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Maggs, o meu desagradável criptojornalista, estava a tentar puxar pela língua de Smiley sobre a natureza imoral do nosso trabalho. Queria que Smiley admitisse que valia tudo, desde que a pessoa não fosse apanhada. Desconfio que queria na realidade ouvir essa máxima aplicada à vida no seu todo, pois, além de não ter maneiras, também não tinha piedade e queria ver no nosso trabalho uma certa licença para atirar pela borda fora os poucos escrúpulos que lhe restavam. 

Mas Smiley não estava para lhe dar essa satisfação. Primeiro pareceu prestes a zangar-se, o que eu esperava bem que acontecesse. Se assim era, controlou-se. Principiou a falar, mas parou de novo e gaguejou, deixando-me na dúvida se estaria na hora de fazer um intervalo na sessão. Até que, para meu alívio, recomeçou, e eu percebi que se tinha pura e simplesmente deixado distrair por qualquer recordação privada dos milhares delas que constituíam a sua personalidade secreta. 

– Reparem – explicou ele, respondendo, como era tão frequente, mais ao espírito que à letra da pergunta –, numa sociedade livre é realmente essencial que as pessoas que se dedicam ao nosso trabalho permaneçam irreconciliadas. É verdade que somos obrigados a jantar com o diabo, e nem sempre podemos tomar todos os devidos cuidados. Aliás, como toda a gente sabe – um olhar de esguelha a Maggs deu origem a um surto de gratas gargalhadas –, o diabo é muitas vezes bem melhor companhia que um devoto, não é? Mesmo assim, a nossa obsessão com a virtude não desaparece. O interesse é extremamente limitativo. E o oportunismo também. – Fez uma nova pausa, ainda mergulhado nos seus próprios pensamentos. – Onde eu quero chegar é ao seguinte: se uma vez por outra vos assaltar mesmo a tentação de serem humanos, espero que no íntimo não a tomem por fraqueza e lhe deem ouvidos. 

Os botões de punho, pensei eu, num vislumbre de inspiração. O George está a lembrar-se do velho. 

 

 

Durante muito tempo não fui capaz de descortinar por que razão a história continuara a perseguir-me tão longamente. Depois apercebi-me de que havia topado com ela num período em que o relacionamento com o meu filho Adrian tinha atingido um ponto baixo. Ele andava a falar em se deixar de estudos universitários e em vez disso arranjar um emprego bem remunerado. Tomei a sua irrequietude por materialismo e os seus sonhos de independência por preguiça e uma noite perdi as estribeiras e insultei-o, após o que passei algumas semanas devidamente envergonhado. Foi durante uma dessas semanas que desenterrei a história. 

Depois lembrei-me também de que Smiley não tinha filhos e que talvez o seu papel ambíguo no caso se devesse em parte a isso. Arrepiei-me levemente com o pensamento de que ele pudesse estar a preencher um vazio em si retificando uma relação que nunca tivera. 

Por fim recordei que apenas alguns dias depois de dar com os papéis, tinha recebido a carta que denunciava anonimamente o pobre Frewin como espião russo. E que havia determinadas afinidades místicas entre Frewin e o velho, que tinham que ver com a lealdade obstinada a mundos perdidos. Tudo isto à guisa de contexto, não sei se o leitor compreende, porque nunca conheci um caso que não fosse feito de uma centena de outros. 

Finalmente havia o facto de, como tão frequente era na minha vida, Smiley ter sido por acaso meu precursor, pois, mal me sentara à secretária, para mim estranha, do contingente de Interrogadores, deparei com vestígios seus por todo o lado: nos nossos poeirentos arquivos, nas antiguidades do nosso livro de registo do oficial de serviço e nos sorrisos reminiscentes das nossas secretárias mais antigas, que falavam dele com o melado temor reverencial de velhas vestais, um tanto como Deus, um tanto como ursinho de pelúcia e um tanto – embora se apressassem sempre a minimizar este aspeto da sua natureza – tubarão assassino. Até nos mostravam a chávena e o pires de porcelana de osso de Thomas Goode, da South Audley Street – de onde é que haviam de ser? –, presente de Ann a George, explicavam, todas derretidas, que ele tinha legado ao Contingente depois da sua suspensão e reintegração na Sede – e, claro, tal como acontecia com o próprio Graal, um simples mortal não podia de maneira nenhuma beber pela chávena de Smiley. 

