DUELO COM A MORTE

DUELO COM A MORTE

No primeiro fim de tarde na Livraria José Olympio, após o regresso ao Brasil, uma escritora meio grã-fina perguntou a Graciliano:

– Você voltou da União Soviética como Gide?

O escritor francês André Gide publicara, em 1936, Le retour de l’URSS, desapontado com aspectos da realidade soviética. Graciliano devolveu a provocação sem papas na língua.

– Como, minha senhora? Puto?

No geral, suas expectativas haviam se confirmado. A União Soviética progredira bastante em diversos campos. Mas nem sempre a propaganda oficial correspondia aos fatos. Na visita à Escola de Jovens Escritores Maksim Górki, por exemplo, disseram-lhe que os alunos conheciam pelo menos uma língua estrangeira. O problema é que nenhum deles conseguiria sustentar, com membros da delegação brasileira, o mais elementar diálogo em inglês ou francês.

Ansioso para fixar suas impressões, Graciliano redigiu, ainda no navio, nove capítulos de Viagem. Aos amigos, contou passagens pitorescas e avaliou o quadro político e social da URSS, conforme o diário de Paulo Mercadante (10 de outubro de 1952):

Graça acha que se coloca no livro na postura de quem reconhece o mérito do programa de reconstrução socialista sem se limitar a elogios ou cair em exageros. Havia excrescências autoritárias e excesso de policialismo. Não deixou de registrar as pequeninas coisas, mas crê que todas essas miudezas desaparecerão com a certeza de que não mais haverá guerra mundial. Sobre a situação do povo, confessou que não viu miséria: se existe, ocultaram-na de modo competente. [...] Quanto a Stalin, a impressão que se tem é de que ele é amado como o herói que venceu a guerra e que defende a Rússia de qualquer agressão, venha de onde vier.

Quando surgia a brecha, trocava as seriíssimas análises sobre a conjuntura soviética por um pecado rasgado. Como na dedicatória a Sinval Palmeira em um de seus livros: “A Sinval e Lourdes Palmeira, casal que vi diversas vezes no Rio e conheci direito em Praga, Moscou, Leningrado, Geórgia e outros lugares horríveis situados além da cortina de ferro”. O circunspecto sr. Chugunov entortaria de vez a cabeça se lesse a travessura do Tolstoi brasileiro.

* * *

Na redação do Correio da Manhã, Graciliano distribuiu aos mais chegados canetas fabricadas pela nova indústria russa. Um círculo se formou para ouvir o seu relato simpático à União Soviética. Um dos presentes era o linotipista Queiroga, comunista que, segundo Antonio Callado, parecia ter saído de romances de Machado de Assis ou José de Alencar, com suas espessas costeletas. Suspensórios arriados, o cigarro inseparável entre os dedos, Graciliano arrolou histórias, estimulado por cálices de cachaça.

– As coisas lá estão formidáveis. Eles vão fazer um país novo.

Entusiasmado, Queiroga perguntou:

– E o povo?

– Bom, o povo está feliz nesta base: tem de obedecer, tem de fazer o que é certo, porque, senão, porrada nele!

Notando a fisionomia perplexa de Queiroga, continuou:

– Ô rapaz, aquilo lá é uma ditadura do proletariado. Eles estão construindo um país e não podem ficar sustentando malandros, não. Se não fizer direito, leva porrada mesmo.

Queiroga, que esperava uma ode à liberdade na União Soviética, murchou. Já Callado entendeu o sentido da fala de Graciliano.

A admiração que ele demonstrava pelos soviéticos tinha a ver com a sua atitude crítica em relação às coisas do Brasil, como a nossa falta de disciplina e de perseverança. Lá se construía um novo país, a União Soviética estava se produzindo, fabricando-se. Graciliano sentia que um esforço como aquele seria ótimo se ocorresse no Brasil, um país enorme, mas atrasado e frouxo.

Quando todos imaginavam que a palestra acabara, liquidou de vez com as ilusões do pobre Queiroga:

– O negócio é este, nós temos de fazer as coisas para o país andar, ir para a frente, assim como estão fazendo os russos. Não podemos deixar as coisas para amanhã. Agora, eu não tenho dúvida alguma de que uma pessoa com o meu temperamento, que gosta de falar o que pensa, talvez seja uma das primeiras a serem presas se for instalado aqui um regime como o soviético.

