9
O zeloso Perigrew estava a interrogar Smiley sobre o colonialismo. Mais tarde ou mais cedo, Perigrew interrogava toda a gente que vinha a Sarratt sobre o colonialismo e as suas perguntas roçavam sempre o ofensivo. Era um rapaz perturbado, filho de missionários britânicos na África Ocidental, e uma daquelas pessoas que o Serviço é quase obrigado a empregar, devido aos seus raros conhecimentos e qualificações linguísticas. Estava sentado, como habitualmente, sozinho, entre as sombras do fundo da biblioteca, o rosto magro espetado para a frente e uma comprida mão levantada como que para se defender do ridídulo. A pergunta tinha começado de modo razoável, degenerando a seguir numa tirada contra a indiferença britânica relativamente aos seus antigos súbditos escravizados.
– Sim, bem, acho que estou mais ou menos de acordo consigo – disse Smiley cortesmente, para surpresa generalizada, depois de ter ouvido Perigrew até ao fim. – A triste resposta, receio bem, é que a Guerra Fria produziu em nós uma espécie de colonialismo por delegação. Por um lado abandonámos praticamente todos os elementos da nossa identidade nacional à política externa americana. Por outro, obtivemos uma suspensão da execução para a nossa perspetiva da personalidade colonial. Pior ainda, encorajámos os americanos a comportarem-se da mesma maneira. Não que eles precisassem de encorajamento, mas ficaram satisfeitos com ele, naturalmente.
Hansen tinha dito uma coisa muito parecida. E numa linguagem muito parecida. Mas, ao passo que Smiley mal perdera a urbanidade, Hansen assentara-me no rosto um ar carrancudo, de olhos iluminados pelos vermelhos infernos dos quais regressara.
Segui de avião de Israel para Banguecoque porque Smiley dizia que Hansen tinha endoidecido e sabia demasiados segredos: uma mensagem a decifrar pelo próprio, ao cuidado do chefe do posto de Telavive. Smiley estava à data encarregado da segurança do Serviço, com a categoria honorária de chefe adjunto. Sempre que ouvia falar dele, andava aparentemente a correr de um lado para outro a fim de estancar outra fuga ou outro escândalo. Passei o fim de semana debaixo de uma onda de calor, percorrendo a suar a rima de dossiês entregues em mão, e uma hora ao telefone a aplacar Mabel, que tinha caído na última barreira da sua corrida anual com vista à liderança feminina do nosso clube de golfe local e andava a farejar intrigas.
Não sei por que razão são tão duros para com Mabel. Talvez seja a sua maneira de falar claro que os afugentara. Fiz o que podia. Disse-lhe que nada daquilo com que deparara no Serviço se podia comparar com as trapaças daquelas esposas de Kent. Prometi-lhe umas férias esplêndidas quando regressasse. Esqueci-me de onde iam ser as férias porque nunca as gozámos.
O dossiê de Hansen forneceu-me o retrato de um tipo com o qual me familiarizara porque utilizávamos bastantes exemplares dele. Eu próprio o era, e Ben também: o inglês atravessado que adota o Serviço como pátria e lhe atribui um conjunto de qualidades que na realidade não tem.
Como eu, Hansen era meio holandês. Talvez fosse por isso que Smiley me tinha escolhido. Nascera na longa noite da ocupação germânica da Holanda e crescera à sombra da catedral de Delft. A mãe, empregada de balcão na agência Thomas Cook, era filha de pais ingleses que a instaram a regressar a Londres com eles ao estalar a guerra. Ela recusara, optando antes por casar com um coadjutor de Delft, que um ano depois fora alvejado por um pelotão de fuzilamento alemão, deixando a esposa grávida a defender-se sozinha. Destemida, alistara-se numa organização de fugas britânica e, ao terminar a guerra, estava encarregada de uma rede perfeitamente adestrada, com as suas próprias comunicações, informadores, casas seguras e o equipamento habitual. O trabalho da minha mãe no Serviço não fora muito diferente.
Quanto às vias pelas quais o pequeno Hansen fora parar aos Jesuítas, o dossiê era omisso. Talvez a mãe se tivesse convertido. Ainda eram anos negros e, se o expediente o exigisse, ela podia ter engolido as suas convicções protestantes a fim de conseguir uma educação decente para o rapaz. Dando eu a sua alma aos Jesuítas, podia ela ter pensado, eles dar-lhe-ão um cérebro. Ou talvez tivesse pressentido desde cedo no filho a natureza mercurial que mais tarde lhe governara a vida e decidisse subordiná-lo a uma disciplina religiosa mais forte que a proporcionada pelos bonacheirões protestantes. Sendo esse o caso, foi sensata. Hansen abraçou a fé como abraçava tudo o mais, com paixão. Pertenceu às freiras, pertenceu aos irmãos, pertenceu aos padres e pertenceu aos eruditos. Até que, aos vinte e um anos, instruído e devoto mas ainda novato, fora despachado para um seminário na Indonésia a fim de aprender os costumes dos pagãos: Samatra, Molucas, Java.
O Oriente parece ter sido um amor instintivo de Hansen como o é para muitos holandeses. O bom holandês, como o proverbial pinheiro de Heine, é capaz de se postar nas costas do seu pequeno e plano país e farejar os odores indianos de erva-cidreira e panelas de cozinha no ar fresco do mar. Hansen chegou, viu e ficou conquistado. O budismo, o islão, os ritos e superstições dos mais remotos selvagens – a tudo isso se atirou com um fervor que, quanto mais se internava na selva, mais recrudescia.
Possuía também uma aptidão natural para as línguas. Ao holandês e ao inglês nativos tinha acrescentado sem esforço o francês e o alemão. Agora aprendera o tâmil, o khmer, o tailandês, o sânscrito e qualquer coisa mais que umas luzes de cantonês, percorrendo muitas vezes centenas de quilómetros em terreno acidentado na sua busca de um dialeto ou elo ritual desaparecido. Escreveu artigos sobre filologia, ritos nupciais, iluminações e macacos. Descobriu templos perdidos internados na selva e obteve prémios que a Companhia o proibiu de aceitar. Após seis anos de intrépidas explorações e investigações, não era apenas o género de modelo académico pelo qual os Jesuítas são famosos; era também um padre consumado.
Mas poucos segredos conseguem sobreviver seis anos. Aos poucos, as histórias a respeito dele começaram a adquirir o seu lado mau: as trapaças de Hansen; os apetites de Hansen; não olhem para lá agora, mas vem ali uma das raparigas do Hansen.
Foi tanto a escala como a duração que o perderam: o facto de, ao começarem a sondar, não encontrarem um recanto da sua vida que estivesse imune, nenhuma jornada que não tivesse o seu desvio. Uma mulher aqui e além – um ou dois rapazes – bem, pelo que eu vi dos padres por todo o mundo, encontram-se mais pecadilhos desses nos observantes que nos transgressores.
Mas esse prazer desenfreado em cada kampong, em cada reles rua lateral, essa infatigável devassidão, exibida, conforme agora descobriram, mesmo nas suas barbas durante mais de uma década, com raparigas que, segundo os cânones ocidentais, mal teriam idade para a primeira comunhão, quanto mais para o leito nupcial – e muitas delas sob a própria proteção da Igreja – tornaram Hansen repentina e pateticamente insustentável. Confrontado com as provas de tão prolongado e aturado pecar, o superior reagiu mais com desgosto que com indignação. Ordenou a Hansen que regressasse a Roma e enviou previamente uma carta dirigida ao geral da Companhia. De Roma, disse tristemente a Hansen, o mais provável era ir para Loyola, em Espanha, onde competentes psicoterapeutas jesuítas o ajudariam a dominar a sua lamentável fraqueza. Depois de Loyola – bem, um novo começo, talvez um hemisfério diferente, uma década diferente.
Mas Hansen, tal como a mãe fizera já, recusou-se teimosamente a abandonar o seu lugar de adoção.
Embaraçado, o padre-guardião despachou-o para uma missão distante, nos montes, chefiada por um tradicionalista da mais severa escola, onde Hansen sofreu a ferocidade da detenção domiciliária. Vigiavam-no como a um louco. Proibiam-no de ultrapassar os limites da casa e negavam-lhe os livros, o papel, a companhia e o riso. Cada homem reage de modo diverso à prisão, como reage às alturas, ao frio ou à morte. Hansen reagiu terrivelmente e, passados três meses, não podia mais. Quando os irmãos guardiões o escoltavam para a missa, empurrou um deles pela escada abaixo enquanto o outro se punha em fuga. A seguir dirigiu-se novamente a Jacarta e, sem dinheiro nem passaporte, viveu clandestinamente nos bordéis que sobejamente conhecia. As raparigas tomaram-no sob a sua proteção e, em contrapartida, ele fazia de chulo e de encarregado da segurança. Servia cervejas, lavava copos, punha fora os desordeiros, ouvia confissões, prestava auxílio e brincava com as crianças no quarto das traseiras. Imagino-o, como hoje o conheço, a fazer tudo isso sem estardalhaço nem complicações. Ainda mal fizera trinta anos e o seu desejo conservava o ardor de sempre. Até que um dia, cedendo como tão frequentemente a um impulso, Hansen se barbeou, vestiu uma camisa lavada e se apresentou ao cônsul britânico a fim de reivindicar a sua alma britânica.
E o cônsul, que não era surdo nem cego, mas sim um velho membro do Serviço, escutou a história de Hansen, fez uma ou duas perguntas insípidas e, por detrás de uma máscara de apatia, passou rapidamente à ação. Andava há anos à procura de um homem com os dotes de Hansen. A indocilidade de Hansen não dissuadiu minimamente o cônsul: agradou-lhe. Telegrafou para Londres pedindo os seus antecedentes; emprestou a Hansen prudentes quantias em dinheiro a troco de recibos em triplicado, pois não queria mostrar um entusiasmo descabido. Quando Londres respondeu com um cadastro impecável da mãe de Hansen, referindo que ela era ex-agente do Serviço, o cônsul não coube em si de contente.
Passado mais um mês Hansen estava semiconsciente, o que significa que sabia, mas só em parte, mas também pode ser que não soubesse, que possivelmente estava mais ou menos em contacto com aquilo a que se poderia chamar em termos latos os Serviços de Informações britânicos. Mais dois meses e, irrequieto como sempre, dava um salto ao Sul de Java, ostensivamente em busca de pergaminhos antigos, mas na realidade para informar o cônsul sobre a amplitude da subversão comunista, que era o seu anticristo de adoção recente. No final do ano era expedido para Londres, levando no bolso o passaporte britânico novinho em folha que pretendia, embora noutro nome que não o seu.
Consultei o resumo do seu currículo relativo ao período de instrução, percorrendo os seis meses inteiros. Quem estava à frente de Sarratt era Clive Bellamy, um esgalgado e malicioso educando de Eton. «Excelente em tudo o que é de ordem prática», escrevera ele na apreciação de final de curso de Hansen. «Tem uma memória de primeira, reações prontas e é autossuficiente. Precisa de pulso firme. Se alguma vez houver um motim no meu navio, Hansen há de ser o primeiro homem que açoitarei. Precisa de muita peneira e de um controlador dos bons.»
Passei ao currículo operacional. Tão-pouco aí havia algo de loucura. Uma vez que Hansen ainda era holandês, a Sede decidiu mantê-lo como tal e minimizar a sua condição de inglês. Hansen empertigou-se, mas rejeitaram os seus protestos. Numa época em que os britânicos no estrangeiro eram encarados por toda a gente menos por eles próprios como americanos sem influência, a Sede seria capaz de matar por um sueco e de roubar por um alemão-ocidental. Mesmo os canadianos, embora de manufatura mais fácil, eram apreciados.
