13 

Os rituais da reforma no Serviço não são provavelmente mais cruciantes que qualquer outra despedida profissional, mas têm a sua própria pungência. Há as cerimónias recordatórias: almoços com velhos contactos, receções no Serviço, corajosos apertos de mão a plangentes secretárias idosas, visitas de cortesia a serviços amigos. E há as cerimónias de esquecimento, nas quais, tesourada a tesourada, a pessoa se desprende dos conhecimentos especiais que não são dados aos outros mortais. Para alguém que passou uma vida inteira no Serviço, incluindo três anos no recôndito secretariado de Burr, podem tornar-se demoradas e repetitivas, ainda que os segredos em si se tenham reformado muito antes da pessoa. Encafuado no bafiento gabinete de advogado de Palfrey, a maioria das vezes misericordiosamente na sequência de um bom almoço, fui apondo a minha assinatura em cada desvinculação de um pedaço do meu passado, murmurando obedientemente a seguir a ele o mesmo tímido juramentozinho inglês e ouvindo de cada vez os seus insinceros avisos de retaliação se me deixasse tentar a transgredi-lo pela vaidade ou por dinheiro. 

E estaria a enganar-nos a ambos se fingisse que o fardo cumulativo daquelas cerimónias não ia lentamente pesando sobre mim, fazendo-me desejar que o dia da execução pudesse ser acelerado – ou, melhor ainda, dado por findo. Porque, dia a dia, comecei a sentir-me como um homem que está reconciliado com a morte mas tem de consumir o resto das energias a consolar os que lhe sobreviverão. 

Foi, portanto, um considerável alívio para mim quando, sentado uma vez mais no miserável antro de Palfrey com três dias ainda pela frente antes da minha libertação final da prisão, recebi uma perentória convocação para ir à presença de Burr. 

– Tenho um trabalho para si. Você vai detestá-lo – assegurou-me, poisando violentamente o telefone. 

Ainda estava a ferver quando cheguei ao seu garrido gabinete moderno. 

– Vai ler este dossiê e depois vai até ao campo convencê-lo. Não deve ofendê-lo, mas, se por acaso der cabo dele acidentalmente, não terá grandes críticas da minha parte. 

– Quem é ele? 

– Uma relíquia remanescente do Percy Alleline. Um daqueles ricaços da City, com barrigas de cerveja, com os quais o Percy gostava de jogar golfe. 

Deitei um olhar à capa do volume de cima. «BRADSHAW», li, «Sir Anthony Joyston». E em letras pequenas por baixo: «índice positivo», o que queria dizer que o objeto do dossiê era tido como aliado do Serviço. 

– Tem de rastejar diante dele, é uma ordem. Apelar para os seus melhores sentimentos – disse Burr com o mesmo tom azedo. – Carregar na tecla do velho homem de Estado. Trazê-lo de volta ao redil. 

– Quem é que diz que tenho? 

– O consagrado Ministério dos Negócios Estrangeiros, quem é que queria que fosse? 

– Porque é que não rastejam eles? – perguntei, espreitando curiosamente o currículo profissional na página 1. – Julgava que era para isso que lhes pagavam. 

– Bem tentaram. Mandaram um ministro de segunda linha, de chapéu na mão. Sir Anthony é à prova de rastejadores. Além disso, sabe de mais. Pode mencionar nomes e apontar a dedo. Sir Anthony Bradshaw – declarou Burr, erguendo a voz numa salva de indignação característica do Norte do país –, Sir Anthony Joyston Bradshaw – emendou – é um dos merdas naturais de Inglaterra que, ao mesmo tempo que fingia prestar serviço ao seu país, recolheu mais informações sobre as atividades desonrosas do Governo de Sua Majestade que o GSM alguma vez recolheu de Sir Anthony relativamente aos seus adversários. Consequentemente, tem o GSM preso pelos tomates. As suas instruções são convidá-lo, com toda a gentileza, a afrouxar o aperto. As suas armas para esta missão são os seus cabelos grisalhos e o seu palpável bom coração, que já observei não ser imune a utilizar perfidamente. Ele está à sua espera às cinco da tarde e aprecia a pontualidade. A Kitty libertou uma secretária para si na antecâmara. 