* * *

Tosse, dores no peito. Em uma noite de agosto de 1952, o secretário do Correio da Manhã, Edmundo de Castro, percebendo que Graciliano se demorava no banheiro, não se conteve na cadeira. “Cheguei junto dele, não me atrevi a falar. Mestre Graça estava botando sangue pela boca.”

Ao vê-lo, Graciliano pediu que não se espantasse.

– Com o tempo você vai se acostumar a me ver assim.

Sentindo-se mal, despediu-se da filha Clara na redação, dizendo que iria mais cedo para casa. Desde a viagem à União Soviética, suspeitava de tuberculose, lembrando que anos antes contraíra a doença, ainda que branda, na pensão da rua Carvalho Monteiro, curando-se com repouso e superalimentação no apartamento da Lagoa.

Durante três dias, reclamou de dores que não cediam com analgésicos. Reginaldo Guimarães, médico e amigo da família, após examiná-lo, evitou um diagnóstico definitivo, recomendando radiografias. Apreensivo, Ricardo o acompanhou até o ponto do lotação.

– Papai está tuberculoso mesmo?

– É melhor preparar logo você. Ou eu muito me engano, ou é coisa pior.

Para se certificar, Reginaldo encaminhou Graciliano aos pneumologistas Aloísio de Paula e Milton Lobato. Ele chegou alarmado ao consultório de Lobato, achando que a tuberculose do passado se reacendera:

Acalmei-o e prontamente levei-o à radioscopia. Lá estava o meu velho conhecido – o câncer pulmonar dos tabagistas. Ele fumava muito e eu observava preocupado seus dedos amarelecidos, insistindo sempre para que abandonasse o vício, apesar de seu sorriso indiferente.

O raio X comprovou a suspeita: câncer na pleura. Os médicos tiveram o cuidado de não lhe revelar de pronto o mal. Aloísio disse que estava com uma tuberculose séria que talvez exigisse cirurgia. Graciliano se sentiu um pouco aliviado, pois, acreditava, a tuberculose era uma velha conhecida sua; com tratamento intensivo quem sabe pudesse se safar.

A família foi notificada de que ele deveria ser operado imediatamente, para tentar extirpar o tumor. A medicina brasileira ainda não dominava a cirurgia endotorácica e, por isso, três alternativas foram cogitadas: os Estados Unidos, que dificilmente concederiam passaporte a um comunista; a União Soviética, contraindicada porque o obrigaria a uma viagem longa; e a Argentina, um dos centros mais avançados na especialidade. No Instituto de Cirurgia Torácica de Buenos Aires atuava o conceituado cirurgião Jorge Alberto Taiana, que assistira Evita Perón. Não havia o que discutir – a operação se realizaria lá.

* * *

O PCB teve papel decisivo na mobilização para a viagem. Como os Ramos não dispunham de recursos, o partido incumbiu Sinval Palmeira de levantar fundos.

“Eu, que era o burguês do partido, me virei para arranjar o dinheiro”, recordaria Sinval. “Fui primeiro ao Guilherme Guinle, presidente da Companhia Siderúrgica, um dos sujeitos mais burgueses deste país, mas que era nacionalista. Ele me deu 500 mil-réis de ajuda, uma nota pretíssima. Procurei José Lins do Rego, amicíssimo de Graciliano, mas de quem estava meio afastado por besteiras de comunismo. José Lins assinou a lista. Eu contribuí também, assim como pessoas ligadas à burguesia, à intelectualidade e ao próprio partido.”

Uma cadeia de solidariedade formou-se. Ao saber pelo PCB da gravidade da doença de Graciliano, o secretário-geral do Partido Comunista argentino, Rodolfo Ghioldi, amigo e ex-companheiro de cárcere, assumiu pessoalmente as providências para a hospitalização em Buenos Aires. O cirurgião Taiana, futuro ministro da Saúde de Juan Domingo Perón, dispensou a cobrança de honorários profissionais, dizendo-se honrado por operar “o maior escritor brasileiro”.

Licenciado nos empregos e sem conhecimento exato sobre seu estado de saúde, Graciliano recebeu em casa uma romaria de amigos e admiradores. Muito magro e abatido, vestido com o inseparável robe cor de vinho, ficou sem jeito com o assédio. Se fosse um indivíduo iracundo, seguramente não teria o calor de tanta gente. “Jamais escutamos uma queixa, uma revolta contra o mal que o impedira de viver normalmente”, assinalaria Reginaldo Guimarães. “Nesse período, pude estudá-lo melhor, penetrar naquele homem impenetrável para muitos observadores pouco atentos. Não era nenhum secarrão – nada de espinhos. Era antes um sentimentalão, receoso de cair na pieguice.”