De regresso à Holanda, Hansen formalizou o seu rompimento com os Jesuítas e pôs-se à procura de novo emprego no Oriente. Nesses tempos havia uma série de instituições académicas orientais espalhadas pelas capitais da Europa Ocidental. Hansen correu-as todas, averbando uma promessa aqui e um compromisso além. Uma agência noticiosa francesa do Oriente recrutou-o como correspondente a tempo parcial. Um semanário londrino, depois de uma palavrinha da Sede, arranjou-lhe um buraco com a condição de o ter de graça. Até que, pedaço a pedaço, a sua cobertura ficou completa: suficientemente ampla para ele ter razões para ir onde quer que fosse e fazer as perguntas que quisesse e suficientemente variada para ser financeiramente impenetrável, dado que nunca ninguém seria capaz de descobrir qual dos seus diversos patrões lhe estava a pagar quanto nem por quê. Estava pronto para ser largado. Os interesses britânicos no Sueste Asiático podiam ter minguado juntamente com o Império, mas os Americanos estavam lá enfiados até aos joelhos com uma guerra oficial a decorrer no Vietname, outra oficiosa no Camboja e outra secreta no Laos. No nosso desagradável papel de acompanhantes das tropas, tínhamos o maior prazer em oferecer-lhes os preciosos talentos de Hansen.
A tecnologia da espionagem é capaz de uma porção de coisas. Pode fotografar colheitas, trincheiras, tanques, plataformas de mísseis, rodados de pneus e a migração das renas. Pode encolher-se ao som de um piloto de caça russo a dar um traque a quarenta mil pés ou de um general chinês a arrotar durante o sono. Mas não pode substituir o entendimento humano. Não pode dizer-nos o que vai na alma de um agricultor cambojano cujas colheitas nos montes foram feitas em pedaços pelos bombardeiros sem marcas de identificação do Dr. Kissinger, cujas filhas foram vendidas para a prostituição na cidade e cujos filhos foram induzidos a abandonar os campos e a combater num exército fantoche dos Americanos, ou instados, para garantir a segurança familiar, a alistarem-se nos Khmers Vermelhos. Não pode ler nos lábios dos combatentes da selva de pijama negro cuja arma mais poderosa é o marxismo pervertido de um sanguinário psicopata cambojano educado na Sorbonne. Não pode farejar os gases de escape de um exército não mecanizado. Nem furar os códigos de um exército sem rádio. Nem calcular as provisões de homens que são capazes de se alimentar de carochas e de cascas de árvores; nem tão-pouco o moral daqueles que, tendo perdido tudo quanto possuem, têm apenas o futuro a ganhar.
Mas Hansen podia. Hansen, o asiático adotivo, podia caminhar sem comida durante uma semana, agachar-se nos kampongs e escutar o murmúrio dos aldeões; Hansen podia perceber o vento crescente da sua resistência muito antes de ele agitar a bandeira das listas e estrelas nos telhados das embaixadas de Phnom Penh e Saigão. E podia dizer aos bombardeiros – e, para seu ulterior remorso, assim fez –, podia dizer aos bombardeiros americanos quais as aldeias que serviam de abrigo ao Vietcongue. Era também um pescador de homens. Podia recrutar ajudantes de todos os estratos sociais e ensiná-los a ver e ouvir, a recordar e relatar. Sabia o pouco e o muito que havia de dizer-lhes, como recompensá-los e quando não o fazer.
Durante meses, e depois anos, Hansen funcionou dessa maneira nas chamadas «zonas libertadas» do Norte do Camboja onde os Khmers Vermelhos nominalmente dominavam, até ao dia em que desapareceu da aldeia que tinha feito seu lar. Desapareceu silenciosamente, levando com ele os habitantes. Não tardou que o dessem como morto, mais um desaparecido na selva.
E morto se manteve até há pouco tempo, ao aparecer vivo num bordel de Banguecoque.
– Demore o tempo que quiser, Ned – instara-me Smiley pelo telefone para Telavive. – Se quiser acrescentar um par de dias por causa dos efeitos da diferença horária, por mim tudo bem.
O que na linguagem de Smiley queria dizer: «Vá ter com ele o mais depressa que puder e diga-me que não tenho entre mãos outro escândalo descomunal.»
O nosso chefe de posto em Banguecoque era um malcriado tiranete, calvo e de bigodes, chamado Rumbelow, com o qual eu nunca simpatizara. O Serviço reserva muitíssimo poucas perspetivas aos homens de cinquenta anos. A maior parte está queimada; muito estão cansados e desencantados de mais para se preocupar se o estão ou não. Outros encaminham-se para a banca privada ou para as grandes empresas, mas esses casamentos raramente são para durar. Aconteceu qualquer coisa à sua maneira de pensar que os torna impróprios para a vida a descoberto. Mas um escasso número, no qual se contavam Toby Esterhase e Rumbelow, têm a habilidade de fazer o Serviço refém das suas supostas virtudes.
Quais fossem exatamente as de Rumbelow, nunca descobri. Não seriam das mais honrosas, decerto, porque, se havia alguma coisa em que ele fosse especializado, era em baixeza humana. Corriam boatos de que tinha na mão um par de generais tailandeses corruptos que se prestavam a trabalhar para ele e para mais ninguém. Propalava-se também que tinha conseguido fazer um sujo favor intransmissível a um membro da casa real. Fosse qual fosse o poder que sobre eles detinha, os barões do Quinto Andar nem queriam ouvir dizer mal dele.
– E, por amor de Deus, não se abespinhe com o Rumbelow, Ned – implorara-me Smiley. – Tenho a certeza de que ele é intragável, mas precisamos mesmo dele.
Encontrei-me com ele no meu quarto do hotel. Para o mundo aberto eu era Mark Seymour, profissão guarda-livros, e não fazia tenções de me mostrar nem na embaixada nem em casa dele. Tinha feito vinte horas de voo. Entardecia. Rumbelow falava como um corretor de apostas de Eton. Por falar nisso, também tinha ar de o ser.
– Foi uma pura sacana de coincidência darmos sequer de caras com o filho da mãe – disse-me ele irritadamente. – E claro que a pessoa põe as antenas no ar. A pessoa cola o ouvido ao proverbial terreno. A pessoa já sabe do que a casa gasta. Já ouviu falar de outros casos. Não é insensível. Não gosta de imaginar um agente amarrado a um pau, a ser carregado através da selva durante semanas a fio, enquanto os Khmers Vermelhos o torturam até mais não poder ser, evidentemente. Não é nenhuma avestruz. Está a par das coisas. Estes homens de cor não obedecem às regras do jogo limpo – assegurou-me, como se eu tivesse dado a entender o contrário. E, tirando um lenço da manga do fato manchado de suor, enxugou o estúpido bigode com ele. – A seguir a uma noite naquilo, o agente vulgar pediria aos gritos uma bala rápida.
– Tem a certeza de que foi o que lhe aconteceu?
– Não tenho a certeza de coisa nenhuma, obrigado, meu velho. Boatos, mais nada. Como é que eu posso mesmo ter a certeza, se o filho da mãe nem sequer está na disposição de falar connosco? Ameaça com a violência se tentarmos! Tanto quanto eu sei, os KV nunca o viram nem ouviram. Nunca confiei nos holandeses por aqui: julgam que são donos do caraças do país. O Hansen não seria nem pouco mais ou menos o primeiro agente a fingir-se morto quando as coisas aquecem de mais para o seu gosto e a voltar todo lampeiro depois de tudo terminar, para pedir o respetivo penduricalho e a pensão. Ainda está na posse de todos os dedos e polegares, ao que toda a gente diz. E tão-pouco lhe falta qualquer outra porção da anatomia, a julgar pelo sítio onde está encafuado. O Duffy Marchbanks deu com ele. Lembra-se do Duffy? Bom tipo.
Caiu-me a alma aos pés: lembrava-me de Duffy, sim. Tinha-me lembrado dele quando vira o seu nome no dossiê. Era um flamante rufião baseado em Hong Kong, com uma certa predileção por negócios rápidos de qualquer ramo que fosse, do ópio aos cunhetes de artilharia. Durante alguns mal-avisados anos tínhamos financiado o seu escritório.
– Foi mesmo pura sorte da parte do Duffy. Tinha aparecido por cá numa visita-relâmpago. Um dia, apenas. Um dia e uma noite, para a seguir regressar à patroa e à leitura. Havia um consórcio de tempos livres nas águas territoriais que queria que ele comprasse uns quatrocentos hectares de orla costeira da melhor qualidade para eles. Fez o negócio e a seguir toca a irem todos àquele restaurante de meninas, o Duffy e um punhado dos seus negociantes: o Duffy não é nada avesso a dar a sua penachada, nunca foi. A casa chama-se O Mar da Felicidade e fica mesmo no meio do bairro da prostituição. É assim um estabelecimento de gente fina, tanto quanto os há, ao que me consta. Tem quartos particulares, comida decente desde que a pessoa goste de chinesices, o pessoal é sério e as raparigas deixam a pessoa sossegada a não ser que se lhes peça o contrário.
Nos restaurantes de meninas, explicou ele, conseguindo de certo modo dar a entender que nunca tinha ido pessoalmente a nenhum, havia jovens hospedeiras, vestidas ou despidas, que se sentavam entre os fregueses e os alimentavam de comida e bebida enquanto os homens tratavam de negócios. Além disso, O Mar da Felicidade dispunha de um salão de massagens, de uma discoteca e de um teatro no andar de baixo.
– O Duffy fecha o negócio com o consórcio, recebe o cheque e fica que nem um lírio. De forma que resolve presentear-se com uma das meninas. Combinadas as condições, aí vão eles para um cubículo. A rapariga diz que tem sede; que tal uma garrafa de champanhe para a animar? Tem comissão, claro: todas têm. Não faz mal. O Duffy sente-se expansivo, de forma que responde: porque não? A rapariga toca uma campainha, guincha pelo intercomunicador e, quando o Duffy dá por ela, entra por ali dentro aquele europeu enorme como o caraças com um balde de gelo e um tabuleiro. Poisa-o, o Duffy dá-lhe vinte baht, o fulano responde «obrigado» em inglês, bastante delicado mas nada de sorrisos, e põe-se a andar. É o Hansen. O Hansen da selva. Não é nenhum retrato... É ele mesmo!
– Como é que o Duffy percebe?
– Viu a fotografia dele, não viu?
– Porquê?
– Porque mostrámos o caraças da fotografia ao Duffy, valha-me Deus, quando o Hansen foi dado como desaparecido! Mostrámo-la a toda a gente que conhecíamos, no sacana do hemisfério inteiro! Não dissemos porquê: limitámo-nos a dizer: se virem este homem, apitem. Ordens da Sede, descanse, não foi ideia minha. Eu, por mim, achei a coisa insegura como o caraças.
A fim de se acalmar, Rumbelow serviu-nos outro uísque.
– O Duffy regressa num ápice ao hotel e telefona-me imediata-mente. Três da manhã. «É o seu fulano», diz-me ele. «Qual fulano?», digo eu. «O fulano do qual me mandou aquela bonita fotografia, em Hong Kong, há um ano ou mais. É empregadote numa casa de passe chamada O Mar da Felicidade.» Você conhece a maneira de falar do Duffy. Solta. Mandei lá o Henry no dia seguinte. O sacana do pateta deitou tudo a perder. Ouviu falar disso, espero eu, não? Típico.
– O Duffy falou com o Hansen? Perguntou-lhe quem ele era? Alguma coisa?
– Nem uma palavra. Olhou para ele perfeitamente como se não o visse. O Duffy é da velha escola. É do melhor que há. Sempre foi.
– Onde está o Henry?
– Sentado lá em baixo no átrio.
– Mande-o vir cá acima.