O Contingente, se porventura o leitor não o depreendeu ainda, é mais ou menos a Sibéria do Serviço, e Smiley, descobri consoladoramente, tinha sido desterrado para lá não uma, mas duas vezes: a primeira, pelo seu descaramento em dar a entender ao Quinto Andar que podia estar a alimentar uma toupeira do Centro de Moscovo no seu seio; e a segunda, uns anos mais tarde, por ter razão. E o Contingente não tinha apenas a monotonia da Sibéria, como também a sua lonjura, pois não ficava situado no edifício principal, mas sim numa fiada de gabinetes cavernosos no andar térreo de um grande prédio de empena na Northumberland Avenue, no extremo norte de Whitehall. 

E, como tanta da arquitetura à sua volta, o Contingente já conhecera grandes dias. Tinha sido formado na Segunda Guerra Mundial para receber as contribuições de estranhos, escutar as suas suspeitas e acalmar-lhes os receios ou – se eles tivessem mesmo tropeçado com uma verdade maior – despistá-los ou amedrontá-los para que guardassem silêncio. 

Se uma pessoa pensasse que tinha vislumbrado o vizinho a altas horas da noite, por exemplo, agachado sobre um transmissor; se tivesse visto luzes estranhas a piscar numa janela e fosse demasiado tímida ou desconfiada para informar a esquadra local; se o misterioso estrangeiro no autocarro que lhe fazia perguntas sobre o trabalho da pessoa tinha reaparecido ao lado dela no respetivo bar local; se o amante secreto da pessoa lhe confessava – por solidão ou bravata, ou uma desesperada necessidade de se tornar mais interessante aos seus olhos – que trabalhava para os Serviços Secretos alemães –, nesse caso, depois de uma correspondência com um ajudante espúrio de um qualquer subsecretário de Whitehall do qual nunca se ouvira falar, era muito provável, ao princípio de uma noite, ser chamada a desafiar o ataque aéreo e dar por si a ser conduzida, com o credo na boca, pelo corredor escalavrado e cheio de sacos de areia, a caminho da Sala 909, onde um major fulano ou um capitão sicrano, ambos tão falsos como notas de três dólares, a convidariam delicadamente a contar tudo com franqueza sem medo de repercussões. 

E uma vez por outra, como regista a história secreta do Contingente, nasciam grandes coisas, e ainda hoje nascem, desses pouco auspiciosos começos, embora o movimento seja muito menor do que era e a maior parte do trabalho do Contingente se resuma hoje a ocupações como ofertas de serviços não solicitadas, denúncias anónimas como a levantada contra o pobre Frewin e mesmo – em apoio dos desprezados serviços de Segurança – inquéritos positivos de investigação pessoal, que são as piores Sibérias de todas e praticamente o mais longe que se pode estar das operações de equilibrismo da Casa da Rússia sem abandonar completamente o Serviço. 

Mesmo assim, estes castigos encerram mais ensinamentos do que a simples humildade. Perdida a vontade de escutar, um funcionário dos Serviços Secretos não vale nada, e George Smiley, o rechonchudo, perturbado, chavelhudo, despretensioso e infatigável George, sempre a limpar os óculos com o forro da gravata, a bufar para dentro e a suspirar na sua eterna distração, era o melhor ouvinte de todos nós. 

Smiley era capaz de escutar com os olhos vendados e sonolentos; era capaz de escutar com a própria inclinação do corpo atarracado, com a quietude e o sorriso compreensivo. Era capaz de escutar porque, com uma exceção, que era a mulher, Ann, não esperava nada das suas almas irmãs, não criticava nada, perdoava o pior da pessoa muito antes de ela o revelar. Era capaz de escutar melhor que um microfone porque o seu espírito se animava imediatamente face ao essencial; parecia capaz de o descortinar antes de saber onde levava. 

