4
Alguém questionou Smiley sobre interrogatórios, uma vez mais. Era uma pergunta que aflorava com frequência à medida que a noite avançava, principalmente porque a assistência lhe queria arrancar mais histórias reais. As crianças são impiedosas.
– Ah, existe uma certa arte em descobrir falhas num mentiroso, claro que existe – reconheceu dubitativamente Smiley, bebendo um gole do copo. – Mas a verdadeira arte reside em reconhecer a verdade, o que é bem mais difícil. Sob interrogatório, ninguém se comporta normalmente. As pessoas que são estúpidas agem inteligentemente. As pessoas inteligentes agem estupidamente. Os culpados parecem inocentes como cordeirinhos e os inocentes parecem tremendamente culpados. E uma vez por outra as pessoas agem como são e dizem a verdade tal como a sabem, e claro que há as pobres almas que são constantemente apanhadas. Não há ninguém menos convincente para a nossa desgraçada profissão que o homem irrepreensível que nada tem a esconder.
– Exceto possivelmente a mulher irrepreensível – sugeri eu em segredo.
George tinha-me recordado Bella e o ambíguo capitão-de-mar Brandt.
*
Era um homem grande, de crespo cabelo aloirado, à primeira vista eslavo ou escandinavo, com o bamboleio de um marinheiro em terra e o olhar distante de um aventureiro. Conheci-o em Zurique quando ele estava numa camisa de onze varas com a Polícia. O comissário da cidade telefonara-me a meio da noite e dissera:
– Herr Konsul, temos cá uma pessoa que diz ter informações para os Britânicos. Temos ordens para o pôr de manhã na fronteira.
Não perguntei qual fronteira. Os Suíços têm quatro, mas, quando expulsam alguém, não são esquisitos. Dirigi-me de carro à prisão distrital e encontrei-me com ele numa sala de interrogatórios gradeada: um gigante engaiolado, de camisola de gola alta, que se intitulava capitão-de-mar Brandt, o que parecia ser a sua versão pessoal de Kapitän zur See.
– Está muito longe do mar – disse eu ao apertar-lhe a mão grande e almofadada.
Para os Suíços, não havia nele uma coisa certa. Tinha pregado um calote no hotel, o que na Suíça é um crime tão nefando que tem um parágrafo especial no Código Penal. Tinha provocado distúrbios, estava sem um chavo e o seu passaporte da Alemanha Ocidental não resistia ao exame – embora os Suíços se recusassem a dizê-lo em voz alta, dado que um passaporte falso podia prejudicar as suas hipóteses de se verem livres dele despachando-o para outro país. Tinha sido apanhado bêbedo e na vadiagem e culpava disso uma rapariga. Tinha quebrado os queixos a alguém. Insistia em falar comigo a sós.
– Você britânico? – perguntou em inglês, presumivelmente com o fim de disfarçar a nossa conversa perante os suíços, embora eles falassem melhor inglês do que ele.
– Sou.
– Prove, por favor.
Mostrei-lhe o meu bilhete de identidade oficial, que me definia como vice-cônsul para os Assuntos Económicos.
– Trabalha para Serviço de Informações britânico?
– Trabalho para o governo britânico.
– Está bem, está bem – disse ele e, num súbito cansaço, mergulhou a cabeça na mão por forma que o comprido cabelo loiro caiu para a frente, o que o obrigou a atirá-lo novamente para trás com um gesto largo do braço. Tinha o rosto picado e bexigoso como um pugilista.
– Já esteve preso? – perguntou ele, fitando a mesa branca esfregada.
– Não, graças a Deus.
– Jesus – disse ele, e contou-me a sua história em mau inglês.
Era letão, nascido em Riga, de pai letão e mãe polaca. Falava letão, russo, polaco e alemão. Tinha nascido para o mar, coisa que eu imediatamente pressenti, pois eu próprio tinha nascido para ele. O pai e o avô tinham sido marinheiros e ele prestara serviço durante seis anos na marinha soviética, navegando no Ártico a partir de Arcangel e no mar do Japão a partir de Vladivostoque. Um ano atrás tinha regressado a Riga, comprara um pequeno barco e dedicara-se a fazer contrabando ao longo da costa do Báltico, levando vodca russa barata para a Finlândia com a ajuda de pescadores escandinavos. Fora apanhado e preso perto de Leninegrado, fugira e embarcara clandestinamente para a Polónia, onde vivia ilegalmente com uma estudante polaca em Cracóvia. Conto isto exatamente como ele mo disse, como se embarcar clandestinamente para a Polónia a partir da Rússia fosse tão evidente como apanhar o autocarro número 11 ou dar uma saltada à rua para beber um copo. Não obstante, mesmo com a minha limitada familiaridade com os obstáculos que ele vencera, sabia que se tratava de uma proeza extraordinária – e não o era menos tendo-a ele realizado uma segunda vez. Porque, quando a rapariga o deixara para casar com um vendedor suíço, ele dirigira-se para a costa e apanhara uma boleia para Malmö, e dali para Hamburgo onde tinha um primo afastado, mas o primo era mesmo afastado e mandara-o para o diabo. De forma que ele roubara o passaporte do primo e encaminhara-se para sul, rumo à Suíça, decidido a recuperar a sua polaca. Como o novo marido não a largasse, Brandt quebrara os queixos ao pobre homem, de modo que aqui estava, prisioneiro da polícia suíça.
Tudo isto ainda em inglês, de maneira que eu lhe perguntei onde o aprendera. Com a BBC, quando andava no contrabando, disse ele; com a sua rapariga polaca: ela estudava línguas. Eu tinha-lhe dado um maço de cigarros e ele devorava-os um atrás do outro, transformando o nosso pequeno compartimento numa câmara de gás.
– Então que informação é essa que tem para nós? – perguntei-lhe.
Como letão, disse ele à guisa de preâmbulo, não sentia fidelidade a Moscovo. Tinha crescido debaixo da sacana da tirania russa na Letónia, tinha feito serviço na marinha sob as ordens dos sacanas dos oficiais russos, tinha sido preso pelos sacanas dos russos e perseguido pelos sacanas dos russos, e não sentia escrúpulos em traí-los. Detestava os Russos. Perguntei-lhe os nomes dos navios em que tinha andado e ele disse-mos. Perguntei-lhe que armamento tinham e ele descreveu algumas das coisas mais sofisticadas que eles possuíam à data. Dei-lhe papel e lápis e ele fez uns desenhos surpreendentes. Perguntei-lhe o que sabia de comunicações. Sabia bastante. Era um operador de comunicações qualificado e utilizava os últimos brinquedos deles, muito embora a sua memória datasse de há um ano. Perguntei-lhe: «Porquê os Britânicos?», e ele respondeu que tinha conhecido «uns tipos vossos em Leninegrado» – marinheiros britânicos numa visita de boa vontade. Tomei nota dos nomes deles e do nome do navio, regressei ao gabinete e mandei um telegrama relâmpago para Londres porque só tínhamos umas escassas horas de graça antes de eles o porem na fronteira.
Na tarde seguinte, o capitão-de-mar Brandt estava a ser submetido a um rigoroso interrogatório numa casa segura no Surrey. Estava à beirinha de uma carreira perigosa. Conhecia todos os recantos e baías do Sul da costa do Báltico; tinha bons amigos que eram honestos pescadores letões, outros que se dedicavam ao mercado negro, que eram ladrões e marginais desafetos. Proporcionava exatamente o que Londres procurava depois das nossas recentes perdas: a possibilidade de construir uma nova linha de abastecimento de e para o Norte da Rússia, através da Polónia e da Alemanha.
Nesta altura tenho de pôr o leitor a par da história recente: do Circus e dos meus esforços para ser bem-sucedido nele.
Depois de Ben, tinha andado tem-te-não-caias entre ser promovido e expulso. Hoje penso que fiquei a dever mais à intervenção de Smiley pela escada de serviço do que na época lhe atribuí. Deixado a si próprio, não me parece que o Pessoal me tivesse mantido nem dez minutos. Tinha dado o salto sob detenção domiciliária, ocultara o meu conhecimento da ligação de Ben a Stefanie e, se não era recipiente voluntário das declarações amorosas de Ben, era culpado por associação e, portanto, que me levasse o diabo.
– Deu-nos a ideia de que talvez lhe agradasse a hipótese do Conselho Britânico – sugerira maldosamente o Pessoal, numa reunião que nem sequer uma chávena de chá abrilhantou.
Mas Smiley intercedeu por mim. Smiley, ao que parecia, tinha visto para além da minha impulsividade juvenil, e Smiley dominava aquilo que vinha a ser o seu próprio modesto exército privado de fontes secretas disseminado por toda a Europa. Uma razão adicional para a suspensão da minha pena fora proporcionada – embora nem sequer Smiley pudesse à data sabê-lo – pelo traidor Bill Haydon, cujo posto de Londres estava a adquirir rapidamente o monopólio das operações do Circus à escala mundial. E, se o olhar investigador de Smiley ainda não se tinha fixado em Bill, ele estava já convencido de que o Quinto Andar alimentava uma toupeira do Centro de Moscovo no seu seio e decidido a reunir uma equipa de funcionários cuja idade e acesso à informação os colocasse acima de suspeitas. Por sorte, eu era um deles.
Durante uns meses fui mantido num limbo, a trabalhar para outros em grandes salas negras, avaliando e distribuindo relatórios de baixo grau de classificação para clientes de Whitehall. Sem amigos e aborrecido, principiava a pensar seriamente se o Pessoal teria decidido condenar-me à morte, quando, para minha alegria, fui chamado ao seu gabinete e, na presença de Smiley, me foi oferecido o lugar de segundo homem em Zurique, sob as ordens de um velho soldado competente chamado Eddows, cujo princípio declarado era deixar-me afogar ou nadar.
Dentro de um mês estava instalado num pequeno apartamento em Altstadt, trabalhando ininterruptamente oito dias por semana. Tinha um adido naval soviético em Genebra que professava amor a Lenine mas ainda professava mais amor a uma hospedeira do ar francesa, e um negociante de armas checo em Lausanne que estava com uma crise de consciência relativamente ao fornecimento de armas e explosivos aos terroristas mundiais. Tinha um milionário albanês com um chalé em St. Moritz que arriscava o pescoço regressando à terra natal e recrutando elementos da sua antiga criadagem, e um nervoso físico alemão-oriental afeto ao Instituto Max Planck, em Essen, que se convertera secretamente a Roma. Tinha em marcha uma bela operaçãozinha de microfones contra a embaixada polaca em Berna e uma escuta telefónica a um par de espiões húngaros em Basileira. E por essa altura estava já a imaginar-me seriamente apaixonado por Mabel, que tinha sido recentemente transferida para a Secção de Investigação de Pessoal e era o objeto dos brindes do bar dos oficiais subalternos.
E a fé de Smiley em mim não era mal empregue, porque, mercê dos meus próprios esforços em campo e da sua insistência num rígido princípio de necessidade de dispor de informações em casa, conseguimos colher valiosos elementos e mesmo fazê-los chegar às mãos indicadas – e o leitor ficaria surpreendido perante a raridade com que tal combinação se atinge.
Tanto assim que quando, após dois anos nisto, apareceu o furo de Hamburgo – um lugar de um só homem e trabalhando diretamente para o posto de Londres, agora de bom ou mau grado o eixo operacional do Serviço – tive a generosa bênção de Smiley para a ele me candidatar, fossem quais fossem as suas reservas privadas acerca da crescente abrangência de Haydon. Procurei levar água ao meu moinho, não fui impertinente e recordei ao Pessoal os meus antecedentes navais. Deixei-o inferir, se o não disse exatamente por estas palavras, que estava peado até mais não poder ser pela antiquada cautela de Smiley. E resultou. Ele deu-me o posto de Hamburgo na equipa de Haydon e nessa mesma noite, depois de um jantar romântico no Bianchi’s, Mabel e eu dormimos um com o outro, pela primeira vez para ambos.
O meu sentido da justeza das coisas viu-se ainda mais aguçado quando, ao dar uma olhadela ao meu novo inventário, verifiquei para meu divertimento que um tal Wolf Dietrich, aliás o capitão-de-mar Brandt, era um ator principal no meu novo elenco de personagens. Estamos nesta altura a falar de finais dos anos sessenta. Bill Haydon ainda tinha mais três anos para mostrar o que valia.
Hamburgo fora sempre um bom lugar para se ser inglês, e agora era um lugar ainda melhor para espiar. Depois da nobreza das margens lacustres de Zurique, Hamburgo crepitava de energia e cintilava de ar marítimo. Os velhos laços hanseáticos com a Polónia, o Norte da Rússia e os estados bálticos estavam ainda muito vivos. Tínhamos comércio, tínhamos banca... Bem, isso também Zurique tinha. Mas também tínhamos navegação, emigrantes e aventureiros. Tínhamos imprudência e vulgaridade à farta. Éramos a capital alemã da prostituição e da imprensa. E tínhamos ao pé da porta as dissimuladas planícies do Schleswig-Holstein, com as suas pancadas de água horizontais, quintas vermelhas, campos verdes e céus carregados de nuvens. Todo o homem tem o seu preço. Até hoje, a minha alma pode ser comprada por uma caneca de cerveja de Lübeck, um arenque em vinagre e um cálice de schnapps depois de um estirão ao longo dos diques.