Apesar de adoentado, prestigiou no Automóvel Clube do Brasil o grande almoço em homenagem a Jorge Amado e Zélia Gattai, que retornavam do exílio de quatro anos. Também esteve no almoço de intelectuais com o poeta chileno Pablo Neruda, de passagem pelo Rio. E se obrigou a escrever, quase diariamente, as impressões sobre a União Soviética. Entre 19 de julho e 11 de setembro de 1952, produziu 23 dos 34 capítulos do livro. O trabalho era facilitado porque se baseava nas detalhadas anotações que fizera durante a viagem.

A assistência a Graciliano na Argentina não poderia ter sido melhor. O Itamaraty instruiu a embaixada brasileira a cercá-lo de todas as atenções. O embaixador José Jobim e sua mulher Lígia se empenharam para que nada lhe faltasse. Rodolfo Ghioldi o acompanhou e a Heloísa e Clara em todos os passos. Sem falar da solidariedade de intelectuais argentinos que o recepcionaram no aeroporto e o visitavam diariamente.

Na manhã de 19 de setembro, auxiliado por dois médicos e um enfermeiro da confiança de Ghioldi, Taiana iniciou a cirurgia. Desgraçadamente, o tumor era devastador – impossível extirpá-lo. O cirurgião nada teve a fazer senão fechar o tórax novamente.

Temendo o impacto da notícia, Taiana preferiu dizer a Heloísa e Clara, na sala de espera, que Graciliano se restabeleceria. Mas chamou a seu gabinete Ghioldi para lhe contar a verdade e pedir que a transmitisse à família, no momento oportuno.

Ghioldi precisou neutralizar os nervos para revelar o inexorável: os médicos davam três meses de vida a Graciliano. Como se rebobinasse os rolos de um filme para reexibi-lo, apareceria na memória do líder comunista argentino o Graciliano tão mais moço da Casa de Detenção, a princípio ressabiado com tudo e todos, depois um de seus camaradas prediletos no convívio.

Do Instituto de Cirurgia Torácica, Graciliano foi removido para o Sanatório Anchorena, onde convalesceria até regressar ao Brasil. A família decidiu poupá-lo do infortúnio; para todos os efeitos, ele prosseguiria a recuperação em casa. No comovente depoimento prestado, décadas depois, a Clara Ramos, Ghioldi lembraria aqueles dias de paupéria:

Os sofrimentos de Graciliano eram quase incessantes, embora seu estado de ânimo nem sempre fosse pessimista; nesse período no Sanatório Anchorena, ele tinha altos e baixos. Em alguns momentos sentia que “isto se acaba”, coisa que afirmava com desgosto e serenidade ao mesmo tempo; noutros momentos, quando as dores cediam, ele fazia planos a longo prazo.

Diversos escritores argentinos, como Raúl González, Alfredo Varela e Héctor Agosti, foram ao sanatório confortá-lo, presenteando-o com livros e escritos. “Graciliano a todos ouvia e dava opiniões”, contaria Ghioldi. “Explicava seu conceito de romance e, com frequência, assumia a defesa apaixonada do idioma.”

Ghioldi nunca esqueceria a tarde em que, com autorização médica, levou uma garrafa de vinho branco ao quarto do amigo para um brinde. Depois de sorver o único cálice permitido, Graciliano soltou a língua: “Falava com a maior loquacidade sobre os assuntos mais variados: seus livros, suas viagens, suas amizades, suas esperanças. E seu amor pelo povo”.

Em uma conversa amena, Graciliano provou que a sua surdez musical era incorrigível. Ghioldi chegou esbaforido ao sanatório:

– Ouvi agora, no rádio, que morreu o Francisco Alves.

Graciliano, intrigado:

– Rodolfo, você está louco? Francisco Alves morreu há não sei quantos anos.

– Não, senhor. Acabei de ouvir que o cantor Francisco Alves morreu no Rio.

– Ah, pensei que fosse o livreiro Francisco Alves. Esse aí eu não conheço, não.

Difícil acreditar, mas Graciliano não sabia quem era o “Rei da Voz”, o cantor mais popular do Brasil.

Nos últimos dias em Buenos Aires, superou a fadiga física e as dores lancinantes para se impor o compromisso de terminar o capítulo 34 de Viagem. Curvado sobre a pequena mesa do quarto, a mão segurando firme a caneta, desenhou as letras no papel, em ritmo vagaroso.