Henry era chinês, filho de um generalíssimo do Kuomintang dos estados de Shan e nosso principal agente local, embora eu desconfie que ele tinha arranjado um resseguro com a polícia tailandesa e ganhava calmamente a vida a incitar ambos os extremos contra o meio.
Era um fulano atarracado, luzidio e extremamente ávido, que sorria demasiado. Usava um fio de ouro ao pescoço e trazia consigo um bloco de apontamentos de pele com uma caneta de ouro. O seu trabalho de cobertura era o de tradutor. Nenhum tradutor que eu alguma vez tenha conhecido ostentava um bloco de apontamentos Gucci, mas Henry era diferente.
– Conte ao Mark a figura de parvo que fez no Mar da Felicidade na quinta-feira à noite – ordenou ameaçadoramente Rumbelow.
– Com certeza, Mike.
– Mark – disse eu.
– Com certeza, Mark.
– As ordens que tinha eram de dar uma vista de olhos. Era tudo o que devia fazer – intrometeu-se Rumbelow antes que Henry pudesse contar fosse o que fosse. – Dar uma vista de olhos, cheirar, sair e telefonar-me. Não é verdade, Henry? Devia engendrar a história, farejar, ver se podia localizar o Hansen em algum lado, não abordá-lo, e trazer-me informações. Um reconhecimento discreto, sem estabelecer qualquer contacto. Farejar e informar. Agora conte lá ao Mark o que fez.
Primeiro tinha tomado uma bebida no bar, disse Henry; depois assistira ao espetáculo. A seguir tinha chamado a Mamã San, que se apressara a vir ao seu encontro, julgando que ele tinha algum desejo especial. A Mamã San era uma chinesa da mesma província que o pai de Henry, de forma que havia entre eles um vínculo imediato.
Mostrara à Mamã San o seu cartão de tradutor e dissera que estava a escrever um artigo sobre o seu estabelecimento: a comida soberba, as românticas raparigas, os elevados padrões de sensibilidade e de higiene, especialmente de higiene. Disse que tinha uma encomenda de uma revista turística alemã que só recomendava os melhores estabelecimentos.
A Mamã San mordera a isca e acompanhara-o num visita a toda a casa. Mostrara-lhe as salas de jantar particulares, as cozinhas, os cubículos e as casas de banho. Apresentara-o às meninas – e oferecera-lhe uma por conta da casa, que ele declinou –, ao chefe dos cozinheiros, ao porteiro e aos encarregados da segurança, mas não, por acaso, ao enorme homem de olhos redondos que Henry por essa altura já tinha visto três vezes, uma a levar uma bandeja de copos das salas de jantar particulares para as cozinhas, outra a atravessar o corredor empurrando um carrinho de garrafas e outra ainda a sair de uma porta de aço que aparentemente conduzia à arrecadação das bebidas.
– Mas quem é aquele vosso farang que transporta as garrafas? – exclamara Henry, divertido, à Mamã San. – Teve de ficar cá a trabalhar por não poder pagar a conta?
A Mamã San riu-se igualmente. Contra os farangs, ou ocidentais, todos os asiáticos se sentiam naturalmente unidos.
– O farang vive com uma das nossas raparigas cambojanas – respondeu desdenhosamente, pois os cambojanos estão ainda mais abaixo que os farangs e vietnamitas na zoologia tailandesa. – Conheceu-a cá e apaixonou-se por ela, de forma que tentou comprá-la e fazer dela uma senhora. Mas ela recusou-se a deixar-nos. Por isso ele trá-la todos os dias para o trabalho e fica cá até ela estar livre para regressar a casa.
– Que espécie de farang é ele? Alemão? Inglês? Holandês?
A Mamã San encolheu os ombros. Qual era a diferença? Henry insistiu com ela. Mas um farang que traz a mulher para o bordel e anda a servir bebidas enquanto ela vai com outros homens, insistiu, e a seguir a leva novamente a casa para a sua própria cama? Deve ser uma rapariga e peras!
– É a número dezanove – disse a Mamã San, encolhendo os ombros. – O nome dela aqui na casa é Amanda. Quere-a?
Mas Henry estava demasiadamente entusiasmado com o seu furo jornalístico para se deixar desviar.
– Mas o farang, como é que se chama? Qual é a sua história? – exclamou, divertidíssimo.
– Chama-se Ham Sin. Fala tailandês connosco e khmer com a rapariga, mas não o ponha na sua revista, porque ele está ilegal.
– Posso mascará-lo. Posso mascarar tudo. A rapariga também gosta dele?
– Prefere estar aqui no Mar da Felicidade com as amigas – disse empertigadamente a Mamã San.
Henry não resistiu a dar uma olhadela. As raparigas que não estavam com clientes achavam-se reclinadas em bancos de pelúcia por trás de uma parede de vidro, com um número pendurado ao pescoço e mais nada em cima do corpo, ao mesmo tempo que conversavam entre si ou arranjavam as unhas ou olhavam vagamente para um televisor mal sintonizado. Enquanto Henry observava, a número 19 levantou-se, respondendo a uma chamada, pegou na malinha e num embrulho e saiu da sala. Era muito jovem. Muitas raparigas mentiam acerca da idade a fim de iludir a lei: especialmente as cambojanas sem um chavo. Mas esta rapariga, dizia Henry, não parecia ter mais de quinze anos.
Foi nessa altura que o excesso de zelo de Henry começou a desnorteá-lo. Despediu-se da Mamã San e levou o carro para uma viela fronteira à entrada das traseiras, onde se instalou à espera. Pouco após a uma hora, o pessoal começou a sair, incluindo Hansen, que tinha o dobro da altura de qualquer dos outros, de braço dado com a número 19. No largo, Hansen e a rapariga olharam em volta à procura de um táxi. Àquela hora da noite os chulos e os taxistas ilegais vicejam, e Henry tinha sido ambas as coisas nos seus tempos, de forma que talvez a ação lhe tenha ocorrido naturalmente.
– Para onde quer o senhor ir? – perguntou a Hansen em inglês. – Quer que o leve?
Hansen deu uma morada num subúrbio pobre oito quilómetros a norte. Acordou-se o preço e Hansen e a rapariga entraram para o assento de trás do automóvel; puseram-se em marcha.
Henry começou então a perder realmente a cabeça. Entusiasmado com o seu êxito, resolveu, sem que mais tarde fosse capaz de explicar por que razão, que a melhor linha de ação seria depositar a sua presa e a rapariga em casa de Rumbelow, que ficava, não para norte, mas para oeste. Claro está que não tinha prevenido Rumbelow desta ousada manobra; mal se preparara a si próprio para ela. Não tinha garantias de que Rumbelow estivesse em casa, nem em condições, à uma e meia da manhã, de conduzir uma conversa com um antigo espião que desaparecera do mapa durante dezoito meses. Mas o raciocínio, naquele momento, não era o que prevalecia no espírito de Henry. Era um agente e não há neste mundo nenhum agente que, uma ou outra vez na vida, não faça qualquer coisa absolutamente disparatada.
– Gosta de Banguecoque? – perguntou jovialmente Henry a Hansen, na esperança de distrair os passageiros do rumo que levava.
Não houve resposta.
– Há muito tempo que cá está?
Não houve resposta.
– A moça é jeitosa. Novinha. Muito bonita. É a sua rapariga habitual?
A rapariga tinha a cabeça apoiada no ombro de Hansen. Tanto quanto Henry podia ver pelo espelho, estava já a dormir. Por qualquer razão, o facto de se aperceber disso ainda entusiasmou mais Henry.
– Quer um alfaiate, senhor? Um alfaiate que trabalha toda a noite, muito bom? Eu levo-o lá. Um bom alfaiate.
E meteu impetuosamente por uma rua lateral, fingindo procurar o seu miserável alfaiate, ao mesmo tempo que se precipitava para a casa de Rumbelow.
– Porque é que vai para oeste? – perguntou Hansen, falando pela primeira vez. – Não quero ir para aí. Não quero nenhum alfaiate. Volte à rua principal.
Henry perdeu o último resquício de senso comum. De repente ficou aterrorizado com o tamanho de Hansen e com a vantagem tática de que ele dispunha pelo facto de ir sentado atrás dele. E se Hansen estivesse armado? Henry calcou o travão e parou o carro.
– Mr. Hansen, senhor, eu sou seu amigo! – exclamou em tailandês, quase como se estivesse a implorar misericórdia. – Mr. Rumbelow também é seu amigo. Tem orgulho em si! Quer dar-lhe uma porção de dinheiro. Venha comigo, por favor. Não há problema. Mr. Rumbelow ficará muito satisfeito ao vê-lo.
Foi a última fala de Henry nessa noite, pois, mal deu por isso, Hansen empurrava as costas do assento de Henry com tanta força que por pouco não lhe enfiou a cabeça pelo para-brisas dentro. Hansen saiu do carro e puxou Henry para a rua. Depois disso, Hansen içou Henry até pô-lo de pé e atirou com ele para o outro lado da rua, para consternação de um grupo de mendigos adormecidos, que começaram a choramingar e a vociferar enquanto Hansen caminhava até ao local em que Henry estava caído e o fulminava com o olhar.
– Diga ao Rumbelow que, se vier à minha procura, mato-o – disse em tailandês.
A seguir conduziu a rapariga pela rua fora à procura de um táxi melhor, com um braço a rodear-lhe a cintura enquanto ela dormitava.
Depois de ter ouvido a história dos dois homens até ao final, senti-me de súbito terrivelmente cansado.
Mandei-os embora, dizendo a Rumbelow que me chamasse na manhã seguinte. Disse que, antes de mais nada, ia dormir para me recompor da diferença de horas. Deitei-me e fiquei de imediato completamente desperto. Uma hora mais tarde, comparecia no Mar da Felicidade e comprava um bilhete por cinquenta dólares. Descalcei os sapatos, como exigia o costume, e momentos depois estava de pé no cubículo iluminado a néon, de meias, a olhar para as feições passivas e exageradamente pintadas da rapariga número 19.
Vestia um grosseiro robe de seda com tigres, mas aberto a partir do pescoço. Por baixo dele estava nua. Tinha a pele coberta de uma carregada pintura de estilo japonês. Sorriu-me e deitou-me a mão às virilhas, mas eu voltei a colocar-lha ao longo do corpo. Era tão franzina que se afigurava misterioso que estivesse à altura do trabalho. Tinha as pernas mais compridas que a maioria das asiáticas e a pele invulgarmente pálida. Despiu o robe e, antes que eu pudesse detê-la, atirou-se para a puída espreguiçadeira, onde compôs aquilo que imaginava ser uma postura erótica, acariciando-se e soltando suspiros de desejo. Deitou-se de lado, com o traseiro espetado, lançando o cabelo negro por cima do ombro de forma a que os pequenos seios espreitassem através dele. Ao ver que eu não me adiantava para ela, deitou-se de costas e abriu as coxas e empinou a pélvis, chamando-me «querido» e dizendo «por favor». Virou-se de costas para mim, num movimento rápido, para que eu pudesse admirar a perspetiva por detrás, mantendo as pernas abertas à guisa de convite.
– Senta-te – disse eu, de forma que ela se sentou e esperou que eu me juntasse a ela.
– Veste o robe – disse eu.
Como ela parecesse não perceber, ajudei-a a vesti-lo. Henry tinha escrito um recado para mim em khmer. «Quero falar com o Hansen», dizia ele. «Estou em condições de obter documentos tailandeses para ti e para a tua família.» Entreguei-lho e vi-a examiná-lo. Saberia ler? Não tinha maneira de o saber. Estendi-lhe um vulgar envelope branco dirigido a Hansen. Ela pegou nele e abriu-o. A carta estava dactilografada e o seu tom não era meigo. Continha dois mil baht.