Não tardou muito que me explicassem a indignação de Burr. Há poucas coisas mais exasperantes no nosso ofício do que ter de lidar com as pouco apetitosas sobras deixadas pelos antecessores, e Sir Anthony Joyston Bradshaw, pretenso comerciante aventureiro e magnata da City, era um pavoroso exemplar dessa categoria. Fora Alleline que lhe dera assistência – no clube dele, onde é que havia de ser? –, que o recrutara e que o patrocinara através de uma cadeia de nebulosas transações de duvidoso valor para quem quer que fosse que não Sir Anthony, e tinha havido incómodas sugestões de que Alleline podia ter arrecadado o seu quinhão. Perante a ameaça de escândalo, Alleline tinha abrigado Sir Anthony debaixo do exíguo guarda-chuva do Circus. Pior ainda, muitas das portas que Alleline tinha aberto a Bradshaw pareciam ter ficado abertas, pela razão de que ninguém tinha pensado em fechá-las. E fora por uma dessas portas que Bradshaw agora passara, para estridente indignação dos Negócios Estrangeiros e de meia Whitehall. 

Levantei um mapa topográfico na Biblioteca e um Ford Granada da frota do Serviço. Às duas e meia, com o dossiê mais ou menos decorado, pus-me a caminho. Às vezes uma pessoa esquece-se de como a Inglaterra é bonita. Atravessei Newbury e subi uma encosta coleante flanqueada de faias cujas longas sombras se recortavam como trincheiras no restolho dourado. Um cheiro a campos de críquete invadiu o carro. Trepei uma crista, onde me aguardava uma receção de castelos de nuvens brancas. Devia estar a pensar na infância, imagino, porque experimentei uma súbita ânsia de meter o automóvel direito a elas, coisa com que frequentemente sonhara quando era rapaz. O carro voltou a mergulhar e a deslizar livremente pela encosta abaixo e de súbito abriu-se lá em baixo um vale inteiro, salpicado de aldeolas, igrejas, campos ondulados e matas. 

Passei por um bar e não tardou a aparecer-me pela frente um duplo portão fechado e dourado entre pilares de pedra encimados por leões esculpidos. Ao lado dele estava uma airosa casa de guarda com um recente telhado de colmo. Um jovem bem constituído inclinou o rosto sobre a minha janela aberta e examinou-me com uns olhos de atirador emboscado. 

– Para falar com Sir Anthony – disse eu. 

– Nome, se faz favor? 

– Carlisle – respondi, utilizando pela última vez um pseudónimo. 

O rapaz desapareceu no casinhoto; o portão abriu-se e fechou-se assim que entrei. O parque era bordejado por um alto muro de tijolos: a vedação devia ter uns bons três quilómetros. Havia pequenos gamos malhados a descansar à sombra dos castanheiros. O caminho de acesso principiou a subir e a casa apareceu diante de mim. Era doirada, imaculada e muito grande. A secção central era Guilherme e Maria. As alas pareciam posteriores, mas não muito. Tinha um lago à frente e hortas e estufas atrás. Os antigos estábulos tinham sido transformados em gabinetes, com engenhosas escadas por fora e corredores exteriores envidraçados. Um jardineiro regava o laranjal. 

O caminho de acesso bordejava o lago e conduziu-me até à zona central. Duas éguas árabes e um lama olharam-me por cima da cerca de um picadeiro. Um jovem mordomo descia as escadas, vestindo casaco de linho e calça preta. 

– Deseja que lhe arrume o carro nas traseiras depois de o acompanhar, Mr. Carlisle? – perguntou. – Sir Anthony gosta de ficar com a fachada livre, sempre que possível, senhor. 

