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– Há certas pessoas – declarou confortavelmente Smiley, brindando com o seu sorriso alegre a bonita rapariga do Trinity Oxford que eu colocara previdentemente na mesa em frente dele – que, ao ameaçarem-lhes o passado, têm medo de perder tudo quanto julgavam que tinham, e talvez também tudo quanto julgavam que eram. Ora bem, eu não sinto nem pouco mais ou menos isso. O objetivo da minha vida foi liquidar o tempo em que vivi. Por conseguinte, se o meu passado ainda por cá andasse hoje em dia, poderiam dizer que eu fracassara. Mas não anda. Ganhámos. Não é que a vitória importe um chavo. E talvez no fim de contas não tenhamos ganho. Talvez eles tenham simplesmente perdido. Ou talvez, já sem as peias do conflito ideológico a reprimir-nos, os nossos problemas estejam apenas no começo. Não se ralem. O que importa é que terminou uma longa guerra. O que importa é a esperança. 

Tirando os óculos, remexeu distraidamente no peitilho da camisa, procurando qualquer coisa que não consegui imaginar o que fosse, até me aperceber de que era a extremidade mais larga da gravata, com a qual estava acostumado a limpar as lentes. Mas um laço preto desajeitadamente armado não oferece semelhantes préstimos, de forma que usou em vez dele o lenço de seda que tinha no bolso. 

– Se de alguma coisa me arrependo, é da maneira como desperdiçámos o nosso tempo e as nossas capacidades. Todas as falsas alamedas e os amigos fingidos, o emprego indevido das nossas energias. Todos os desapontamentos que tivemos acerca de quem éramos. – Voltou a pôr os óculos e, enquanto eu devaneava, dirigiu para mim o sorriso. E, de súbito, senti-me como um dos meus alunos. Estávamos novamente nos anos sessenta. Eu era um espião que ainda mal batia as asas e George Smiley – o tolerante, paciente e astuto George – observava as minhas primeiras tentativas de voar. 

 

 

Nesses tempos éramos ótimos rapazes, e os dias pareciam mais longos. Provavelmente não melhores que os meus alunos de hoje, mas a nossa visão patriótica era menos ensombrada de nuvens. Mas no curso de iniciação eu estava pronto a salvar o mundo nem que tivesse de espiá-lo de uma ponta à outra. Fôramos admitidos dez e, passado um par de anos de adestramento – no Criadouro de Sarratt, nos apertados vales de Argyll e nos campos de batalha do Wiltshire – esperávamos pelas nossas primeiras colocações como puros-sangues ansiosos pela perseguição. 

Também nós, à nossa maneira, tínhamos atingido a maturidade num grande momento da história, ainda que fosse o inverso deste. A estagnação e a hostilidade contemplavam-nos de todos os cantos do globo. O Perigo Vermelho estava em toda a parte, até nos nossos sagrados corações. O Muro de Berlim fora erguido havia dois anos e, pelos vistos, manter-se-ia de pé por mais duzentos. O Médio Oriente era um vulcão, tal como hoje é, com a diferença de que nesse tempo Nasser era o objeto do ódio britânico, em parte porque estava a devolver a dignidade aos Árabes e ainda por cima a fazer olhinhos aos Russos. Em Chipre, na África e no Sueste Asiático as raças inferiores sem lei estavam a levantar-se contra os seus velhos amos coloniais. E se nós, alguns escassos britânicos corajosos, sentíamos ocasionalmente o nosso poder diminuído por isso... bem, havia sempre a «prima» América para nos devolver ao jogo do mundo. 

Como secretos heróis na forja tínhamos, por conseguinte, tudo aquilo de que precisávamos: uma causa justa, um inimigo maligno, um aliado indulgente, um mundo em ebulição, mulheres para nos aplaudirem, mas apenas da linha lateral, e, melhor que tudo, a grande tradição a herdar, pois nessa época o Circus ainda se aquecia ao calor da sua glória dos tempos da guerra. Quase todos os nossos homens mais importantes se tinham notabilizado a espiar os alemães. Todos eles, quando interrogados nos nossos seminários francos e confidenciais, convinham que, quando tocava a proteger a humanidade dos seus próprios excessos, o comunismo mundial era uma ameaça ainda mais negra que os boches. 

– Os senhores herdaram um planeta perigoso – gostava de nos dizer o nosso lendário diretor de instrução, Jack Arthur Lumley. – E, se querem a minha opinião pessoal, têm uma sorte dos diabos. 

Ah, nós queríamos a opinião dele, se queríamos! Jack Arthur era um homem cheio de temeridade. Tinha passado três anos a ser largado e a sair da Europa ocupada pelos nazis como se fosse um convidado habitual. Tinha feito explodir pontes sozinho. Fora apanhado e evadira-se e fora novamente apanhado, ninguém sabia quantas vezes. Tinha morto homens servindo-se apenas dos dedos, perdendo um par deles na luta, e, quando a Guerra Fria aparecera para substituir a quente, Jack mal dera pela diferença. Aos 50 anos de idade, ainda era capaz de atingir o sorriso de um alvo do tamanho de um homem com uma Browning de 9 milímetros a vinte passos, abrir a fechadura de uma porta com um clip, armadilhar uma corrente de autoclismo em trinta segundos ou pregar com uma pessoa no tapete do ginásio, deixando-a indefesa, com um único arremesso. Jack Arthur tinha-nos largado de paraquedas de bordo de bombardeiros Stirling, tinha-nos desembarcado a bordo de botes de borracha em praias da Cornualha e tinha-nos embebedado debaixo da mesa em serões na messe. Se Jack Arthur dizia que era um planeta perigoso, nós acreditávamos piamente! 