E fora assim que George viera a ouvir Mr. Arthur Wilfred Hawthorne, morador no n.° 12 de The Dene, em Ruislip, meia vida antes de mim, na mesma Sala 909 em que eu agora me sentava, virando curiosamente as páginas amarelecidas de um dossiê assinalado «Destruição Pendente» que tinha desenterrado das estantes da casa-forte do Contingente. 

Tinha iniciado a minha busca ociosamente – o leitor pode mesmo dizer frivolamente –, como alguém podia pegar num velho exemplar do Tatler no seu clube. E, de repente, apercebi-me de que tinha tropeçado, página após página, com a conhecida caligrafia circunspecta de Smiley, com os seus nítidos e miúdos tt alemães e contorcidos ee gregos, e assinadas com o seu lendário símbolo. Quando era obrigado a figurar pessoalmente no drama e a pessoa sentia que ele procurava qualquer meio de fugir a essa vulgar provação –, identificava-se unicamente como «O. S.», a abreviatura de Oficial de Serviço. E, visto que era célebre pela sua aversão às iniciais, uma pessoa apercebia-se mais uma vez da sua natureza reservada, para não dizer completamente esquiva. Eu não ficaria mais excitado se tivesse descoberto um fólio desaparecido de Shakespeare. Estava lá tudo: a carta original de Hawthorne, transcrições das entrevistas gravadas, com as iniciais do próprio Hawthorne, e até recibos assinados das suas ajudas de custo por deslocação e despesas efetuadas. 

O meu apagado interesse desapareceu. O desterro já não me oprimia, nem tão-pouco o silêncio da grande casa vazia à qual estava condenado. Compartilhava-a como George, à espera do martelar das leais botas de Arthur Hawthorne caminhando pelo corredor fora até à presença de Smiley. 

«Caro Senhor», tinha ele escrito ao «Oficial Encarregado das Informações, Ministério da Defesa». E, britânicos que somos, a chancela da classe a que pertencia está desde logo estampada na página, quanto mais não seja pela utilização estranhamente imperiosa de maiúsculas, tão caras às pessoas sem instrução. Imaginei muito esforço na redação e talvez um dicionário ao lado. «Pretendo, Senhor, Solicitar uma Entrevista com o seu Pessoal a respeito de uma Pessoa que fez Trabalho Especial para as Informações Britânicas ao mais alto Nível, e cujo Nome é tão Importante para minha Mulher e para mim como poderá ser para Vossas Excelências, e que em conformidade não me é permitido Referir nesta Carta.» 

Era tudo. Assinado «Hawthorne, A. W., Suboficial de 2.a classe, reformado». Arthur Wilfred Hawthorne, por outras palavras, como revelaram as pesquisas de Smiley ao consultar o recenseamento eleitoral, e ao acrescentar às suas descobertas o exame dos arquivos do Ministério da Guerra. Nascido em 1915, registou laboriosamente Smiley na folha de dados pessoais de Hawthorne. Incorporado em 1939, prestou serviço no Oitavo Exército do Egito até Itália. O ex-sargento-mor Wilfred Hawthorne, duas vezes ferido em combate, três louvores e uma medalha de valor militar pelos seu empenhamento, desmobilizado sem uma mancha no carácter, «o melhor exemplo do melhor combatente do mundo», escrevera o comandante, num louvor caloroso, se bem que hiperbólico. 