Dei-lhe as chaves e segui-o pelos largos degraus acima. Eram nove, embora não seja capaz de imaginar porque os contei, a não ser por se tratar de uma coisa que tínhamos ensinado no curso de atenção de Sarratt, e nas últimas semanas a minha vida parecia ter-se tornado menos uma continuação que um mosaico de épocas e experiências antigas. Se Ben tivesse aparecido a correr por ali acima e me apertasse a mão, estou em crer que não ficaria especialmente admirado. Se Monica e Sally tivessem aparecido para me acusar, eu teria as minhas respostas engatilhadas. 

Entrei num enorme vestíbulo. Uma esplêndida escadaria dupla terminava num patamar aberto. Retratos de antepassados nobres, todos eles homens, mas fosse pelo que fosse não me parecia que fossem de uma só família ou pudessem ter ali vivido muito tempo sem as suas mulheres. Passei por um salão de bilhar e reparei que as mesas e os tacos eram novos. Quero crer que via tudo com tanta clareza porque estava a tratar cada experiência como a última. Segui o mordomo através de uma imponente sala de visitas e cruzei um segundo compartimento que estava arranjado como um salão de espelhos e um terceiro que era supostamente informal, com um televisor do tamanho de um daqueles antigos triciclos de gelados que costumavam parar à porta da minha escola preparatória em tardes soalheiras como aquela. Cheguei a um par de portas majestosas e esperei que o mordomo batesse. Depois aguardei outra vez a resposta. Se Bradshaw fosse um árabe, manter-me-ia ali especado durante horas, pensei eu, lembrando-me de Beirute. 

Ouvi por fim uma voz masculina pronunciar arrastadamente «Entre» e o mordomo deu um passo até ao interior do compartimento, anunciando: 

– Mr. Carlisle, Sir Anthony, de Londres. 

Eu não lhe tinha dito que vinha de Londres. 

O mordomo afastou-se para o lado e proporcionou-me uma primeira perspetiva do meu anfitrião, embora o meu anfitrião levasse um pouco mais de tempo a ter a primeira perspetiva de Mr. Carlisle. 

Estava sentado a uma secretária de três metros e meio com aplicações de latão e pernas arqueadas. Penduradas ao seu lado viam-se pinturas a óleo modernas de crianças mimadas. A sua correspondência estava empilhada em tabuleiros de grossa pele cosida. Era um homem avantajado e bem nutrido, e manifestamente também um grande trabalhador, pois estava em mangas de camisa, que era azul, com um colarinho redondo de cor branca, e de suspensórios, que eram vermelhos. Além disso estava demasiado atarefado para dar pela minha presença. Primeiro lia, usando uma caneta de ouro para guiar a vista. Depois assinava, usando a caneta de ouro para escrever. Depois meditava, ainda inclinado para baixo, servindo-se do bico da caneta de ouro como foco para os seus grandes pensamentos. Os seus botões de punho de ouro eram do tamanho de velhas moedas de um dinheiro. Depois, por fim, poisou a caneta e, com um ar magoado – acusador, até –, levantou a cabeça, primeiro para me descobrir e depois para me avaliar por padrões que eu ainda tinha de indagar. 

No mesmo instante, por uma feliz coincidência da natureza, um raio do sol já baixo entrou pelas portas envidraçadas e incidiu-lhe no rosto, pelo que pude avaliá-lo por meu turno: o desconsolo dos seus olhos papudos, como se houvesse que lamentá-lo pela riqueza, a pequena boca retilínea que se desenhava, crispada e torcida sobre o queixo dividido por uma cova, um ar resoluto, feito de debilidade, de suspeitas de rapaz num mundo de adultos. Aos quarenta e cinco anos, aquela criança saciada continuava insatisfeita, culpando qualquer dos pais ausentes pelas suas comodidades. 