Mas isso só tornava a espera mais difícil. Se eu não tivesse tido Ben Arno Cavendish para a compartilhar, teria sido ainda mais difícil. Há um número limitado de amizades que se pode cultivar na Sede antes que o entusiasmo se transforme em fel. 

Ben e eu nascêramos sob a mesma estrela. Tínhamos a mesma idade, a mesma escolaridade, a mesma constituição e a mesma altura, mais dois centímetros, menos dois centímetros. Espero que o Circus nos ponha juntos – dizíamos excitadamente um ao outro; provavelmente eles estavam fartos de saber! Ambos tínhamos mãe estrangeira, embora a dele já tivesse morrido – Arno vinha-lhe do lado alemão –, e pertencíamos ambos, talvez à guisa de compensação, decididamente às classes extrovertidas inglesas: homens atléticos, hedonistas, alunos de escolas oficiais, nascidos para administrar, quando não para governar. Se bem que, ao olhar para as fotografias de conjunto do nosso ano, eu verifique que Ben tirava um pouco mais de partido desse papel do que eu, pois possuía um ar de maturidade que naquele tempo me escapava: com o cabelo em bico na testa e um queixo firme, aparentava ser mais homem para a idade que tinha. 

O que, tanto quanto eu sabia, fora a razão pela qual Ben conseguira a missão de Berlim em vez de mim, dirigindo agentes de carne e osso dentro da Alemanha Oriental, enquanto eu era mais uma vez posto de reserva. 

– Vamos emprestá-lo aos vigias por um par de semanas, jovem Ned – disse o Pessoal, com uma complacência avuncular que eu começava a levar a mal. – Há de ser uma boa experiência para si, e a eles dá-lhes jeito um par de mãos a mais. Tem muito de capa e espada. Você vai gostar. 

Seja o que for para variar, pensei eu, fazendo-me forte. Durante o último mês tinha dedicado o meu engenho a sabotar a Conferência Mundial de Paz em – digamos – Belgrado, a partir de uma obscura secretária no terceiro andar. Obedecendo às instruções de um superior de fala vagarosa que passava horas a fio a almoçar no bar dos oficiais superiores, tinha desviado comboios de delegados, entupido a canalização do respetivo hotel e feito anónimas ameaças de bomba para a sala de conferências. Durante o mês anterior a isso, estivera todas as manhãs às seis horas galhardamente acachapado numa malcheirosa cave contígua à embaixada egípcia, à espera que uma mulher da limpeza venal me trouxesse, a troco de uma nota de cinco libras, o conteúdo da véspera do cesto dos papéis do embaixador. Segundo tão modestos padrões, um par de semanas na companhia dos melhores vigias do mundo assemelhava-se a um dia de folga. 

– Vão colocá-lo na Operação Rapaz Gordo – disse o Pessoal, e deu-me a direção de uma casa segura numa transversal da Green Street, no West End. Ao entrar, ouvi o som de pingue-pongue e de um disco riscado a tocar Grace Fields. Caiu-me a alma aos pés e voltei a dirigir uma oração de inveja a Ben Cavendish e aos seus heroicos agentes em Berlim, a eterna cidade dos espiões. Monty Arbuck, o chefe da nossa secção, fez-nos o briefing nessa mesma tarde. 

 

 

Permita-me o leitor que me desculpe de antemão. Nesse tempo eu pouco sabia de outros postos. Pertencia à casta dos oficiais – literalmente, visto que tinha prestado serviço na Royal Navy – e achava absolutamente natural ter nascido no extremo superior do sistema social. Se há coisa que o Circus seja, é um pequeno espelho da Inglaterra que protege, de forma que me parecia igualmente certo que os nossos vigias e profissões afins, tais como gatunos e escutas clandestinos, fossem recrutados na comunidade dos artesãos. De chapéu de coco não se pode seguir um homem por muito tempo. A partir do momento em que se sai da milha dourada de Londres, uma voz educada tipo BBC não é passaporte para a discrição, muito menos quando a pessoa se faz passar por vendedor ambulante, limpador de janelas ou técnico dos Correios. De forma que terá de visualizar-me, na melhor das hipóteses, como um jovem e verde guarda-marinha sentado entre os seus camaradas mais experientes e menos privilegiados. E terá de visualizar Monty não como o que ele era, mas como eu o via nessa tarde, como um guarda-caça de espírito tenso e irritadiço. Éramos dez, contando com Monty: três equipas de três, por conseguinte, com uma mulher cada, por forma a podermos cobrir casas de banho de senhoras. Era esse o princípio. E Monty o nosso controlador. 

– Bom dia, Universitário – disse ele, postando-se diante de um quadro e falando diretamente para mim. – É sempre bom ter um toque de qualidade para elevar o tom, caramba. 

Risos a toda a volta, os mais sonoros da minha parte: uma bela brincadeira para os seus homens. 