Tudo o mais relacionado com o trabalho era igualmente agradável. Eu era Ned, o cônsul auxiliar para a Navegação; o meu humilde gabinete era uma bonita casinha de tijolo com uma chapa de latão, suficientemente à mão para o Consulado-Geral mas mesmo assim prudentemente afastada dele. Dois amanuenses destacados do almirantado executavam o trabalho de cobertura para mim e mantinham a boca calada. Tinha um rádio e um funcionário de cifra do Circus. E, se bem que Mabel e eu ainda não estivéssemos noivos, a nossa relação tinha atingido uma fase em que ela estava pronta para largar tudo sempre que eu dava uma saltada a Londres para consultas com Bill ou um dos seus lugar-tenentes.
Para me encontrar com os meus agentes tinha um apartamento seguro em Wellingsbutell com vista para o cemitério, no andar de cima de uma florista dirigida por um casal de reformados alemães que durante a guerra tinham pertencido ao nosso serviço. Os seus dias mais atarefados eram os domingos, e às segundas-feiras de manhã uma bicha de miúdos do bairro camarário vendiam-lhes de volta as flores que eles tinham vendido no dia anterior. Nunca vi lugar mais seguro. Durante todo o dia desfilavam por nós carros funerários, camionetas de caixa coberta e cortejos fúnebres. Mas à noite o local era, literalmente, sereno como um túmulo. Até a exótica figura do meu capitão-de-mar passava despercebida quando envergava o seu chapéu preto e fato escuro e entrava a gingar na arcada de tijolo da nossa loja e, com a sua pasta de caixeiro-viajante a baloiçar ao lado, subia pesadamente as escadas até à nossa inocente porta da frente, que tinha escrito «Buro».
Continuarei a chamar-lhe Brandt. Certas pessoas, por mais que mudem de nome, só têm um.
Mas a joia da minha coroa era o Margerite – ou, como lhe chamávamos em inglês, o Daisy. Tratava-se de um barco de pesca de cinquenta pés, de costado trincado, com a proa igual à popa, convertido em barco de cruzeiro cabinado, com uma casa do leme, um salão principal e quatro beliches no castelo da proa. Tinha um mastro de mezena e uma vela para lhe reduzir o balanço. Tinha um casco verde-escuro com talabardões verde-claros e um rufo da cabina branco. Fora construído para navegar sub-repticiamente, e não depressa. Com pouca luz e águas picadas, era invisível a olho nu. Tinha pouca superestrutura e acaçapava-se na água, o que lhe conferia uma imagem inofensiva nos ecrãs de radar, particularmente com mau tempo. O Báltico é um mar vingativo, pouco fundo e sem marés. Mesmo com vento moderado, as ondas são altas e perigosas. A dez nós e com o gás todo aberto, o Daisy arfava e baloiçava como um porco. A única coisa veloz que tinha era um bote Zodiac de catorze pés suspenso como salva-vidas do barco e amarrado ao rufo da cabina, com um motor Johnson de 50 cavalos para levar e trazer num ápice os nossos agentes.
Tinha por ancoradouro a velha aldeia piscatória de Blankanese, no rio Elba, ali mesmo a umas escassas milhas de Hamburgo. E lá ficava todo contente entre os seus pares, o mais humilde exemplo do seu género que se podia desejar. De Blankanese, quando era preciso, podia deslizar rio acima até ao canal de Kiel e vencer as suas sessenta milhas a cinco nós antes de alcançar o mar largo.
Tinha um sistema de navegação Decca que fornecia leituras de três estações escravas em terra, mas isso era o que todos faziam. Não tinha nada por dentro nem por fora que não fosse condizente com a sua modéstia. Qualquer dos três homens que constituíam a sua tripulação podia deitar a mão a tudo. Não eram especialistas, embora cada um tivesse o seu amor particular. Quando precisávamos de operadores de comunicações ou técnicos especializados, a Royal Navy estava à mão para nos ajudar.
Pode, pois, o leitor ver que, com uma equipa dinâmica para me apoiar no posto de Londres, uma mão-cheia de fontes para pôr a minha versatilidade à prova e o Daisy e respetiva tripulação para gerir, tinha tudo o que um chefe de posto com sal nas veias podia decentemente herdar.
E tinha, claro, Brandt.
Os dois anos de Brandt como simples marinheiro do Circus tinham-no modificado em aspetos que a princípio achei difícil definir. Não era tanto um envelhecimento ou um endurecimento que eu observava nele, com aquela fatigante atenção, aquela excessiva vigilância que o mundo secreto com o tempo imprime mesmo no mais descontraído dos seus habitantes. Encontrámo-nos no apartamento seguro. Ele entrou. Parou de repente e ficou a olhar para mim. Deixou cair o queixo e soltou um grande grito de reconhecimento. Agarrou-me os braços num cumprimento de sultão e por pouco não os quebrou. Riu-se até lhe virem as lágrimas aos olhos, segurou-me à distância para olhar e depois voltou a puxar-me para me abraçar de encontro ao sobretudo preto. Mas a sua espontaneidade era crispada pela vigilância. Eu conhecia os sinais. Tinha-os visto noutros agentes.
– Rais parta, porque é que não me dizem nada, Herr Konsul? – exclamou ao mesmo tempo que me abraçava uma vez mais. – Que raio de jogo andam eles a fazer? Escute, nós fazemos umas coisas boas por lá, ouviu? Temos boa gente, damos cabo dos sacanas dos russos, está certo?
– Eu sei – disse eu, retribuindo o riso. – Ouvi dizer.
E, quando a noite caiu, ele insistiu em me sentar no meio dos rolos de cordas da parte de trás da furgoneta e levar-me a uma velocidade vertiginosa à desviada casa rural que Londres tinha adquirido para ele. Estava determinado a apresentar-me à sua tripulação e eu estava ansioso por isso. E estava ainda mais ansioso por ver a namorada dele, Bella, porque o posto de Londres se sentia um tanto ou quanto incomodado com o seu recente aparecimento na sua vida. Ela tinha vinte e dois anos e estava há três meses com ele. Brandt parecia rondar os cinquenta. Estava-se a meio do verão, lembro-me, e o interior da furgoneta cheirava a frésias, pois ele tinha-lhe comprado um ramo no mercado.
– É uma rapariga de primeira – disse-me ele orgulhosamente, ao entrarmos em casa. – Cozinha bem, faz amor bem, aprende inglês, tudo. Olá, Bella, trouxe-te novo namorado!
Os pintores e os marinheiros fazem o mesmo género de casas, e Brandt não constituía exceção. Era acanhada mas simples, com chão de tijoleira e tetos baixos, com traves brancas. Mesmo na escuridão parecia anunciar a luz do exterior. Um fogo de lenha ardia lentamente na lareira e uma lanterna de navio brilhava no flanco nu de uma rapariga deitada a ler sobre uma pilha de almofadas. Ao ouvir-nos entrar, pôs-se em pé com um salto, toda excitada. Vinte e dois e é como se continuasse nos dezoito, pensei eu quando me pegou na mão e ma agitou alegremente para cima e para baixo. Vestia uma camisa de homem e calções muito curtos. Um amuleto de ouro brilhava-lhe ao pescoço, declarando a posse de Brandt sobre ela: esta é a minha mulher, com o meu distintivo de propriedade. Tinha um rosto camponês, eslavo e naturalmente feliz, com uns olhos grandes e claros, malares altos e um sorriso a repuxar-lhe as comissuras dos lábios para cima mesmo quando estavam em repouso. As pernas nuas eram compridas e bronzeadas, com o mesmo doirado que o cabelo. Tinha uma cintura miúda, seios altos e lábios carnudos. Era um corpo muito bonito, muito jovem e, pensasse Brandt o que pensasse, não pertencia a ninguém da idade dele, nem sequer da minha.
Colocou as frésias numa jarra e foi buscar pão escuro e picles e uma garrafa de schnapps. Era descuidadamente provocante nos movimentos. Ou sabia exatamente, ou não sabia mesmo, o poder de cada leve gesto que fazia. Sentou-se ao lado dele à mesa, sorriu-me e passou-lhe o braço por cima, deixando a camisa escancarar-se. Tomou posse da mão dele e mostrou-me por comparação a esbelteza da sua, enquanto Brandt falava descuidadamente da rede, referindo agentes e lugares pelo nome e Bella me media com os seus olhos francos.
– Escute – disse Brandt –, temos de arranjar outro rádio ao Aleks, está a ouvir, Ned? Eles desmontam-no, põem peças novas, baterias, aquele rádio é uma porcaria. É um rádio que dá azar.
Quando o telefone tocou, ele atendeu imperiosamente:
– Escuta, estou ocupado, está bem?... Deixa o embrulho ao Stefan, já disse. Escuta, soubeste alguma coisa do Leonids?
A sala foi-se enchendo. O primeiro a entrar foi um homem apressado, de pernas arqueadas e bigodes caídos. Beijou Bella arrebatada mas castamente nos lábios, deu um murro no antebraço de Brandt e serviu-se de um prato cheio de comida.
– É o Kazimirs – explicou Brandt, com um golpe de polegar. – É um filho da mãe e eu amo-o. Certo?
– Muito certo – disse eu cordialmente.
Kazimirs tinha fugido três anos antes pela fronteira finlandesa, recordava-me eu. Matara dois guardas fronteiriços soviéticos de caminho e era doido por máquinas: quem o queria ver feliz era mergulhado em óleo até aos cotovelos. Era também o respeitado cozinheiro do barco.
Depois de Kazimirs vieram os irmãos Durba, Antons e Alfreds, atarracados e descarados como galeses e de olhos azuis como Brandt. Os Durba tinham jurado à mãe que nunca iriam juntos para o mar, de modo que embarcavam por turnos, pois o Daisy governava melhor com três pessoas e gostávamos de deixar espaço para carga e passageiros inesperados. Não tardou que toda a gente começasse a falar ao mesmo tempo, crivando-me de perguntas, sem esperar pelas respostas, rindo, propondo brindes, fumando, recordando o passado e conspirando. A última saída tinha corrido mal, realmente mal, disse Kazimirs. Tinha sido há três semanas. O Daisy tinha apanhado uma invulgar tempestade ao largo do golfo de Danzig e perdera a mezena. Em Ujava, na costa da Letónia, não tinham avistado o farol no meio do nevoeiro, disse Antons Durba. Tinham disparado um pirotécnico e, Deus os ajudasse, estava lá todo aquele raio de comissão de receção de loucos letões postados na praia como uma delegação de gente graúda da cidade! Risos desvairados, brindes, e a seguir um profundo silêncio nórdico enquanto todos menos eu eram assaltados pela mesma solene recordação.
– Ao Valdemars – disse Kazimirs, e fizemos uma saúde a Valdemars, um elemento do grupo deles que tinha morrido havia cinco anos. Nessa altura, Bella pegou no copo de Brandt e bebeu também, numa cerimónia separada, ao mesmo tempo que me observava por cima do rebordo do copo.
– Valdemars – repetiu baixinho, e a sua solenidade era tão sedutora como o seu sorriso. Teria conhecido Valdemars? Teria ele sido um dos seus amantes? Ou estava simplesmente a beber à saúde de um valente compatriota que morrera pela causa?
Mas tenho de contar ao leitor qualquer coisa mais sobre Valdemars – não sei se ele tinha dormido com Bella ou sequer como morrera, pois ninguém sabia ao certo. Tudo o que se sabia era que tinha sido desembarcado e nunca mais se ouvira falar dele. Uma história dizia que tinha conseguido engolir o seu comprimido, outra que tinha dado ordens ao seu guarda-costas para o matar se caísse numa armadilha. Mas o guarda-costas desaparecera também. E Valdemars não era o único que desaparecera durante aquilo que agora era recordado pelo grupo como «o outono da traição». Nos meses mais próximos, à medida que calhavam os aniversários das suas mortes, bebemos em homenagem a quatro outros heróis letões que tinham perecido inexplicavelmente no mesmo período de má sina – entregues, julgava-se agora, não a guerrilheiros na floresta, nem a grupos de receção leais na praia, mas direitinhos nas mãos do chefe das operações letãs do Centro de Moscovo. E se entretanto tinham sido cautelosamente reconstruídas novas redes, cinco anos decorridos o estigma destas traições ainda estava agarrado aos sobreviventes, como Haydon se dera o trabalho de alertar-me.
– São um punhado de patetas descuidados – dissera ele com a sua irreverência habitual – e, quando não são descuidados, são dúplices. Não se deixe enganar por toda aquela fleuma e pelas palmadinhas nas costas dos nórdicos.