E eu sabia que Smiley, como bom profissional, teria ocupado o seu posto muito antes da chegada do seu cliente, tal como eu próprio fizera nestes últimos meses: na mesma esfregada secretária amarela de pinho do tempo da guerra, chamuscada de castanho ao longo da aresta maior – diz a lenda que pelo Boche; com o mesmo musguento telefone, com letras e números no marcador; a mesma fotografia aguarelada à mão da rainha montada num cavalo aos vinte anos de idade. Estou a ver George franzindo o cenho ao consultar o relógio e a seguir fazer uma careta ao perscrutar a desordem habitual em seu redor, pois havia uma guerra não se sabia há quanto tempo acerca de quem deveria fazer a limpeza do local, nós ou o ministério. Estou a vê-lo a puxar de um lenço da manga – laboriosamente, mais uma vez, porque nenhum movimento saía sem esforço a George – e limpar a fuligem do assento da cadeira de pau, e a seguir fazer o mesmo antecipadamente para Hawthorne no lado oposto da secretária. Depois, como eu próprio fiz umas quantas vezes, executar um serviço semelhante à rainha, endireitando a moldura e devolvendo o fulgor aos seus olhos jovens e idealistas. 

Porque imaginava George já a estudar os sentimentos do seu sujeito, como deve fazer qualquer bom oficial de informações. No fim de contas, um ex-sargento-mor havia de esperar uma certa ordem à sua volta. Depois vejo o próprio Hawthorne, pontual ao minuto, quando o porteiro o acompanhou, envergando o seu melhor fato abotoado como um uniforme de combate, as biqueiras das botas engraxadas a brilhar na penumbra como castanhas-da-índia. A descrição que Smiley fizera na folha de encontro era escassa mas vigorosa: altura um metro e sessenta e oito, cabelo grisalho curto, rosto escanhoado, aspeto cuidado, porte militar. Outras características: coxear disfarçado da perna esquerda, botas do exército. 

– Hawthorne, senhor – bateu os calcanhares, mantendo-se em sentido até que Smiley, com dificuldade, o persuadiu a sentar-se. 

Smiley era nesse dia o major Nottingham e tinha um cartão imponente com a fotografia para o provar. Ao ler o relatório do caso, eu tinha no bolso um cartão semelhante em nome do coronel Ned Ascot. Não me pergunte o leitor porquê Ascot, a não ser para observar que, ao escolher um topónimo como nome suposto, estava mais uma vez a copiar inconscientemente um dos pequenos hábitos de Smiley. 

– De que regimento é o meu major, se não é indiscrição? – perguntou Hawthorne a Smiley ao sentar-se. 

– Do Serviço Geral, receio bem – disse Smiley, sendo esta a única resposta que estamos autorizados a dar. 

Mas estou certo de que era difícil a Smiley, como me seria a mim, ter de se identificar como um não combatente qualquer. 

Como prova da sua lealdade, Hawthorne tinha trazido as suas medalhas embrulhadas num pedaço de lona. Smiley examinou-as delicadamente uma por uma. 

– É acerca do nosso filho, meu major – disse o velho. – Tenho de lhe fazer a pergunta. A patroa... bem, nem quer ouvir falar mais do assunto, diz que é uma porção de disparates dele. Mas eu disse-lhe que tinha de lhe fazer a pergunta. Mesmo que o senhor se recuse a responder, eu não teria cumprido a minha obrigação para com o meu filho se não fizesse a pergunta acerca dele. 

Smiley não disse nada, mas tenho a certeza de que o seu silêncio foi compreensivo. 

– O Ken era o nosso único filho, não sei se está a ver, meu major, de forma que é natural – disse Hawthorne à guisa de desculpa. 

E Smiley continuou a deixá-lo fazer render o peixe. Não disse eu que ele era um bom ouvinte? Smiley era capaz de arrancar respostas a perguntas que nem sequer tinha feito, só pela sinceridade com que escutava. 

– Não estamos a pedir segredos, meu major. Não estamos a pedir para saber o que não se pode saber. Mas Mrs. Hawthorne está a dar as últimas, meu major, e precisa de saber se é verdade antes de ir desta para melhor. – Tinha preparado a pergunta com exatidão. Formulou-a nessa altura. – O nosso rapaz, o Ken, estava ou não, no meio daquilo que parecia ser uma carreira criminosa, a operar atrás das linhas inimigas, na Rússia? 