– O alvo para amanhã, Universitário, é Sua Excelência a Soberana Alteza Real o Rapaz Gordo, também conhecido por... 

Virando-se para o quadro, Monty serviu-se de um bocado de giz e rabiscou laboriosamente um longo nome árabe. 

– E a natureza da nossa missão, Universitário, é PR – resumiu. – Espero que saiba o que é PR, não? Hão de ter-lhe ensinado isso na Eton dos espiões, não? 

– Relações Públicas – disse eu, admirado por despertar tanta hilaridade. Porque, desgraçadamente, acontecia que no vernáculo dos vigias as iniciais queriam dizer Proteger e Relatar, e que a nossa missão para o dia seguinte, e durante o tempo que o nosso real visitante resolvesse manter-se à nossa guarda, era garantir que não lhe acontecesse mal nenhum, e relatar à sede as suas atividades, tanto sociais como comerciais. 

– Você fica com o Paul e a Nancy, Universitário – disse-me Monty, depois de nos ter fornecido o resto da informação operacional. – Será o número três da secção, Universitário, e fará o favor de fazer exatamente o que lhe disserem, dê lá por onde der. 

Mas nesta altura prefiro fornecer ao leitor os antecedentes do caso do Rapaz Gordo não pelas palavras de Monty, mas por palavras minhas e com a vantagem de vinte e cinco anos de retrospetiva. Ainda hoje sou capaz de corar quando penso no que me julgava e no que devo ter parecido às pessoas como Monty, Paul e Nancy. 

 

 

Saiba antes do mais o leitor que os vendedores de armamento autorizados na Grã-Bretanha se consideram uma espécie de elite sem polimento – assim se consideravam então e assim se consideram hoje em dia – e que gozam de privilégios absolutamente desproporcionados junto da polícia, da burocracia e dos serviços de informações. Por razões que nunca percebi, o seu sinistro negócio coloca-os numa relação de confiança com estas entidades. Talvez seja a ilusão de realidade que transmitem das armas enquanto comezinha verdade da vida e da morte. Talvez, para o espírito acanhado dos nossos funcionários, as suas mercadorias sugiram a mesma autoridade que é exercida por aqueles que as usam. Não sei. Mas nos anos desde então decorridos já vi o bastante do lado da rua que a vida possui para saber que há mais homens com amor à guerra do que aqueles que alguma vez têm oportunidade de combater em alguma, e que há mais armas compradas para satisfazer esse amor do que para um objetivo desculpável. 

Saiba também que o Rapaz Gordo era um apreciadíssimo cliente dessa indústria. E que a nossa tarefa de proteger e relatar constituía apenas parte de um empreendimento bem mais amplo: nomeadamente, zelar por um país árabe dito amigo e cultivar a respetiva amizade. O que significava, e ainda hoje significa, procurar captar as boas graças dos seus principelhos, suborná-los e lisonjeá-los à nossa maneira inglesa, sacar concessões favoráveis a fim de satisfazer o nosso vício do petróleo... e, de caminho, vender suficiente armamento britânico para manter as satânicas fábricas de Birmingham a funcionar dia e noite. O que poderia explicar a arreigada repugnância de Monty pela nossa tarefa. Em qualquer caso, quero pensar que assim fosse. Os velhos vigias são famosos por moralizarem – e com razão. Primeiro vigiam, depois pensam. Monty atingira o estádio em que se pensa. 

Quanto ao Rapaz Gordo, as suas credenciais para este tratamento eram impecáveis. Era o irmão estroina do dirigente de um principado rico em petróleo. Era caprichoso e atreito a esquecer-se do que tinha comprado antes. E chegou conforme programado, no Boeing do governante, a um aeroporto militar próximo de Londres especialmente posto à sua disposição, para se divertir um bocado e fazer umas comprazinhas – que sabíamos virem a incluir bagatelas tais como um par de Rolls-Royces blindados para ele próprio, metade das bugigangas da Cartier para as amigas espalhadas por todo o mundo, coisa de uma centena dos nossos lança-mísseis terra-ar não propriamente do último modelo e uma ou duas esquadras dos nossos caças de combate não propriamente do último modelo para o seu real irmão. Não esquecendo um suculento contrato governamental britânico de sobressalentes, assistência e adestramento que manteriam a Royal Air Force e os fabricantes de armamento a viver à grande e à francesa durante uma série de anos. Ah, e petróleo. Teríamos petróleo para queimar. Naturalmente. 

A sua comitiva, além dos secretários particulares, astrólogos, aduladores, amas, crianças e dois tutores, compreendia um médico pessoal e três guarda-costas. 

Por último havia a esposa do Rapaz Gordo, cujo nome de código é irrelevante porque logo a partir do Dia Um os vigias de Monty a alcunharam de «o Panda» devido aos halos escuros em redor dos olhos quando tirava o véu e ao seu porte melancólico e solitário, que lhe dava o ar de uma espécie ameaçada. O Rapaz Gordo tinha uma enfiada de esposas, mas o Panda, embora a mais velha, era a mais favorecida, e talvez a mais tolerante em relação aos prazeres citadinos do marido, visto que ele gostava de clubes noturnos e gostava de jogar – gostos pelos quais os meus companheiros vigias o detestavam cordialmente antes mesmo de ele chegar, dado saber-se que ele raramente se deitava antes das seis da manhã, e nunca sem ter perdido cerca de vinte vezes os respetivos ordenados anuais juntos. 