A muito custo, arrematou os parágrafos finais, aconselhando o governo soviético a não derrubar, como queriam muitos, “as casinholas de madeira, lastimosas, lôbregas, a cair de velhice”, que teimavam em perturbar a imagem do mundo novo, no caminho do Aeroporto de Moscou.

Suas palavras soaram como uma derradeira crença na espécie humana e na inevitabilidade das mudanças sociais:

Inútil arrasar as casas. Melhor deixá-las arriar pouco a pouco, bambas, trêmulas, caducas. O essencial era transformar o que havia nelas, vagarosamente. As transformações acumulavam-se; difícil viver alguém a isolar-se no cortiço enorme. Em poucas horas as ruínas se devastariam; machados e picaretas deixariam no chão rumas de troncos velhos e tábuas débeis. Removidos os destroços, teríamos uma ilusão agradável e perigosa. As criaturas fechadas, esquivas, propensas ao isolamento, permaneceriam, invisíveis, espalhadas. Estavam ali patentes, cada vez mais fracos, a encolher-se na umidade e na friagem, resíduos do capitalismo.

* * *

No regresso ao Rio de Janeiro, Graciliano passou não três, mas cinco meses de suplício, com fortes dores no peito, que só cediam à custa de injeções de morfina. Ricardo recordaria:

Nós percebíamos que ele estava cada vez pior, queixando-se de dores terríveis. Não conseguia dormir direito e teve de largar os empregos totalmente. Basta dizer que ele começou tomando injeções de morfina de quatro em quatro horas e terminou tomando quatro de hora em hora. Era pele e osso só. Nós aplicávamos as injeções, e no fim era só pele. Nunca mais na vida dei injeção em ninguém.

Provavelmente Graciliano intuía, pelos sofrimentos, que estava condenado. Talvez por isso não tenha parado de fumar. “Tínhamos certeza de que ele sabia de seu estado e escondia de nós”, relembraria Maria Portinari. “Não era um homem que se pudesse enganar, por mais que a família se esforçasse.”

Quando as dores aliviavam, levantava-se da cama para rascunhar na escrivaninha. Em uma manhã, Heloísa, acostumada ao silêncio do marido escrevendo, ouviu um ruído estranho: a pena da caneta-tinteiro riscando o papel, impacientemente.

– O que é, Grace? Por que você está assim?

Graciliano, alisando a testa, desabafou:

– Porque eu sei que depois desta porra de vida não tem mais nada mesmo.

Os dois se abraçaram demoradamente e Heloísa, sentindo que ele pusera para fora algo que lhe martelava a cabeça, tratou de reanimá-lo:

– Agora, vamos lá dentro almoçar, vamos aproveitar a vida.

Tal como ocorrera antes da viagem a Buenos Aires, muitas pessoas o visitavam, inclusive monges do Mosteiro de São Bento. Reginaldo Guimarães, inexcedível na parte médica, teve o auxílio do padre José Leite, primo de Heloísa, que os havia casado em 1928. O padre, aliás, foi o primeiro a doar sangue a Graciliano. O agradecimento veio na forma de dedicatória em um de seus livros: “Ao padre Zé Leite, um santo capaz de doar sangue ao diabo”.

A gratidão por José Leite remontava há muitos anos. Figura extraordinária, o padre acompanhara-o durante “quarenta noites horríveis” no hospital, quando se recuperava da cirurgia na perna; tentara vê-lo na escala do navio Manaus em Maceió, no fatídico 1936; fora à Casa de Detenção visitá-lo e, não o conseguindo, deixara-lhe frutas na portaria; e agora não saía de sua cabeceira.

Outra visita comoveu muito Graciliano. Na sala, cumprimentou uma senhora de cabelos grisalhos, sem reconhecê-la.

– Grace, é Daia! – socorreria Heloísa.

Era Anália Ramos, a Daia, que em Palmeira dos Índios o ajudara a criar os filhos do primeiro casamento, após a morte de Maria Augusta. Não se viam há vinte anos. Procurou os olhos da irmã com uma expressão de felicidade e chorou abraçado a ela.

Os amigos apareciam religiosamente para distraí-lo com conversas sobre literatura e política. Acompanhado de Heráclio Salles, Paulo Motta Lima o emocionou ao recordar os anos em Viçosa, vasculhando as estantes do tabelião Jerônimo Barreto e aventurando-se nos primeiros sonetos parnasianos. Heráclio notou em seus olhos um brilho de orgulho quando lhe disse que daria ao filho que estava para nascer o nome de Luís Graciliano. Luís para homenagear Ludwig van Beethoven; Graciliano por causa dele.