«Como velho amigo do padre Vernon», escrevera eu, utilizando a palavra de código com que ele estava familiarizado, «devo adverti-lo de que faltou ao contrato com a nossa sociedade. Assaltou um cidadão tailandês e a sua namorada é uma imigrante clandestina cambojana. Podemos não ter outra alternativa a não ser transmitir essa informação às autoridades. O meu carro está estacionado do outro lado da rua. Dê o dinheiro junto à Mamã San como pagamento para o dispensar esta noite e venha ter comigo dentro de dez minutos.»
Ela abandonou o cubículo, levando consigo a carta. Até então não me tinha apercebido do barulho que havia no corredor: a música aos berros, o riso metálico, os murmúrios de desejo, o assobio da água a correr pelos canos escalavrados.
S
Tinha deixado o carro aberto e ele estava sentado no banco de trás, com a rapariga ao lado. Fosse pelo que fosse, não duvidara de que ele traria a rapariga. Era grande e poderoso, coisa que eu já sabia, e macilento. Na semiobscuridade, com a barba preta e os olhos encovados e as mãos magras tensamente enclavinhadas no espaldar do assento traseiro, parecia-se mais com um dos santos que outrora venerara do que com a fotografia da sua ficha. A rapariga estava afundada no banco ao seu lado, abrigando-se de encontro ao corpo dele. Ainda não tínhamos andado cem metros quando se abateu sobre nós uma pancada de água que parecia uma cascata. Encostei à berma enquanto cada um de nós se punha a olhar pelo para-brisas encharcado, a ver as torrentes de água a acumularem-se nas valetas e nos buracos da estrada.
– Como é que veio parar à Tailândia? – gritei em holandês. A chuva trovejava no tejadilho.
– A pé – respondeu Hansen em inglês.
– Por onde entrou? – gritei, também em inglês.
Disse o nome de uma cidade. Pareceu-me qualquer coisa como «Orania Prathet». O dilúvio parou e eu guiei durante três horas enquanto a rapariga dormitava e Hansen lhe velava o sono, alerta como um gato e igualmente silencioso. Eu tinha escolhido um hotel na praia anunciado no Nation de Banguecoque. Queria-o fora do seu meio ambiente e noutro que eu controlasse. Levantei a chave e paguei uma noite adiantada. Hansen e a rapariga seguiram-me por um caminho de acesso cimentado até à praia. Os bangalós ficavam num semicírculo virado para o mar. O meu ficava num dos extremos. Abri a porta e entrei adiante deles. Hansen entrou a seguir, e depois a rapariga. Liguei a luz e o ar condicionado. A rapariga mantinha-se junto da porta, mas Hansen desfez-se dos sapatos e postou-se no meio do quarto, olhando em redor com os seus olhos encovados.
– Sente-se – disse eu. Abri a porta do frigorífico. – Ela quer beber alguma coisa? – perguntei.
– Dê-lhe uma Coca-Cola – disse Hansen. – E gelo. Tem por aí limas?
– Não.
Observou-me de joelhos diante do frigorífico.
– E você? – perguntei.
– Água.
Voltei a procurar: copos, água mineral e gelo. Ao fazê-lo, ouvi Hansen dizer qualquer coisa terna à rapariga, em khmer. Ela protestou e ele levou a sua avante. Ouvi-o entrar no quarto e sair novamente. Pondo-me de pé, vi a rapariga enroscada no sofá-cama que se estendia ao longo de uma das paredes da sala, e Hansen inclinado sobre ela com um cobertor, a aconchegar-lhe a roupa. Quando terminou, apagou o candeeiro por cima dela e tocou-lhe a face com as pontas dos dedos antes de se dirigir com passos largos à porta envidraçada e contemplar o mar. Uma rubra lua cheia estava suspensa sobre o horizonte. As nuvens de chuva formavam negras montanhas pelo céu fora.
– Como é que se chama? – perguntou-me ele.
– Mark – respondi.
– É o seu verdadeiro nome? Mark?
O mais seguro conhecimento que temos uns dos outros vem do instinto. Vendo a figura de Hansen emoldurada pela porta envidraçada a fitar o mar, e o luar a incidir-lhe nas rugas e concavidades do rosto estragado, percebi que o padre apóstata me tinha designado seu confessor.
– Chame-me como quiser – retorqui.
*
Imagine o leitor uma voz inglesa potente mas penosa, de tonalidade cheia e qualquer coisa de escandalizado, como se o seu possuidor nunca esperasse que ela dissesse as coisas que ouve. O leve sotaque é holandês das Índias Ocidentais. O bangaló está às escuras, concebido para a fornicação, e dá para uma pequena piscina iluminada e para umas rochas de cimento. Para lá deste desconchavo estende-se um soberbo e plácido mar asiático, com uma larga esteira de luar e estrelas a cintilar sobre a água como manchas solares. Um par de pescadores está de pé nas respetivas sampanas, a lançar as redes circulares à água e depois a recolhê-las lentamente.
Imagine, em primeiro plano, a alta figura recortada de Hansen a deambular descalço pelo quarto, ora detendo-se junto à porta envidraçada, ora sentando-se no braço de uma poltrona antes de deslizar silenciosamente para outro canto. E sempre a voz, ora veemente, ora meditativa, ora abalada, e logo, como o corpo, a descansar durante minutos a fio enquanto reúne forças para a provação seguinte.
Estendida no sofá-cama, a rapariga cambojana está embrulhada num cobertor, com o braço fletido sob a cabeça à maneira asiática. Estaria acordada? Compreenderia o que ele estava a dizer? Gostaria dele? Hansen gostava dela. Não era capaz de passar por ela sem parar a fim de a espreitar, ou bulir com o cobertor junto ao pescoço dela. A certa altura, ajoelhando no chão ao pé dela, fitou ardentemente os seus olhos fechados, ao mesmo tempo que lhe poisava a mão na testa como que para ver se tinha febre.
– Precisa de limas – murmurou. – A Coca-Cola não lhe vale de nada. Limas.
Eu já as tinha mandado pedir. Chegaram, pela mão de um rapaz da receção. Registou-se uma certa ação enquanto Hansen lhas espremia e depois a soerguia para ela beber.
As suas primeiras perguntas foram um vago interrogatório acerca da minha posição no Serviço. Queria saber com que autoridade tinha eu sido enviado e com que instruções.
– Não quero agradecimentos pelo que fiz – advertiu-me. – Bombardear aldeias não é coisa que se agradeça.
– Mas pode precisar de ajuda – disse eu.
A reação dele foi dizer-me formalmente que nunca mais, fosse em que circunstâncias fosse, trabalharia para o Serviço. Eu poderia ter-lhe dito o mesmo, mas contive-me. Ele pensava que estava a trabalhar para os Britânicos, mas tinha trabalhado para assassinos. Era outro homem quando fizera o que tinha feito. Esperava que os pilotos americanos fossem outros homens também.
Perguntou pelos seus subagentes – o agricultor fulano, o negociante de arroz sicrano. Perguntou pela rede de retaguarda que tinha laboriosamente criado para o dia certo em que os Khmers Vermelhos abandonassem a selva e se assenhoreassem das cidades, coisa que nem nós nem os Americanos, apesar de todas as advertências, acreditáramos verdadeiramente que viesse a suceder. Mas Hansen acreditara. Hansen era um dos que advertiam. Hansen tinha-nos dito vezes sem conta que as bombas de Kissinger eram cavalos de frisa de barreira contra tanques, muito embora tivesse ajudado a dirigi-las contra os objetivos.
– Posso acreditar em si? – perguntou-me quando lhe garanti que não tinha havido nenhum padrão de capturas entre as suas fontes.
– É verdade – disse eu, respondendo à súplica que havia na sua voz.
– Nesse caso não os traí – murmurou ele, maravilhado. Por instantes manteve-se sentado com a cabeça entre as mãos, como se estivesse a mantê-la inteira.
– Se você foi capturado pelos Khmers Vermelhos, ninguém podia esperar que se mantivesse calado, seja como for – disse eu.
– Calado! Meu Deus! – Quase se riu. – Calado! – E, pondo-se bruscamente de pé, deslocou-se novamente para a porta envidraçada.
À luz do luar vi-lhe gotas de suor presas no grande rosto barbado. Comecei a dizer qualquer coisa a respeito de o Serviço querer desobrigar-se honrosamente em relação a ele, mas a meio do meu discurso ele abriu os braços a todo o comprido, como quem experimentasse os limites da respetiva prisão. Não encontrando nada que os obstruísse, caíram de novo ao longo do corpo.
– Que se lixe o Serviço – disse baixinho. – Que se lixe o sacana do Ocidente. Não tínhamos nada que andar por cá a fazer guerras, a impingir as nossas receitas religiosas. Pecámos contra a Ásia: os Franceses, os Britânicos, os Holandeses e agora os Americanos. Pecámos contra os filhos do Paraíso. Deus nos perdoe.
O meu gravador estava poisado na mesa.
Estamos na Ásia. Na Ásia de Hansen. Na Ásia contra a qual pecámos. Escuta-se o frenético tagarelar dos insetos. É sabido que tanto os cambojanos como os tailandeses apostam grossas quantias no número de vezes que uma rã vai arrotar. O quarto está na penumbra, esquecidas as horas, esquecido o quarto também; a Lua subiu e já não se vê. Eis-nos de regresso à guerra do Vietname e encontramo-nos na selva cambojana com Hansen; as comodidades modernas são escassas, a menos que incluamos os bombardeiros americanos que voam em círculo por cima de nós, como pacientes falcões, à espera de que os computadores lhes digam o que irão destruir seguidamente: por exemplo, uma junta de bois cuja urina foi confundida por sensores secretos com fumos de escape de um comboio militar; por exemplo, crianças cujo tagarelar foi confundido com vozes de comando militares. Os sensores foram ocultados por comandos americanos ao longo das rotas de abastecimento que Hansen lhes indicou – mas infelizmente os sensores não estão tão bem informados como Hansen.
Estamos naquilo a que os pilotos americanos chamam terreno mau, embora as definições de bom e mau na selva sejam fluidas. Estamos na «zona libertada» dos Khmers Vermelhos que serve de refúgio às tropas do Vietcongue que querem atacar os americanos pelo flanco em vez de o fazerem de frente a partir do Norte. Contudo, apesar destas aparências de guerra, estamos no meio de gente que não tem a perceção coletiva dos seus inimigos, numa região que não vem nos mapas, a não ser nos dos combatentes. Pelas palavras de Hansen, a região está tão próximo do paraíso que não fez diferença o facto de ele falar como padre, pecador, estudioso ou espião.
Escassas milhas picada acima, cobertas de jipe, fica um antigo templo budista que, com a ajuda dos habitantes da aldeia, Hansen escavou das profundezas da vegetação e que constitui aparentemente a razão da sua presença ali, dos apontamentos que toma, das comunicações rádio que faz e do gotejar de visitantes que chegam em geral imediatamente antes de a noite cair e partem ao alvorecer. O kampong em que ele vive está assente sobre estacas numa clareira na margem de um bom rio, numa planície de campos férteis que trepa em socalcos até a uma floresta tropical. É frequente uma névoa azul. A casa de Hansen fica situada no cimo da encosta, a fim de melhorar as condições de receção das emissões de rádio e permitir ver tudo o que entra e sai do vale. Na estação das chuvas, é seu costume deixar o jipe na aldeia e calcorrear o caminho até casa. Na estação seca, vai de jipe até às suas instalações, a maioria das vezes levando consigo metade das crianças da aldeia. Chega a estar uma dúzia delas à espera de se empoleirar na traseira para a viagem de cinco minutos da aldeia até às instalações onde ele vive.
– Às vezes a minha filha contava-se entre eles – disse Hansen.