E neste ponto pode dizer-se que, por uma vez na vida, eu estava adiantado em relação a Smiley, quanto mais não fosse porque, após cinco anos na Casa da Rússia, fazia uma ideia bastante exata das operações que tínhamos conduzido no passado. Senti aflorar-me um sorriso ao rosto e o meu interesse pela história, se possível, recrudesceu. 

Mas no rosto de Smiley, tenho a certeza, nada transpareceu. Imagino-lhe as feições a assumir a imobilidade de um mandarim. Talvez se tenha entretido com os óculos, que davam sempre a impressão de pertencer a um homem mais corpulento. Por fim perguntou a Hawthorne – mas com franqueza, sem qualquer indício de ceticismo – por que razão supunha ele que pudesse ser esse o caso. 

– O Ken disse-me que era, é por isso. – E de Smiley, nada, ainda, a não ser uma porta permanentemente aberta. – Mrs. Hawthorne recusava-se a ir ver o Ken à prisão, compreende? Eu ia. Todos os meses. Ele estava a cumprir cinco anos por ofensas corporais graves, mais três por ser reincidente. Nesse tempo tínhamos PP, prisão preventiva. Estamos os dois ali na cantina da prisão, o Ken e eu, sentados a uma mesa. E de repente o Ken aproxima o rosto do meu e diz-me naquela voz grave que ele tem: «Não volte a vir cá, papá. É difícil para mim. Eu não estou preso a valer, sabe? Estou na Rússia. Tiveram de me trazer para cá especialmente, só para me mostrarem a si. Estou a trabalhar atrás das linhas, mas não diga à mamã. Escreva-me: isso não é problema, eles mandam-me a carta. E eu respondo-lhe como se estivesse aqui preso, que é aquilo que finjo, porque não se pode arranjar um disfarce melhor que a prisão. Mas a verdade, papá, é que estou a servir o nosso velho país como o pai fez quando esteve nos Ratos do Deserto, que é para isso que os melhores de nós cá andamos.» Depois disso não pedi para ver o Ken. Sentia que tinha de cumprir as ordens. Escrevi-lhe, claro. Para a prisão. Hawthorne e a seguir o número. E três meses depois ele respondia-me em papel da prisão como se de cada vez fosse um rapaz diferente a escrever-me. Às vezes numa caligrafia grossa e carregada, como se estivesse zangado, outras miúda e rápida, como se não tivesse tempo. Uma ou duas vezes havia até umas palavras estrangeiras que eu não percebia, na maioria riscadas, como se tivesse dificuldades com a sua própria língua. De quando em quando deixava escapar uma pista. «Tenho frio mas estou em segurança», dizia ele. «Na semana passada fiz um bocadinho mais de exercício do que precisava», dizia ele. Não contava à patroa porque ele dizia que não devia fazê-lo. Além disso, ela não teria acreditado nele. Quando lhe apresentei as cartas dele, ela arredou-as: magoavam-na demasiado. Mas, quando o Ken morreu, fomos lá e vimos o corpo todo retalhado em pedaços na morgue da prisão. Vinte facadas e ninguém a quem culpar. Ela não chorou, não chora, mas era como se a tivessem esfaqueado a ela. E no autocarro, a caminho de casa, não pude evitá-lo. «O Ken é um herói», disse-lhe eu. Estava a tentar acordá-la porque ela tinha ficado toda rígida. Agarrei-lhe pela manga e dei-lhe um abanãozito para a fazer escutar. «Ele não é um sórdido criminoso», disse eu. «O nosso Ken, não. Nunca foi. E também não foram criminosos que o arrumaram. Foram os russos vermelhos.» Falei-lhe também nos botões de punho. «O Ken está a romancear», disse ela. «Tal como sempre fez. Não distingue a diferença, nunca distinguiu, e o problema foi sempre esse.» 

Os inquiridores, tal como os padres e os médicos, têm uma vantagem particular quando se trata de ocultar os sentimentos. Podem fazer outra pergunta, que é aquilo que eu próprio teria feito. 