O grupo tinha quartos num grandioso hotel do West End, em dois pisos ligados por um ascensor especialmente instalado. O Rapaz Gordo, como muitos quarentões sibaritas, preocupava-se com o coração. Preocupava-se também com microfones e gostava de usar o elevador como seu compartimento seguro. Assim sendo, os escutas do Circus tinham avisadamente instalado para ele outro microfone no ascensor, que era onde contavam captar os seus acepipes sobre as últimas intrigas palacianas ou qualquer imprevista ameaça à lista de compras militares do Rapaz Gordo. 

E tudo corria sobre esferas até ao Dia Três, em que um desconhecido árabe baixinho, de sobretudo preto com golas de veludo, apareceu silenciosamente no nosso horizonte. Ou, mais rigorosamente, na secção de roupa interior de senhora de um grande armazém de Knightsbridge, onde o Panda e as suas serviçais caminhavam pé ante pé por entre uma rima de franzidas peças brancas de roupa íntima espalhadas pelo balcão de vidro. Porque o Panda também tinha os seus espiões. E chegara-lhe aos ouvidos que, na véspera, o Rapaz Gordo em pessoa tinha namorado ternamente os mesmos artigos e encomendara até umas dúzias a serem enviadas para uma direção em Paris onde uma favorecida amiga o esperava continuamente no seio de um luxo subsidiado. 

 

 

Dia Três, repito, com o moral da nossa equipa de três sob pressão. Paul era Paul Skordeno, um homem metido consigo, de tez picada das bexigas e com talento para a invetiva feroz. Nancy disse-me que ele caíra em desgraça, mas se negava a dizer porquê. 

– Agrediu uma rapariga, Ned – disse ela, mas hoje penso que ela queria dizer mais do que simplesmente agredir. 

Quanto a Nancy, não media mais de metro e meio de altura e tinha o ar de uma vagabunda encartada. Como equipamento da ordem, assim lhe chamava ela, calçava meias de fio de Escócia e uns judiciosos sapatos de andar de sola de borracha, que raramente mudava. O mais de que precisava – lenços de pescoço, impermeáveis, chapéus de lã de cores diferentes – trazia-o num saco de plástico. 

Em serviço de vigilância a nossa secção trabalhava por turnos de oito horas sempre segundo a mesma formação, Nancy e Paul a atuar à frente e o jovem Ned no encalço deles como vassoura. Quando perguntei a Skordeno se podíamos variar a formação, ele disse-me para me acostumar ao que me tocava. No nosso primeiro dia tínhamos seguido o Rapaz Gordo até Sandhurst, onde haviam organizado um almoço em sua honra. Nós os três comemos ovos com batatas fritas num café próximo do portão principal enquanto Skordeno barafustava primeiro contra os Árabes, depois contra a sua exploração pelo Ocidente e a seguir, para minha consternação, contra o Quinto Andar, que descrevia como praticantes de golfe fascistas. 

– Você é mação, Universitário? 

Assegurei-lhe que o não era. 

– Bem, o melhor é apressar-se e juntar-se a eles, não é? Já reparou na maneira insolente como o Pessoal aperta a mão? Se não é mação nunca há-de chegar a Berlim, Universitário. 

O Dia Dois tinha sido passado às voltas pela Mount Street enquanto o Rapaz Gordo tirava medidas para um par de espingardas Purdy, primeiro brandindo precariamente uma espingarda de prova à volta do estabelecimento e a seguir fazendo uma birra ao descobrir que teria de esperar dois anos até elas estarem prontas. Paul mandou-me duas vezes à loja enquanto esta cena se desenrolava, e pareceu satisfeito quando eu lhe disse que o pessoal estava a ficar desconfiado com as minhas frívolas perguntas. 

– Sempre pensei que fosse o seu género de sítio – disse ele, com o seu sorriso de caveira. – Caça, tiro e pesca: no Quinto Andar gostam disso, Universitário. 

Essa mesma noite tinha dado connosco os três sentados ao lado uns dos outros numa carrinha à porta de uma casa de passe com persianas na South Audley Street e com a Sede num estado próximo do pânico. O Rapaz Gordo só lá estava enfiado há duas horas quando telefonara para o hotel e mandara o seu médico pessoal comparecer de imediato. O coração!, pensámos, alarmados. Devíamos entrar? Enquanto a Sede tremia, nós albergávamos visões da nossa presa morta de um ataque cardíaco nos braços de qualquer pega excessivamente conscienciosa antes de ter assinado o cheque dos seus obsoletos aviões de caça. Só às quatro da manhã as escutas nos aquietaram os receios. O Rapaz Gordo fora acometido por um acesso de impotência, explicaram eles, e o médico tinha sido chamado para injetar um afrodisíaco no real traseiro. Regressámos a casa às cinco, Skordeno fulo de raiva, mas todos nós consolados por saber que o Rapaz Gordo tinha de estar em Luton ao meio-dia para assistir a uma grandiosa demonstração de um dos mais recentes tanques britânicos e que podíamos contar com um dia de descanso. Mas o nosso alívio era prematuro. 