Nem Rumbelow nem a ficha tinham dado conta de que Hansen tivesse uma filha. Se no-la ocultara, desrespeitara gravemente as normas do Serviço – embora os céus sejam testemunha de que as normas do Serviço eram praticamente a última coisa que por essa altura nos preocupava a um e outro. Não obstante, parou de falar e assentou em mim um olhar penetrante na escuridão, como se esperasse a minha censura. Mas eu mantive silêncio, no desejo de ser o ouvido por que ele esperara, porventura durante anos.
– Quando ainda era padre, visitei os templos do Camboja – disse. – Enquanto lá estava, apaixonei-me por uma mulher da aldeia e engravidei-a. No Camboja ainda era o melhor dos tempos. Governava o Sihanouk. Fiquei com ela até a criança nascer. Uma rapariga. Batizei-a Marie. Dei dinheiro à mãe e regressei a Jacarta, mas tinha imensas saudades da minha filha. Mandei mais dinheiro. Mandei dinheiro para o chefe da aldeia a fim de olhar por elas. Mandei cartas. Rezei pela criança e pela mãe e jurei que um dia tomaria conta delas como deve ser. Mal regressei ao Camboja, trouxe a mãe para minha casa, muito embora com o correr dos anos tivesse perdido a beleza. A minha filha tinha um nome khmer, mas chamei-lhe Marie desde o dia em que veio viver comigo. Ela gostava. Tinha orgulho em que eu fosse o pai.
Parecia preocupado em explicar-me que Marie se sentia bem com o seu nome europeu. Não era um nome americano, disse ele. Era europeu.
– Tinha outras mulheres em casa, mas a Marie era a minha única filha e eu amava-a. Era mais bonita do que eu a imaginara. Mas, mesmo que fosse feia e desengraçada, não a teria amado menos. – A voz dele adquiriu súbito vigor e, ao que me pareceu, um tom de advertência. – Nunca houve nenhuma mulher, nenhum homem, nenhuma criança que tivesse suscitado de tal forma o meu amor. Pode-se dizer que a Marie foi a única mulher à qual tive um amor puro, com exceção da minha mãe.
Fitava-me na escuridão, desafiando-me a duvidar da sua paixão. Porém, submetido ao feitiço de Hansen, eu não duvidava de coisa nenhuma e tinha esquecido tudo acerca de mim próprio, até mesmo a morte da minha mãe. Ele apossava-se de mim, monopolizava-me.
– Quando a pessoa adere ao impossível conceito de Deus, fica a saber que o verdadeiro amor não permite rejeição. Talvez seja uma coisa que só um pecador pode compreender devidamente. Só um pecador conhece a escala da misericórdia divina.
Penso que acenei sensatamente. Pensei no coronel Jerzy. Perguntava a mim mesmo por que razão precisava Hansen de explicar que não podia rejeitar a filha. Ou por que razão o facto de ser pecador constituía para ele uma preocupação quando se referia a ela.
– Nessa noite, quando regressei a casa, vindo do templo, não tinha crianças à minha espera no kampong, embora estivéssemos na estação seca. Fiquei dececionado porque nesse dia tínhamos feito uma boa descoberta e queria contá-la à Marie. Devem ter algum festival escolar, pensei, mas não consegui lembrar-me de nenhum. Subi a colina no jipe até às minhas instalações e chamei-a. As instalações estavam vazias. A casota da entrada, vazia. As panelas das mulheres, vazias sob as estacas. Chamei novamente pela Marie e a seguir pela minha mulher. Depois por quem quer que fosse. Não apareceu ninguém. Regressei à aldeia. Entrei na casa de uma das amigas da Marie, depois noutra e noutra ainda, chamando por ela. Até os porcos e as galinhas tinham desaparecido. Procurei sangue, vestígios de luta. Não os havia. Mas achei pegadas que se dirigiam para a selva. Regressei às instalações. Peguei numa pá e escondi o rádio na floresta, a meio caminho entre as altas árvores que se erguiam numa fileira apontada mesmo a poente, perto de um antigo formigueiro com a forma de um homem. Detestei todo o trabalho que tinha feito para vocês, todas as minhas mentiras, para vocês e para os Americanos. Ainda hoje detesto. Voltei a casa a pé, tirei os blocos de códigos e o equipamento dos esconderijos e destruí-os. Agradou-me fazê-lo. Também os detestava. Calcei umas botas e meti comida para uma semana numa mochila. Enfiei três balas de revólver no motor do jipe para o imobilizar e depois pus-me a seguir as pegadas pela selva dentro. O jipe era para mim um insulto, porque eram vocês que o tinham comprado.
Sozinho, Hansen tinha empreendido a perseguição dos Khmers Vermelhos. Outros homens – mesmo homens que não fossem espiões ocidentais – podiam ter pensado duas e três vezes, mesmo com a mulher e a filha feitas reféns. Hansen não. Hansen tinha uma ideia e, absolutista como era, agia sob o seu impulso.
– Não podia deixar-me afastar da graça de Deus – disse. Estava a dizer-me, para o caso de eu não o saber, que, para lá da sobrevivência da rapariga, estava a sobrevivência da sua alma imortal.
Perguntei-lhe durante quanto tempo andara. Não sabia. De começo caminhava só de noite, descansando de dia. Mas a luz do dia torturava-o e, aos poucos, contra tudo o que o bom senso aconselhava na selva, impelia-o a prosseguir. No caminho, recordava todos os acontecimentos da vida de Marie, desde a noite em que a erguera do ventre da mãe, cortara o cordão com a ritual haste de bambu e mandara as mulheres que a assistiam dar-lhe água para a lavar; e com essa água, usando da sua autoridade de padre e de pai, batizara Marie em honra de sua mãe e da mãe de Cristo.
Lembrava-se das noites em que ela tinha dormido nos seus braços ou no berço de junco aos seus pés. Via-a ao seio da mãe à luz da fogueira. Torturava-se pelos terríveis anos de separação em Jacarta e durante o curso de adestramento em Inglaterra. Torturava-se por toda a falsidade do seu trabalho para o Serviço e pela sua fraqueza, como lhe chamava, a sua traição à Ásia. Referia-se à ação que tivera ao dirigir os bombardeiros americanos.
Revivia as horas que passara a contar-lhe histórias e a cantar-lhe canções inglesas e holandesas para ela adormecer. Só queria saber do seu amor por ela, da necessidade que dela tinha e da necessidade que ela tinha dele.
Seguia a pista porque não tinha mais nada para seguir. Sabia agora o que tinha sucedido. Acontecera a mesma coisa a outros kampongs, embora a nenhum da região de Hansen. Os combatentes tinham cercado o kampong de noite e aguardado pela manhã, altura em que os homens válidos saíam para os campos. Tinham levado os homens válidos, após o que se haviam introduzido sub-repticiamente na aldeia, apoderando-se dos velhos e das crianças e, a seguir, do gado. Iam-se abastecendo, mas iam também engrossando as respetivas fileiras. Estavam cheios de pressa, caso contrário teriam saqueado as casas, mas queriam regressar à selva antes que os descobrissem. Não tardou que, à luz da lua cheia, Hansen deparasse com as primeiras macabras provas da sua teoria: os corpos nus de um velho lojista e da mulher, de mãos amarradas atrás das costas. Não teriam conseguido aguentar o ritmo? Seriam demasiado feios? Teriam altercado?
Hansen começou a caminhar mais depressa. Agradecia a Deus que Marie parecesse totalmente asiática. Na maioria das crianças de sangue cruzado, qualquer asiático notaria a ascendência europeia, mas Hansen, embora fosse um gigante, tinha a pele escura e o corpo esguio e, com a sua alma asiática, conseguira, fosse lá como fosse, gerar uma rapariga asiática.
Na noite seguinte havia outro cadáver à beira do trilho; Hansen aproximou-se temerosamente dele. Era Ong Sai, a contestatária professora. Tinha a boca escancarada. Abatida quando protestava, diagnosticou Hansen, progredindo ansiosamente. Em busca de Marie, o seu amor puro, mãe da terra e sua filha, a única guardiã da sua graça.
Perguntava a si mesmo qual seria o tipo de unidade que seguia. Os tímidos rapazes que batiam de noite à porta pedindo um pouco de arroz para os combatentes? Os façanhudos quadros que encaravam o sorriso asiático como um símbolo da decadência ocidental? E havia também os mortos-vivos, recordou: quadrilhas de salteadores sem eira nem beira, que se tinham juntado por necessidade, mais foragidos do que guerrilheiros. Mas já tinha um indício de disciplina do grupo que ia à sua frente. Um bando menos organizado teria ficado para pilhar a aldeia. Teria acampado para comer uma refeição e festejar. Na manhã seguinte a ter encontrado Ong Sai, Hansen procurou afanosamente ocultar-se durante o sono.
– Tive a premonição – disse.
Na selva, ignorar uma premonição equivalia a correr perigo. Internou-se bem na vegetação e besuntou-se de lama. Dormiu com o revólver na mão. Acordou à tardinha com o cheiro de fogo de lenha e o som estridente de gritos; ao abrir os olhos, deu por si a fitar os canos de várias espingardas automáticas.
Estava a falar das cadeias. Combatentes da selva, treinados para se deslocarem com pouca coisa, ajoujados com doze conjuntos de grilhetas durante centenas de quilómetros? Como era isso possível? Ainda estava intrigado. No entanto alguém as tinha trazido, alguém tinha feito uma clareira e espetado uma estaca no meio da clareira, enfiado os anéis de ferro na estaca e ligado os doze conjuntos de cadeias aos doze anéis de ferro a fim de prender doze prisioneiros especiais à chuva, ao calor, ao frio e à escuridão. Hansen descreveu a configuração das cadeias. Fê-lo passando a francês. Presumi que necessitasse da proteção de uma língua diferente:
– ... une tringle collective sur laquelle étaient enfilés des étriers... nous étions fixés par un pied... j’avais été mis au bout de la chaine parce que ma cheville trop grosse ne passait pas...
Deitei um olhar à rapariga. Estava, se tal é possível, mais inerte que antes. Dir-se-ia morta ou em transe. Apercebi-me de que Hansen estava a poupar-lhe uma coisa que não queria que ela ouvisse.
De dia, disse, ainda em francês, libertavam-nos os tornozelos, o que nos permitia ajoelhar e mesmo rastejar, embora nunca para longe, porque estávamos presos à estaca e éramos obrigados a debater-nos com os corpos uns dos outros. Só de noite, quando os ferros dos pés eram fixados a robustos postes que formavam a periferia do recinto, conseguíamos desentorpecer-nos completamente. A quantidade de cadeias disponíveis determinava o número de prisioneiros especiais, que eram selecionados exclusivamente entre a burguesia da aldeia, disse ele. Reconheceu dois anciãos da aldeia e uma magríssima viúva de quarenta anos chamada Ra, que tinha fama de profetisa. E os três irmãos Liu, negociantes de arroz, que eram avarentos famosos, um dos quais parecia já morto, pois jazia enroscado à volta das cadeias como um ouriço-cacheiro sem picos. Apenas o som dos seus soluços provava que ainda vivia.
E Hansen, com o seu horror ao cativeiro? Como tinha ele reagido às cadeias?
– Je les ai portées pour Marie – respondeu no pronto francês de advertência que eu me ia habituando a respeitar.
Os prisioneiros que não eram especiais estavam detidos numa paliçada na periferia da clareira, da qual um ou outro era por vezes levado ou arrastado para o quartel-general, que ficava oculto por um outeiro. Os interrogatórios eram breves. Após umas horas de gritos, soava um único tiro de pistola e voltava a sentir-se a inquieta serenidade da selva. Ninguém voltava dos interrogatórios. As crianças, incluindo Marie, tinham autorização para deambular, desde que não se aproximassem dos prisioneiros ou se aventurassem até ao outeiro que encobria o quartel-general. As mais atrevidas tinham já travado conhecimento com os jovens combatentes durante a marcha e corricavam à volta deles tentando fazer recados ou tocar-lhes nas armas.