– Mas que nome filho da puta você foi escolher para seu filho! – dissimulou.

Pelos jornais, mantinha-se informado do êxito da campanha “O petróleo é nosso” e das pressões da UDN e dos militares de direita contra o governo nacionalista de Getulio Vargas. Nunca perdoara Vargas pela voragem repressiva do Estado Novo, mas reconhecia avanços na prática política do caudilho, que não apenas criara a Petrobras como imprimia um rumo mais progressista à administração.

Mesmo doente, um dos passatempos favoritos de Graciliano era arranjar pretextos para provocar discussões com Ricardo, como este relembraria:

Uma vez, Júnio e Múcio viram uma discussão minha com papai em que um xingava a mãe do outro na maior intimidade e no maior desembaraço. Quando eu saí da sala, meus irmãos vieram me repreender: “Você é louco de discutir com o velho assim?”. Era porque os filhos do primeiro casamento não tinham essa intimidade com ele. Não sabiam que o velho tinha prazer de me fazer subir a serra e depois ir gozar de mim com mamãe. Na fase final da doença, eu fazia questão de entrar de cabeça nas provocações dele, embora tivéssemos, a essa altura, pontos de vista coincidentes. Ficaria chato se pensasse que o estava poupando com pena de seu estado de saúde. Polemizava com ele para continuar igual.

Sem mexer uma palha, sem ser consultado e sem sair de seu apartamento, Graciliano conseguiu a proeza de aglutinar a intelectualidade. As mágoas acumuladas nos anos de Guerra Fria foram esquecidas por mais de cem escritores, artistas e intelectuais de vários credos que se irmanaram para homenageá-lo por seus sessenta anos, no plenário da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. A Comissão de Amigos de Graciliano Ramos, organizadora do evento, refletia esse ecumenismo: de Menotti Del Picchia a Álvaro Moreyra, de Affonso Arinos a Candido Portinari, de José Lins do Rego a Vinicius de Moraes, de Gustavo Capanema a Astrojildo Pereira, de Manuel Bandeira a Dalcídio Jurandir.

A saúde debilitada o impediu de comparecer, mas acompanhou a solenidade pela cadeia formada pelas rádios Globo, Continental, Clube do Brasil, Roquete Pinto, Ministério da Educação e Cruzeiro do Sul. Peregrino Júnior leu a mensagem na qual os signatários afirmavam que o aniversariante era “autor de uma obra que, tanto pela qualidade literária como pelo conteúdo humano, dignifica a nossa cultura”.

Sete escritores discursaram: José Lins do Rego, Jorge Amado, Jorge de Lima, Peregrino Júnior, Haroldo Bruno, Afonso Félix de Sousa e Ary de Andrade. Em nome do homenageado, falou a filha Clara.

Na sua vez, Jorge Amado disse, com a voz embargada:

O seu entranhado amor à literatura, a dignidade com que exerce o mister de escritor, sua fidelidade às lutas do povo fazem de Graciliano Ramos uma das maiores figuras brasileiras de seu tempo. Essa é a sua imagem verdadeira, a que o povo ama, aquela que crescerá sempre com o passar do tempo e a transformação da vida, quando a miséria que ele descreveu tiver desaparecido, quando a angústia deixar de habitar o coração de seus personagens.

Ainda no dia 27 de outubro, telegramas de congratulações foram enviados de todo o país. A imprensa comunista lhe dedicou páginas e páginas, transcrevendo também a saudação do Secretariado Nacional do PCB: “Orgulha-nos ter em nossas fileiras o camarada Graciliano Ramos, das mais destacadas figuras da literatura brasileira e que honra as melhores tradições democráticas da nossa intelectualidade”.

Rodolfo Ghioldi mandou uma carta afetuosa:

Tens escrito com sangue, com alma e vida, como dizem os argentinos. Não te tens divertido, nem passado o tempo buscando as glórias e os aplausos. Para ti, escrever é um ofício – e que ofício! Todo aquele que aspire a saber como se enriquece uma língua terá de recorrer às tuas obras.

Os jornais publicaram artigos assinados por escritores e críticos sobre a sua trajetória. Rachel de Queiroz assinalou: “Graciliano sofreu prisão, pobreza, tragédias, doenças. Por tudo isso vem ele sofrendo muito, na alma e no corpo. Mas nunca se entregou ou cedeu”. Otto Maria Carpeaux, em nome dos colegas do Correio da Manhã, escreveu: “Há casos em que a obra não se pode separar da vida. Em Graciliano Ramos, por exemplo, não sabemos o que é superior: a obra do grande escritor ou a vida de um homem admiravelmente decente”.