Estava a recordar as suas palavras à medida que continuava o meu reconhecimento mental de Bella. Por vezes ela escutava assentando a cabeça no punho cerrado, outras vezes poisava a cabeça no antebraço de Brandt, sonhando os pensamentos dele em seu lugar enquanto ele conspirava e bebia. Mas os seus grandes olhos claros nunca paravam de visitar-me, tentando perceber-me, a este inglês enviado para governar as nossas vidas. E de vez em quando, como um gato quentinho, libertava-se de Brandt com uma sacudidela e demorava-se a pentear os cabelos, voltando a cruzar as pernas e corrigindo meticulosamente a maneira como os calções lhe assentavam, ou enrolando uma meada de cabelo numa trança, ou extraindo o amuleto de ouro de entre os seios e examinando-o pela frente e pelo verso. Aguardei uma centelha de cumplicidade entre ela e outros membros da tripulação, mas era para mim claro que a rapariga de Brandt era território sagrado. Mesmo o ebuliente Kazimirs adoçava o rosto para se lhe dirigir. Ela foi buscar outra garrafa e, quando voltou, sentou-se ao meu lado, pegou-me na mão e abriu-me a palma na mesa, examinando-a enquanto falava em letão com Brandt, o qual soltou uma gargalhada a que os restantes se associaram.
– Sabe o que ela dizer?
– Receio bem que não.
– Diz que inglês dá bom marido como tudo. Se eu morrer, ela ficar antes consigo.
Ela trepou de novo para junto dele e, rindo, insinuou-se no seu abraço. Depois disso não olhou para mim. Era como se não precisasse. Por conseguinte, retribuí evitando o olhar dela e pensei obedientemente na história dela, tal como fora contada ao posto de Londres pelo capitão-de-mar Brandt.
Era filha de um agricultor, de uma aldeia próximo de Jelgava, que fora abatido a tiro quando a polícia secreta irrompera numa reunião clandestina de patriotas letões, dissera Brandt. O agricultor era membro fundador do grupo. A polícia queria abater também a rapariga, mas ela fugira para a floresta e juntara-se a um grupo de guerrilheiros e foragidos que a passaram de uns para os outros durante um verão, o que não parecia tê-la incomodado. Por etapas, tinha seguido até à costa e, por uma via que era ainda um mistério para nós, passara palavra a Brandt, o qual, sem se dar ao trabalho de falar previamente dela a Londres, a apanhara numa praia ao desembarcar um novo operador de rádio para substituir outro que tivera um esgotamento nervoso. Os operadores de rádio são as estrelas da ópera de todas as redes. Se não têm esgotamentos nervosos, têm zona.
– Uns tipos ótimos – disse Brandt entusiasticamente ao conduzir-me de volta à cidade. – Gosta deles?
– São estupendos – disse eu, e era sincero, porque não há melhor companhia em parte alguma do que homens que têm amor ao mar.
– A Bella quer trabalhar connosco. Quer matar os tipos que mataram o pai. Eu digo que não. É nova de mais. Amo-a.
Uma intensa lua branca brilhava sobre os prados planos, e à luz dela vi o seu rosto escarpado de perfil, como que destacado na tempestade que se avizinhava.
– E você conhecia-o – sugeri eu, fingindo recapitular algo que me lembrava vagamente. – O pai dela. O Feliks. Era seu amigo.
– Claro que conhecia o Feliks! Ter-lhe amor! Era um tipo ótimo! Os filhos da mãe abateram-no a tiro.
– Morreu imediatamente?
– Desfazê-lo a tiro. Kalashnikovs. Disparar sobre toda a gente. Sete tipos. Todos abatidos.
– Alguém viu isso acontecer?
– Um tipo. Ver, fugir.
– Que foi feito dos corpos?
– Polícia secreta levá-los. Têm medo, aqueles tipos da polícia. Não querem complicação com o povo. Abater os guerrilheiros, atirá-los para uma camioneta e arrancar para o inferno.
– Conheceu-o bem? O pai dela?
Brandt fez o seu gesto largo com o antebraço.
– O Feliks? Era meu amigo. Combateu em Leninegrado. Prisioneiro de guerra na Alemanha. O Estaline não gostava daqueles tipos. Quando voltaram da Alemanha, mandou-os para a Sibéria, abateu-os, fê-los passar um mau bocado. Que diabo?
Mas o posto de Londres tinha recolhido uma história diferente, ainda que nesta fase fosse apenas um sussurro. O pai tinha sido o informador, dizia o sussurro. Recrutado no cativeiro na Sibéria e enviado de volta à Letónia para se infiltrar nos grupos. Tinha convocado a reunião, prevenira os patrões e depois saltara pela janela das traseiras enquanto os guerrilheiros eram chacinados. Como recompensa, estava presentemente a dirigir uma herdade coletiva próximo de Kiev, vivendo sob um nome diferente. Alguém o tinha reconhecido e dissera a outra pessoa, que por seu turno contara a outra. A fonte era pouco consistente e a verificação seria um processo demorado.
Por conseguinte eu estava avisado. Cuidado com Bella.
Estava mais do que avisado. Estava perturbado. Nas semanas que se seguiram vi Bella por diversas vezes, e de todas elas fui obrigado a registar as minhas impressões na folha de encontro que o posto de Londres agora insistia em dever ser preenchida de cada vez que ela aparecia. Combinei um encontro com Brandt no apartamento seguro e, para meu sobressalto, ele trouxe-a consigo. Ela tinha passado o dia na cidade, disse ele. Estavam de volta à quinta, porque não?
– Descanse. Ela não falar inglês – lembrou-me ele com uma gargalhada, reparando na minha incomodidade.
Por conseguinte abreviei o que tinha a tratar com ele, enquanto ela preguiçava no sofá e nos escutava com os olhos, mas escutava-me principalmente a mim.
– A minha rapariga anda a estudar – disse-me orgulhosamente Brandt, dando-lhe uma palmada no traseiro ao prepararmo-nos para nos separar. – Um dia ser uma grande professora. Nicht war, Bella? Du wirst ein ganz grosser Professor, du!4
Uma semana mais tarde, quando deitei uma discreta olhadela ao Daisy no seu ancoradouro de Blankanese, Bella estava lá outra vez, com os seus calções e a correr descalça pelo convés como se estivesse a projetar um cruzeiro no Mediterrâneo.
– Por amor de Deus! Não podemos ter raparigas a bordo. Em Londres vão ficar fulos – disse nessa noite a Brandt. – E a tripulação igualmente. Você sabe como são supersticiosos em relação a ter mulheres no barco. Você próprio o é.
Ele não me deu ouvidos. O meu antecessor não tinha levantado objeções, dizia ele. Porque havia eu de levantá-las?
– A Bella faz os rapazes felizes – insistiu. – É da terra, Ned, é uma miúda. É uma família para eles, ande lá!
Quando verifiquei a ficha, descobri que ele tinha uma certa razão. O meu antecessor, um oficial de marinha na disponibilidade, tinha comunicado que Bella «estava a par» do Daisy, acrescentando até que ela parecia «exercer uma influência benigna como mascote do barco». E, ao ler nas entrelinhas do seu relatório sobre a mais recente missão operacional do Daisy, apercebi-me de que Bella ia à muralha para se despedir deles... e sem dúvida para lhes dar as boas-vindas também ao regressarem sãos e salvos.
Ora, é claro que a segurança operacional é sempre relativa. Nunca imaginara que tudo o que havia na organização de Brandt viesse a ser conduzido segundo as normas de Sarratt. Estava consciente de que na atmosfera enclausurada da Sede era demasiado fácil confundir as nossas tortuosas estruturas de nomes de código, símbolos e procedimentos de recurso com a vida no terreno.
Cambridge Circus era uma coisa. Um punhado de voláteis patriotas bálticos a arriscarem o pescoço era outra.
Não obstante, a presença de uma vivandeira não credenciada nem recrutada no âmago da nossa operação, no segredo dos nossos planos e conversas, ultrapassava tudo o que eu imaginara – e tudo isto na sequência das traições de cinco anos atrás. E quanto mais me preocupava com isso, mais possessiva, ao que se me afigurava, se fazia a devoção de Brandt pela rapariga. As suas meiguices iam-se tornando cada vez mais generosas na minha presença, as suas carícias mais demonstrativas. «Uma típica paixoneta de um homem mais velho por uma rapariga nova», disse eu a Londres, como se tivesse visto dezenas de casos desses.
Entretanto estava a ser planeada uma nova missão para o Daisy, cujo objetivo nos seria revelado mais tarde. Duas ou três vezes por semana dava por mim a ir forçosamente até à quinta, chegando depois de escurecer e ficando depois sentado horas à mesa enquanto estudávamos tabelas e cartas de tempo e os mais recentes boletins de observação de terra. Por vezes aparecia a tripulação inteira, outras vezes éramos apenas nós os três. Para Brandt não fazia diferença. Apertava Bella contra si como se estivessem os dois nos estertores de um êxtase constante, acariciando-lhe os cabelos e o pescoço, e certa vez distraindo-se ao ponto de lhe enfiar a mão por dentro da camisa e apalpar-lhe o seio nu ao mesmo tempo que lhe dava um prolongado beijo. No entanto, quando eu desviava discretamente o olhar destas perturbantes cenas, o que me perdurava mais tempo na vista eram os olhos de Bella pregados em mim, como se estivesse a dizer-me que desejava que fosse eu, e não Brandt, que estivesse a acariciá-la.
«Os abraços explícitos parecem ser norma», escrevi eu secamente ao fim dessa noite na minha folha de encontro, no meu gabinete de Hamburgo, para o posto de Londres. E no meu registo noturno: «Condições de rota, tempo e mar aceitáveis. Aguardamos ordens da sede. Moral da tripulação elevado.»
Mas o meu próprio moral lutava pela sobrevivência à medida que as calamidades se sucediam umas às outras.
Havia primeiramente o desditoso assunto do meu antecessor, de seu nome completo capitão-tenente Perry de Mornay Lipton, DSO5, RN6, ref., antigo herói das tropas irregulares de Jack Arthur Lumley durante a guerra. Durante dez anos, até à minha chegada, Lipton tinha cultivado o papel de personagem de Hamburgo, representando de dia um pateta alegre inglês, ostentando um monóculo e rondando ostensivamente os clubes de exilados para obter conselhos grátis sobre os seus investimentos. Ao cair da noite, porém, punha o seu chapéu secreto e metia ombros ao trabalho, fazendo os briefings e debriefings ao seu formidável exército de agentes secretos. Ou assim rezava a lenda, tal como eu a ouvira da Sede.
A única coisa que me intrigava fora o facto de não ter havido entrega formal entre nós. O Pessoal tinha-me dito secamente que Lipton estava em missão noutro local. Era-me agora facultado acesso à verdade. Lipton partira, não para qualquer aventura de vida ou de morte no mais obscuro da Rússia, mas para o Sul de Espanha, onde montara casa com um antigo cabo de cavalaria chamado Kenneth e duzentas mil libras de fundos do Circus, na sua maior parte em barras de ouro e francos suíços, que pagara durante vários anos a corajosos agentes que não existiam.
A desconfiança irradiada por esta triste descoberta salpicava agora cada operação em que Lipton tocara, incluindo, inevitavelmente, a de Brandt. Seria igualmente Brandt uma invenção de Lipton, vivendo à grande e à francesa com os nossos fundos secretos a troco de informações engenhosamente fabricadas? Sê-lo-iam as suas redes, sê-lo-iam os seus gabados colaboradores e amigos, muitos dos quais recebiam pródigos ordenados?
E Bella: faria Bella parte do logro? Ter-lhe-ia Bella amolecido o cérebro e debilitado a vontade? Estaria também Brandt a juntar dinheiro antes de se retirar com a sua amada para o Sul de Espanha?
Pelas portas do meu pequeno gabinete de navegação passou uma procissão de peritos do Circus. Primeiro apareceu um homem improvável chamado comandante Plum. Encolhidos na intimidade do meu compartimento de segurança, Plum e eu analisámos atentamente os velhos assentos de combustível e de milhas percorridas do Daisy e comparámo-los com as perigosas rotas que Brandt e a tripulação sustentavam ter seguido nas suas missões ao longo da costa do Báltico. Os registos do barco eram, na melhor das hipóteses, imprecisos, como muitos registos são, mas lemo-los todos, confrontando-os com os registos de Plum de comunicações intercetadas, estações de radar, boias de navegação e avistamentos de lanchas de patrulha soviéticas.
Uma semana mais tarde, Plum estava de volta, desta vez acompanhado por um mancuniano de linguagem obscena chamado Rose, um antigo polícia malaio que criara fama como cão farejador do Circus. Rose interrogou-me tão asperamente como se eu próprio fizesse parte do logro. Quando eu estava prestes a perder as estribeiras ele desarmou-me declarando que, de acordo com as provas disponíveis, a organização de Brandt era inocente de qualquer delito.