Marie, porém, tinha-se mantido afastada de todos. Sentava-se por terra na clareira que ficava para lá dos postes, vigiando o pai do alvorecer até à noite. Os seus olhos não se apartaram do rosto de Hansen nem quando arrancaram a mãe da paliçada e os gritos que esta dava por Hansen ressoaram atrás do outeiro, para se transformarem em gritos de misericórdia e culminarem com o costumado tiro de pistola.
– Ela sabia? – perguntei em francês.
– Todo o acampamento sabia – respondeu ele.
– Gostava da mãe?
Seria imaginação minha ou Hansen fechara os olhos na escuridão?
– Eu era o pai da Marie – retorquiu. – Não era o pai da relação entre elas.
Como soubera eu que mãe e filha se detestavam? Seria por ter pressentido que o amor de Hansen por Marie era cioso e exigente, absoluto, como todos os seus amores, sem lugar para rivais?
– Não me deixavam falar com ela, nem a ela comigo – estava ele a dizer. – Os prisioneiros não falavam com ninguém, sob pena de morte.
Bastava até um gemido, como ficara a saber um dos infortunados irmãos Liu ao ser definitivamente reduzido ao silêncio pelas coronhas das armas dos guardas e substituído na manhã seguinte por um dos transidos presos que restavam na paliçada. Mas entre Marie e o pai não eram necessárias palavras. O estoicismo que Hansen, amarrado e impotente nas suas cadeias, via no rosto da filha era o apaixonado denodo do seu próprio coração. Com Marie a apoiá-lo, era capaz de suportar o que quer que fosse. Cada um deles seria a salvação do outro. O amor que ela lhe tinha era tão intenso e sincero como o dele por ela. Ele não o punha em dúvida. A despeito de toda a sua aversão ao cativeiro, agradecia a Deus tê-la seguido.
Passou um e outro dia, mas Hansen permanecia acorrentado à estaca, a arder ao sol, tremendo com o frio do anoitecer, envolvido no fedor da sua própria imundície, com o olhar e o espírito sempre presos em Marie.
A cabeça, entretanto, debatia-se com os aspetos táticos da situação.
Tivera desde o início a perceção de que era uma celebridade. Se a intenção deles fosse capturar um europeu, teriam lançado o ataque antes de Hansen sair de casa e revistá-la-iam a seguir. Ele era um tesouro inesperado, e aguardavam para ver o que haviam de fazer com ele. Todos os que restavam na paliçada foram levados e desapareceram, menos o sobrevivente dos irmãos Liu e a mulher que lia a sina, que após dias de ruidoso interrogatório reapareceram gozando de um regime privilegiado, ultrajando os seus antigos companheiros e tentando por todas as formas congraçar-se com os soldados.
Organizou-se um curso de doutrinação; todas as tardes as crianças e um grupo selecionado de sobreviventes se sentavam em círculo à sombra a ouvir as arengas de um jovem comissário de faixa vermelha na cabeça. Enquanto Hansen ardia e gelava, ia ouvindo o estridente grasnar do comissário a bramar contra os odiados imperialistas. A princípio essas aulas incomodavam-no porque o privavam da companhia de Marie. Mas, quando fazia um esforço, ainda conseguia erguer a cabeça o suficiente para lhe ver o corpo ereto hirtamente sentado no outro extremo do círculo, a olhar para ele do lado de lá da clareira. Serei tua mãe, teu pai e teu amigo, dizia-lhe ele. Serei a tua vida, mesmo que tenha de privar-me da minha.
Outras vezes censurava-se pela espetacular beleza dela, encarando-a como um castigo pela sua leviana luxúria. Aos doze anos, Marie era sem dúvida a mais bela do acampamento e, conquanto as relações sexuais fossem proibidas aos militares, com o pretexto de serem uma ameaça burguesa à sua determinação revolucionária, Hansen não podia deixar de observar o efeito que a figura exiguamente vestida da rapariga exercia nos jovens combatentes ao verem-na passar; como lhe comiam com os olhos baços os seios incipientes e as ancas bamboleantes por baixo do rasgado vestido de algodão e o seu olhar carrancudo se ensombrava ao gritarem por ela. Pior ainda, sabia que ela se apercebia do desejo deles e que a sua feminilidade emergente lhe correspondia.
Surgiu então uma manhã em que a rotina do cativeiro de Hansen melhorou inexplicavelmente e as suas apreensões adensaram-se, visto que o seu benfeitor era o jovem comissário da faixa vermelha. Escoltado por dois soldados, o comissário ordenou a Hansen que se pusesse de pé. Como ele não fosse capaz, os soldados ergueram-no e, pegando-lhe cada um por um braço, deixaram-no cambalear até a um ponto da margem do rio onde uma enseada formava uma piscina natural.
– Lave-se – ordenou o jovem comissário.
Havia dias – desde que o tinham amarrado – que Hansen reivindicava baldadamente o direito de se lavar. Na primeira noite berrara-lhes: «Levem-me ao rio!» Eles tinham-no espancado. Na manhã seguinte remexera-se nas correntes, arriscando-se a mais agressões, clamando por um camarada responsável, tudo isso para reclamar o seu direito de continuar a ser uma pessoa que os seus captores pudessem respeitar e consequentemente preservar.
Sob o olhar dos soldados, Hansen recobrou suficientemente o uso dos macerados membros para se banhar e – embora fosse uma crucificação – esfregar-se com o fino lodo do rio antes de ser reconduzido à estaca. Todos os dias passava a alguns metros da sua bem-amada Marie que ocupava o lugar habitual para lá do círculo de postes. Embora o coração lhe desse um salto diante da sua proximidade e da coragem dos olhos dela, não podia evitar a suspeita de que era a sua própria filha que tinha negociado o raro conforto de que agora gozava. E, quando o comissário resmungou um cumprimento a Marie, e esta ergueu a cabeça e lhe dirigiu um meio sorriso à guisa de resposta, a angústia do ciúme veio somar-se às provações de Hansen.
Depois do banho, trouxeram-lhe arroz – mais do que lhe tinham dado desde que era seu prisioneiro. E, em lugar de o fazerem comer da tigela como um cão, soltaram-lhe as mãos e deixaram-no servir-se dos dedos, de forma que ele conseguiu esconder uma pequena porção na palma da mão e deixá-la cair diante da túnica antes de tornarem a acorrentá-lo.
Durante todo o dia não pensou em nada a não ser na bola de arroz dentro da camisa, empenhando-se em não deixar que nenhum movimento do corpo a esmagasse. Hei de reconquistá-la, pensava. Vou suplantar o comissário como objeto da sua admiração. À tardinha, ao voltarem a conduzi-lo ao rio, conseguiu o milagre que tinha andado a planear. Cambaleando de uma maneira mais teatral do que era preciso, logrou deixar cair uma bola de arroz aos pés de Marie, sem que os guardas se apercebessem. Ao passar novamente por ela, no regresso, viu, para seu secreto êxtase, que a bola tinha desaparecido.
O rosto dela, contudo, nada deixava transparecer. Só os olhos, francos e por vezes mortiços na sua devoção, lhe revelavam que ela retribuía o seu amor absoluto. Estava iludido, concluiu ao voltarem a amarrar-lhe as correntes. Está a aprender os estratagemas dos prisioneiros. É casta e há de sobreviver. Nessa noite escutou com nova tolerância a aula de doutrinação do comissário. Convence-o, instava-a no diálogo telepático que continuamente mantinha com ela; adormece-o, enfeitiça-o, conquista a sua confiança mas não lhe dês nada. E Marie devia ouvi-lo, porque, ao terminar a aula, viu o comissário fazer sinal para ela se aproximar e admoestá-la enquanto ela se mantinha intimidada e silenciosa. Viu-a inclinar a cabeça. Viu-a afastar-se dele, de cabeça ainda baixa.
No dia seguinte e ao longo de uma semana, Hansen repetiu o estratagema, convencido de que ninguém a não ser Marie o via. A bola de arroz, rebolando levemente sobre o estômago cada vez que mudava de posição, transformou-se para ele numa fonte de conforto vital. Estou a alimentá-la do meu próprio peito. Sou o seu guardião, o protetor da sua castidade. Sou o seu sacerdote, a dar-lhe o Sacramento de Cristo.
O arroz era tudo quanto lhe importava. A sua preocupação era descortinar novas maneiras de lho fazer chegar, esperando até ter passado por ela e atirando a bola para trás, deixando-a cair no interior da esfarrapada perna da calça.
– Exagerei – disse ele baixinho, no tom de um penitente.
E, porque exagerara, Deus arrebatara-lhe Marie. De súbito, uma manhã, ao libertarem-no e conduzirem-no à piscina, não estava lá Marie à espera de receber o sacramento. Na aula de doutrinação, ao fim da tarde, viu que ela tinha subido de posição, ocupando o lugar ao lado do comissário, e pareceu-lhe ouvir a sua voz por sobre as dos restantes, a entoar as litúrgicas respostas com nova confiança em si própria. Ao cair da noite, distinguiu os contornos da sua figura entre as fogueiras dos soldados: membro aceite do grupo, compartilhando o seu arroz como uma camarada. No dia seguinte não chegou a vê-la, nem no subsequente.
– Tive vontade de morrer – disse.
Mas à tarde, enquanto aguardava, desesperado, deitado de borco e imóvel, que os guardas lhe acorrentassem os pés, foi o jovem comissário que veio até ao pé dele, acompanhado de Marie, que envergava uma túnica preta e caminhava vivamente ao seu lado.
– Este homem é teu pai? – perguntou o comissário ao chegarem junto de Hansen.
O olhar fixo de Marie não vacilou, mas pareceu rebuscar a resposta na memória.
– O meu pai é o Angka – disse por fim. – O Angka é o pai de todos os oprimidos.
– O Angka era o Partido – explicou-me Hansen, sem eu perguntar. – O Angka era a organização à qual os Khmers Vermelhos rezavam. Na pirâmide de seres dos Khmers Vermelhos, o Angka era Deus.
– Então quem é a tua mãe? – perguntou o comissário a Marie.
– A minha mãe é o Angka. Não tenho outra mãe além do Angka.
– Quem é este homem?
– É um agente americano – retorquiu Marie. – Larga bombas sobre as nossas aldeias. Mata os nossos trabalhadores.
– Porque finge ele que é teu pai?
– Quer enganar-nos intitulando-se nosso camarada.
– Experimenta as correntes do espião. Vê se estão suficientemente apertadas – ordenou o comissário.
Marie ajoelhou aos pés de Hansen, exatamente como ele lhe ensinara a ajoelhar para rezar. Por um instante, como se fosse o contacto curativo de Cristo, a mão dela cerrou-se sobre os seus tornozelos feridos.
– Consegues enfiar os dedos entre a corrente e o tornozelo? – perguntou o comissário.
Em pânico, Hansen comportou-se como sempre fazia quando lhe estavam a acorrentar os pés. Fletiu os músculos do tornozelo, na esperança de ficar com maior liberdade de movimentos quando os relaxasse. Sentiu o dedo dela a tentear a corrente.
– Consigo enfiar o dedo mindinho – respondeu ela, erguendo-a ao mesmo tempo que mantinha o corpo na linha de visão entre o comissário e os pés de Hansen.
– Consegues enfiá-lo com dificuldade ou com facilidade?
– Só consigo enfiar o dedo com dificuldade – mentiu ela.
Ao vê-los afastarem-se, Hansen reparou numa coisa que o alarmou. Com a túnica negra, Marie tinha adquirido o furtivo andar bamboleante dos combatentes da selva. Mesmo assim, pela primeira vez desde a sua captura, Hansen dormiu pesadamente com as suas correntes. Ela junta-se a eles para os enganar, asseverou a si próprio. Deus está a proteger-nos. Não tardará que fujamos.