De repente, Bradshaw caminhava direito a mim. Furtivamente? Com dificuldade? Hoje em dia há uma maneira de andar inglesa que é peculiar aos homens poderosos, constituindo um misto de várias coisas ao mesmo tempo. Uma, é a autoconfiança, e o desportivismo preguiçoso, outra. Mas há também nela ameaça, impaciência e uma ociosa arrogância que é acompanhada da abertura dos cotovelos à maneira de um caranguejo que não deixa ninguém passar, os ombros caídos como um pugilista e a jovial elasticidade dos joelhos. Muito antes de lhe apertar a mão, a pessoa sabia que ele não tinha nada que ver com toda uma categoria de vida que ia da arte aos transportes públicos. Era mudamente posta de sobreaviso para manter as distâncias, caso fosse suficientemente parva para as não manter. 

– Você é um dos rapazes do Percy – disse-me ele, para o caso de eu não saber, ao mesmo tempo que me experimentava a mão e ficava devidamente desapontado. – Bem, bem. Há muito tempo que não nos víamos. Para aí uns dez anos. Beba qualquer coisa. Beba champanhe. Beba o que quiser. – Uma ordem: – Summers. Traga-nos um frasco de champas, um balde de gelo, dois copos e depois ponha-se na alheta. E frutos secos! – gritou depois de ele sair. – Caju. Castanha-do-maranhão. Montes de aperitivos, porra... Gosta de frutos secos? – perguntou-me, com uma súbita e desarmante intimidade. 

Disse que sim. 

– Ótimo. Eu também. Adoro. Você vem pregar um sermão. Não vem? Força. Não sou de vidro. 

Estava a abrir as portas envidraçadas de par em par, de forma que eu pudesse ter uma melhor visão do que ele possuía. Tinha escolhido outra maneira de andar para essa manobra, mais semelhante a uma marcha, com uma maior oscilação dos braços ao ritmo de uma inaudível música marcial. Depois de abrir as portas, ofereceu as costas à minha vista e manteve os braços erguidos, com as palmas das mãos encostadas às ombreiras da porta, como um mártir à espera da seta. E o corte de cabelo à moda da City, pensei: basto na nuca e a formar uns cornichos por cima das orelhas. Em tons de ouro e de castanho e de verde, o vale desaparecia suavemente na eternidade. Uma ama e uma criancinha caminhavam entre os gamos. Ela levava um chapéu com a aba revirada a toda a volta e um uniforme castanho como uma escoteira. O relvado estava preparado para o críquete. 

– Estamos apenas a apelar para si, mais nada, Sir Anthony – disse eu. – A pedir-lhe outro favor, como os que o senhor fez ao Percy. No fim de contas, foi o Percy que lhe conseguiu o grau de cavaleiro, não foi? 

– O Percy que se foda. Morreu, não morreu? Ninguém me dá coisa nenhuma, obrigado. O que é que quer? Desembuche lá, está bem? Já me pregaram um sermão. O gorducho do Savoury, dos Negócios Estrangeiros. Costumava chicoteá-lo quando ele era o meu caloiro na escola. Já nesse tempo era um choramingas e choramingas continua a ser. 

Os braços continuavam lá em cima, as costas estavam tensas e agressivas. Eu poderia ter falado, mas sentia-me estranhamente deslocado. Três dias antes de me reformar, começava a ter a sensação de que quase não conhecia o mundo real. Summers trouxe o champanhe, abriu a garrafa e encheu duas taças, que nos serviu numa bandeja de prata. Bradshaw agarrou numa e caminhou até ao jardim. Eu segui-o até ao meio de um caminho relvado. De um lado e de outro erguiam-se azáleas e rododendros. Lá ao fundo, um repuxo jorrava num lago de pedra. 

– Obteve a propriedade do terreno quando comprou a casa? – perguntei, pensando que um pouco de conversa fiada me poderia dar tempo para me recompor. 

– Suponhamos que sim, e depois? – retorquiu Bradshaw, e eu apercebi-me de que não queria que lhe lembrassem que tinha comprado a casa, em vez de herdá-la. 