Contudo, no espírito de pessoas assim, as suspeitas de um tipo só desencadeiam suspeitas de outro, e o ponto de interrogação suspenso sobre o pai de Bella, Feliks, não desaparecera. Se o pai não era de confiança, a filha devia sabê-lo, dizia o raciocínio. E, se sabia e não o tinha dito, também não era de confiança. O Centro de Moscovo, tal como o Circus, era bem conhecido por recrutar famílias inteiras. Uma equipa de pai e filha era eminentemente plausível. Não tardou que, sem qualquer prova consistente de que eu estivesse a par, o posto de Londres começasse a espalhar a ideia de que Feliks tinha sido responsável pelas traições de cinco anos atrás.
Inevitavelmente, isto colocava Bella sob uma perspetiva ainda mais sinistra. Falou-se de chamá-la a Londres e confundi-la com interrogatórios, mas aqui a minha autoridade como funcionário responsável por Brandt imperou. Impossível, informei o posto de Londres. Brandt nunca o toleraria. Muito bem, foi a resposta – típica da abordagem cavalheiresca de Haydon –, traga-os aos dois e o Brandt pode assistir enquanto interrogamos a rapariga. Desta vez senti-me suficientemente estimulado para apanhar eu próprio um avião para Londres, onde insisti em expor o meu ponto de vista pessoalmente a Bill. Entrei no seu gabinete deparando com ele estendido numa espreguiçadeira, pois era nele habitual a excentricidade de nunca se sentar à secretária. Um pau de incenso ardia numa velha jarra amarelo-torrado.
– Talvez o Irmão Brandt não seja tão formalista como você pensa, senhor Ned – disse ele acusadoramente, perscrutando-me através dos óculos de meios aros. – Talvez o formalista seja você, não?
– Ele está aparvalhado com ela – disse eu.
– E você, está?
– Se começamos a acusar a rapariga diante dele, ele perde a cabeça. Vive para ela. Mandava-nos passear e desmantelava a rede, e duvido que outra pessoa pudesse dirigi-la.
Haydon meditou sobre isto.
– O Garibaldi do Báltico. Bom, bom. Mesmo assim, o Garibaldi não foi lá grande espingarda, pois não? – Esperou que eu respondesse, mas eu preferi considerar aquilo uma pergunta retórica. – Aqueles pândegos com que ela arranchou na floresta – disse ele arrastadamente por fim. – Ela fala deles?
– Não fala de nada disso. O Brandt fala, ela não.
– Então do que é que ela fala?
– De nada por aí além. Se diz alguma coisa significativa, é normalmente em letão e o Brandt traduz ou não, conforme entende. De resto limita-se a sorrir e a olhar.
– Para si?
– Para ele.
– E ela é um belo pedaço, tanto quanto sei.
– É atraente, acho eu. É.
Mais uma vez, ele demorou-se a magicar nisto.
– Cá a mim parece-me a mulher ideal – pronunciou ele. – Sorri e olha, mantém-se calada, dá as suas cambalhotas... Que mais se pode pedir? – Voltou a examinar-me zombeteiramente por cima dos óculos. – Quer você dizer que ela nem sequer fala alemão? Deve falar, vindo lá de cima. Não seja pateta.
– Fala relutantemente alemão quando não tem outro remédio. Falar letão é um ato patriótico. Alemão não.
– Boas mamas?
– Não são más.
– Você não poderia aproximar-se um bocadinho mais dela? Sem baloiçar o barco dos amantes, evidentemente. As simples respostas a umas quantas perguntas básicas seriam uma ajuda. Nada de espetacular. Só para ver se ela é genuína, ou se o Irmão Brandt a introduziu no ninho dentro de uma botija... ou se o Centro de Moscovo o fez, claro. Veja lá o que pode sacar dela. Ele não é o pai natural dela, suponho que tenha consciência disso. Não pode sê-lo.
– Quem? – Por um momento confuso pensara que ele ainda estava a falar de Brandt.
– O paizinho dela. O Feliks. O tal que foi abatido a tiro ou talvez não. O agricultor. Segundo os registos, ela nasceu em Janeiro de 45, não foi?
– Foi.
– Logo, concebida por volta de Abril de 44. Data em que (a acreditar no Irmão Brandt) o seu suposto pai estava a definhar num campo de prisioneiros na Alemanha. Repare que não devemos ser demasiado rigoristas a esse respeito. Não é grande avaria, acho eu, uma pessoa ser fabricada com o velho no xilindró. Mesmo assim, qualquer pequenina coisa ajuda quando estamos a tentar decidir se havemos de abortar uma rede que pode já ter dado o que tinha a dar.
Nessa noite senti-me grato pela companhia de Mabel, apesar de ainda não termos encontrado a nossa forma como os grandes amantes que estávamos ansiosos por ser. Mas claro que não lhe contei nada do assunto que ali me levara, e muito menos acerca de Bella. Como rapariga da investigação do Pessoal, Mabel estava do lado rotineiro do Circus. Seria absolutamente deslocado da minha parte compartilhar os meus problemas com ela. Se já fôssemos casados – bem, isso era capaz de ser diferente. Entretanto, Bella tinha de continuar a ser um segredo meu.
E continuou. De volta ao meu leito solitário de Hamburgo, pensei em Bella e pouco mais. O seu duplo mistério – como mulher e como potencial traidora – erigia-a em objeto de perigo quase ilimitado para mim. Eu já não a encarava como uma figura marginal da nossa organização, mas como o seu destino. A virtude dela era a nossa. Se Bella fosse pura, também a rede o era. Mas se ela fosse joguete de outro serviço – uma impostora infiltrada no meio de nós para nos tentar, enfraquecer e em última análise trair –, nessa altura a integridade dos que a rodeavam teria realmente, como Haydon dizia, dado o que tinha a dar.
Fechei os olhos e vi o olhar dela cravado em mim, radioso e acenador. Voltei a sentir a maciez dos seus beijos cada vez que nos cumprimentávamos – sempre, ao que me parecia, mantidos por uma fração de segundo mais do que o formalismo exigia. Visualizei o seu corpo líquido nas suas diferentes poses e dei-lhe voltas e mais voltas na imaginação da mesma maneira que ponderava as possibilidades de traição por parte dela. Lembrei-me do alvitre de Haydon de «aproximar-me dela» e descobri que era incapaz de dissociar o meu sentido do dever dos meus desejos.
Voltei a contar a mim mesmo a história da sua fuga, pondo-a em questão a cada etapa. Ela tinha-se evadido antes do tiroteio ou durante este? E como? Ter-lhe-ia algum amante no meio das tropas de segurança soprado a informação? Houvera mesmo tiroteio? E porque não sofrera mais com o falecimento do pai, em lugar de fazer amor com Brandt? Até a sua felicidade parecia falar contra ela. Imaginei-a na floresta, com os assassinos e foragidos. Tê-la-ia cada um dos homens possuído a seu bel-prazer, ou vivera ora com um, ora com outro? Sonhei com ela, nua na floresta, e comigo próprio nu com ela. Acordei envergonhado comigo mesmo e fiz uma chamada de manhã cedinho para Mabel.
Compreender-me-ia a mim mesmo? Duvido. Sabia pouco de mulheres, e muito menos de mulheres bonitas. Estou certo de que nunca me ocorreu que censurar Bella pudesse ser a minha maneira de enfraquecer o domínio sexual que ela exercia sobre mim. Decidido a trilhar o caminho reto, escrevia diariamente a Mabel. Entrementes fixei-me na missão próxima do Daisy como oportunidade perfeita para proceder a um interrogatório hostil na pessoa de Bella. O tempo estava a pôr-se mau, que era o que mais convinha ao Daisy. Era outono e as noites tornavam-se mais compridas. O Daisy também gostava da escuridão.
«Tripulação preparada para largar segunda-feira», dizia a primeira comunicação do posto de Londres. A segunda, que só chegou na sexta-feira à tardinha, dava como destino a baía de Narva, no Norte da Estónia, não chegava a cem milhas a oeste de Leninegrado. O Daisy nunca se tinha aventurado tão longe ao longo do litoral russo; só raramente tinha sido utilizado em apoio a patriotas não letões.
– Dava tudo e mais alguma coisa – disse eu a Brandt.
– Você é perigoso como o diabo, Ned – retorquiu ele, dando-me uma palmada no ombro. – Passar quatro dias enjoado, deitado no beliche, a atrapalhar, que raio?
Ambos sabíamos que era impossível. O máximo que a Sede alguma vez me tinha concedido fora um giro noturno à volta da ilha de Bornholm, e mesmo isso fora como se lhe arrancassem um dente.
No sábado à noite reunimo-nos na quinta. Kazimirs e Antons Durba chegaram juntos na furgoneta. Era a vez de Antons embarcar. Com uma tripulação operacional tão pequena, toda a gente tinha de saber tudo, toda a gente tinha de ser intermutável. Não houve mais bebida. A partir de agora, estavam num navio sem álcool. Kazimirs tinha trazido lagostas. Cozinhou-as elaboradamente, com o molho pelo qual era famoso, enquanto Bella fazia de empregada de câmara para ele, trazendo e levando coisas e sendo decorativa. Depois de comermos, Bella levantou a mesa e eu espalhei as cartas debaixo da lanterna pendente do teto.
Brandt tinha dito seis dias. Era uma suposição otimista. A partir do Kieler Förde o Daisy far-se-ia ao mar largo, passando por Bornholm, do lado sueco. Ao alcançar a ilha sueca de Gotland, faria escala em Sundre, no extremo meridional e reabasteceria de combustível e de mantimentos. Durante o reabastecimento, seria abordado por dois homens, um dos quais perguntaria se tinham arenque. Eles deveriam responder: «Só de lata. Há anos que não há arenques nestas águas.» Todas as trocas de palavras deste género se afiguram fátuas a frio, e esta compeliu Antons e Kazimirs a um acesso de riso nervoso. Regressando da cozinha, Bella associou-se-lhes.
Um dos homens pediria então para entrar a bordo, prossegui eu. Era um perito – não disse em sabotagem, porque a tripulação tinha sentimentos desencontrados relativamente à questão. O seu nome para essa viagem seria Volodia. Traria uma mala de couro e, no bolso do casaco, um botão branco e um botão castanho como prova da sua boa-fé. Se não soubesse o nome, não trouxesse mala ou não apresentasse os botões, deveriam desembarcá-lo vivo, mas regressar imediatamente a Kiel. Havia uma comunicação por rádio combinada para essa eventualidade. Caso contrário não fariam comunicação alguma. Apoderou-se de nós um silêncio momentâneo e ouvi os passos dos pés descalços de Bella no chão de tijoleira ao ir buscar mais lenha.
De Gotland meteriam para norte através de águas internacionais, disse eu, e fariam um rumo central ao longo do golfo da Finlândia, até estarem ao largo da ilha de Hogland, onde ficariam a pairar até ao crepúsculo, após o que soltariam rumo a sul para a baía de Narva, estimando proceder à aterragem de noite.
Tinha trazido cartas em grande escala da baía e fotografias do litoral arenoso. Estendi-as na mesa e os homens juntaram-se ao meu lado a fim de olhar para elas. Ao fazerem-no, houve qualquer coisa que me fez erguer a vista e surpreendi o olhar de Bella, aninhada no seu canto da sala, com os olhos excitados presos em mim à luz da lareira.
Mostrei-lhes o ponto da praia para onde o Zodiac devia dirigir-se e o ponto no promontório ao qual deviam estar atentos para ver os sinais. O grupo de desembarque levaria óculos de ultravioleta, disse eu; a equipa de receção estónia utilizaria uma lanterna de ultravioleta. Nada seria visível a olho nu. Uma vez desembarcados o passageiro e a respetiva mala, o bote não esperaria mais de dois minutos por qualquer possível substituto antes de regressar ao Daisy a toda a velocidade. O bote seria guarnecido por um só homem, de tal forma que, se necessário, pudesse trazer outro passageiro na viagem de regresso. Recitei os sinais de reconhecimento a serem trocados com a equipa de receção e desta feita ninguém se riu. Forneci o declive e gradientes da praia de desembarque. Não haveria luar. Esperava-se, e claro está que se desejava, mau tempo. Bella trouxe-nos chá, roçando descuidadamente por nós ao colocar as canecas. Era como se estivesse a atrelar a sua sexualidade à nossa causa. Ao chegar a Brandt, que ainda estava debruçado sobre a carta da praia, acariciou-lhe as costas largas com ambas as mãos como quem o inundasse da sua força juvenil.
Regressei ao meu apartamento às cinco da manhã sem pensar sequer em dormir. De tarde fui na furgoneta a Blankanese com Brandt e Bella. Antons e Kazimirs tinham ficado todo o dia no barco. Estavam vestidos para a viagem, de gorros de borla e calças de oleado. Havia coletes salva-vidas cor de laranja a arejar no convés. Apertando a mão a cada homem à vez, distribuí as cápsulas à prova de água do mar que continham os seus letais comprimidos de cianeto puro. Caía uma chuvinha pardacenta; o pequeno cais estava deserto. Brandt caminhou até à prancha, mas, quando Bella fez menção de segui-lo, deteve-a.