O interrogador oficial chegou de barco; era um estudante de rosto glabro e atitude séria e carrancuda. No íntimo, era assim que Hansen o identificava: o estudante. Uma comissão de receção chefiada pelo comissário acolheu-o na margem do rio e escoltou-o pelo outeiro acima até ao quartel-general. Hansen percebeu que ele era o interrogador porque foi o único que não se voltou para fitar o último prisioneiro remanescente a apodrecer ao calor. Olhou, porém, para Marie. Parou diante dela, obrigando todos a fazerem alto igualmente. Postou-se em frente dela; mantinha o rosto perscrutador próximo do dela ao fazer-lhe perguntas que Hansen não conseguia ouvir. Mantinha-a ali enquanto escutava as suas respostas papagueadas. A minha filha é a prostituta do acampamento, pensou Hansen, desesperado. Mas seria? Nada daquilo que alguma vez ouvira sobre os Khmers Vermelhos dava a entender que designassem, ou tolerassem sequer, prostitutas entre eles. Tudo levava a crer o contrário. «Angka hait le sexuel», dissera-lhe uma vez um antropólogo francês.
Nesse caso estavam a violá-la com o seu puritanismo, concluiu. Prenderam-na a eles numa paixão que é pior que a devassidão. Deitou-se de rosto na terra, rezando para que lhe fosse permitido tomar sobre si os pecados da inocência dela.
Não tenho uma imagem coerente do interrogatório de Hansen, pela simples razão de que ele próprio também não a tinha propriamente. Recordei o meu próprio tratamento às mãos do coronel Jerzy; comparado com aquilo, era um brincadeira de crianças. Mas as reminiscências de Hansen possuíam a mesma imprecisão. Escusado será dizer que o torturaram. Tinham construído uma grade de madeira para o efeito. No entanto tinham também a preocupação de conservá-lo vivo, porque entre uma e outra sessão davam-lhe de comer e até, se bem se lembrava, lhe tinham permitido idas à margem do rio, embora pudesse ter sido uma única ida entrecortada de períodos de inconsciência.
Havia também as sessões de redação, pois, para o espírito literal do estudante, qualquer confissão só era verdadeira quando por escrito. E a redação foi-se tornando cada vez mais difícil, convertendo-se num castigo em si mesmo, ainda que o desamarrassem da grade para o obrigar a ela.
Como interrogador, o estudante avançava aparentemente em duas frentes intelectuais simultâneas. Quando era travado numa, mudava para a outra.
«Você é um espião americano», dizia, «agente do fantoche contrarrevolucionário Lon Nol e também um inimigo da revolução.» Hansen desmentia-o.
Mas é também um católico romano mascarado de budista, um envenenador de espíritos, um promotor de superstições antipartido e um sabotador do esclarecimento do povo, gritava-lhe o estudante.
Regra geral, parece que o estudante preferia fazer afirmações a formular perguntas: «Agora vai fazer o favor de fornecer todas as datas e locais das suas reuniões conspirativas com o fantoche contrarrevolucionário e espião americano Lon Nol, enumerando todos os americanos presentes.»
Hansen insistia que não tinha havido tais reuniões. Mas isto não satisfazia o estudante. À medida que o sofrimento ia aumentando, Hansen começou a recordar os nomes de uma canção tradicional inglesa que a mãe lhe costumava cantar: Tom Pearse... Bill Brewer... Jan Stewer... Peter Gurney... Dan’l Whiddon... Harry Hawk...
– Agora vai fazer o favor de escrever o nome do chefe de fila dessa escumalha – disse o estudante, virando uma página da agenda. O estudante, disse Hansen, tinha muitas vezes os olhos quase fechados. Eu também me lembrava disso em Jerzy.
– Cobbleigh – sussurrou Hansen, erguendo a cabeça da mesa à qual o tinham sentado. Thomas Cobbleigh, escreveu. Abreviadamente, Tom. Nome de cobertura Uncle.
As datas eram importantes porque Hansen se preocupava com a eventualidade de as esquecer mal as inventara e de ser acusado de incoerência. Escolheu o aniversário de Marie, o aniversário da mãe e a data da execução do pai. Para local conspiratório, escolheu os jardins murados do palácio de Lon Nol em Phnom Penh, que muitas vezes admirara a caminho de uma fumerie8 predileta.
O seu receio ao confessar estes disparates era o de revelar informações verdadeiras por engano, pois já era claro para ele que o estudante nada sabia das suas verdadeiras atividades de recolha de informações e que as acusações que sobre ele impendiam se baseavam no facto de ser ocidental.
– Faça o favor de escrever o nome de todos os espiões por si pagos durante os últimos cinco anos, e também todos os atos de sabotagem, contra o povo, que cometeu.
Nem todos os dias e noites que Hansen passara na expetativa desta provação tinham bastado para imaginar que poderia fracassar por causa da imaginação criadora. Recitou os nomes de mártires em cujo sofrimento tinha refletido a fim de se preparar; de estudiosos orientais comodamente falecidos; de autores de obras eruditas sobre filologia e linguística. Espiões, disse. Todos espiões. E escreveu-os, com a mão a tremer sobre o papel sob o efeito das convulsões da dor que continuava a atormentá-lo muito depois de eles terem desligado a máquina.
Escrevendo desesperadamente, fez uma lista dos oficiais de T. E. Lawrence no deserto, que recordava das muitas leituras de Os Sete Pilares da Sabedoria. Referiu que, sob ordens pessoais de Lon Nol, tinha organizado o envenenamento das colheitas e do gado por sacerdotes budistas. O estudante voltou a pô-lo na grade e aumentou a dor.
Relatou as aulas clandestinas de imperialismos que tivera e que encorajara a propagação do sentimento burguês e das virtudes familiares. O estudante abriu os olhos, mostrou a sua comiseração e voltou a aumentar a dor.
Forneceu-lhes quase tudo. Revelou que acendera farolins para guiar os bombardeiros americanos e pusera a correr boatos de que os bombardeiros eram chineses. Estava à beira de lhes contar quem o tinha ajudado a conduzir comandos americanos às linhas de abastecimento quando, misericordiosamente, desmaiou.
*
Durante toda a sua provação, porém, continuava a ser Marie, que não lhe saía do coração, a pessoa por quem gritava na dor, cujas mãos o arrastavam de volta à vida quando o corpo lhe implorava que renunciasse a ela e cujos olhos velavam por ele com amor e piedade. Era a Marie que oferecia o sacrifício dos seus sofrimentos e era por ela que jurava sobreviver. Jazendo entre a vida e a morte, teve uma alucinação em que se via estendido no poço do barco do estudante e Marie com a sua túnica negra sentada por cima dele, a remar para montante, conduzindo-os ao Céu. Mas ainda não estava morto. Não me mataram. Confessei tudo e não me mataram.
Mas não confessara tudo. Tinha-se mantido fiel aos seus ajudantes e não lhes falara do rádio. E, ao voltarem a arrastá-lo no dia seguinte, amarrando-o mais uma vez à grade, viu Marie sentada ao lado do estudante, com uma cópia da sua confissão na mesa à sua frente. Tinha o cabelo cortado e um ar carrancudo.
– Estás a par das declarações deste espião? – perguntou-lhe o estudante.
– Estou a par das suas declarações – respondeu ela.
– As declarações do espião descrevem com exatidão o seu estilo de vida, tal como pudeste observá-lo na sua companhia?
– Não.
– Porquê? – perguntou o estudante, abrindo a agenda.
– Não são completas.
– Explica por que razão não são completas as declarações do espião Hansen.
– O espião Hansen tinha um rádio em casa, que utilizava para comunicar com os bombardeiros imperialistas. E além disso os nomes que referiu na confissão são fictícios. São tirados de uma canção burguesa britânica que me cantava quando fingia ser meu pai. Também recebia soldados imperialistas à noite em nossa casa e conduzia-os à selva. E também não referiu que a mãe dele é inglesa.
O estudante pareceu desapontado.
– Que mais omitiu ele? – perguntou, alisando uma página nova com a pequena mão em cutelo.
– Durante a prisão, cometeu muitas infrações aos regulamentos. Escondeu comida e tentou comprar a colaboração de camaradas nos seus planos de fuga.
O estudante suspirou e tomou mais apontamentos.
– Que mais omitiu ele? – perguntou pacientemente.
– Andava com as correntes mal postas. Quando estavam a apertar-lhe as correntes, contraía os pés de maneira irregular, deixando-as largas para a fuga.
Até aí Hansen tinha conseguido persuadir-se de que Marie estava a empreender um jogo de astúcia. Agora já não. O jogo era a realidade.
– É um frequentador de bordéis! – gritou por entre as lágrimas. – Perverte as nossas mulheres levando-as para casa dele e drogando-as! Finge fazer um casamento burguês e depois obriga a mulher a tolerar os seus costumes decadentes! Dorme com raparigas da minha idade! Finge ser o pai das nossas crianças e que o nosso sangue não é khmer! Lê-nos literatura burguesa em línguas ocidentais a fim de nos depravar! Seduz-nos levando-nos a dar uma volta no seu jipe e cantando-nos canções imperialistas!
Nunca a tinha ouvido gritar. Era evidente que o estudante, que pareceu embaraçado, também não. Mas não havia meio de ela parar. Persistia em renegá-lo. Contou-lhes que tinha proibido a mãe de a amar. Exprimia um ódio por ele que Hansen percebia ser genuíno, tão absoluto e desmesurado como o amor que ele lhe tinha. O corpo dela estremecia com o ódio reprimido de uma mulher maltratada e as feições vincavam-se-lhe de ódio e culpa. Mexeu o braço e apontou para ele na clássica postura de acusação. A voz dela pertencia a alguém que ele nunca tinha conhecido.
– Matem-no! – gritou. – Matem o espoliador do nosso povo! Matem o corruptor do nosso sangue khmer! Matem o mentiroso ocidental que nos diz que somos diferentes uns dos outros! Vinguem o povo!
O estudante tomou um último apontamento e deu ordem para que levassem Marie.
– Rezei pelo seu perdão – disse Hansen.
No bangaló, apercebi-me de que amanhecia. Hansen encontrava-se à janela, de olhos fitos na enevoada planura do mar. A rapariga estava deitada no sofá-cama em que tinha repousado toda a noite, de olhos fechados, com a lata vazia de Coca-Cola ao lado e a cabeça apoiada no braço. A mão, caída, parecia gasta e velha. A voz de Hansen tinha adquirido uma certa sobriedade e por instantes receei que, com a manhã, ele tivesse decidido melindrar-se com a minha presença. Depois percebi que não era comigo que estava indisposto, mas consigo próprio. Estava a recordar a sua fúria quando, amarrado mas sem as correntes, o transportavam até à paliçada para dormir – se é que se pode chamar dormir ao que a pessoa faz quando tem o corpo a agonizar de dores e os ouvidos e o nariz cheios de sangue. Fúria contra si mesmo, por ter instilado tanto ódio na filha.
– Ainda era pai dela – disse em francês. – Não culpava a Marie de coisa nenhuma, mas a mim próprio de tudo. Quem me dera ter empreendido a fuga mais cedo, em vez de estar à espera de que ela me ajudasse... Quem me dera ter aberto caminho pela força enquanto ainda a tinha, em lugar de depositar a minha confiança numa criança. Nunca devia ter trabalhado para vocês. O meu trabalho secreto tinha-a posto em perigo. Amaldiçoei-vos a todos. E ainda vos amaldiçoo.
Terei falado? A minha preocupação consistia em não dizer nada que lhe impedisse o fluxo das palavras.