– Sir Anthony – disse eu. 

– Sim? 

– É acerca da sua relação com uma empresa belga chamada Astrasteel. 

– Nunca ouvi falar. 

– Mas está ligado a ela, não está? – perguntei eu, com um sorriso. 

– Nem estou, nem nunca estive. Disse a mesma coisa ao Savoury. 

– Mas tem ações da Astrasteel, Sir Anthony – protestei eu pacientemente. 

– Nicles. Absolutamente peva. É outro tipo, endereço errado. Eu disse-lhe. 

– Mas tem cem por cento das ações de uma empresa chamada Allmetal of Birmingham Limited, Sir Anthony. E a Allmetal of Birmingham é proprietária de uma empresa chamada Eurotech Funding & Imports Limited of Bermuda, não é? E a Eurotech of Bermuda é dona da Astrasteel da Bélgica, Sir Anthony. Portanto podemos considerar que há, digamos, uma certa ligação entre o senhor, por um lado, e a empresa de que é proprietária a empresa de que o senhor é dono, por outro. – Continuava a sorrir, ainda a convencê-lo, sempre a brincar com ele. 

– Nem ações, nem dividendos, nem influência nos assuntos da Astrasteel. Tudo isso me passa ao lado. Disse-o ao Savoury e digo-lhe a mesma coisa a si. 

– No entanto, quando o senhor foi convidado pelo Alleline (em tempos que já lá vão, mas não foi assim há tanto tempo, pois não?) para fazer entregas de certas mercadorias a certos países que não estavam propriamente na lista de compras para essas mercadorias, a empresa que utilizou foi mesmo a Astrasteel. E a Astrasteel fez o que o senhor lhe disse. Porque, se não o fizesse, o Percy não teria vindo ter consigo, pois não? O senhor não lhe serviria para nada. – O sorriso gelou-se-me no rosto. – Não somos polícias, Sir Anthony, não somos o coletor de impostos. Estou pura e simplesmente a indicar-lhe certas relações que estão (como o senhor insiste) fora do alcance da lei, e foram realmente projetadas (com o auxílio ativo do Percy) para isso mesmo. 

O meu discurso parecia-me tão mal-amanhado, tão pouco contundente, que a princípio supus que Bradshaw não tencionava sequer preocupar-se com ele. 

E de certo modo não me enganava, pois ele limitou-se a encolher os ombros e dizer: 

– Que porra tem isso que ver com o que quer que seja? 

– Bem, na verdade, muita coisa. – Sentia o sangue começar a subir à cabeça e não havia nada que pudesse fazer para o evitar. – Estamos a pedir-lhe que se deixe disso. Que pare. Tem o seu grau de cavaleiro, tem uma fortuna, tem hoje deveres para com o seu país exatamente como tinha há doze anos. Portanto saia dos Balcãs e pare de atiçar os Sérvios e pare de atiçar a África Central, deixe de lhes oferecer montes de armas a crédito e pare de tentar ganhar dinheiro com guerras que podiam nunca existir se o senhor e outros espíritos com a mesma mentalidade não se metessem. O senhor é britânico. Tem mais dinheiro no bolso que a maioria de nós conseguirá arranjar durante toda a vida. Pare. Pare e pronto. É tudo quanto pedimos. Os tempos mudaram. Já não fazemos esses jogos. 

Por instantes imaginei que o tinha impressionado, pois virou o olhar mortiço para mim e examinou-me como se eu fosse alguém que afinal de contas merecesse ser comprado. Depois o interesse extinguiu-se-lhe de novo e voltou a cair no desânimo. 

– É o seu país que lhe fala, Bradshaw – disse eu, agora genuinamente zangado. – Por amor de Deus, homem, de que mais precisa você? Já não lhe resta sequer um vestígio de consciência? 