– O Panda quer comprar umas bugigangas – anunciou-nos benignamente Monty à nossa chegada a Green Street. – É a sua vez. Desculpe lá, Universitário. 

O que nos traz à secção de roupa interior de senhora da grande loja de Knightsbridge e ao meu momento de glória. Ben, estava eu a pensar; Ben, trocava um dia dos teus por cinco dos meus. Não tardou nada, parara de pensar em Ben e tinha deixado de invejá-lo. Retirara-me para a privacidade de um vão de porta e falava ao microfone do pesadão equipamento de rádio, que nesse tempo era o melhor que havia. Selecionara o canal que me dava uma linha direta à base. Era aquele que Skordeno me dissera para não usar. 

– O Panda tem um «macaco» à perna – informei Monty com a minha voz mais calma, empregando o calão aprovado dos vigias a fim de descrever o misterioso perseguidor. – Metro e sessenta e cinco, cabelo preto encaracolado, bigode farto, quarenta anos, sobretudo preto, sapatos pretos de sola de borracha. Aspeto árabe. Estava no aeroporto à chegada do avião do Rapaz Gordo. Lembro-me dele. É o mesmo homem. 

– Não o largue – foi a lacónica resposta de Monty. – O Paul e a Nancy continuam com o Panda, você continua com o «macaco». Que andar? 

– Primeiro. 

– Mantenha-se em cima dele para onde quer que ele vá e continue a falar comigo. 

– É capaz de estar recheado – disse eu enquanto os meus olhos se fixavam sub-repticiamente no objeto da minha chamada. 

– Quer dizer que está grávido? 

Não achei grande piada àquilo. 

Deixe o leitor que eu descreva a cena com precisão, pois era mais complicada do que possa supor. O nosso trio não estava sozinho no seguimento da comitiva do Panda durante a sua expedição aquisitiva a passo de caracol. Uma rica princesa árabe não aparece sem se anunciar numa grande loja de Knightsbridge. Para além de um par de chefes de secção de casaco preto e calça às listas, dois evidentíssimos detetives da casa tinham-se postado cada um em sua arcada, de pés afastados e as mãos enclavinhadas aos lados do corpo, prontos a todo o momento para passarem a vias de facto com dervixes bailarinos. Como se isso não bastasse, a Scotland Yard tinha-se encarregado nessa manhã de facultar o seu próprio tipo de proteção sob a forma de um homem de rosto inflexível envergando um impermeável cintado que teimava em se colocar ao lado do Panda e fazer ares ameaçadores a quem quer que se aproximasse. E, por último, imagine o leitor, Paul e Nancy com os seus melhores trajes domingueiros, de costas voltadas para toda a gente enquanto simulavam inspecionar tabuleiros de negligés e observavam a nossa presa pelos espelhos. 

E tudo isto, repita-se, não sei se está a ver, metido na sussurrada e cheirosa privacidade do harém; num mundo de vaporosa roupa interior, alcatifas espessíssimas e langorosos manequins seminus... para não falar naquelas simpáticas caixeiras grisalhas de crepe negro que, com uma certa idade, se considera terem alcançado um comportamento suficientemente inofensivo para presidir aos santuários da intimidade feminina. 

Outros homens, reparei eu, preferiam nem sequer entrar na secção de roupa interior de senhora, ou passavam por ela de fugida desviando a vista. Instintivamente eu teria feito a mesma coisa, se não fosse ter reconhecido aquele melancólico homenzinho do bigode preto e apaixonados olhos castanhos, que seguia inabalavelmente a comitiva do Panda, a quinze passos. Se Monty não me tivesse designado vassoura, nem sequer o teria porventura visto; pelo menos naquela altura. Mas não tardou a ficar claro que tanto ele como eu, por virtude dos nossos diferentes misteres, éramos obrigados a manter a mesma distância ao nosso alvo – eu com ar despreocupado, ele com uma espécie de intensa e mística dependência. Porque o seu olhar nunca vacilava, desviando-se dela. Mesmo quando a sua visão era obstruída por uma coluna ou uma freguesa, conseguia ainda assim esticar a cabeça escura para um lado ou para outro até prender mais uma vez nela o seu zeloso e – estava já convencido – fanático olhar. 

Tinha pressentido inicialmente esse seu fervor quando o avistara na sala de chegadas do aeroporto, encostando-se em bicos de pés à comprida janela ao mesmo tempo que serpenteava para ter uma melhor perspetiva da aproximação do casal régio. Nessa altura não lhe achara nada de especial. Estava a sujeitar toda a gente ao mesmo exame crítico. Parecera-me ser apenas mais um do bando de diplomatas, assistentes e penduras que constituíam o grupo de receção real. A sua veemência, contudo, tinha ferido uma corda em mim: Com que então o Médio Oriente é isto, cismara eu ao vê-lo comprimir o rosto encovado contra o vidro. São estas as paixões pagãs que o meu serviço tem de conter se queremos conduzir os nossos carros, aquecer as nossas casas e vender o nosso armamento em paz. 