– Ela foi atraída para eles – disse ele, arranjando desculpas para a filha. – Era a sua gente, combatentes da selva com uma fé pela qual morrer. Porque havia ela de os rejeitar?
«Eu era o último obstáculo à sua aceitação pelo povo a que pertencia – disse, explicando-a. – Era um intruso, um corruptor. Porque havia ela de acreditar que eu era seu pai quando eles lhe diziam que o não era?
Jazendo ainda na paliçada, recordava-se dela no dia em que o jovem comissário a vestira do negro nupcial. Lembrava-se da sua expressão de repugnância ao baixar os olhos sobre ele, emporcalhado e maltratado, um mendigo aos seus pés, um espião ocidental todo encolhido. E, ao lado dela, o jovem comissário com a faixa vermelha na cabeça.
– Casei com o Angka – dizia-lhe ela. – O Angka responde a todas as minhas perguntas.
– Estava sozinho – disse ele.
A escuridão tombou sobre a paliçada e ele supôs que, se o iam abater, esperariam pelo dia. Mas a ideia de que Marie havia de viver toda a vida sabendo que tinha ordenado a morte do pai aterrava-o. Imaginou-a de meia-idade. Quem a ajudaria? Quem a confessaria? Quem lhe concederia a libertação e a absolvição? A ideia da morte tornava-se cada vez mais alarmante. Seria igualmente a morte dela.
A certa altura devia ter dormitado, disse ele, porque, ao amanhecer, encontrou uma tigela de arroz no chão da paliçada e sabia que não estava lá na noite anterior; mesmo naquele sofrimento todo, ter-lhe-ia cheirado. Não estava enrolado em bolas, o arroz, nem escondido de encontro à pele nua: era um monte branco, suficiente para cinco dias. A princípio, sentia demasiado cansaço para se admirar. Deitando-se de barriga para baixo a comer, apercebeu-se do silêncio. Àquela hora a clareira deveria fervilhar com os sons dos soldados a acordarem: vozes cantantes e ruídos de gente a lavar-se na margem do rio, o matraquear de panelas e espingardas, o cantochão de palavras de ordem dirigido pelo comissário. No entanto, ao deter-se para ouvir, até os pássaros e os macacos pareciam ter cessado a sua guincharia e não se ouviam quaisquer sons humanos.
– Tinham partido – disse, algures atrás de mim. – Tinham levantado o acampamento de noite, levando a Marie com eles.
Comera mais arroz e voltara a dormitar. Porque não me mataram? A Marie convenceu-os a não o fazerem. A Marie trouxe-me a vida. Hansen lançou-se ao trabalho de esfregar as cadeias contra a parede da paliçada. Ao cair da noite, coberto de chagas e de moscas, estava deitado à beira-rio, a lavar as feridas. Voltou a rastejar até à paliçada para dormir e, na manhã seguinte, com o que restava do arroz, pôs-se a caminho. Desta feita, sem prisioneiros nem gado, não tinham deixado vestígios.
Mesmo assim, foi à procura dela.
Durante meses, pensa Hansen que quatro ou cinco, manteve-se na selva, indo de aldeia em aldeia, nunca se fixando, não confiando em ninguém – desconfio que um tanto ou quanto demente. Onde quer que podia, perguntava pela unidade de Marie, mas havia pouco com que a descrever e a sua busca tornou-se indiscriminada. Ouviu falar de unidades que tinham combatentes femininas. Ouviu falar de unidades que eram constituídas apenas por raparigas. Ouviu falar de raparigas que eram enviadas para cidades como prostitutas a fim de recolher informações. Imaginou Marie em todas essas situações. Uma noite rastejou até à sua antiga casa na esperança de que ela se tivesse refugiado lá. A aldeia tinha sido incendiada.
Perguntei-lhe se tinham mexido no rádio escondido.
– Não fui ver – respondeu ele. – Não me interessava. Sentia ódio por todos vocês.
Noutra noite foi visitar a tia de Marie, que vivia numa aldeia afastada, mas ela atirou-lhe com tachos, obrigando-o a fugir. Não obstante, a sua determinação de salvar a filha era mais forte que nunca, pois agora sabia que tinha de salvá-la de si própria. Ela tem a maldição do meu absolutismo, pensava. É violenta e obstinada; quem tem a culpa sou eu. Encerrei-a na prisão dos meus próprios impulsos. Só um amor paternal podia alguma vez tê-lo impedido de o ver. Agora tinha os olhos abertos. Via a atração da filha pela crueldade e pela desumanidade como uma maneira de provar a sua devoção. Via-a a reviver a sua própria busca errática, desprovida, porém, da sua disciplina intelectual e religiosa – acreditando vagamente, tal como ele, que assumindo uma grande visão alcançaria a realização pessoal.
Da caminhada até à fronteira tailandesa, pouco disse. Dirigiu-se para sudoeste, rumo a Pailin. Tinha ouvido dizer que havia lá um acampamento para refugiados khmers. Cruzou montanhas e pântanos infestados de malária. Uma vez chegado, sitiou os centros de busca e afixou a sua descrição em quadros informativos dos acampamentos. Como o conseguiu sem documentos, dinheiro ou relações, mantendo apesar disso em segredo a sua presença na Tailândia, constitui ainda hoje para mim um mistério. Mas Hansen era um agente adestrado e endurecido, mesmo que nos tivesse renegado. Não estava disposto a deixar que muita coisa o detivesse. Perguntei por que razão não recorrera à ajuda de Rumbelow, mas ele arredou depreciativamente a ideia.
– Eu já não era um agente imperialista. Não acreditava em nada a não ser na minha filha.
Um dia, no gabinete de uma organização de assistência, conheceu uma americana que julgava lembrar-se de Marie.
– Foi-se embora – disse ela cautelosamente.
Hansen insistiu. Marie estava incluída num grupo de meia dúzia de raparigas, disse a mulher. Eram prostitutas, mas tinham a firmeza de combatentes. Quando não estavam a satisfazer homens, mantinham-se à parte de toda a gente e eram de trato difícil. Um dia tinham passado das marcas. Ela ouvira dizer que tinham sido apanhadas pela polícia tailandesa. Nunca mais as voltara a ver.
A mulher que contara isto parecia não saber bem se lhe havia de dizer o mais que pensava, mas Hansen não lhe dera por onde escolher.
– Temíamos por ela – disse. – Identificava-se com diferentes nomes. Fornecia explicações contraditórias acerca da maneira como chegara até nós. Os médicos discutiam se estaria louca ou não. Algures na jornada, tinha perdido a noção de quem era.
Hansen compareceu junto da polícia tailandesa e, por meio de ameaças ou de persuasão animal, localizou Marie numa pensão da polícia concebida para proporcionar prazer aos oficiais. Nunca lhe perguntaram quem era, ao que parece, nem que documentos possuía. Era um homem de olhos redondos, um farang, que falava khmer e tailandês. Marie tinha lá estado três meses e a seguir desaparecera, disseram eles. Era estranha, disse um sargento simpático.
– Estranha, como? – perguntou Hansen.
– Não falava noutra língua que não fosse inglês – respondeu o sargento.
Havia outra rapariga, uma amiga de Marie, que tinha ficado mais tempo e casara com um dos cabos. Hansen obteve o seu nome.
Tinha parado de falar.
– E encontrou-a? – perguntei após um longo silêncio.
Já sabia a resposta, como a sabia a meio da sua história, sem saber que a sabia. Ele estava sentado à cabeceira da rapariga, afagando-lhe suavemente a cabeça. Ela endireitou-se lentamente e esfregou os olhos com as mãos miúdas e envelhecidas, fingindo que tinha dormido. Acho que tinha passado toda a noite a ouvir-nos.
– Ela já não entendia nada a não ser aquilo – explicou Hansen em inglês, ao mesmo tempo que continuava a afagar-lhe a cabeça. Estava a falar do bordel onde a tinha encontrado. – Não queria grandes escolhas, pois não, Marie? Nem grandes palavras, nem promessas. – Estreitou-a contra si. – Só quer ser admirada. Pelo seu próprio povo. Por nós. Todos nós devemos amar a Marie. É isso que a consola.
Acho que interpretou erradamente a minha reticência como censura, visto que levantou a voz.
– Ela quer ser inofensiva. Isso é assim tão mau? Quer que a deixem sozinha, como todas elas querem. Era bom que mais dos nossos quisessem a mesma coisa. Os vossos bombardeiros, os vossos espiões e o vosso grande discurso não são para ela. Ela não é filha do doutor Kissinger. Pede apenas uma modesta existência em que possa proporcionar prazer e não magoar ninguém. O que é pior? O vosso bordel ou o dela? Saiam da Ásia. Nunca deviam ter vindo, nenhum de vocês. Envergonho-me de alguma vez vos ter ajudado. Deixem-nos em paz.
– Vou contar muito pouco disto ao Rumbelow – disse eu, ao levantar-me para ir embora.
– Conte-lhe o que quiser.
Do vão da porta, deitei-lhes um último olhar. A rapariga tinha o olhar fixo em mim como creio que o fixara em Hansen do exterior do círculo de correntes, com uns olhos impassíveis, profundos e serenos. Acho que sei o que lhe ia no espírito. Tinha pago por ela e não a tivera. Perguntava a si própria se eu quereria ser compensado do que pagara.
*
Rumbelow levou-me ao aeroporto. Como Hansen, teria preferido passar sem ele, mas tínhamos assuntos a discutir.
– Quanto lhe prometeu? – exclamou ele, horrorizado.
– Disse-lhe que ele tinha direito a um subsídio de reinstalação e a toda a proteção que pudéssemos dar-lhe. Disse-lhe que o senhor lhe ia mandar um cheque no valor de cinquenta mil dólares.
Rumbelow ficou furioso.
– Eu, dar-lhe cinquenta mil dólares a ele? Meu caro, ele passa seis meses bêbedo e vomita a história da vida dele por toda a cidade de Banguecoque. E a tal prostituta cambojana com que ele anda? Aposto que ela está a par.
– Não se preocupe – disse eu. – Ele recusou.
Esta notícia espantou Rumbelow tão profundamente que a indignação se lhe esgotou por completo, substituída por um silêncio magoado que nos durou o resto da viagem.
No avião bebi de mais e dormi de menos. A certa altura, ao acordar de um pesadelo, incorri num pensamento sedicioso acerca de Rumbelow e do Quinto Andar. Apetecia-me despachar aquela cambada toda, incluindo Smiley, para a viagem de Hansen através da selva. Apetecia-me poder fazê-los abandonar tudo por uma paixão imperfeita e impossível, para o respetivo objeto se virar contra eles, provando que não há recompensa para o amor a não ser a experiência de amar e nada há a aprender com ele a não ser a humildade.
Estava, contudo, satisfeito, como ainda hoje me sinto, quando me lembro de Hansen. Tinha encontrado aquilo que procurava: um homem como eu, mas um homem que, na sua busca de sentido, tinha descoberto um objeto digno para a sua vida; que tinha pago todo o preço e não o levara à conta de sacrifício; que ainda estava a pagá-lo e havia de o pagar até morrer; que não queria saber de compromissos, do seu orgulho, de nós ou da opinião dos outros para nada; que tinha reduzido a sua vida à única coisa que lhe importava e era livre. O subversivo que dormia dentro de mim tinha encontrado o seu paladino. O amante potencial que havia em mim tinha encontrado uma escala pela qual medir as suas triviais preocupações.
De tal forma que, ao ser nomeado anos mais tarde chefe da Casa da Rússia, unicamente para ver o meu mais valioso agente trair o país pelo seu amor, nunca consegui verdadeiramente experimentar toda a revolta que os meus patrões me exigiam. O Pessoal não foi estúpido de todo ao despachar-me para o contingente de Interrogadores.
8 Em francês no original: casa de fumo. (N. do T.)