicava os mesmos instrumentos de análise usados, por exemplo, para descrever o ladrão de quem ficou amigo na Ilha Grande. Ora, Graciliano se preocupava com o aspecto humano, não estava ali para enaltecer ou envernizar ninguém.
Nas primeiras linhas de Memórias do cárcere, Graciliano intuiu que o livro poderia acender celeumas:
Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos – e, antes de começar, digo os motivos por que silenciei. [...] Também me afligiu a ideia de jogar no papel criaturas vivas, sem disfarces, com os nomes que têm no registro civil. Repugnava-me deformá-las, dar-lhes pseudônimo, fazer do livro uma espécie de romance; mas teria eu direito de utilizá-las em história presumivelmente verdadeira? Que diriam elas se se vissem impressas, realizando atos esquecidos, repetindo palavras contestáveis e obliteradas?
Aludiu também ao zelo ético que tivera na composição dos personagens reais:
Procurei observá-los onde se acham, nessas bainhas em que a sociedade os prendeu. A limitação impediu embaraços e atritos, levou-me a compreendê-los, senti-los, estimá-los, não arriscar julgamentos precipitados. E quando isto não foi possível, às vezes me acusei. Ser-me-ia desagradável ofender alguém com esta exumação. Não ofenderei, suponho.
Os cuidados se revelaram inócuos.
Arruda telefonou a Graciliano informando que iria à sua casa para uma reunião. No fim da manhã de 18 de março de 1951, ao abrir a porta, Graciliano deu de cara não apenas com o bigode imponente de Arruda, como também com Astrojildo Pereira e Floriano Gonçalves.
Os quatro se fecharam em um dos quartos por várias horas. “Eu fui almoçar lá naquele dia e, quando cheguei, Ricardo me disse que o pessoal estava reunido”, lembraria Paulo Mercadante.
A ele e a Ricardo, Graciliano, arrasado, confidenciou o teor da conversa. Arruda pedira para folhear os originais de Memórias do cárcere, aborrecendo-se logo na primeira lauda, com a afirmação de que, no Estado Novo, “nunca tivemos censura prévia em obra de arte”. Graciliano deveria ter mentido? Dissera a verdade sem aliviar a ditadura de Vargas:
Restar-me-ia alegar que o DIP, a polícia, enfim, os hábitos de um decênio de arrocho, impediram-me o trabalho. Isto, porém, seria injustiça. Nunca tivemos censura prévia em obra de arte. Efetivamente se queimaram alguns livros, mas foram raríssimos esses autos de fé. Em geral, a reação se limitou a suprimir ataques diretos, palavras de ordem, tiradas demagógicas, e disto escasso prejuízo veio à produção literária. […] Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer.
Arruda atestou a visão crítica (mas respeitosa) do livro sobre os ex-militares que haviam aderido ao PCB e imposto a via insurrecional, em 1935. Pouco interessava saber se Graciliano fora honesto consigo mesmo – importava mais a irritação por ele provocada com a interpretação crítica que contrariava a versão oficial do partido para justificar a controvertida rebelião.
No decorrer da reunião, cobraram novamente a Graciliano o seu distanciamento do realismo socialista e a falta de vigor revolucionário de seus livros. Um dos presentes, em tom inflamado, disse que ele persistia em um realismo crítico ultrapassado e citou Jorge Amado como escritor empenhado em dar conteúdo participante às suas obras. Ao ouvir o nome de Jorge, Graciliano rompeu o silêncio:
– Admiro Jorge Amado, nada tenho contra ele, mas o que sei fazer é o que está nos meus livros.
Arruda apelou para que alterasse determinadas passagens de Memórias do cárcere. Graciliano não respondeu nem que sim, nem que não.
A interpelação o magoou – a sua literatura reiteradamente colocada sob suspeição. Paulo Mercadante comentou no diário:
Ele estava macambúzio. Puxamos o assunto das críticas à sua obra, realçando o sectarismo, a simplificação e, por que não dizer, o primarismo delas. Ele lastimava porque percebera, no fundo das restrições vagas, um espírito de competição literária. Finalmente, evitava debater o assunto e, de modo hábil, voltou-se à história antiga. [...] Em vão insistimos Raimundo Araújo, Reginaldo Guimarães e eu. Não víamos base nas restrições dos burocratas do partido, pois, afinal, o que Arruda entendia de literatura? Mas o velho estava intransigente.
Graciliano reagiu da forma mais digna possível às pressões: não modificou uma vírgula sequer do que já havia escrito. Um domingo, em casa de Portinari, desabafou a um amigo comum, o advogado Sinval Palmeira, então membro do PCB:
– Se eu tiver de submeter meus livros à censura, prefiro deixar de escrever.
A reação hostil da direção partidária a Memórias do cárcere foi sem dúvida injustificável. Como aponta Alfredo Bosi, a despeito das estocadas de Graciliano, há no livro ausência de discussão ideológica. O escritor não se coloca como intérprete das razões e dos desdobramentos da rebelião; limita-se, “como observador arredio e perplexo”, a criticar o voluntarismo político que cegou uma correta análise da correlação de forças, naquele momento histórico, pela cúpula comunista. “O autor simplesmente não se propôs olhar e, menos ainda, avaliar os seus companheiros enquanto sujeitos de um drama político.”
Por semanas inteiras, o quarto volume de Memórias do cárcere entraria em compasso de espera. Em 1o de setembro de 1951, Graciliano paralisou definitivamente o trabalho, faltando o capítulo final.
Arruda nunca mais o interpelou. Segundo Moacir Werneck de Castro, não adiantava querer impingir a diretriz do realismo socialista, porque Graciliano fazia o que queria:
Todo mundo sabia que ele era um grande escritor. E quem tinha um mínimo de coisa na cabeça tratava de compreender o temperamento dele para não enquadrá-lo nas normas que se aplicariam a mim, ao Dalcídio Jurandir, ao comum dos militantes. Graciliano era diferente, genial nas suas sínteses, e não se enquadrava nas normas. O Arruda tinha de respeitá-lo, ainda mais o Arruda, que não havia sido preso – uma coisa que ele achava desagradável –, enquanto outros como Marighella e o próprio Graciliano sofreram muito na cadeia. Nem o mais desvairado stalinista poderia ter a pretensão de obrigar o Graciliano a seguir alguma linha.