Vou facultar ao leitor a resposta de Bradshaw tal como a transcrevi, pois, a pedido de Burr, tinha enfiado um gravador no bolso do casaco e o cortante tom nasalado de Bradshaw garantia uma reprodução perfeita. Vou facultar também ao leitor a voz dele, tão rigorosamente quanto a posso verter por escrito. Falava inglês como se fosse a sua segunda língua, mas era a única que sabia. Falava de uma maneira que o meu filho Adrian me diz chamar-se «drawl», que é um indolente cockney de Belgravia que consegue fazer mice de mouse e dispensa quase totalmente o formalismo dos pronomes. Tem o seu vocabulário, naturalmente: nada sobe, ascende, não há nenhuma oportunidade que não tenha a sua perspetiva e não há nenhum pequeno acontecimento que não seja sensacional. Possui também uma pedante falta de rigor que a distingue supostamente da plebe e explica joias como «as for you and I»13. Mas, mesmo sem o gravador, quero crer que teria recordado cada palavra, pois o seu discurso era como um grito de guerra vespertino de um mundo que eu abandonava à sua sorte. 

– Lamento – começou ele, o que, para começar, era mentira. – Percebi corretamente que você estava a apelar à minha consciência? Bom. Certo. Lá vai uma declaração para que conste. Importa-se? A declaração começa aqui. Ponto Um. Na realidade só há um ponto. Estou-me cagando. A diferença entre mim e outros fulanos é que eu o reconheço. Se uma horda de pretos (disse pretos, sim, e é pretos que eu quero dizer), se esses pretos amanhã se matarem uns aos outros com os meus brinquedos e eu fizer massa com isso, cá por mim tudo bem. Porque se não for eu a vender-lhe as mercadorias, há-de haver outro fulano qualquer a fazê-lo. Dantes o governo percebia isso. Se amoleceram, são uns bons imbecis. Ponto Dois. Pergunta: já sabe o que andam a tramar hoje em dia os tipos do tabaco? Impingem tabaco altamente tóxico aos das carapinhas e dizem-lhes que faz ponta e que cura a vulgar constipação. Os rapazes do tabaco ralam-se alguma coisa? Ficam em casa com esgotamentos nervosos por poderem andar a propagar o cancro do pulmão entre os nativos? Ficam mas é uma porra. Estão é a usar uma técnica de vendas imaginativa e ponto final. Olhe a droga, por exemplo. Eu pessoalmente não uso. Não preciso. Não faz mal. Se um vendedor voluntário fizer negócio com um comprador voluntário, o meu conselho é não empatar, deixá-los dar cabo do canastro e que tenham muita sorte, ora porra. Se não for a droga a matá-los, há de ser o ar, ou então o aquecimento global que os há de pôr de churrasco. Britânico, disse você. De facto, tenho muito orgulho nisso. E também tenho muito orgulho na minha escola. Um homem do império. Acontece que é a tradição que herdei. Quando alguém se atravessa no caminho, esborracho-o. Se 

não, esborracha-me ele a mim. Aliás, a disciplina é comigo. A ordem. Aceitar as responsabilidades da classe e educação a que pertenço e derrotar o estranho no seu próprio jogo. Julgava que vocês também estavam particularmente empenhados nisso. Engano, aparentemente. Falha de comunicação. Aquilo que a mim me importa é a qualidade de vida. Esta vida. Os padrões, aliás. Palavra antiga. Não faz mal. Estes padrões. Bombástico, está você a pensar. Muito bem, sou bombástico. Vá-se lixar. Suponhamos que sou o faraó. Se tiverem de morrer uns milhares de escravos para eu poder construir esta pirâmide, é a vida. E se eles puderem fazer-me morrer a mim por causa da porra da pirâmide deles, tanto melhor para eles. Sabe o que é que eu tenho na cave? Argolas de ferro. Argolas de ferro enferrujadas, embebidas nas paredes quando a casa foi construída. Sabe para o que é que serviam? Escravos. Isso também é a vida. O dono inicial desta casa, o homem que construiu esta casa, o homem que a pagou, o homem que mandou o seu arquiteto a Itália, para aprender o seu ofício, esse homem tinha escravos, e tinha os seus alojamentos dos escravos na cave desta casa. Julga que hoje em dia não há escravos? Julga que o capital não depende de escravos? Jesus Cristo, em que mundo é que você anda? Normalmente eu cá não falo de filosofia, mas lamento muito, também não gosto que me venham pregar sermões. Não estou para aí virado, percebe? Na minha casa não, muito obrigado. Aborrece-me. Não me enxofro com facilidade, sou bastante famoso pela minha calma. Mas tenho cá uma certa visão da natureza: dou trabalho aos outros e retiro o meu quinhão. 