– Que botões de punho, sargento-mor? – perguntou Smiley, e estou a vê-lo a baixar as longas pálpebras e a enterrar a cabeça no pescoço como quem se preparasse novamente para ouvir a história do velho. 

– «Não há medalhas, papá», diz-me o Ken. «Não seria seguro. Para se ganhar uma medalha tem de se sair na ordem, ficariam demasiadas pessoas a saber. Caso contrário, teria uma medalha como o pai. Talvez até uma melhor, para ser sincero, como a Victoria Cross, porque eles nos esticam até onde a gente dá e às vezes mais ainda. Mas, se a pessoa se portar como deve ser, ganha uns botões de punho e eles guardam-lhos num cofre especial. Depois, uma vez por ano, há um grande jantar num certo sítio que não estou autorizado a revelar, com champanhe e mordomos que nem queira saber, no qual todos os rapazes da Rússia estão presentes. E vestimos os nossos smokings e pomos os botões de punho, como se fosse uma farda, mas secreta. E temos uma receção, com discursos e apertos de mão e tudo, como se fosse uma investidura especial, como o pai teve para as suas medalhas, suponho eu, nesse tal sítio que não posso revelar. Depois, quando a receção termina, devolvemos os botões de punho. Temos de o fazer, por questões de segurança. Portanto, se alguma vez eu desaparecer, ou se me acontecer qualquer coisa, basta o pai escrever lá para os dos Serviços Secretos e pedir-lhes os botões de punho da Rússia para o seu Ken. Talvez eles digam que nunca ouviram falar de mim, ou talvez digam: “Quais botões de punho?” Mas talvez abram uma exceção compadecida para o pai e lhos deem, porque às vezes dão. E, se realmente os derem, o pai ficará a saber que todas as coisas más que eu alguma vez fiz eram melhores do que possa imaginar. Porque eu sou filho do meu pai, em toda a linha, e os botões de punho lho provarão. É tudo quanto lhe digo, e é mais do que me é permitido.» 

Smiley perguntou primeiro o nome completo do rapaz. Depois a data de nascimento. A seguir pediu as suas habilitações académicas e qualificações, que eram ambas previsivelmente fracas. Estou a vê-lo a agir calma e profissionalmente ao tomar nota dos pormenores: Kenneth Branham Hawthorne, disse-lhe o velho soldado – Branham era o apelido do meio da mãe, meu major; ele às vezes usava-o para aquilo a que eles chamavam os seus crimes –, nasceu em Folkestone, a 14 de Julho de 1946, meu major, doze meses depois de eu ter voltado da guerra. Não quis ter um filho antes, embora a patroa quisesse, meu major, não achava bem. Queria o nosso rapaz educado na paz, com ambos os pais vivos para tomarem conta dele, meu major, que é o direito de qualquer criança, acho eu, mesmo que isso já não seja tão habitual como devia ser. 

A tarefa seguinte de Smiley não era nem pouco mais ou menos tão fácil como poderia parecer, fosse qual fosse a improbabilidade da história de Kenneth Hawthorne. Smiley nunca foi pessoa para negar a um bom homem, ou mesmo a um mau, o benefício da dúvida. O Circus desse tempo não tinha nada que se parecesse com um arquivo central dos efetivos e aquilo que passava por tal coisa era vergonhosa e muitas vezes deliberadamente incompleto, pois as secções rivais protegiam ciosamente as suas fontes e sacavam tudo ao vizinho do lado sempre que viam hipóteses. 

É certo que a história do velho estava eriçada de improbabilidades. Em termos puristas era grotesco, por exemplo, imaginar um grupo de agentes secretos a reunir-se num jantar uma vez por ano, desrespeitando assim a mais elementar regra da «necessidade de saber». Mas podiam acontecer coisas piores no mundo sem lei dos irregulares, conforme Smiley sabia. E precisou de todos os seus poderes de engenho e persuasão para se convencer de que Hawthorne não figurava em parte alguma dos seus livros: nem como correio, nem como lampianista, nem como caçador de escalpes, nem como sinaleiro, nem como qualquer outra das bem-amadas definições profissionais com as quais esses miseráveis operadores embelezavam as respetivas categorias. 