– Mais não – disse-lhe. – Tu ficas com o Ned.
Ela envergava o velho casaco de lã grossa de Brandt e um gorro de lã com orelheiras, que desconfiei trouxesse posto quando ele a salvara. Ele beijou-a e ela abraçou-o até que ele a repeliu e embarcou, deixando-a ao meu lado. Antons entrou na casa da máquina e ouvimos o motor tossir e ganhar vida. Brandt e Kazimirs largaram os cabos. Já ninguém olhava para nós. O Daisy largou do cais e dirigiu-se tranquilamente para o meio do rio. As costas dos três homens continuavam voltadas para nós. Ouvimos o silvo do apito do barco e ficámos a vê-lo até deslizar para lá da cortina de chuvinha parda.
Como crianças abandonadas, Bella e eu subimos de mão dada a rampa até à furgoneta estacionada de Brandt. Nenhum de nós falou. Nenhum de nós tinha nada a dizer. Dirigi a vista lá para trás a fim de lançar um último olhar ao Daisy, mas a chuvinha tinha-o tragado. Olhei para Bella e vi que tinha o olhar anormalmente brilhante e a respiração acelerada.
– Há-de correr tudo bem com ele – tranquilizei-a, libertando-lhe a mão ao destrancar a porta. – Eles têm muita experiência. Ele é um grande homem. – Mesmo em alemão, a frase parecia bastante pateta.
Ela entrou na furgoneta ao meu lado e voltou a pegar-me na mão. Os dedos dela dir-se-iam vidas à parte dentro da palma da minha mão. Aproxime-se dela, insistira repetidamente Haydon. Na minha comunicação mais recente, eu garantira-lhe que tentaria.
A princípio rolámos num silêncio sociável, unidos e separados pela nossa experiência compartilhada. Eu guiava cuidadosamente porque estava tenso, mas a minha mão continuava a segurar a dela para lhe dar conforto e, quando era obrigado a agarrar no volante com mais força, via que a mão dela continuava ao meu lado, com os dedos para cima, à espera que eu voltasse. De repente fiquei tremendamente preocupado quanto a onde levá-la. Absurdamente preocupado. Pensei num airoso restaurante situado numa cave com recantos de azulejos onde levava os meus agentes bancários. Os criados velhotes proporcionar-lhe-iam o tipo de conforto de que ela precisava. Depois lembrei-me de que ela estava vestida com o casaco de lã grosseira de Brandt, de jeans e botas de borracha. Eu próprio não estava mais bem vestido. Onde, então?, interroguei-me ansiosamente. Estava a fazer-se tarde. Através de chuva miudinha, iam-se acendendo luzes nas vivendas.
– Tem fome? – perguntei.
Ela voltou a pôr a mão no regaço.
– Quer que eu descubra um lugar qualquer para comermos? – perguntei.
Ela encolheu os ombros.
– Quer que a leve para a quinta? – sugeri.
– Para quê?
– Bom, quero eu dizer, como vai passar os próximos dias? Que fez da última vez que ele esteve fora?
– Descansei dele – disse ela, com uma risada de que eu não estava à espera.
– Então diga-me como gostaria de esperar por ele – alvitrei eu magnanimamente, com um assomo de superioridade hierárquica. – Prefere estar sozinha? Encontrar-se com outros exilados para tagarelar? O que é melhor?
– Não é importante – disse ela, e afastou-se de mim.
– Mesmo assim, diga-me. Ajude-me.
– Vou ao cinema. Ver montras. Ler revistas. Ouvir música. Tentar estudar. Aborrecer-me.
Decidi-me pelo apartamento seguro. Devia haver comida no frigorífico, disse com os meus botões. Dar-lhe uma refeição, uma bebida, pô-la a falar. Depois levá-la à quinta ou mandá-la de táxi.
Entrámos na cidade. Estacionei a duas ruas de distância do apartamento seguro e dei-lhe o braço enquanto caminhávamos pelo passeio orlado de árvores. Teria feito o mesmo por qualquer mulher numa rua escura, mas havia qualquer coisa de perturbante em sentir o seu braço nu dentro da manga de Brandt. A cidade não me era familiar. Nas janelas iluminadas das casas, as pessoas falavam e riam como se nós não existíssemos. Ela agarrou-me o braço e atraiu-me a mão contra o seio – contra o lado inferior do seio, para ser exato –, e senti a sua forma com precisão por entre as camadas de roupa. Lembrava-me das piadas de bar do Circus acerca de certos oficiais que recolhiam as suas melhores informações na cama. Lembrava-me de Haydon a perguntar-me se ela tinha boas mamas. Senti-me envergonhado e retirei a mão.
Havia uma portinhola de um dos lados dos portões do cemitério. Ao abri-la e fazê-la passar à minha frente, ela virou-se e beijou-me nos olhos, um a seguir ao outro, ao mesmo tempo que me segurava a cara com ambas as mãos. Rodeei-lhe a cintura e ela parecia não ter peso. Estava muito feliz. Distinguia-lhe o sorriso sob as luzes amarelas do cemitério.
– Estão todos mortos – sussurrou ela excitadamente. – Mas nós estamos vivos.
Subi as escadas à sua frente. A meio caminho, olhei para trás a fim de certificar-me de que ela me seguia. Receava que ela tivesse mudado de ideias. Estava cheio de medo – não porque fosse inexperiente (graças a Mabel, não o era), mas porque já sabia que estava na presença de uma categoria de mulher diferente de qualquer uma que tivesse conhecido. Ela estava de pé mesmo na minha frente, segurando os sapatos nas mãos, ainda a sorrir.
Abri-lhe a porta. Ela entrou por ali dentro e beijou-me outra vez, sorrindo jubilosamente, como se eu a tivesse erguido e transposto com ela ao colo o limiar da porta no dia do nosso casamento. Recordei estupidamente que os Russos nunca apertam as mãos à porta, e talvez os Letões tão-pouco o fizessem e os seus beijos fossem porventura uma espécie de cerimónia de exorcismo. Ter-lho-ia perguntado, não fosse o facto de praticamente ter perdido a voz. Fechei a porta e cruzei a sala para acender o aquecimento, um sistema de convetor elétrico que, desde que a sala estivesse fria, soprava ar quente com imenso vigor, mas depois só intermitentemente, como um cão velho a sonhar.
Fui buscar vinho à cozinha. Quando voltei ela desaparecera e a luz coava-se por sob a porta da casa de banho. Pus meticulosamente a mesa com garfos e facas, queijo e carnes frias e guardanapos de papel e tudo o mais que me passou pela cabeça, porque estava a refugiar-me nas distanciadoras formalidades da hospitalidade.
A porta da casa de banho abriu-se e ela emergiu com o casaco de Brandt embrulhado à volta do corpo como uma camisa de noite e, a julgar pelas pernas nuas, pouco mais. Tinha o cabelo escovado. Nos nossos apartamentos seguros temos sempre uma escova e um pente para efeitos de hospitalidade.
E lembro-me de ter pensado que, se ela era tão pouco de confiança como Haydon parecia pensar, era horrível da sua parte ter o casaco de Brandt vestido para enganar o homem que estava já a trair; e era horrível da minha parte ser o homem que ela tinha escolhido, enquanto os meus agentes iam ao encontro de um grande perigo com comprimidos letais nos bolsos dos casacos. Mas eu não experimentava nenhum sentimento de culpa. Refiro isto a fim de tentar explicar que o meu espírito ziguezagueava num sem-número de direções no seu esforço por aquietar o desejo que sentia por ela.
Beijei-a e despi-lhe o casaco, e nunca tinha visto nem vi desde então ninguém tão belo. E a verdade é que, naquele momento e com aquela idade, ainda não tinha adquirido o poder de discernir entre a verdade e a beleza. Eram uma e a mesma coisa para mim, e só conseguia sentir por ela um respeitoso temor. Se alguma vez tivesse suspeitado de alguma coisa nela, a visão do seu corpo nu convenceu-me da sua inocência.
Depois disso, têm de ser as imagens da minha recordação a contar a sua própria história. Ainda hoje nos vemos como duas outras pessoas, nunca como nós próprios.
Bella nua à meia-luz do aquecimento, deitada de lado como a tinha visto da primeira vez junto à lareira na quinta. Eu tinha ido buscar o edredão ao quarto.
– És tão bonito! – sussurrou ela.
Nunca me tinha ocorrido que eu pudesse enchê-la de uma admiração comparável.
Bella à janela, com a luz do cemitério a construir uma estátua perfeita do seu corpo, doirando-lhe o velo e desenhando motivos luminosos nos seus seios.
Bella a beijar o rosto de Ned, centenas de pequenos beijos à medida que o faz regressar à vida. Bella a rir perante a sua ilimitada beleza, e nós os dois juntos. Bella a trazer riso ao amor, coisa que nunca me tinha acontecido, até cada porção de nós ser objeto de celebração, para ser beijada, aspirada e admirada à sua própria maneira.
Bella virando costas a Ned para se oferecer, impelindo o corpo para trás para o aceitar ao mesmo tempo que continua a segredar-lhe. O seu segredar cessa. Principia a erguer-se, arqueando o corpo para trás até ficar direita. E de súbito grita, grita para mim e para os mortos, e é a coisa mais viva que há na terra.
Ned e Bella finalmente serenos, à janela, a contemplar o cemitério lá em baixo.
Há Mabel, digo eu, mas parece cedo de mais para casar.
– É sempre cedo de mais – responde ela quando começamos novamente a fazer amor.
Bella no banho e eu encafuado, todo feliz, de encontro às torneiras no extremo oposto à medida que ela me acaricia preguiçosamente debaixo de água e fala da sua infância.
Bella no edredão, puxando-me a minha cabeça para o meio das suas pernas.
Bella por cima de mim, cavalgando-me.
Bella a ajoelhar sobre mim, com o seu jardim secreto aberto ao meu rosto ao mesmo tempo que me transporta a lugares que nunca imaginei, nem sequer deitado na minha miserável cama de solteiro, sonhando uma e outra vez com este momento e tentando com um conhecimento demasiado escasso guardar-me do desconhecido.
E, nos intervalos, o leitor pode ver Ned dormitando sobre o peito de Bella, ou a comida intacta ainda na mesa que eu pusera tão formalmente, à guisa de proteção. Com o espírito lúcido de ter feito amor, pergunto a mim mesmo de que mais posso lembrar-me que satisfaça a curiosidade de Bill Haydon, e a minha.
Levei-a a casa e cheguei ao meu apartamento por volta das sete da manhã. Sem disposição para dormir pela segunda noite consecutiva, sentei-me e escrevi em lugar disso o meu relatório de encontro, com a caneta a voar porque ainda estava no paraíso. Não havia mensagens do Daisy, mas eu não esperava nenhuma. Ao fim da tarde, recebi um relatório provisório sobre os seus progressos. Tinha passado Kiel e rumava ao Kieler Förde. Alcançaria o mar largo daí a um par de horas. Eu tinha um dócil jornalista alemão com o qual me avistei nessa noite e uma reunião consular de manhã, mas transmiti as notícias pelo telefone em termos velados a Bella e prometi ir ter com ela em breve, pois ela estava decidida a que eu a visitasse na quinta. Quando Brandt regressasse, dizia ela, queria poder olhar para todos os sítios da casa onde tínhamos feito amor e pensar em mim. Suponho que o facto de não ter achado nada oculto ou paradoxal nisto atesta o poder da ilusão do amor. Tínhamos criado um mundo juntos e ela queria tê-lo à sua volta quando eu fosse afastado dela. Era tudo. Ela era a rapariga de Brandt. Não esperava nada de mim a não ser o meu amor.
Quando cheguei, fomos diretamente para a comprida sala de visitas, onde desta feita fora ela quem tinha posto a mesa. Sentámo-nos a ela completamente nus, que era o que ela queria. Queria ver-me no meio do mobiliário familiar. Depois fizemos amor na cama deles. Creio que devia ter-me sentido envergonhado, mas experimentei apenas a excitação de ser escolhido para os lugares mais secretos das suas vidas.
– Estas são as escovas de cabelo dele – disse ela. – Estas são as suas roupas, estás do lado que ele ocupa na cama.
Um dia compreenderei o que quer isto dizer, pensei eu. E depois, mais lugubremente: ou será isto o prazer que ela retira da traição?
Na tardinha seguinte tinha combinado visitar um velho polaco de Lübeck que entabulara correspondência clandestina com um sobrinho afastado da Austrália. O posto de Londres estava a considerar a hipótese de o abordar diretamente. Regressei a Hamburgo e dormi como um morto. Na manhã seguinte, quando estava ainda a escrever o meu relatório, uma comunicação de Londres anunciou que o Daisy tinha reabastecido sem novidade em Sundre e fazia rumo ao golfo da Finlândia com o passageiro Volodia a bordo. Telefonei a Bella dizendo-lhe que ainda estava tudo a correr bem, e ela disse:
– Vem ter comigo, por favor.