Eu não disse nada, e isso também está na gravação. 

Perante o absoluto, o que se pode dizer? Tinha lutado toda a vida contra o mal institucionalizado. O mal tinha um nome e muito frequentemente um país também. Tinha um propósito coletivo e atingia um fim coletivo. Mas o mal que agora tinha diante de mim era uma criança destruidora no meio de nós, e eu próprio me transformei por meu turno numa criança, desarmada, emudecida e enganada. Por um instante, foi como se toda a minha vida tivesse sido uma luta contra o inimigo errado. Depois foi como se Bradshaw tivesse roubado pessoalmente os frutos da minha vitória. Recordei o aforismo de Smiley sobre as pessoas certas terem perdido a Guerra Fria e as pessoas erradas terem-na ganho e pensei em repetir-lho como uma espécie de insulto, mas seria o mesmo que dar murros no ar. Pensei em dizer-lhe que, agora que derrotáramos o comunismo, tínhamos de nos dispor a derrotar o capitalismo, mas não era essa realmente a questão: o mal não estava no sistema, mas sim no homem. E, além disso, nessa altura ele estava a perguntar-me se queria ficar para jantar, o que declinei educadamente, saindo. 

Na circunstância, foi Burr que me levou a jantar, e tenho a satisfação de dizer que não me lembro grandemente dessa refeição. Dois dias depois devolvi o meu passe da Sede. 

 

 

Olhamos o nosso rosto. Não é ninguém que conheçamos. Perguntamos a nós próprios onde colocámos o nosso amor, o que encontrámos, o que procurávamos. Queremos dizer: «Matei o dragão. Fiz do mundo um lugar mais seguro.» Mas não podemos, nos tempos que correm não podemos. Talvez nunca tenhamos podido. 

Temos uma boa vida, Mabel e eu. Não falamos de coisas que não podemos modificar. Não nos irritamos um ao outro. Somos civilizados. Comprámos uma casa de campo no litoral. Há lá um comprido jardim ao qual gostava de deitar a mão, plantar umas árvores, abrir uma vista para o mar. Há um clube de vela para crianças pobres ao qual estou ligado; trazemo-las de Hackney e elas gostam. Há um movimento para me recrutarem para a assembleia local. Mabel anda metida com a igreja. Eu regresso à Holanda de vez em quando. Ainda lá tenho uns conhecimentos. 

Burr aparece uma vez por outra. Gosto disso nele. Dá-se bem com Mabel, como seria de esperar. Não procura ser esperto. Conversa com ela sobre as aguarelas. Não faz juízos. Abrimos uma boa garrafa, cozinhamos um frango. Ele põe-me em dia e regressa de carro a Londres. De Smiley, nada, mas era assim que ele queria. Detesta a nostalgia, ainda que faça parte da dos outros. 

Na realidade, a reforma é uma coisa que não existe. Às vezes há é saber-se de mais e não se poder fazer grande coisa a esse respeito, mas isso é apenas a idade, tenho a certeza. Penso muito. Estou a pôr as leituras em dia. Falo com as pessoas, ando de autocarro. Sou um recém-chegado ao mundo aberto, mas vou aprendendo. 

13 A expressão gramaticalmente correta seria as for you and me. (N. do T.)