O «macaco» tinha dado uns passos em frente e estava a perscrutar um expositor de laços. O andar dele – exatamente como o do seu homónimo – era largo mas furtivo; parecia mexer-se inteiramente a partir dos joelhos, em passadas conspirativas. Escolhi um mostruário de ligas ao pé dele e espreitei para lá enquanto voltava dissimuladamente a examiná-lo à procura de volumes reveladores em torno da cintura e nos sovacos. O formato do seu sobretudo preto era o do pistoleiro clássico, volumoso e sem cinto, o tipo de abafo que esconde sem esforço uma pistola de cano comprido munida de silenciador ou uma semiautomática a tiracolo debaixo do braço. 

Estudei-lhe as mãos, com as minhas a formigarem nervosamente. Tinha a esquerda frouxamente caída ao longo do corpo, mas a direita, que parecia a mais forte, não parava de se dirigir ao peito e de conter-se, como se ele estivesse a preparar-se para ganhar coragem com vista ao ato final. 

Saca cruzado com a direita, pensei eu; muito provavelmente do sovaco. Os nossos instrutores de armamento tinham-nos ensinado todas as combinações. 

Quanto aos seus olhos – aqueles olhos escuros, de fogueira latente, de fanático sem alma –, até de perfil pareciam fitos na outra vida. Teria jurado vingança contra ela? Contra a sua família? Ter-lhe-iam fanáticos mullahs prometido um lugar no céu se ele executasse a ação? O meu conhecimento do Islão era escasso e o que tinha havia sido extraído de um par de leituras de fundo e dos romances de P. C. Wren. Era, contudo, o suficiente para me alertar de que estava na presença de um fanático desesperado que não dava grande valor à sua vida. 

Quanto a mim, desgraçadamente, estava desarmado. Era o meu ponto fraco. Nunca passaria pela cabeça de um vigia andar com armas em missão normal, mas a proteção encoberta é um tipo de vigilância diferente e tinha sido distribuída a Paul Skordeno uma arma portátil do cofre de Monty. 

– Uma chega, Universitário – dissera-me Monty, com o seu sorriso de velhote. – Não queremos que vocês desencadeiem a Terceira Guerra Mundial, pois não? 

E o que me restava, por conseguinte, ao levantar-me e segui-lo devagarinho outra vez, era escolher previamente um dos golpes que fôramos ensinados a dominar nas nossas aulas de matar em silêncio. Devia contar atacá-lo por trás... com um golpe de coelho?... Com um duplo golpe simultâneo por cima das orelhas? Qualquer dos métodos podia matá-lo instantaneamente, ao passo que um homem vivo ainda pode ser interrogado. Nesse caso faria melhor em partir-lhe um braço primeiro, na esperança de o capturar com a sua própria arma? Se o deixasse sacar, porém, conseguiria eximir-me a cair sob uma saraivada de balas dos vários guarda-costas espalhados pela sala? 

Ela tinha-o visto! 

O Panda tinha cravado a vista mesmo nos olhos do «macaco» e ele devolvera-lhe o olhar! 

Tê-lo-ia ela reconhecido? Eu estava seguro de que sim. Mas ter-lhe-ia reconhecido o propósito? E estaria, porventura, nalguma estranha reviravolta de fatalismo oriental, a preparar-se para a morte? As lúgubres possibilidades desfilaram-me pelo espírito à medida que continuava a observar a estranha troca de sinais. Os olhares de ambos cruzaram-se e o Panda imobilizou-se a meio de um gesto. As suas mãozinhas de caranguejo ornadas de joias, a saquearem a roupa do balcão, mantiveram-se quietas; e a seguir, como que obedecendo a uma ordem dele, escorregaram passivamente para os lados do corpo. Depois deteve-se, imóvel, destituída de vontade, sem forças sequer para se furtar ao olhar penetrante do homem. 

Por fim, com um ar desamparado e estranhamente humilde, virou-lhe costas, murmurou qualquer coisa às acompanhantes e, estendendo a mão para o balcão, largou a peça rendada que ainda apertava nela. Nesse dia envergava um vestido castanho – se fosse um homem, eu sentir-me-ia tentado a dizer um hábito franciscano – de mangas largas mais compridas que os braços e uma fita castanha bem apertada em torno da testa. 

Vi-a suspirar, após o que, lenta e – tive a certeza – resignadamente, conduziu o seu séquito em direção à arcada. A seguir a ela vinha o guarda-costas pessoal; a seguir a este, os polícias da Scotland Yard. Depois vinham as senhoras da comitiva, seguidas pelos chefes de secção da loja. E finalmente vinham Paul e Nancy, que, numa demonstração de indecisão, tinham abandonado a contemplação dos negligés e deambulavam como quaisquer compradores na esteira do grupo. Paul, que tinha decerto entreouvido as minhas conversas com Monty, não me brindou com o mais pequeno relance. Nancy, que se orgulhava de fazer teatro amador, estava a fingir que armava uma discussão conjugal com ele. Tentei ver se Paul desabotoara o casaco, pois ele também era adepto de sacar cruzado. Mas tinha as costas largas viradas para mim. 

– Muito bem, Universitário, mostre lá – disse vivamente Monty ao meu ouvido esquerdo, aparecendo ao meu lado como que por magia. Há quanto tempo ali estaria? Não fazia ideia. Passava do meio-dia e estava na hora de largarmos o serviço, mas aquela não era ocasião para render a guarda. O «macaco» estava a menos de cinco metros de nós, caminhando leve mas determinantemente atrás do Panda. 