Passei a manhã na esquadra de polícia de Reeperbahn a desembaraçar um par de marinheiros mercantes britânicos embriagados que tinham desfeito um bordel, e a tarde num horrível chá de esposas de cônsules destinado a congregar apoios para a Semana do Preso Político. Desejei que os tais marinheiros mercantes tivessem desfeito aquele bordel igualmente. Cheguei à quinta às oito da noite e fomos diretamente para a cama. Às duas da manhã o telefone tocou e Bella atendeu. Era o meu funcionário da cifra a telefonar do escritório de navegação: uma mensagem cifrada pessoal, de prioridade relâmpago; exigia-se a minha presença imediata. Meti-me à estrada como uma bala e cheguei ao escritório em quarenta minutos. Ao sentar-me em frente dos livros de código, apercebi-me de que tinha os odores de Bella na cara e nas mãos.
A mensagem, transmitida com o símbolo de Haydon, era pessoal para o chefe do posto de Hamburgo. O grupo de desembarque do Daisy tinha caído debaixo de fogo intenso a partir de posições preparadas, dizia ela. Não se sabia do bote nem de todo o pessoal que ia a bordo, o que significava Antons Durba e o seu passageiro, e muito provavelmente quem quer que estivesse à espera na praia. Não havia notícia dos patriotas estónios. O Daisy tinha avistado sinais luminosos de ultravioleta em terra, mas só uma série completa da combinação acordada, supondo-se que a equipa estónia fora capturada assim que eles tinham atraído a equipa de desembarque ao seu destino. Era uma história familiar, muito embora tivesse já cinco anos. O rádio de recurso de Tallinin não respondia.
Eu devia abster-me de transmitir essa informação a quem quer que fosse e regressar a Londres no primeiro avião da manhã. Tinham-me reservado um lugar. Toby Esterhase iria esperar-me a Heathrow. Redigi uma mensagem de reconhecimento e dei-a ao meu funcionário, que a aceitou sem qualquer comentário. Ele sabe, pensei eu. Como podia não saber? Tinha-me telefonado para a quinta e falara com Bella. O resto podia vê-lo na minha cara e, tanto quanto eu sabia, podia farejá-lo também.
Desta vez não havia pau de incenso a arder no gabinete de Hay-don, que estava sentado à secretária. Roy Bland, o seu chefe da Europa de Leste, estava sentado de um lado dele e Toby Esterhase do outro. As missões de Toby nunca eram facilmente definíveis, porque ele gostava de as manter vagas, na esperança de que empolassem. Na prática, porém, era o cão-d’água de Haydon, papel que mais tarde lhe custou caro. E fiquei admirado ao ver George Smiley desconsoladamente sentado à parte deles na borda da espreguiçadeira de Haydon, ainda que só três anos depois viesse a entender o simbolismo da sua postura.
– É um trabalho de dentro – disse Haydon sem qualquer preâmbulo. – A missão foi previamente furada e bem furada. Se o Durba não foi para o fundo com o barco, já está a baloiçar preso pelos polegares, a deitar tudo cá para fora. O Volodia não sabe grande coisa, mas isso pode ser o azar dele, porque os inquiridores não vão dar-lhe crédito e ele tem um cabaz cheio de explosivos para explicar. Talvez tenha tomado o comprimido, mas duvido: é um pateta.
– Onde está o Brandt? – perguntei.
– Sentado debaixo de uma luz forte na sala de interrogatórios de Sarratt e a bramar como um touro. Alguém deu barraca algures. Estamos a perguntar ao Brandt se poderá ter sido ele. Se não foi, quem terá sido? É uma cópia a papel químico daquela última vez que deu tudo em merda. Cada membro da tripulação está a ser apertado separadamente.
– Onde está o Daisy?
– Em Helsínquia. Pusemos uma guarnição da marinha a bordo, com ordens para largar esta noite. Os Finlandeses não gostam de que os vejam a dar abrigo seguro a pessoas que implicam com o Urso. Se a imprensa não acabar por saber, será um milagre do caraças.
– Estou a perceber – disse eu estupidamente.
– Ótimo. Eu não. O que é que fazemos? Diga-me lá você. Tem trinta agentes bálticos à espera de cada palavra sua. Que diz você? Abortamos a missão? Pedimos desculpas? Agimos com naturalidade e fingimos que estamos atarefados? Agradece-se reconhecidamente qualquer sugestão.
– Os Durba não estavam ao corrente da rede estónia – objetei eu. – O Antons não pode bufar o que não sabe.
– Então quem foi que bufou do Antons, quer fazer o favor de me dizer? Quem foi que bufou da equipa de desembarque? Tem graça que fizemos as mesmas perguntas ao Brandt. Pensámos que ele seria capaz de sugerir a Bella, a pega báltica. Em vez disso sugeriu que tinha sido um daqui de nós, o filho da mãe do descarado.
Estava furioso e a sua fúria era dirigida contra mim. Eu nunca teria imaginado que a sua letargia se pudesse transformar numa raiva tão violenta. No entanto, continuava a falar baixo, com aquele seu tom arrastado, nasal, de classe alta. Continuava a conseguir manter-se espontâneo. Até com paixão transmitia uma negligência tremenda, o que o tornava tanto mais medonho.
– Então o que é que diz, ande lá? – inquiriu-me.
– Sobre o quê?
– Sobre ela, querido. A Miss Letónia das boquinhas. – Erguia na mão o relatório de encontro que eu escrevera depois da nossa primeira noite juntos. – Deus Todo-Poderoso, eu pedi uma avaliação, não o raio de uma ária.
– Acho que ela está inocente – disse eu. – Acho que é uma simples miúda camponesa. É essa a minha avaliação. Imagino que será também a do Brandt. Respondeu às minhas perguntas, explicou-se plausivelmente.
Haydon tinha voltado a encontrar o seu encanto. Era capaz de o fazer de um instante para o outro. Atraía a pessoa e repelia-a. Lembro-me disso com exatidão. Não havia fita que não fizesse, jogando com as emoções desencontradas da pessoa, porque ele não tinha nenhuma.
– A verdade é que a maior parte dos espiões se explica plausivelmente – retorquiu ele ao mesmo tempo que folheava as páginas do meu relatório. – Os melhores fazem-no. Não fazem, Tobe? – obsequiando Esterhase.
– Com toda a certeza, Bill. Até mais não poder ser, aliás – disse Esterhase, o adulador.
Os outros tinham também uma cópia. Fez-se silêncio enquanto a examinavam, parando nas passagens que Haydon tinha assinalado à margem. Roy Bland ergueu a cabeça e perscrutou-me. Bland tinha-nos feito palestras em Sarratt. Era um homem do Norte do país, ex-professor universitário, que passara anos do lado de lá da Cortina sob o disfarce de académico. Tinha um sotaque bem marcado e muito uniforme.
– A Bella reconhece que o pai não é pai dela, não é verdade, Ned? A mãe foi violada pelos alemães e ficou grávida, de modo que ela é meio alemã de origem. Não é verdade, Ned?
– Sim. É verdade, Roy. Foi o que ela me disse.
– De modo que quando o pai, como ela lhe chama, quando o Feliks regressa do campo de prisioneiros de guerra e toma conhecimento do que aconteceu, adota a criança. Ela. A Bella. Só lhe fica bem. Ela contou-lhe isso de moto próprio. Não fez segredo disso. Não é verdade, Ned?
– Sim. É verdade, Roy.
– Então por que caraças não conta ela ao Brandt a mesma história que lhe conta a si?
Eu próprio lhe tinha perguntado isso, de maneira que pude responder-lhe de imediato.
– Quando ele a trouxe para o Ocidente, ela receava que ele não a aceitasse se soubesse que não era a filha natural do seu melhor amigo. Nessa altura não eram amantes. Ele oferecia-lhe proteção e uma vida. Ela tinha medo. Aceitou isso. Tinha estado a viver na floresta. Era a primeira vez que se encontrava no Ocidente. O pai tinha morrido, por conseguinte precisava de outra figura-pai.
– O Brandt, quer você dizer?
– Sim, claro.
– Bem, nesse caso, Ned, não acha bastante esquisito que o Brandt não soubesse a verdade acerca dela fosse como fosse? – inquiriu triunfalmente. – Se o Brandt era o amigalhaço íntimo do pai como diz que era, não havia de saber tudo isso? Ora vamos, Ned!
Smiley atalhou, penso que a fim de ajudar-me:
– Muito provavelmente o Brandt sabe mesmo, Roy. Você diria à filha do seu melhor amigo que era filha ilegítima de um soldado alemão se soubesse que ela não estava a par disso? Se fosse comigo, tenho a certeza de que não o faria. Eu, por mim, faria sei lá o quê para a proteger. Especialmente se o pai já tivesse morrido e eu estivesse apaixonado pela filha.
– Qual paixão, qual merda – disse Haydon, voltando mais uma folha do meu relatório. – O Brandt é um velho bode lúbrico. Quem é um tal Tadeu de quem ela não para de falar? «O Tadeu viu os corpos a serem carregados na camioneta. O Tadeu diz que viu o corpo do meu pai ser o último a entrar. Tinham alvejado a maior parte dos homens na cara, mas o meu pai tinha sido atingido no peito e no estômago, uma metralhadora tinha-o praticamente cortado ao meio.» Quero eu dizer, meu Deus, creio bem que, para uma acanhadinha, ela é explícita como o caraças quando lhe dá jeito para a história, não?
– O Tadeu foi o seu primeiro amante – disse eu.
– Com que então temos ciúmes? – perguntou-me Haydon, arrancando risos aos sátrapas de cada lado dele.
Mas não a Smiley. Nem a mim.
– O Tadeu era um rapaz da escola dela – disse eu. – Tinham-no mandado montar guarda à entrada da casa enquanto decorria a reunião, mas ele estava a fazer amor com a Bella num campo próximo. Foi assim que conseguiu fugir. O Tadeu disse-lhe para correr a sete pés e por quem perguntar quando alcançasse os guerrilheiros. Depois escondeu-a numa casa próxima e viu o que sucedeu antes de se reunir a ela. Está no meu relatório.
Toby Esterhase acrescentou uma zombaria das suas, no seu inglês austro-húngaro:
– E o Tadeu está muito convenientemente morto, claro, Ned. Eu diria que ser testemunha na história da Bella é realmente um negócio arriscado.
– Foi abatido por um guarda fronteiriço – disse eu. – Nem sequer estava a tentar passar para o outro lado. Estava a proceder a um reconhecimento. Ela tem a sensação de que toda a gente em que ela toca morre – acrescentei, pensando involuntariamente em Ben.
– E até pode ser que tenha razão – disse Haydon.
Perversamente, ao que me pareceu, Roy Bland tomou então parte na minha defesa – porque eu tinha cada vez mais a sensação de estar no banco dos réus.
– Reparem que o Tadeu podia estar limpo e enganado quanto à morte do Feliks. Talvez a polícia tenha fingido a morte dele. No fim de contas, ele foi mesmo o último a entrar na camioneta. Fosse como fosse, tinha ficado coberto de sangue naquela carnificina. Eles não haviam de ter precisado de lhe despejar molho de tomate em cima, pois não? Já alguém havia de tê-lo feito por eles.
Smiley secundou Bland com toda a energia. Eu estava a começar a arrepender-me de ter mexido tanto os cordelinhos para ser colocado fora dos seus cuidados.
– O pai é mesmo assim tão importante para nós, Bill? – objetou. – O Feliks pode ser o maior Judas de todos os tempos e apesar disso ter uma filha absolutamente honesta, não pode?
– Também acredito que sim – disse eu. – Ela admira o pai. Não tem problemas em falar dele. Venera-o. Ainda anda de luto por ele.
Estava a lembrar-me da maneira como ela baixara os olhos para a sepultura. Estava a lembrar-me da sua determinação em celebrar o dom da vida. Recusava-me a acreditar que tivesse sido a fingir.
– Muito bem – disse Haydon com impaciência, empurrando uma fotografia de 16 por 22 na minha direção por sobre a secretária. – Vamos ceder um ponto e confiar em si. Como raio havemos de interpretar este grupo?
Era uma fotografia muito ampliada e desfocada. Imaginei que fosse a fotografia de uma fotografia. Tinha um carimbo vermelho ao longo do canto superior esquerdo com a única palavra «Feitiçaria», que, segundo os boatos que ouvira, era a fonte mais secreta do posto de Londres.
O aviso que Toby Esterhase me fez confirmou-o:
– Na realidade você nunca viu esta fotografia, Ned – disse-me por cima do ombro de Haydon, com o tom melífluo que as pessoas reservam para os jovens. – E também nunca viu a palavra «Feitiçaria». Quando sair desta sala, a sua mente será um perfeito vazio.