Uma vez esgotados os irregulares, voltou-se para as forças armadas, para os serviços de Segurança e para a Polícia Real do Ulster, qualquer dos quais podia concebivelmente ter utilizado os serviços – ainda que numa base bem mais modesta do que o jovem dizia – de um criminoso violento da têmpera de Ken Haw-thorne. 

Porque pelo menos uma coisa parecia certa: o cadastro do rapaz era um pesadelo. Seria difícil imaginar mais sinistro historial de comportamentos persistentes e muitas vezes animalescos. À medida que Smiley percorria e voltava a percorrer a história do rapaz, da infância à adolescência, do reformatório à prisão, dir-se-ia não haver uma única transgressão, do pequeno furto à agressão sádica, a que Kenneth Branham Hawthorne, nascido em Folkestone em 1946, não tivesse descido. 

Até que, no final de uma semana inteira, Smiley parece ter admitido relutantemente no seu íntimo aquilo que em algum outro lugar da mente devia ter sabido desde o princípio. Kenneth Hawthorne, fosse por que tristes razões fosse, tinha sido um monstro irrecuperável e contumaz. A morte de que fora vítima às mãos dos seus companheiros de prisão não era mais do que merecia. O seu passado estava integralmente escrito e as suas histórias de heroísmo por conta de um qualquer mítico serviço de informações britânico eram apenas o derradeiro capítulo do seu esforço de toda a vida para ofuscar a glória do pai. 

 

 

Estava-se a meio do inverno. Cinzenta e fustigada pelo granizo, a tarde era imprópria para arrastar um velho soldado através de Londres inteira para voltar a uma árida sala de interrogatórios em Whitehall. E Whitehall, à luz escassa de então, era uma cidadela ainda em guerra, se bem que os seus canhões estivessem noutro sítio. Era um local de uma austeridade militar, desumano e imperial, de vozes surdas e janelas cobertas de preto, de passos raros e apressados e olhares fugazes. Smiley também tinha estado na guerra, recorde-se, muito embora instalado atrás das linhas alemãs. Ainda me parece ouvir o gorgolejar do fogão de sala de querosene que o Circus tinha aprovado de má vontade para surprir os deficientes radiadores dos ministérios. Era o som de um transmissor de rádio operado por uma mão gelada. 

Hawthorne não viera só para ouvir a resposta do major Nottingham. O velho soldado trouxera a mulher, e posso mesmo dizer ao leitor qual era o aspeto dela, pois Smiley escrevera-o no seu livro de registo e a minha imaginação há muito pintou o resto. 

Alcachinada e enfermiça, trazia a roupa de ver a Deus. Tinha posto um broche com o desenho da insígnia do regimento do consorte. Smiley convidou-a a sentar-se, mas ela preferiu o braço do marido. Smiley ficou de pé do outro lado da secretária, a mesma secretária queimada e amarelecida à qual eu me sentara, desterrado, naqueles últimos meses. Estou a vê-lo quase em sentido, endireitando inusitadamente os ombros curvos e com os dedos sapudos nas costuras das calças, à maneira tradicional do exército. 

Ignorando Mrs. Hawthorne, dirigiu-se ao velho soldado, de homem para homem. 

– Compreende que não tenho absolutamente nada para lhe dizer, não é verdade, senhor sargento-mor? 

– Compreendo, sim, meu major. 

– Nunca ouvi falar do seu filho, compreende? O nome de Kenneth Hawthorne não me diz nada, nem a mim nem a nenhum dos meus colegas. 

– Sim, meu major. – Como se estivesse numa parada, o velho mantinha o olhar firme por sobre a cabeça de Smiley. A mulher, porém, passou o tempo de olhos cravados em Smiley, apesar da dificuldade em fixá-los através das grossas lentes dos óculos. 