– Podemos apanhá-lo nas escadas – murmurei eu. 

– Fale mais alto – aconselhou-me Monty, com a mesma voz impassível. – Falando normalmente, ninguém nos ouve. Se nos pomos para aqui a murmurar pelo canto da boca, julgam que viemos roubar a caixa. 

Dado que estávamos no primeiro piso, era garantido que o grupo do Panda tomaria o elevador, quer fosse para cima, quer para baixo. Ao lado do elevador havia umas portas de guarda-vento que davam para o que nesse tempo eram umas escadas de emergência de pedra, bastante húmidas e insalubres, com passadeiras de linóleo. O meu plano, que esbocei a Monty em frases entrecortadas à medida que seguíamos o «macaco» em direção à arcada, era o que havia de mais simples. Quando o grupo se aproximasse do elevador, Monty e eu acercávamo-nos dele por ambos os lados, agarrávamo-lo cada um por seu braço e arrastávamo-lo para as escadas. Subjugávamo-lo com um golpe na virilha, tirávamos-lhe a arma e depois espevitávamo-lo até à Green Street, onde o convidaríamos a prestar um depoimento voluntário. Em exercícios de instrução tínhamos feito dúzias de vezes coisas que tais; de uma delas, para nossa atrapalhação, a um inocente empregado bancário que ia apressadamente para casa onde a mulher e a família o esperavam e que tínhamos confundido com um elemento da nossa equipa de instrução. 

Porém, se Monty me ouviu, para minha frustração não deu mostras de que assim tivesse acontecido. Estava a observar os chefes de secção a abrirem um caminho por entre a multidão até ao elevador, de forma que o grupo do Panda pudesse viajar nele com privacidade. E sorria como qualquer casual homem do povo ao deparar com um vislumbre de realeza. 

– Ela vai descer – declarou com satisfação. – Aposto uma libra contra um dinheiro que é da bijutaria que ela anda atrás. Seria de imaginar que a malta do Golfo não ligasse importância às coisas artificiais, mas não se farta delas: pensa que há de ser por força uma pechincha. Venha daí, filho. Isto é divertido. Vamos dar uma olhadela. 

Quero crer que mesmo na minha perplexidade reconheci a excecional competência profissional de Monty. A exótica comitiva do Panda, na sua maioria vestida à árabe, estava a despertar viva curiosidade entre os fregueses. Monty era apenas mais um cliente, a gozar o espetáculo. E era mesmo, acertara mais uma vez: o destino delas era a secção de bijutaria, como o «macaco» tinha igualmente adivinhado, visto que, ao sairmos do elevador, o «macaco» deu uma corridinha à frente do grupo para ocupar um lugar privilegiado junto aos cintilantes expositores, com o ombro esquerdo junto à parede, exatamente como convinha a um pistoleiro direito que saca cruzado sobre o peito. 

Contudo, em lugar de escolher uma posição estratégica de onde ripostar ao fogo, Monty limitou-se a vaguear atrás dele e, depois de se lhe ter posto ao lado, fez-me sinal para me juntar a ele, e de tal forma que não tive outro remédio senão deixar Monty, e não o «macaco», no centro do nosso trio. 

– É por isto que eu venho sempre a Knigthsbridge, filho – explicava Monty, suficientemente alto para meio piso ouvir. – Nunca sabemos quem vamos encontrar. Da última vez trouxe a tua mãe, hás de estar recordado: tínhamos ido ao Salão de Alimentos do Harrods. Pensei cá para mim: «Olá, eu conheço-te, és o Rex Harrison.» Podia ter estendido a mão e tocado nele, mas não o fiz. É a encruzilhada do mundo, Knightsbridge, não concorda, cavalheiro? – tirando o chapéu ao «macaco», que lhe dirigiu um sorriso amarelo como resposta. – Pergunto a mim mesmo de onde será este grupo. Árabes, pelo aspecto, com a riqueza de Salomão nas pontas dos dedos. E nem sequer pagam impostos, até apostava. E então a realeza! Nem precisavam. Não há uma casa real no mundo que pague impostos a si própria, não teria lógica. Estás a ver aquele polícia grandalhão, filho? Deve ser da Brigada Especial, vê-se pelo estúpido ar façanhudo. 

O grupo do Panda estava entretanto a distribuir-se pelos iluminados balcões de vidro enquanto o Panda, numa mal disfarçada agitação, estava a pedir para tirarem os tabuleiros a fim de poder examiná-los. E não tardou que, tal como na secção de roupa interior de senhora, começasse a pegar num objeto atrás de outro, revirando-o criticamente sob a luz de inspeção, voltando a poisá-lo e pegando noutro. E uma vez mais, à medida que ela continuava a avaliar e a abandonar uma e outra peça, vi-lhe o olhar preocupado deslizar na nossa direção, primeiro para o «macaco», depois para mim, como se tivesse visto na minha pessoa a sua única esperança de proteção. 

Monty, no entanto, quando lhe lancei um olhar de confirmação, continuava a sorrir. 

– Foi exatamente o que aconteceu na secção de roupa interior – segredei, esquecendo as suas instruções para falar normalmente. 

Mas Monty continuava o seu sonoro monólogo. 