Era uma fotografia de um grupo de jovens de ambos os sexos dispostos contra um fundo daquilo que podiam ser casernas ou os terrenos de uma universidade. Eram em número de cerca de sessenta, e de uniforme civil, os homens de fato e gravata, as mulheres de blusa branca muito pouco decotada e saia comprida. De um dos lados deles havia um grupo de homens mais velhos e uma mulher de ar maldoso. A disposição de espírito, tal como a roupa, o edifício e o fundo, era lúgubre.
– Segunda fila do coro, a terceira a contar da direita – disse Haydon, estendendo-me uma lupa. – Boas mamas, tal como o jovem disse.
Era Bella, não havia dúvidas. Bella três ou quatro anos mais nova, é certo, e Bella com o cabelo penteado para trás naquilo que supus ser um rolo. Mas os olhos grandes e claros e o sorriso irreprimível de Bella, bem como os malares altos e firmes que eu adorava.
– Alguma vez a Bella lhe segredou ao ouvidinho que tinha andado na escola de línguas em Kiev? – perguntou-me Haydon.
– Não.
– Falou sequer da sua educação, para além de que dava cambalhotas com o Tadeu no meio do feno?
– Não.
– Claro que Kiev no fundo é uma escola de férias, que uma escola não é lugar de que as pessoas que lá andaram contem grande coisa. A menos que estejam a confessar-se. Teoricamente é uma escola para os intérpretes de amanhã, mas estou em crer que na prática é mais um viveiro para as esperanças do Centro de Moscovo. É o Centro o proprietário, é o Centro que o guarnece, é o Centro que tira a nata. A escória vai para os Negócios Estrangeiros deles, tal como cá.
– O Brandt viu isto? – perguntei.
A frivolidade abandonou-o.
– Está a brincar, não está? O Brandt é uma testemunha hostil, como todos eles.
– Posso ver o Brandt?
– Eu não o aconselharia.
– Isso quer dizer não?
– Sim. Quer dizer não.
– A Feitiçaria foi também a fonte do relatório contra o pai da Bella?
– Meta-se no raio da sua vida – disse ele, mas eu surpreendera o olhar sobressaltado de Toby e pressenti que não me enganava.
– O Centro de Moscovo tira sempre fotografias de curso às suas esperanças? – perguntei eu, sentindo-me encorajado quando a cabeça de Smiley se ergueu para mim, gesto que voltei a interpretar como apoio.
– Nós tiramo-las em Sarratt – retorquiu Haydon. – Porque não haviam eles de fazê-lo no Centro de Moscovo?
Senti o suor a escorrer-me pelas costas abaixo e sabia que a voz me estava a falhar. Mas continuei a chafurdar por ali fora.
– Houve mais alguém nesta fotografia que fosse identificado?
– De facto, houve.
– Como quê?
– Não interessa.
– Que línguas aprendeu ela?
Haydon já estava farto de mim. Ergueu os olhos para os céus como se apelasse para o dom da paciência.
– Bem, todos eles aprendem inglês, meu lindo, se é mesmo isso que está a perguntar – pronunciou arrastadamente e, assentando o queixo na mão, lançou um demorado olhar a Smiley.
Eu não sou clarividente e não tinha maneira de saber o que estavam os dois homens a dizer um ao outro, ou o que tinham já dito. Mas, mesmo contando com as vantagens da compreensão tardia, tive decerto a sensação de ser apanhado entre campos hostis. Nem mesmo alguém tão distante da política da Sede como eu podia deixar de ouvir o rumor da batalha que estava a grassar: que o grande X tinha passado mesmo nas barbas do grande Y no corredor sem um «Bom dia» sequer; que A se tinha recusado a sentar-se à mesma mesa que B no refeitório. E que o posto de Londres de Haydon estava a tornar-se um serviço dentro do serviço, engolindo as direções regionais, tomando conta das secções especiais, dos observadores, das escutas, até chegar mesmo a seres tão humildes como os nossos encarregados da correspondência, que estavam encafuados em gabinetes de triagem a pingar, abrindo lealmente o correio ao vapor com cafeteiras a gás permanentemente a ferver. Chegava-se mesmo a insinuar que o verdadeiro choque de titãs era entre Bill Haydon e o chefe reinante, o último a chamar-se Controlo, e que Smiley, como copeiro do Controlo, estava mais do lado do patrão do que de Haydon.
Mas a verdade é que também se sugeria que o próprio Smiley estava condenado – ou, para exprimi-lo com mais tato – a pensar numa nomeação académica de forma a poder dar mais atenção ao seu casamento.
Haydon olhou desenvoltamente para Smiley, mas o olhar desenvolto transformou-se numa contemplação gélida enquanto esperava que Smiley lho retribuísse. Todos os restantes esperámos também. O embaraçoso foi que Smiley não o retribuiu. Dir-se-ia um homem que se recusava a reconhecer um cumprimento. Manteve-se sentado na espreguiçadeira com as sobrancelhas erguidas, as longas pálpebras caídas e a cabeça redonda inclinada, parecendo analisar o tapete de orações persa que constituía outra característica excêntrica do gabinete de Bill. E continuou pura e simplesmente a analisá-lo como se estivesse alheio ao interesse que Haydon por ele manifestava, muito embora todos soubéssemos – até eu sabia – que não estava. Depois encheu as bochechas de ar e franziu desaprovadoramente o cenho. E por fim pôs-se de pé – não de modo teatral, porque George nunca ia assim tão longe – e reuniu os seus papéis.
– Bem, acho que já apanhámos o sumo da coisa, não acha, Bill? – disse ele. – O Controlo recebe os oficiais doutrinados dentro de uma hora, por favor, se vos der jeito, e tentaremos formar uma opinião. Você e eu temos um pedacinho da história de Zurique a esclarecer, Ned. Talvez possa dar um salto ao meu gabinete quando o Bill o tiver despachado.
Vinte minutos mais tarde estava sentado no gabinete de Smiley.
– Acredita naquela fotografia? – perguntou ele, sem qualquer pretensa referência a Zurique.
– Acho que tenho de acreditar.
– Porque é que acha tal coisa? As fotografias podem ser aldrabadas. Há uma coisa que se chama desinformação. É sabido que o Centro de Moscovo tem recorrido de vez em quando a ela. Desceram mesmo ao ponto de desacreditar gente inocente, ao que me dizem. Têm um departamento inteiro, aliás, que não se dedica a muito mais. Conta com quinhentos funcionários, mais ou menos.
– Então para quê incriminar Bella? Porque não se atiram ao Brandt ou a um dos membros da tripulação?
– Que foi que o Bill lhe disse que fizesse?
– Nada. Diz que em devido tempo receberei ordens.
– Não chegou a responder à minha pergunta. Acha que devíamos abortar a rede?
– É-me difícil dizer. Sou apenas o elo local. A rede é chefiada diretamente a partir do posto de Londres.
– Mesmo assim.
– Não podemos sacar trinta agentes do lado de lá como quem não quer a coisa. Iniciávamos uma guerra. Se as linhas de abastecimento foram à vida e as rotas de fuga estão vedadas, não vejo que haja coisa nenhuma que possamos fazer por eles.
– Portanto, seja lá como for, estão mortos – sugeriu ele, mais à guisa de confirmação que de pergunta. Estava um telefone a tocar na sua secretária, mas ele não levantou o auscultador do descanso. Continuou a olhar para mim com uma preocupação misericordiosa. – Bem, se estiverem mesmo mortos, será capaz de fazer o favor de não se esquecer de que a culpa não é sua, Ned? – acrescentou amavelmente. – Ninguém espera que você apanhe sozinho o Centro de Moscovo. A culpa pode ser do Quinto Andar, pode ser minha. Sua é que não é.
Fez-me um aceno na direção da porta. Fechei-a atrás de mim e ouvi o telefone deixar de tocar.
Regressei nessa mesma noite a Hamburgo. Quando telefonei, Bella pareceu-me excitada, além de triste por eu não ir logo a correr ter com ela.
– Onde está o Brandt? – perguntou. Não tinha a noção do grau de segurança do telefone. Respondi que Brandt estava bem, perfeitamente bem. Senti-me culpado ao falar com ela sabendo eu tanto e ela tão pouco. Eu devia agir perante ela com naturalidade, dissera Haydon: «Seja o que for que tenha feito anteriormente, continue a fazê-lo ou faça-o melhor. Não quero que ela desconfie de nada.» Eu devia dizer-lhe que Brandt a amava, coisa em que aparentemente ele estava a insistir. Supus que, na sua provação, ele pedia para falar comigo. Esperava bem que sim, porque confiava nele e ele estava sob a minha responsabilidade.
Procurei não me sentir preocupado comigo mesmo quando havia tantas tragédias maiores à minha volta, mas era difícil. Até há uns dias, Brandt e a tripulação tinham estado ao meu cuidado. Eu tinha sido o seu porta-voz e paladino. Agora um deles estava morto ou pior que isso, e os restantes tinham-me sido tirados das mãos. A rede, embora trabalhasse para Londres, tinha sido a minha família por procuração. Agora assemelhava-se aos resquícios de um exército fantasmagórico, inacessível, flutuando entre a vida e a morte.
O pior de tudo era a minha sensação de estar deslocado, de albergar uma dúzia de teorias incompatíveis ao mesmo tempo na cabeça e sustentar uma delas de cada vez. Tão depressa insistia comigo mesmo que Bella estava inocente, tal como sustentava perante Haydon, como me interrogava sobre como poderia ela ter comunicado com os seus patrões. A resposta era: com a maior das facilidades. Ela ia às compras, ao cinema, à escola. Podia encontrar-se com correios, encher a seu bel-prazer caixas de posta-restante.
Porém, mal me aventurava a pensar tal coisa, corria em sua defesa. Bella não era falsa. A fotografia era forjada e a história do pai, bem espremida, não deitava sumo nenhum. Smiley tinha dito isso mesmo. Havia cem maneiras de a missão ter sido furada sem Bella ter o mínimo que ver com isso. A nossa segurança operacional era apertada, mas não tão apertada como eu desejaria. O meu antecessor revelara-se corrupto. Não poderia, além de inventar agentes, ter vendido também alguns? E, mesmo que não o tivesse feito, seria assim tão irrazoável da parte de Brandt dar a entender que a fuga de informações podia ter vindo do nosso lado da cerca, e não do dele?
Ora, eu não faria o leitor pensar que, sozinho nessa noite na sua estreita cama, o jovem Ned desenredou sem ajuda a meada de traição que mais tarde exigiu todos os poderes de George Smiley para ser exposta. Uma fonte pode ser uma mistificação, uma mistificação pode ser ignorada, um funcionário responsável experiente pode tomar uma decisão errada – tudo isso sem o auxílio de um traidor dentro das portas do Quinto Andar. Eu sabia isso. Não era uma criança, nem tão-pouco um daqueles amarelentos teóricos das conspirações do Circus.
Não obstante, pus-me mesmo a meditar como poderia acontecer a qualquer de nós quando puxam por ele até aos limites da sua lealdade ao seu serviço. Reuni, a partir da minha visão global, todos os boatos que me tinham chegado do diz-que-diz-que do Circus. Histórias de insucessos inexplicáveis e sucessivos escândalos e da fúria crescente dos nossos primos americanos. De reorganizações insignificantes, rivalidades ruinosas entre homens que eram hoje imortais e amanhã se tinham reformado. Histórias horrendas de incompetência a ser tomada como prova de grandiosa tradição – e enervantes testemunhos de traição a serem rejeitados como incompetência.
Se há uma coisa chamada crescer, pode-se dizer que houve uma altura nessa noite em que eu dei um desses saltos para a maturidade. Apercebi-me de que o Circus era muito parecido com qualquer outra instituição britânica, com a diferença de que o era mais, dado que fazia os seus jogos na segurança de salas fechadas, com as vidas de outras pessoas a servir de fichas. No entanto, estava satisfeito por ter feito esse meu reconhecimento. Ele devolvia-me a responsabilidade pelas minhas ações, que até então eu tendia um tanto exageradamente a pôr aos pés de outrem. Se a minha carreira até agora tinha sido uma batalha constante entre a submissão e a identidade, poder-se-ia dizer que a submissão levara a melhor. Mas nessa noite cruzei uma espécie de fronteira: decidi que, daí em diante, daria mais ouvidos aos meus próprios instintos e desejos, e menos aos arreios sem os quais parecia incapaz de passar.
S
Encontrámo-nos no apartamento seguro. Se em algum lado se podia encontrar terreno neutro, era lá. Ela ainda não sabia nada da catástrofe. Eu só lhe tinha dito que Brandt fora chamado a Inglaterra. Fizemos amor de imediato, cega e esfomeadamente; depois eu esperei pela lucidez que se segue ao ato do amor para iniciar o meu interrogatório.
Comecei a afagar-lhe o cabelo, de maneira brincalhona, alisando-o contra a cabeça. Depois puxei-o para trás com ambas as mãos e reuni-o num tosco rolo.