Sensibilizado, Graciliano guardou em uma pasta os recortes das matérias, os telegramas e as mensagens. Aos amigos que encheram o seu apartamento, decorado com rosas vermelhas, reservou a cordialidade de seus agradecimentos tímidos. Quando todos se retiraram, comentou:

– Vou morrer. Amigos e inimigos, juntos, a homenagear-me... Isso foi homenagem póstuma.

No início de janeiro de 1953, seu estado de saúde piorou. Sentado na poltrona acolchoada por almofadas, reclamou das dores à escritora Dinah Silveira de Queiroz.

– Tenho um tijolo aqui – disse, apontando o peito.

Mas não destilou pessimismo, como receava Dinah: “Achamos Graciliano – tido como um ríspido... – cordial, recebendo com grandeza de coração os amigos cacetes que o foram importunar àquela hora”.

Semanas depois, Otto Lara Resende saiu do apartamento abalado: “A morte já lhe entrava portas adentro, vincava seu rosto e cortava seu fôlego. Mas ele pitava seu cigarrinho em paz, como se estivesse acima desse aborrecido limite da mortalidade”.

Na dedicatória de uma nova edição de Infância, Graciliano demonstrou a Paulo Mercadante a descrença na cura. “Este livro é uma despedida: com certeza não farei outro”.

No dia 25 de janeiro, foi internado na Casa de Saúde São Victor, em Botafogo, com as despesas custeadas por contribuições obtidas pelo PCB. Na varanda, ele e Heloísa passavam parte do dia observando o movimento da rua ou recebendo visitas que ajudavam a desviá-lo das aflições.

Com paciência, Heloísa procurou levantar-lhe o ânimo. Um dia, ao ampará-lo para descer da cama, ela viveu um instante de grande emoção. Graciliano a olhou profundamente e disse com ternura:

– Ló, eu estou sentindo uma saudade enorme de você.

Os dois se abraçaram e Heloísa brincou:

– É por isso que não gosto de dar remédio para você. Esse remédio faz você ficar muito romântico.

Graciliano também surpreendeu Ricardo, que estava noivo e adiara o casamento com Marise em virtude da internação do pai:

– Até quando vai continuar enganando essa moça?

Os dois se casaram em 14 de março em uma cerimônia simples e foram vê-lo imediatamente. “O casamento se realizou logo para que a bênção do velho Graça os alcançasse”, afirmaria Paulo Mercadante. De fato, não poderiam esperar muito, porque, em meados de fevereiro, os médicos tinham lhe dado um mês de vida. Naquele dia, Mercadante o encontrou já caído, “mas os olhos ainda vivos e penetrantes, sorrindo-nos carinhosamente”.

Comoção semelhante Graciliano tivera nove dias antes ao ser informado da morte de Josef Stalin. Chegou a chorar. Sua maior preocupação era com a possibilidade de a União Soviética desmoronar, pondo a perder as conquistas do socialismo.

Graciliano e Heloísa evitaram até o fim falar da morte. “Não sei quem fingia mais, se ele ou eu”, lembraria ela. No dia em que o marido deixou entrever que não queria morrer, ela ainda assim teve forças para tentar contornar:

– Ateu tem medo de morrer?

– Não tenho medo. Mas é que ainda tenho tanto amor para dar...

Uma das últimas visitas foi a do ator Procópio Ferreira. No leito, Graciliano lhe pediu que declamasse o “Monólogo das mãos”, extraído da peça Vendedor de ilusões, de Oduvaldo Vianna. Com o coração palpitando, Procópio o atendeu.

A intensidade das dores minava-lhe completamente a resistência.

– Ló, quando é que essa moça vem? – perguntava, já impaciente com o padecimento prolongado.

Não podia dispensar a enfermeira que lhe aplicava contínuas injeções de morfina.

No dia 19 de março, pela primeira vez, Graciliano não se ergueu na cama. Depois de examiná-lo, Reginaldo Guimarães percebeu em seu olhar a fadiga de quem não desejava mais duelar com a morte. Ao escritor Amando Fontes, que o visitara na véspera, dera o indício:

– Estou liquidado.

A vida se findava na breve e efêmera terra dos homens. Às 5h35m de 20 de março de 1953, Graciliano cerrou os olhos para sempre, as mãos nas mãos de Heloísa.