– Mas lá por dentro, filho, eu digo sempre isto, lá por dentro, gente real ou não, são o mesmo que nós, de uma ponta a outra. Todos nós nascemos nus, estamos todos a caminho da sepultura. A nossa riqueza é a saúde; é melhor ser rico em amigos do que em dinheiro, digo eu. Temos todos os mesmos apetites, as mesmas pequenas fraquezas e travessuras. – E continuou por ali adiante, como que em deliberado contraste com a minha extrema atenção. 

Ela tinha mandado vir mais tabuleiros. O balcão estava coberto de sumptuosas tiaras, pulseiras e brincos de massa. Escolhendo um colar de três fiadas de rubis de imitação, levou-o ao pescoço e a seguir pegou num espelho de mão para se admirar. 

E seria a minha imaginação? Não era! Estava a servir-se do espelho para observar o «macaco» e observar-nos aos dois! Primeiro um olho escuro e depois o outro fixo em nós; a seguir os dois juntos, a alertar-nos, a dirigir-nos uma súplica, antes de voltar a poisar o espelho, virar-nos as costas e deslizar rapidamente, como que furiosa, pela borda do balcão de vidro fora, onde um novo mostruário a esperava. 

Nesse mesmo momento, o «macaco» deu um passo em frente e vi-lhe a mão erguer-se para a abertura do sobretudo. Pondo de lado as cautelas, dei também um passo em frente, com o braço direito para trás e os dedos da mão direita fletidos, de palmas paralelas ao solo à maneira aprovada em Sarratt. Tinha-me decidido por uma cotovelada em cheio no coração, seguida de um golpe com a mão em cutelo no lábio superior, no ponto em que a cartilagem do nariz se une à metade superior do maxilar. Há uma complicada rede de nervos que tem ali o seu ponto de junção e um golpe certeiro pode imobilizar a vítima por um bom pedaço. O «macaco» estava a abrir a boca e a inspirar. Antecipei um grito a Alá, ou talvez a divisa gritada de qualquer seita fundamentalista – embora já não saiba até que ponto nesse tempo estávamos familiarizados ou nos preocupávamos com os fundamentalistas árabes. Decidi imediatamente gritar eu próprio, não apenas a fim de o confundir, mas porque uma inspiração profunda levaria mais oxigénio à minha corrente sanguínea, aumentando desse modo a força do golpe. Estava mesmo a fazer essa inspiração quando senti a mão de Monty agarrar-me o pulso como um anel de ferro e, com uma potência imprevista, imobilizar-me ao mesmo tempo que me atraía a si. 

– Não faças isso, filho, este senhor estava à tua frente – disse em voz trivial. – Ele tem um assuntozinho confidencial a tratar, não tem, cavalheiro? 

Tinha mesmo. E o aperto de Monty não me libertou enquanto eu não observei a sua natureza. O «macaco» estava a falar. Não para o Panda, nem para a sua comitiva, mas para os dois chefes de secção de calças listadas que inclinavam as cabeças para o ouvir, primeiro condescendentes e a seguir com um espantado interesse quando o seu olhar se desviou para o Panda. 

– Desgraçadamente, meus senhores, Sua Alteza Real prefere fazer as suas compras informalmente, compreendem? – dizia ele. – Sem o incómodo da embalagem ou de uma fatura, digamos assim. É uma ocasião em cheio para ela. Três e quatro anos atrás, era uma regateadora exímia, sabem? Oh, se era! Era capaz de negociar o desconto mais competitivo para tudo o que lhe apetecia comprar. Mas hoje em dia, nesta altura da vida, começa a tomar as coisas literalmente nas suas mãos, compreendem? Ou deverei dizer na manga, valha-me Deus? Estou por conseguinte encarregado por Sua Alteza de liquidar de um modo absolutamente magnânimo essas compras informais, no claríssimo entendimento de que nem um sussurro de publicidade chegue aos ouvidos do público, meus senhores, seja por palavras escritas ou faladas, se é que me faço entender. 

Nessa altura tirou do bolso não, desgraçadamente, uma mortífera automática Walther, nem uma metralhadora portátil Heckler & Koch, nem sequer uma das nossas amadas Brownings de 9 milímetros da ordenança, mas sim uma carteira marroquina de couro lavrado recheada de notas de valores diversos pertencentes à sua ama. 

– Contei, creio eu, três belos anéis, um de esmeralda artificial e dois de diamantes de massa, e também um belo colar de rubis artificiais, de três fiadas. É desejo de Sua Alteza Real que a nossa liquidação tenha generosamente em conta qualquer incómodo sofrido pelo vosso excelente pessoal, compreendem? E também uma comissão para as vossas pessoas, no já referido entendimento quanto à publicidade. 

O aperto a que Monty me sujeitava tinha finalmente afrouxado e, à medida que caminhávamos rumo ao salão, atrevi-me a lançar-lhe um olhar e vi, para meu alívio, que a sua expressão, embora pensativa, era surpreendentemente suave. 

– É o problema da nossa profissão, Ned – explicou-me com satisfação, usando pela primeira vez o meu nome de batismo. – A vida está a olhar para um lado e nós estamos a olhar para o outro. Eu próprio gosto às vezes de um inimigo como deve ser, não me importo de reconhecê-lo. No entanto, é preciso procurar imenso, não é? Há por aí muito tipo porreiro.