– Assim ficas com um ar severo que nem sei lá o quê – disse, e beijei-a, continuando a segurá-lo no lugar. – Alguma vez o usaste assim? – Voltei a beijá-la.
– Quando era rapariga.
– Quando foi isso? – perguntei entre os nossos lábios unidos. – Queres dizer antes do Tadeu? Quando?
– Até ter ido para a floresta. Nessa altura cortei-o. Foi outra mulher que mo cortou com uma faca.
– Tens alguma fotografia tua assim?
– Na floresta não tirávamos fotografias.
– Quero eu dizer antes. Quando o usavas como uma senhora severa.
Ela endireitou-se na cama.
– Porquê?
– Diz-me, e pronto.
Ela observava-me com aqueles olhos quase incolores.
– Na escola, tiravam-nos a fotografia. Porquê?
– Por grupos? Por turmas? Que género de fotografias?
– Porquê?
– Diz-mo, e pronto, Bella. Preciso de saber.
– Tiravam-nos fotografias na turma, e tiravam fotografias para os nossos documentos.
– Que documentos?
– De identidade. Para os passaportes.
Não se referia a um passaporte tal como nós o entendemos. Referia-se a um passaporte para andar dentro da União Soviética. Nenhum cidadão livre podia atravessar a rua sem ele.
– Uma fotografia tipo passe? Sem sorrir?
– Sim.
– Que fizeste do teu antigo passaporte, Bella?
Não se lembrava.
– Como é que estavas vestida para ela? Para a fotografia? – Beijei-lhe os seios. – Não era como estas. Como é que estavas vestida?
– Blusa e gravata. Que disparate vem a ser esse?
– Escuta-me, Bella. Há alguém de que te lembres, da tua terra, um colega da escola, um antigo namorado, um parente, que tivesse uma fotografia tua com o cabelo para trás? Alguém a quem pudesses escrever, porventura, que pudesse ser contactado?
Ela refletiu por um momento, olhando-me fixamente.
– A minha tia – disse de modo rabugento.
– Como é que ela se chama?
Disse-mo.
– Onde é que vive?
– Em Riga – disse ela. – Com o Tio Janek. – Peguei num envelope, sentei-a, ainda nua, a uma mesa e fi-la escrever a morada completa dos tios. Depois pus uma folha lisa de papel de carta diante dela e ditei uma carta que ela traduziu à medida que escrevia.
– Bella – peguei nela, fazendo-a pôr-se de pé, e beijei-a ternamente. – Bella, diz-me outra coisa. Alguma vez andaste em alguma escola, fosse de que espécie fosse, a não ser as escolas da tua cidade?
Ela abanou a cabeça.
– Nem escolas de férias? Escolas especiais? Escolas de línguas?
– Não.
– Aprendeste inglês na escola?
– Claro que não. Se não, falaria inglês. Que se passa contigo, Ned? Porque é que me estás a fazer essas perguntas parvas?
– As coisas correram mal com o Daisy – disse eu, ainda cara a cara. – Houve tiros. O Brandt não foi ferido, mas houve outros que sim. É tudo quanto estou autorizado a contar-te. Temos de apanhar um avião para Londres amanhã, tu e eu juntos. Eles precisam de te fazer umas perguntas e descobrir o que foi que deu para o torto.
Ela fechou os olhos e começou a tremer. Abriu a boca e soltou um grito mudo.
– Eu acredito em ti – disse eu. – Quero ajudar-te. E ao Brandt. A verdade é essa.
Gradualmente voltou até mim e apoiou a cabeça no meu peito enquanto chorava. Era novamente uma criança. Talvez sempre o tivesse sido. Talvez, ao ajudar-me a crescer, tivesse aumentado a distância entre nós. Eu tinha-lhe trazido um passaporte britânico. Ela não possuía nacionalidade. Fi-la passar a noite comigo e ela agarrou-se a mim como uma rapariga a afogar-se. Nenhum de nós dormiu.
No avião, agarrou-me a mão mas já estávamos muitíssimo distantes. Depois falou numa voz que eu nunca lhe tinha ouvido. Uma voz firme e adulta de tristeza e desilusão que me lembrou a de Stefanie quando me transmitira o seu aviso de sibila na ilha.
– Er ist ein reiner Unsinn – disse ela. É um puro disparate.
– O quê?
Ela tinha retirado a mão. Não de fúria, mas com uma espécie de desespero mundano.
– Vocês dizem-lhes para porem os pés na água e esperam para ver o que acontece. Se não forem alvejados, são heróis. Se forem alvejados, são mártires. Vocês não ganham nada que valha a pena ter e encorajam as pessoas a suicidarem-se. Que querem que façamos? Que nos ergamos e matemos o opressor russo? Vêm ajudar-nos se o fizermos? Não me parece. Acho que vocês estão a fazer qualquer coisa porque não podem deixar de fazer alguma coisa. Acho que não nos são absolutamente nada úteis.
Nunca pude esquecer o que Bella disse, pois era também uma rejeição do meu amor. E hoje penso nela todas as manhãs ao ouvir as notícias, antes de levar o meu cão à rua. Pergunto a mim mesmo o que pensávamos nós que estávamos a prometer àqueles corajosos bálticos nesse tempo, e se era a mesma promessa que hoje tão diligentemente estamos a quebrar.
Desta feita era Peter Guillam que estava à minha espera no aeroporto, o que constituiu um alívio para mim, pois o seu ar bem-parecido e os seus modos joviais aparentaram transmitir-lhe confiança. Como pau de cabeleira tinha trazido Nancy, dos vigias, e Nancy tinha-se tornado maternal para a ocasião. Entre eles, conduziram Bella através da imigração até uma furgoneta cinzenta que pertencia aos inquisidores de Sarratt. Desejei que alguém pudesse ter-se lembrado de mandar um veículo menos impressionante, porque, quando ela viu a furgoneta, parou e olhou acusadoramente para trás, na minha direção, antes de Nancy a agarrar pela mão e a enfiar lá dentro.
Na vida turbulenta de um oficial de Informações, estava eu a aprender, nem sempre havia aquilo a que se chama um adeus elegante.
Só posso dizer ao leitor o que fiz a seguir e o que soube mais tarde. Dirigi-me ao gabinete de Smiley e passei a maior parte do dia a tentar apanhá-lo entre uma e outra reunião. O protocolo do Circus exigia que eu fosse primeiro a Haydon, mas eu já tinha excedido as instruções de Haydon com as perguntas que fizera a Bella e desconfiava que Smiley me ouviria mais compreensivamente. Ele ouviu-me; tomou conta da carta de Bella e examinou-a.
– Se a pusermos no correio em Moscovo e dermos uma morada segura finlandesa para eles responderem, é capaz de resultar – incitei-o.
Mas, como é tão frequente em Smiley, tive a impressão de que ele estava a pensar para lá de mim, em domínios dos quais eu era excluído. Deixou cair a carta numa gaveta e fechou-a.
– Creio bem que não vai ser preciso – disse ele. – Pelo menos esperemos que não seja.
Perguntei-lhe o que fariam a Bella.
– Creio que uma coisa muito parecida com o que fizeram ao Brandt – respondeu ele, acordando o suficiente da sua absorção para me endereçar um sorriso triste. – Fazê-la recapitular todos os pormenores da sua vida. Tentar passar-lhe rasteiras. Cansá-la. Não vão magoá-la. Fisicamente. Não lhe dirão o que têm contra ela. Hão de esperar simplesmente furar-lhe o disfarce. Parece que a maioria dos homens que cuidaram dela na floresta foi caçada recentemente. Isso não há de abonar em favor dela, naturalmente.
– Que farão com ela a seguir?
– Bem, acho que ainda podemos evitar o pior, mesmo que hoje em dia não possamos evitar muito mais – retorquiu ele, voltando aos seus papéis. – Está na hora de ir ter com o Bill, não está? Ele há de estar a perguntar a si mesmo o que anda você a preparar.
E lembro-me da expressão do seu rosto ao despedir-me: da dor e da frustração, até da cólera, que nele havia.
Teria Smiley metido a carta no correio como eu sugerira? Teria a carta dado origem a uma fotografia e calharia ser a fotografia a mesmíssima que os falsificadores de Moscovo tinham metido na sua fotografia de grupo? Desejaria que as coisas fossem assim tão claras, mas na realidade nunca o são, embora queira acreditar que os meus esforços em favor de Bella tiveram alguma influência na sua libertação e reinstalação no Canadá, que ocorreu poucos meses mais tarde em circunstâncias que são para mim um enigma.
Porque Brandt recusou-se a levá-la de volta, e muito menos a ir com ela. Ter-lhe-ia Bella falado do nosso caso? Ou outra pessoa? Não acho grandemente possível, a não ser que o próprio Haydon o tivesse feito por maldade. Bill detestava todas as mulheres e também a maioria dos homens, e não havia nada de que ele mais gostasse que virar do avesso os afetos de cada um.
Brandt foi também dispensado sem procedimento disciplinar e, após alguma resistência por parte do Quinto Andar, recebeu uma gratificação para encetar uma ocupação respeitável. Quer isto dizer que pôde comprar um barco e mudar-se para as Índias Ocidentais, onde retomou o seu velho ofício de contrabandista, com a diferença de que desta vez optara por armas para Cuba.
E a traição? A rede de Brandt tinha sido apenas demasiado eficiente para o estômago de Haydon, disse-me Smiley mais tarde, de modo que Bill a traíra como traíra o seu antecessor e tentara atirar as culpas para cima de Bella. Tinha arranjado maneira de o Centro de Moscovo falsificar as provas contra ela, que depois apresentou como provenientes da sua fonte espúria Merlin, o fornecedor do material da Feitiçaria. Apostado por essa altura na pista da toupeira, Smiley tinha dado parte das suas suspeitas em lugares importantes, com o que mais não conseguiu do que ser mandado para o exílio por ter razão. Foram precisos mais dois anos para o chamarem de volta a fim de limpar o estábulo de Augias.
E nisto ficou a história até a nossa perestroika interna começar a sério – no inverno de 89 –, quando Toby Esterhase, o ubíquo sobrevivente, chefiou uma delegação de nível médio do Circus ao Centro de Moscovo como primeiro passo para aquilo a que o nosso abençoado Ministério dos Negócios Estrangeiros teimava em chamar uma «normalização das relações entre os dois serviços».
A equipa de Toby foi recebida na Praça Dzerzhinsky e foi-lhe mostrado muito do equipamento, se bem que não, é de supor, as câmaras de tortura da velha Lubyanka, ou o telhado onde certos prisioneiros descuidados tinham ocasionalmente escorregado. Toby e os seus homens foram obsequiados com vinho e jantares. Trataram-nos como uns reizinhos. Compraram gorros de peles, puseram distintivos jocosos e fizeram-se fotografar na Praça Dzerzhinsky.
No último dia, num gesto especial de boa vontade, acompanharam-nos à galeria da enorme sala de comunicações do Centro, onde são recebidos e tratados relatórios de todas as origens. E foi aí, quando iam a sair da galeria, diz Toby, que ele e Peter Guillam avistaram no mesmo instante um fulano alto, aloirado e corpulento, meio em contraluz no extremo do corredor, a sair daquilo que aparentemente era o lavabo dos homens, pois só havia mais uma porta nessa porção do corredor e estava assinalada como sendo de senhoras.
Era um homem de certa idade; e apesar disso saiu o umbral da porta como um touro. Fez uma pausa e durante um longo compasso de espera fitou-os de frente, como se não soubesse bem se havia de dirigir-se para eles e cumprimentá-los ou se bater em retirada. Depois baixou a cabeça e, ao que lhes pareceu, com um sorriso, fez meia volta e desapareceu por outro corredor. Mas não antes de eles terem sobeja ocasião de reparar no seu gingar marinheiro e nos ombros de lutador.
Nada se some no mundo secreto; nada se some no mundo real. Se Toby e Peter têm razão – e há quem ainda sustente que a hospitalidade russa levara a melhor sobre eles –, Haydon teve ainda uma razão mais poderosa para apontar o dedo da suspeita para Bella e desviá-lo do capitão-de-mar Brandt.
Seria Brandt falso desde o princípio? Se assim era, eu tinha inconscientemente promovido o seu recrutamento e a morte dos nossos agentes. É um pensamento terrível, que por vezes, nas frias horas cinzentas, deitado ao lado de Mabel, volta a perseguir-me.
E Bella? Relembro-a como o meu último amor, como a viragem certa que nunca fiz. Se Stefanie me tinha destrancado a porta da dúvida, Bella apontava-me para o mundo aberto enquanto ainda era tempo. Quando penso nas minhas mulheres desde então, acho que representam uma convalescença. E, quando penso em Mabel, só posso explicá-la como o apelo do ambiente familiar para um homem regressado da linha da frente. Mas a recordação de Bella permanece tão vívida em mim como a nossa primeira noite no apartamento seguro que dava para o cemitério – embora nos meus sonhos ela esteja sempre a afastar-se de mim e até de costas viradas exprima censura.