– Nunca na vida trabalhou para nenhum departamento governamental britânico, secreto ou não. Foi toda a vida um criminoso comum. Nada mais. Nadinha. 

– Sim, meu major. 

– Nego em absoluto que alguma vez tenha sido agente secreto ao serviço da Coroa. 

– Sim, meu major. 

– Compreende também que não posso responder a nenhuma pergunta nem dar-lhe explicações e que o senhor nunca mais me procurará nem será recebido neste edifício? 

– Sim, meu major. 

– Compreende finalmente que nunca falará deste momento a quem quer que seja? Por mais orgulhoso que esteja do seu filho? Que há outras pessoas ainda vivas que é preciso proteger? 

– Sim, meu major. Compreendo, meu major. 

Abrindo a gaveta da nossa secretária, Smiley tirou de lá um pequeno estojo Cartier, que estendeu ao velho. 

– Encontrei isto por acaso no meu cofre – disse. 

O velho passou o estojo à mulher sem olhar para ele. Com dedos firmes, ela abriu-o. Lá dentro estava um par de soberbos botões de punho de ouro com uma pequena rosa inglesa diretamente engastada num canto, gravada à mão, num trabalho de maravilhosa delicadeza. O marido continuou a não olhar. Talvez não precisasse; talvez não confiasse em si próprio. Fechando o estojo, ela abriu o fecho da mala coçada e atirou-o lá para dentro. Depois voltou a fechar a mala, com tanto barulho que se pensaria que estava a bater com a tampa do túmulo do filho. Ouvi a gravação; também ela está à espera de ser destruída. 

O velho continuou a não dizer nada. Estavam demasiado orgulhosos para se preocupar com Smiley ao saírem. 

 

 

E os botões de punho? – perguntará o leitor. Onde arranjara Smiley os botões de punho? Tive a resposta, não através dos amarelecidos registos da Sala 909, mas sim da boca da própria Ann Smiley, absolutamente por acaso, uma noite num esplêndido castelo da Cornualha próximo de Saltash, para o qual acidentalmente fôramos ambos convidados. Ann estava sozinha e disciplinada. Mary tinha um torneio de golfe. Fora muito depois do problema com Bill Haydon, mas Smiley ainda não suportava tê-la perto de si. Terminado o jantar, os convidados dispersaram-se em grupos, mas Ann manteve-se junto de mim, creio que à guisa de alternativa por não poder estar junto de George. Perguntei-lhe, meio intuitivamente, se alguma vez tinha dado um par de botões de punho a George. Quando se encontrava só, Ann era mais bela que nunca. 

– Ah, os tais – disse, como se mal se lembrasse. – Refere-se aos que ele deu ao velho. 

Ann tinha-os dado a George no primeiro aniversário de casamento, disse. Depois da sua escapadela com Bill, ele decidira que podia dar-lhes melhor destino. 

* 

Mas porquê, exatamente, decidira George tal coisa? – perguntava eu a mim mesmo. 

A princípio pareceu-me perfeitamente claro. Era o lado terno de Smiley. O velho combatente da Guerra Fria revelava o seu coração condoído. 

Como muitas coisas em George... talvez. 

Ou porventura um ato de vingança contra Ann? Ou contra o seu outro amor desleal, o Circus, numa altura em que o Quinto Andar o punha fora de casa? 

Aos poucos cheguei a uma teoria ligeiramente diferente, que bem posso participar ao leitor, dado que uma coisa é certa: o próprio George nunca nos esclarecerá. 

Ao escutar o velho soldado, Smiley reconheceu um daqueles raros momentos em que o Serviço podia ser de autêntica utilidade a gente autêntica. Uma vez na vida, a mitologia da espionagem seria utilizada, não para disfarçar mais uma história de incompetência ou traição, mas para deixar um velho casal com os seus sonhos. Uma vez na vida, Smiley podia encarar uma operação de informações e dizer com absoluta confiança que resultara.